Entrevista: Toni Cardi

Dossiê Toni Cardi

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Entrevista com Toni Cardi

Por Matheus Trunk, enviado especial a Piracicaba

Ele propagou diversas vezes o tipo do machão. No cinema, ficou conhecido como o galã que vivia rodeado de lindas mulheres. Fera nas artes marciais, nunca perdia uma única briga. Mas na vida real, Irineu Antonio Travaglini não é igual aos papéis que interpretou.

Aos 68 anos, Toni Cardi é um sujeito simpático e boa praça. Tanto que na entrevista ficou emocionado quando falava sobre colaboradores que já tinham falecido. Segundo ele, toda sua vivência artística estará em sua biografia, A Simetria de Uma Trajetória, que em breve estará nas principais livrarias. “É um relato importante que eu quero passar até para as pessoas que não conhecem a minha história”, explica. Para entrevistar o galã dos faroestes brasileiros, desloquei-me para Piracicaba, cidade localizada a 100 quilômetros da capital paulista.
 

Parte 1- O início da carreira e os filmes com Mazzaropi

Parte 2- Os trabalhos na Boca do Lixo

Parte 3- Novelas, vivência no ramo imobiliário e o futuro

Entrevista: Toni Cardi – Parte 1

Dossiê Toni Cardi
Parte 1- O início da carreira e os filmes com Mazzaropi

 

Toni Cardi fez quatro filmes com Mazzaropi

 

 

Zingu! – Pra gente começar seu Toni, eu gostaria que o senhor falasse da sua infância, a profissão dos seus pais, essas coisas. 

Toni Cardi- Eu nasci aqui mesmo em Piracicaba. Sou piracicabano da gema. A minha mãe era espanhola de Granada, na região da Andaluzia. Um lugar de mulheres bonitas, por sinal. Ela já é falecida, eu tenho uma mensagem dela muito linda. São imigrantes que vieram aqui, compraram umas terras e se deram bem. Passaram muito mal depois, tiveram uma vida muito difícil. Eles eram analfabetos de pai e mãe, mas eram muito bacanas. A minha mãe veio com sete anos pra cá. O meu pai acabou nascendo aqui no Brasil, eles foram lavradores e depois olheiros…era uma vida dura, trabalhavam no campo. A minha origem é essa, bastante humilde. O forte do meu pai era a lavoura e a olaria. Ele amassava barro, preparava massa pro pessoal fabricar tijolo. Era diferente nesse tempo, né? A minha mãe era a companheira dele, plantava e recolhia cana. Uma vida muito difícil. 

Z- Como o senhor começou a gostar de cinema?                  

TC- Desde os meus seis, sete anos eu me interessava por cinema. Durante muito tempo, eu freqüentei um cineminha que ficava na usina onde eu trabalhava. Ali, eu via aqueles filmes de bangue-bangue antigos, Tarzan, aquelas coisas todas. 

Z- O senhor tem quantos irmãos? 

TC- Nós somos em sete. 

Z- Poxa, sete. 

TC- Sim. Eu sou o mais velho. Conclusão: fui o que mais sofreu, o que mais se ferrou (risos). Porque de sete além de levar as primeiras porradas, vai ter que ajudar a cuidar dos outros. Então, essa foi a minha sina.   

Z- Como o senhor começou a trabalhar com cinema?  

TC- Foi através do teatro. Eu fiz uns quatro anos e meio de teatro, inclusive com o Raffaele Rossi. Agora o cinema foi em 1966. Foi pelas mãos do Roberto Mauro. A gente estava fazendo um programa chamado Showriso na TV Cultura e depois nos encontramos numa boate chamada La Vie em Rose, ali na Boca. Ele me apresentou o Rafaelle Rossi, que estava com vontade de começar a filmagem do longa-metragem O Homem Lobo, um filme muito doido que demorou muitos anos pra sair. Nisso, eu acabei enveredando pelo cinema pelo Rafaelle.   

Z- Antes de ingressar no cinema, você teve outras profissões? 

TC- Várias. Eu comecei ajudando os meus pais na olaria com sete, oito anos. Depois, eu fui pra lavoura também, trabalhei com os animais da fazenda. Aquela vida do campo: lavrar terra, arar, gradear, tudo isso. Eu realizava todo esse trabalho de agricultor até a colheita. Depois, eu ingressei na metalurgia. Me iniciei como metalúrgico com um primo meu aqui em Piracicaba. Nisso, como eu tinha habilidade, me tornei ferramenteiro. Essa é a profissão do Lula, inclusive, certo? Me formei nessa atividade e trabalhei em vários lugares. Na Clark em Campinas, na General Motors em São Caetano do Sul. Eu rodei um pouco, mas isso faz tempo, foi em 56, 60. Nessa época, eu ingressei no teatro amador. Quando eu estava com dezoito anos, eu comecei a praticar artes marciais, o judô. Inclusive eu fui campeão paulista… então eu fiz muita coisa na vida. Tem gente que fala: “Poxa, você tem 300 anos se somar tudo que você fez” (risos). Acontece que você associa: de manhã você faz uma coisa, de tarde outra. Eu associava muito as coisas: trabalho, divertimento, esporte. Então, dava tempo. 

Z- O senhor lutou judô durante muito tempo? 

TC- Eu competi até os 36 anos. Eu lutava bastante no interior a fora, dei aula, tive academia. Vivi nisso… até dormi muito em cima de tatame (risos). Então, como metalúrgico eu fazia teatro e enveredei no ramo imobiliário. Sou corretor imobiliário até hoje. 

Z- São várias atividades né seu Toni? 

TC- Com certeza. Eu já fui até ladrão de fruta em feira (risos). 

Z- Como surgiu o pseudônimo Toni Cardi? 

TC- Isso surgiu quando eu li um livro do autor do James Bond, o Ian Fleming. Foi um livro chamado Cidades Fascinantes. Eu fiquei lendo e procurando um nome pra mim. Porque o meu nome é Irineu Antonio Travaglini, o Mazzaropi, inclusive, queria que eu usasse esse nome na vida artística. Mas eu achava que não era comercial. Do Antonio, eu peguei o Toni, e eu achei o Cardi no meio da história desse livro do Ian Fleming. Acabei adaptando e ficou Toni Cardi. O nome casou bem, tanto que tem família Cardi no Brasil e eles me acharam na internet. Ficam me perguntando se eu sou parente deles e tal. Mas hoje eu sou amigo da família Cardi que existe em São Paulo. 

Z- O seu primeiro longa foi com o Mazza? 

TC- Note bem: filme que terminou sim. Porque o meu primeiro longa-metragem foi O Homem Lobo, que só foi terminado muitos anos depois. Mas sim, o primeiro filme que eu participei que passou nos cinemas foi O Jeca e a Freira, com o Mazzaropi. 

Como surgiu a oportunidade do senhor trabalhar com o Mazza?

TC- Isso foi em 67. O meu primeiro encontro com ele aconteceu nas escadarias da TV Tupi. Eu estava lá com o Aldo César e com a Nádia Tell. Essa foi uma grande paixão na minha vida, viu? Tanto que se você encontrar ela um dia, você fale com ela. Eu não a vejo, não sei se está viva ou não. Nós três estávamos conversando na escadaria. Parou um Impala branco do outro lado e desceu um camarada. Ele subiu a escada e veio falar comigo. Perguntou se eu era ator, eu respondi que sim. “O meu nome é Roberto Pirillo. Trabalho com o Mazzaropi e ele queria conhecer você. Tem como você descer e conversar com a gente?”, ele perguntou. Eu desci e fui apresentado ao Mazza. No carro, estava ele e o Carlos Garcia, que fez muitos filmes como diretor de produção. Ali nasceu o interesse do Mazzaropi em me contratar, pediu pra eu ir no escritório dele no Largo do Paissandú. Então, foi assim que nasceu o bandido do filme dele, o chefe do bando que foi no Jeca e A Freira. Depois, eu ainda fiz O Paraíso das Solteironas, O Grande Xerife e Uma Pistola Para Djeca. Fiz quatro longas com ele. 

Z- Quais foram os seus papéis? 

TC- Eu fiz três bandidões e um mocinho. Nesse filme, eu fazia o par romântico com a Patrícia Mayo no Grande Xerife. O meu personagem senão me engano se chamava Júlio. Mas dentro do esquema do Mazza, de mocinho, eu passei a ser o anti-herói. Houve uma confusão minha com o Mazzaropi. Porque além dele ser o dono do filme, produtor, ator, diretor. Ele fazia tudo com uma assessoria muito grande do Pio Zamuner, um grande cara que mora no meu lado esquerdo. Mas o Mazza tratava muito mal o pessoal, na cozinha, uma série de coisas. O pessoal falava: “Mas o Mazza paga direitinho”, mas isso era a obrigação de todo mundo. Na realidade, ele pagava pouco. Mas todo ator em começo de carreira usou o Mazzaropi. Como eu, Tarcísio Meira, Chico de Franco, David Cardoso e alguns outros porque era visto. Esse povo todo usou os filmes do Mazza pra se projetar porque era o filme mais visto no Brasil. Mas ele era muito mesquinho, era um cara muito mesquinho. Eu cheguei a brigar lá por causa de comida. Na produção, você contrata hospedagem, alimentação, essas coisas todas. Você ficava hospedado na fazenda dele em Taubaté. Ocorre que esse pessoal da produção, além de mesquinho, tratava mal as pessoas. Como eu sempre fui metido a besta, procurei defender os outros. No Uma Pistola Para Djeca, o Penna Filho era assistente de direção e o saudoso Ary Fernandes era o realizador. O Penna era muito humilde e queria comer mais um bife. Poxa, isso é um direito que todo mundo pode ter. Um outro tinha pedido um bolinho de carne…eu sei que era um troço bem pequeno pelo universo que nós estávamos trabalhando. E foi negado pra ele. Aí eu subi a serra bicho, levantei e desci a mão naquela janelinha onde entregava os pratos e levei tudo pra baixo. Depois, veio o Carlos Garcia falar comigo: “Poxa, segura as pontas que o negócio não é com você”. No dia seguinte, o Mazzaropi reuniu a equipe toda e falou: “Vamos filmar tudo que é do Toni porque ele vai embora”. Então, eu de mocinho passei a ser bandido. Então, tem uma história em que eu sou meio mocinho, meio bandido. Uma espécie de anti-herói, que é esse personagem chamado Júlio. Foi o último trabalho que eu fiz com o Mazzaropi. 

Z- Mas o seu personagem era maior nesse filme? 

TC- Era bem maior. Embora emtodos os filmes dele quando os outros personagens começavam a aparecer, ele cortava. Nós éramos escada. Todos os demais eram escada para ele. Mas valeu trabalhar com ele. Eu gostei bastante. 

Z- Na sua primeira fita com o Mazza, você trabalhou com a Elizabeth Hartmann? 

TC- Isso, no Jeca e a Freira. Ela fazia a freira. Uma grande profissional. 

Z- O Maurício do Valle também estava nesse filme? 

TC- Sim, o Maurício era o meu patrão no filme. Ele fazia um coronel e eu ia pro pau, brigava por ele. Eu era o único capanga que conseguia entrar na casa, na sede da fazenda. 

Z- Poxa, mas você estava começando e o Maurício já era um monstro sagrado. Como era trabalhar com ele? 

TC- Maurício do Valle…ele me ensinou bastante. Muito, muito. Era um puta profissional, fora de série. Infelizmente, o que acabou com ele foi o vício da droga. Tanto que depois ele chegou a amputar a perna, foi um final triste. Se você me permite, o Maurício tinha três paixões na vida: Bibi Ferreira, foi o grande amor da vida dele; o segundo eram os cavalos, tudo que ele ganhava, ele enfiava no Jockey Clube. Ele chegou até a comprar uma égua. Eu cheguei a acompanhá-lo nos finais de semana para ver a égua dele correr. Ele era fanático pelo turfe. A terceira paixão era a cocaína, isso era complicado. Porque você via o Maurício num estado lamentável por causa da droga. E a gente ficou no mesmo quarto enquanto fazámos esse filme do Mazzaropi. O que eu vi, presenciei e passei pra segurar as pontas desse cara foi horrível. 

Z- Agora, do ser humano… 

TC- Fora disso aí, ele era um grande amigo. Meu irmãozão, sabe? Ele foi um mestre pra mim. Me ajudou muito. 

Z- Ele já era um cara consagrado e trabalhava com diretores iniciantes

TC- Grande cara. Baita profissional e grande ser humano. 

Z- A Isaura Bruno também trabalhou nesse filme. 

TC- Isaura Bruno… ela fazia uma escrava se eu não me engano. Ela, o Henricão. Puxa, esse era gente finérrima. Ele ficava a tarde inteira caçando passarinhos na fazenda do Mazzaropi. Me lembro dele com uma gaiolinha pra cima e pra baixo. 

Z- Ele fez quase todos os filmes do Mazza. 

TC- Fez vários. Ele e o Zé Veloni. O Zé Veloni foi o vereador que mais vezes presidiu a Câmara de Ribeirão Preto. Ele está vivo ainda. Ele é gente finíssima, trabalhou comigo também no Homem Lobo. Os dois fizeram quase que todos os filmes do Mazzaropi. 

Z- Como era a estrutura da PAM Filmes? Porque todos os filmes eram começados sempre na mesma época do ano. 

TC- Com certeza. Ele sempre começava a filmar em julho, agosto. Em setembro, o filme estava pronto montando. Porque a data oficial de lançamento dele era o dia 25 de janeiro, data do aniversário de São Paulo. Os longas eram sempre lançados no Cine Art Palácio, em São Paulo. Todo dia 25 de janeiro nós estávamos lá, em traje de gala, para o lançamento. Pra você ter uma ideia como ele sempre filmava na mesma época do ano, em todos os longas os ipês roxo e amarelo estão floridos. Porque essas flores sempre dão nessa época do ano. 

Z- Você foi no lançamento de todos os filmes? 

TC- Sim. Dos quatro. 

Z- Seu Toni, fala um pouco como era o lançamento de um filme do Mazza na época. É verdade que São Paulo parava? 

TC- Parava. Aquela (avenida) São João, aquele Largo do Paissandú paravam. Tinha que bloquear todas as passagens ali, não passava um carro na frente do cinema. É como a parada gay hoje, sabe? (risos). O que tem de gente hoje na parada gay tinha de gente na frente do Art Palácio em São Paulo. Era uma loucura, uma loucura. Todos os atores eram apresentados, primeiro escalão, segundo escalão, os próprios técnicos, todo mundo ia pro palco. Era realmente algo impressionante. O Mazza contava umas piadas e depois vinha chamando um por um. Esse momento era bonito porque a gente percebia que dessa maneira ele valorizava todos os atores. Isso era algo muito legal dele. 

Z- Pro ator que estava começando era importante ter trabalhado com o Mazzaropi? 

TC- Para o público sim. Entre os colegas era algo ruim. O caras falavam: “Pô, você trabalhou com o Mazzaropi? Tanta coisa boa, você é um puta tipo, luta, fala bem”. Eu falava: “Poxa, foi ele quem me chamou. Ele que me apresentou um roteiro, fez uma proposta e eu estava parado. Então, eu fui”. Acabei fazendo quatro filmes juntos. Depois, eu saí fora e nunca mais tivemos contato. 

Z- O senhor acha que a classe artística da época tinha preconceito contra o Mazzaropi? Pelo filme dele ser popular na acepção da palavra? 

TC- No filme do Mazzaropi só aparecia ele. É Mazzaropi vezes Mazzaropi, com resultado igual a Mazzaropi. Entendeu? Então, o que acontece: os colegas já gostavam de chutar o balde. Ator gosta de esculachar. Eles falavam: “Poxa, você tá fazendo ponta”. Na realidade, eu fazia papéis de coadjuvante num segundo ou terceiro papel que, muitas vezes, era tão bom quanto o principal. Ás vezes, é preferível você ser coadjuvante que ser o protagonista. Quantos atores internacionais se destacaram sendo coadjuvantes? É preferível você fazer um bandido que um mocinho água com açúcar. Mas eu vou ser sincero com você: existia esse preconceito sim. Mas para o ator que sabe o que está fazendo não muda nada. É mais um trabalho, pô! Veja uma novela, toda telenovela tem trocentos atores. Tem um ou outro que se destacam e, muitas vezes, não precisa ser o ator principal. Tem um lá do fundo que pega uma ponta e termina estourando. 

Z- O seu relacionamento com o Mazzaropi foi turbulento só no último filme? 

TC- Mais ou menos. O Mazza deu em cima de mim inclusive logo no início. Isso foi no primeiro filme. Tanto que o Maurício do Valle falava pra mim: “Vai pra cima do homem Toni. Depois, ele te dá uma grana e a gente faz um filme”. Baita sacanagem do Maurício né? (risos). O Mazza chegava tentando te agradar. Ele falava: “Um corpo bonito desse aí, mas não quer nada com nada”. Mas o meu negócio era outro, sabe? A Elizabeth Hartmann falava comigo: “Toni, o homem está afim de você”, e eu falava: “Não”. Nesse filme, eu fui segundo assistente de produção. Fazia uma espécie de assessoria pro Carlos Garcia. Então, era eu que trazia para a produção aqueles coadjuvantes e figurantes que treinavam na minha academia. Eram todos lutadores de telecatch, judocas amigos meus. Eu que treinava esse pessoal, ensaiava com eles. Pro Mazzaropi deixar eu fazer isso no filme dele, é porque houve um bom relacionamento entre nós. 

Z- Como era o relacionamento do Mazza com o Pio?

 TC- O Mazza confiava muito nele. O Pio era o único elemento em quem o Mazza saia e deixava o filme rodando sozinho. 

Z- Talvez pelo jeito italianão dele, o Pio é um cara muito pouco lembrado. Mas no campo de filmagem ele trabalhava bastante? 

TC- O problema dele é a bebida. Ele bebe muito. Tanto que um dia ele não apareceu no alojamento. Então, eu peguei o jipe da produção e fui atrás dele. Da fazenda para Taubaté tinha uns seis, sete quilômetros. Eu saí de madrugada… ele tinha um fusquinha amarelinho que estava focinhado na valeta. Ele saiu da cidade, estava bêbado e ficou dormindo dentro do carro. Nisso, ele não apareceu na fazenda e o pessoal ficou preocupado com ele. De manhã, eu tive que tirar ele de dentro do automóvel dele. O problema do Pio é a bebida. Não sei hoje, mas eu adoro o Pio. Eu adoro esse pessoal, ele é um grande profissional. Ele é bacana pra cachorro, mas ele não admitia que eu lutasse. Um dia ele me desafiou na capoeira: “Toni, vou te desafiar. Vou te derrubar”; “Pio para com isso”, eu disse. Nessa ocasião, estávamos eu, ele e um grande amigo também que já foi embora chamado Átila Iório. Grande companheiro esse, viu? A gente estava fazendo um longa-metragem chamado No Paraíso das Solteironas. Nisso, o Pio me desafiou: “Eu vou te dar um rabo de arraia”; ele mandou e eu soquei ele de cabeça pro chão. Ele queria morrer comigo: “Eu vou te pegar um dia”. Mas a amizade nossa era tão grande bicho, mas tão grande. Pô… a gente saia junto, ele bebia, enchia a cara e eu tomava suco de laranja. Eu falava: “Pio, pode tomar”. Ele tomava rabo-de-galo, whisky, pinga…

 Z- Você falou do Átila Iório. Em quantos filmes vocês trabalharam juntos? 

TC- Trabalhei com ele nesse filme e depois a gente ia fazer A Guerra dos Pelados, do Sylvio Back. Eu fui até raspar a cabeça pra participar desse filme, mas no fim acabei fazendo outra coisa. Ele também tirou o cabelo para participar dessa fita. Mesmo assim, nós mantivemos uma amizade muito grande, eu, ele, a esposa dele, Adele Iório, a filha dele, que foi a primeira esposa do Dedé Santana. Uma pessoa muito bacana.  Inclusive, outra ex-esposa do Dedé, a Ana Rosa, quase chegou a contracenar comigo no Pedro Canhoto. Acabou não acertando com a produção, mas fomos apresentados lá em Dourados. Fizemos uma puta de uma festa… uma grande amiga. De vez em quando, eu vejo ela na televisão e dá saudades. Ela fez muitas novelas, uma grande profissional. Uma pessoa muito bacana. 

Parte 2

Entrevista: Toni Cardi – Parte 2

Dossiê Toni Cardi
Parte 2- Os trabalhos na Boca do Lixo

Toni Cardi em Cena de A Noiva da Noite (1973)

  

Z- Depois do primeiro trabalho com o Mazza, o seu segundo longa foi com o Mojica? 

TC- Sim, foi com o Zé do Caixão. A ideia original era uma trilogia cujo nosso capítulo se chamava O Fabricante de Bonecas. O elenco era eu, Rosalvo Caçador, Mário Lima e o Luiz Sérgio Person. Esse, um outro grande cara. Depois, eu fiz Panca de Valente com ele também. O Person foi um grande amigo e eu senti muito quando ele morreu. Morreu cedo… 

Z- Como surgiu essa oportunidade de você trabalhar com o Mojica? 

TC- Foi na Boca. O próprio Mojica me chamou um dia, ele estava com o Mário Lima, inclusive. A gente foi tomar um café no bar Soberano, onde só dava artista. Lá misturava tudo: era puta, cafetão, artista de cinema, o caralho. Era um grande fuzuê (risos). Ele e o Mário Lima num canto com um grupinho, quatro ou cinco. O Mário me chamou de lado: “Toni, o Mojica vai fazer um longa e está querendo você”. Nós conversamos e eu me interessei pelo trabalho. Eles me passaram o roteiro e o Mojica me falou: “Aparece amanhã na sinagoga. A gente conversa e quem sabe a gente se acerta”. Era porque os estúdios do Mojica eram numa sinagoga que ficava no Brás. Foi uma experiência boa até. 

Z- Era um papel pequeno. 

TC- Sim. Num filme de uma hora e meia, cada episódio tem trinta minutos. Eu, Rosalvo Caçador, Mário Lima e Person estávamos em uma boate. Encontrávamos umas meninas, aí vamos para a casa delas. Quando entra no quarto, no bem bom um velho mata os quatro. Aí depois tira os olhos… também outro troço sacrificante você ficar quatro horas cego ali. 

Z- Essa cena foi difícil de ser feita? 

TC- Sim. Eles colocaram na gente uma maquiagem fudida. Foram quatro horas e meia de maquiagem pra trabalhar. Você fica praticamente cego. Mas foi uma experiência muito boa. O Mojica é muito doidão, é tudo na doidice, né? Mas valeu, valeu. É bom… você tem que conhecer de tudo. 

Z- Depois, você só voltou a trabalhar com ele no A Virgem e o Machão. 

TC- A Virgem e o Machão? Acho que foi direção dele. 

Z- Foi uma produção do Cervantes. 

TC- Augusto Cervantes. Fiz mesmo. Foi mais uma participação especial pequena. Eu contracenava com aquela Nadir Fernandes. Linda, não sei onde ela anda. Não vi mais ela. Tenho até fotos dela comigo. Ela fazia uma Maria Sorvete, não é isso? (risos). 

Z- Isso. Um negócio assim. 

TC- Eu sou o único galã que não leva sorvete pra ela. Dou uma de bom, aquela coisa toda (risos). 

Z- Você conheceu o Person fazendo esse filme do Mojica? 

TC- Não, eu conheci o Person na Boca. Isso foi logo depois que ele fez São Paulo SA. Admirei o trabalho dele, tanto que eu fui ver o filme dele no cinema. Nos tornamos amigos e coincidiu da gente fazer esse trabalho. Nessa época, o Person já estava com o roteiro pronto do Panca de Valente. Ele chegou em mim: “Poxa Toni, você topa fazer esse filme comigo em Itu? Você monta bem em cavalo?”. Nós fomos pra Itu fazer essa fita. 

Z- Foi um trabalho legal? 

TC- Sim. Uma pena que esse trabalho não tenha dado dinheiro. 

Z- Parece que ele perdeu uma grana com esse filme. 

TC- Sim, isso aconteceu. Aquela história: cinema é ilusão, cinema é fogo. O Person sempre teve esse lado artístico e profissional muito forte. Naquele momento, a ideia dele era fazer essa chanchada. Inclusive, o Átila Iório está nesta película, trabalhamos juntos no Panca. Era uma turma grande nesse filme. 

Z- Nesse filme, inclusive, o senhor trabalhou com o Tony Vieira? 

TC- Ele faz um mocinho, senão me engano. É um papel pequeno, mas ele fez. Acho que ele era o amigo da mocinha. Ele, o Tuca que trabalhou no Vigilante Rodoviário com o Carlos Miranda. Eu e o Tony Vieira trabalhamos juntos em muitos filmes. 

Z- Como foi a relação de vocês? Tinha algum atrito por usarem o mesmo nome? 

TC- Nunca. Pelo contrário, éramos grandes amigos. Eu, ele e o Gaiotti formamos um trio que eu vou te contar (risos). Era um trio que eu vou te contar. Nossa, eu trabalhei muito com o Tony, conheci muito a Claudete, que foi companheirona dele. Eu trabalhei muito com ele, chegamos a escrever coisas juntos pra tentar fazer algo melhor juntos. Nós dois éramos como dois irmãos. O Gaiotti também estava nessa. Ele e o Gaiotti eram como unha e carne. 

Z- O Índio também estava nessa? 

TC- O Índio sempre ficava meio de fora. Estava sempre por ali, fazendo as ondas dele. Mas ficava um pouco fora. 

Z- Mas você conheceu o Tony Vieira nesse filme? 

TC- Não, muito antes. Ele trabalhou no Mazza… 

Z- E na TV Excelsior também. 

TC- Sim. Inclusive, ele foi apresentador de luta livre na Excelsior. Ele me apresentou como lutador nessa emissora. Na realidade, era o Bolinha quem fazia esse programa. Mas depois saiu o Bolinha e o Tony assumiu essa função. Eu fiz luta livre durante um ano e meio na televisão. Primeiro o nosso programa era na Record, depois pegou fogo na emissora. Nisso, nós fomos para a Excelsior… depois voltei para a Record. Parei e depois voltou. 

Z- Não sabia disso… 

TC- A turma em começo de carreira meu faz tudo. Você chuta bola, bate escanteio e corre pra cabecear. Faz tudo. 

Z- Muita gente acha que a luta livre dessa época era combinado. Era mesmo? 

TC- Não. Era uma luta artística né? Você usa o que sabe, o outro também. Mas nada de querer machucar ninguém, querer degolar o outro. É mostrar o que pode fazer e o que é possível fazer. Você mostra a arte. 

Z- É o telecatch. 

TC- Isso. O chamado telecatch, né? 

Z- Então, o senhor lutou contra o Ted Boy Marino, Índio Paraguaio… 

TC- Lutei contra o Ted, Índio Paraguaio, Tigre Paraguaio, Índio Saltense, Bombeleio, Hércules, Silva, Espanholito. Mas eu conheci essa raça toda. Nós viajamos juntos. A Broto Cubano… eu e a Broto Cubano saímos fazendo luta livre por esse Brasil afora. O Tonico e Tinoco apresentava a gente no sábado, porque eles faziam o show nesse dia. A gente lutava no domingo e depois ia embora. Nós nos apresentamos também com o circo Irmãos Almeida. Viajamos esse Brasil inteiro, poxa eu já fiz cada coisa. Era loucura total (risos). 

Z- O senhor deve ter muitas histórias dessa época do telecatch 

TC- Bom, muita coisa (risos). 

Z- E os caras às vezes queriam desafiar vocês? 

TC- Não. Ás vezes, a gente mesmo lançava o desafio. A gente falava: “Tem algum lutador desta cidade que queira”, porque eu não era marmeleiro. Eu era judoca poxa, entendeu? Era faixa preta, tinha os meus recursos. Conhecia bem a arte marcial. Mas a Broto Cubano era uma menina muito linda e era discípula da Olga Zumbano, que foi uma das maiores lutadoras do Brasil. 

Z- Sim, tia do Eder Jofre. 

TC- Exatamente. Tia do Eder. Ela foi uma das maiores lutadores do Brasil. Essa Broto Cubano era muito linda e lutava muito. Então, a gente formou um pessoal do telecatch que viajava junto promovendo lutas pelo interior. Era eu, o Escorpião, e tinha também um espanholzinho que viajava com a gente. Quando a Broto subia no palco, ela desafiava o pessoal na cidade para fazer uma luta. Só que depois ela subia nos caras e falava: “Olha meu, vamos maneirar. É arte. Ninguém vai matar ninguém”. Isso é um caso em que aconteceu um troço inusitado. Levantou um puta de um alemãozão e falou: “Eu quero lutar contra a moça”. Ele subiu no palco e o cara era dono de uma academia, muito forte. A luta foi marcada para o domingo. Na véspera, no hotel ela falou comigo: “Toni, eu acho que vou complicar com esse cara. Eu vou dar uma de doente e você encara ele, porque eu não vou. Ele é muito forte, dono de academia”. Eu aceitei, iria assumir a parada. Quando era dez horas da manhã, o cara ligou no hotel. Queria conversar com a Broto, combinar a luta. Ele era dono de academia, mas não lutava. Nós fomos na academia dele, fizemos um treinozinho e marcamos uma luta dela com o cara. Sabe? São uns troços gozados que acontecem na vida da gente que marcam. 

Z- O senhor lutou telecatch durante quanto tempo? 

TC- O programa durou muitos anos. Eu fiquei um ano e meio ligado a esse segmento. 

Z- Lutador ganhava muito? 

TC- Olha, eu me lembro que na época a gente ganhava 80 mil cruzeiros, cada luta. Uma porcaria. Mais a janta, luta, passagem, viagem. Mas não era aquele negócio. Mas para o ator que está começando e está duro num meio de semana, não tem o que fazer. Normalmente, as lutas eram numa quinta ou no sábado. Então, eu ia e fazia duas lutas. Lutava em São Paulo, pegava, por exemplo, Vila das Mercês, bairros assim. Montava o palco em portas de igreja, sindicato. 

Z- Fazia muito sucesso? 

TC- Lotava. Hoje, eu não sei como essa área está. Mas na Argentina, Paraguai, Uruguai dá público como trinta anos atrás. 

Z- Eu não sabia dessa faceta do senhor. 

TC- Eu fiz muita coisa nessa vida. Foram dezoito anos de academia cara. Só que dentro do cinema eu tava duro. Entre um filme e outro não tinha o que fazer. Então, eu vendia bebida na rua ou ia lutar telecatch, que dava um cachêzinho bom (rindo). A gente vivia e pagava as contas assim. 

Z- Qual foi o seu primeiro trabalho com o Ary Fernandes? 

TC- Com o Ary Fernandes… se eu não me engano foi o Águias de Fogo. O Águias Em Patrulha foi feito depois, uns dois anos depois. Também trabalhei num dos filmes do Mazza que ele dirigiu chamado Uma Pistola Para Djeca

Z- Muito tempo depois você trabalhou nessa refilmagem do Vigilante com o Antônio Fonzar. 

TC- Sim. Isso foi no Vigilante, realizado em 1978, que foi lançado somente agora, em dezembro de 2010. Isso só feito por causa dos filhos do Ary, a Vânia e o Fernando, que conseguiram lançar o filme. Até outro dia falei com ela, que eles querem refilmar qualquer coisa do Vigilante outra vez. Estão estudando. 

Z- Com o Ary, você teve uma vivência grande? 

TC- Poxa, foi uma grande história porque ele foi outro irmão meu. Ele era o homem dos cachorros, ele adorava cachorros. O Ary é um cara que eu senti a morte dele. Um grande irmão, um cara muito bacana. Tanto que mantenho a amizade com os filhos dele até hoje. 

Z- Ele é uma pessoa muito querida e uma personalidade muito importante na história da televisão brasileira. 

TC- Com certeza. Principalmente pelos dois seriados que ele fez: o Vigilante e o Águias de Fogo, que eu participei como ator. 

Z- Fala um pouco sobre o Águias, que era um seriado bastante audacioso.  

TC- Olha, aquela produção tinha de tudo. Tinham os pilotos da Força Aérea que davam cobertura pra nós. Os personagens principais eram o Dirceu Conte, que é irmão do Hélio Souto, o próprio Ary Fernandes, Roberto Bolant e um outro rapaz chamado Lima. A gente filmava em Cumbica, tinha uma parceria forte com a Força Aérea Brasileira. Então, a gente usava os aviões, né? E muitos pilotos assessoravam a gente. Muitas filmagens eram feitas no mato afora. Muita história foi feita ali. Eu gostei muito de trabalhar com o Ary. Esse seriado também tinha tudo pra estourar. Infelizmente, isso não aconteceu. A Força Aérea Brasileira tem muita história pra contar. 

Z- Qual era o seu papel na série? 

TC- Eu era um contrabandista. Outro bandido, porque os mocinhos eram os quatro, né? 

Z- Você fez vários episódios? 

TC- Fiz uns três episódios. Mas sempre como bandido. Um foi sobre tráfico de ouro, outro sobre roubo de carro, e o último sobre contrabando de jóias. Tinha muita luta. Porque o Ary sabia que eu lutava muito, então, ele sempre me usava quando precisava de alguém neste tipo de coisa. Eu fiz outro filme com ele chamado Até o Último Mercenário, com direção do Ary Fernandes e do Penna Filho. Esse trabalho foi feito com o próprio Carlos Miranda fazendo o principal. No elenco feminino, trabalhou a Marlene França e a Elaine Cristina. Eram duas atrizes maravilhosas e a gente teve uma convivência muito bacana. Quem ensaiava as lutas do filme era eu, todas as lutas. O Ary adorava trabalhar junto com os atores. O Fonzar era um cagão em cena que nunca deu soco, nunca tomou um soco, nunca viu uma academia, um tatame. No meu livro tem uma passagem que eu conto que o cara deu uma canseira na gente pra fazer uma cena. Ele deveria tomar uma cabeçada minha e cair. Botou colchão, depois não caia em cima de colchão. Tinha medo de cair. Um cara que dava trabalho mesmo, sabe? 

Z- Ele não era ator, certo? 

TC- Ele era modelo. Na época, ele tinha sido eleito o homem mais bonito no (programa) Sílvio Santos. Nós fizemos esse filme lá em Atibaia. Só que quem dava autógrafo era eu e não ele. Coincidentemente, eu era o bandido e ele era o mocinho. Mas quem dava autógrafo era eu (risos). O Ary morria de rir com isso: “Pô, mais que galã que eu fui arrumar! O bandido que dá autógrafo e o galã não”. Porque o Carlos Miranda, o povão tem um fascínio por ele até hoje. Onde o Carlinhos aparecer as pessoas querem conhecê-lo. O Fonzar não conseguiu transmitir isso, sabe? Então, nasceu ali e morreu ali a carreira dele. 

Z- Você também fez televisão e teatro. Mas o que você mais gostava era cinema? 

TC- O meu forte é cinema. Quando você está fazendo um longa, você tem mais liberdade. Então, você anda a cavalo, você briga, pula de cima da casa. Se você pula no lago, você pode brigar dentro do lago. Televisão é tudo condicionado e o teatro é só em cima do palco. Você não sai dali. Mas no teatro você interpreta e é a maior escola de interpretação. Mas liberdade pra você trabalhar gostoso mesmo e se abrir é cinema, não tem como. Você trabalha aberto no campo de filmagem. Por exemplo, o ator pega uma fazenda e fica ali 40, 50 dias numa fazenda, você deita e rola. 

Z- Era uma época diferente, em que a produção cinematográfica era grande, diferente de hoje. 

TC- Bem diferente. Tanto que o cinema está meio morto, né? Tem uma garotada como você fazendo academia, um filminho aqui, outro filminho ali. Mas a produção como seqüência não tem mais. Porque o cinema é indústria, pô. Acabou, não tem mais. 

Z- O senhor freqüenta cinema hoje aqui no interior? 

TC- Não. Os cinemas viraram tudo igreja evangélica. Todas as salas de cinema no interior viraram igrejas evangélicas. 

Z- Ou estacionamento. 

TC- Ou estacionamento (rindo). É uma desgraça, cara. 

Z- Alguns viraram cinemas pornôs. Mas acredito que muitos poucos. 

TC- Alguns. Mas hoje muito pouco. Cinema pornô também… depois que entrou a internet. A pornografia os caras vêem no computador. 

Z- Esses cinemas de shopping, o senhor freqüenta? 

TC- Muito difícil. Eu estive há pouco tempo num shopping em Presidente Prudente, porque eu tenho casa lá. Eu assisti um filme sobre um barbeiro, uma comédia maravilhosa que eu não me lembro o título. Não vou mais e não dá tempo também. Eu viajo muito. 

Z- Quando você era mais novo, você via mais? 

TC- Sim, era mais barato e valia a pena. Tinha muito… era diversificado. Você tinha bastante opção. Eu chegava a assistir dois, três filmes num dia. Saia de uma sala e corria pra ir pra outra. Eu era fanático por cinema. 

Z- Você fez um grande filme aqui: Meu Nome É Tonho, com o Candeias. 

TC- Ah, Ozualdo (Candeias), outro grande nome. Esse eu tiro o chapéu. Cara, o Candeias era amigo diuturno nosso. Ele vivia de sandália havaiana o dia inteiro ali no (bar) Soberano, pra cima e pra baixo. Ficava contando história, trocando figurinha o dia todo. Um dia, ele chegou e falou desse filme: “Toni, quero que você venha fazer um personagem comigo. Nós vamos lá para Vargem Grande do Sul”. Respondi pra ele: “Candeias, com você até o inferno” (risos). Isso pela amizade, inclusive. Inclusive. ele pagou pouco pra burro, uma produção pobre que era do Augusto Cervantes. Ali estava o Valter Portela, aquela turma toda. O Candeias falou pra mim: “Eu quero que você faça um gaúcho”. Fiz um gaúcho nesse filme, ficou uma beleza. Tinham acabado de fazer Um Certo Capitão Rodrigo com o Chico de Franco. Era pra eu fazer esse filme, mas nós não combinamos no cachê. O Anselmo dava muito disso… pelo amor de Deus. Sabe você assinar um contrato por X e receber Y? Eu falei: “Não, não vou entrar nessa”. O Anselmo me garantindo: “Olha, o Francisco di Franco vai”. Ele me apresentou pra muita gente falando: “Esse aqui é o meu capitão Rodrigo. Esse aqui é o meu capitão Rodrigo”. Isso durou mais de um mês. Mas na hora do bem bom, não combinamos. E o Chico foi pelo negócio que ele tinha oferecido, sabe? 

Z- Ele aceitava isso?  

TC- O Chico ia mesmo. Ele não estava nem aí. Ele queria aparecer e não ligava muito pra dinheiro. Tanto que acabou na merda, né? O Chico acabou na merda, infelizmente. É o tal negócio: trabalhar de graça é uma merda. Eu acabei não fazendo Um Certo Capitão Rodrigo. Nessa época, veio o Jorge Karan fazer o gaúcho cigano no Meu Nome É Tonho, como personagem principal. Nós fizemos o filme inteirinho debaixo de chuva, cara. Ganhou prêmio de fotografia, um longa em preto e branco filmado debaixo de chuva. Esse trabalho ganhou vários prêmios, passou em vários países europeus e teve repercussão. Aqui no Brasil não fez sucesso. É uma merda, né? (risos), um filme feito debaixo de chuva inteirinho. Uma verdadeira loucura. 

Z- Dos filmes faroeste que você fez, esse foi um dos melhores. 

TC- Olha, na realidade, faroeste que eu fiz mesmo foi Pedro Canhoto. Depois, tem um com a Lenita Perroy, chamava-se Noiva da Noite, que era meio bangue-bangue. Era um misto de aventura com bangue-bangue, eu gostei muito de ter participado desse filme. Aliás, o Rodrigo (Pereira) acredita que essa foi a melhor interpretação minha. Acontece que ele não viu o A Última Bala, do Luigi Picchi, que pra mim é o melhor. Foi o que eu mais gostei. Quem fez foi eu e o Chico de Franco, nós éramos dois irmãos no filme. Eram os dois papéis principais. Tanto que no meio ele morre, eu assumo e fico sozinho. Depois lá no finalzinho, ele volta porque ele não tinha morrido. Ele morreu só de mentirinha. Esse pra mim foi o melhor. 

Z- Foi o trabalho que você mais gostou de fazer? 

TC- Foi um dos que eu mais gostei. Muito bom, muito bom. No Noiva da Noite eu fui, inclusive, indicado pela crítica da Boca maldita como ator revelação. Eu fiz um covarde com essa minha cara, com esse meu tipo de machão. Tanto que a Lenita Perroy, a diretora, ela não aceitava que eu fizesse o covarde, que se chamava Galante. Quem me chamou pra esse longa foi o (Valter) Portela, que dirigia a produção. Ele me falou: “Olha, tem uma diretora assim, assim. Ela vai fazer um filme e a gente precisava de uns caras bons que montem cavalo, que lutem e briguem bem”. Ela me chamou para conhecê-la. Ela era faixa preta de caratê, a mulher maluca, maluca de tudo. Maluca de tudo (risos). “Então Toni, eu sei que você é faixa preta e briga bem”. Na realidade, a Lenita queria me dar um personagem mais doidão. Eu falei: “Não, você tem o script? Deixa eu dar uma lida?”. Eu topei e sentei na mesa ao lado dela. Fiquei analisando o roteiro e falei: “Olha, eu quero fazer esse covarde aqui”. Ela achou que eu estava brincando: “Com essa cara você quer fazer o covarde?”; “Mas é esse que eu quero fazer”, afirmei. Ela respondeu: “Mas Toni, pelo amor de Deus. A sua fama é de briguento, de machão. Todos os personagens que você faz são machões. Você vai fazer um covarde?”. Falei: “Minha querida,se você pegar um homem baixinho, magrinho, raquítico, automaticamente ele vai se acovardar diante de algumas situações. É o contrário de um personagem com o meu físico. Todo mundo vai me ver como machão e vai estourar, bater. Eu quero fazer um covarde pra te mostrar que eu sou um ator. É o inverso da coisa”. Então, ela me falou: “Estou com medo”. Mas eu fui firme e garanti que só faria aquele filme se eu fizesse o covarde. Ela ainda perguntou se eu botava fé e respondi que sim porque eu era profissional Nisso, nós começamos e foi indo. Depois, ela me falou: “Toni você foi o melhor cara nesse longa”.  Aí tem um monte de história. Um monte de coisas que aconteceram. Mas a própria crítica falou e o Rodrigo (Pereira) comenta que esse filme é a minha melhor interpretação. Realmente, eu gostei muito de fazer esse trabalho. 

Z- Como foi trabalhar com a Rossana Ghessa? 

TC- A Rossana é uma grande profissional. A experiência foi muito boa. Só que ela tinha um namorado, um dentista que não largava o pé dela nem matando (risos). O cara tinha um ciúme! (risos). Estou com ela no Orkut e fiquei sabendo que ela está no Rio com uma produtora. 

Z- Voltando um pouco, eu tinha te perguntado sobre aquele filme do Candeias. Foi uma produção difícil? 

TC- Difícil, difícil. Na realidade, foi uma produção pobre. Tanto que esse trabalho foi realizando em preto e branco, quando a maioria dos filmes já eram lançados em colorido. Se eu não me engano, isso foi em 68, 69. 

Z- Foi o seu quinto filme. Você estava começando. O Candeias já tinha um nome na Boca? 

TC- Opa, ele já tinha feito A Margem. Já tinha estourado com esse filme. Eu assisti umas quatro vezes A Margem. Me lembro que o Bentinho deu um show de interpretação nesse filme com aquela rosa na mão. Então, eu respeitava o Candeias demais. Por isso eu falei pra ele: “Eu vou com você onde você quiser”. Foi uma produção pobre, dura, complicada. 

Z- Você percebia que ele conhecia aquele gênero do faroeste? 

TC- O Candeias era um camarada extrovertido. Ele ia de A a Z. Tanto que eu falei numa entrevista que se dessem chance, dessem dinheiro nas mãos do Candeias, ele ia estourar. Porque ele tinha cabeça, sabia, entendia e sabia fazer. Ele ia buscar lá no inferno e dava o recado dele. Isso era o importante dele. Então, ele podia fazer um bangue-bangue, um drama, uma comédia. O Candeias fazia de tudo e ele gostava muito de mexer com o submundo. Ele buscava lá no fundo realmente. Eu gostava muito dele porque ele era uma pessoa versátil. 

Z- Como era a direção de atores dele? Porque diziam que ele era meio grosso ás vezes. 

TC- Grossão, duro. Ele era o seguinte: o Candeias te dava uma ordem. Então, por exemplo: “Eu quero você mancando com a perna esquerda e que você caia. Mas eu quero uma cara de choro”. Só que ele não sabia transmitir isso. Ele dava as palavras, mas sem transmitir. Como diretor, ele não dava muita chance pra ensaio. O Candeias não tinha muito tempo porque as fitas dele não tinham dinheiro. Sempre as produções dele foram pobres. Então, era um ensaio e na segunda o filme era rodado. Muitas vezes ele pegava pesado com os caras. Tinha gente que se cagava em trabalhar com ele. Montar cavalo então: “Vamos lá. Todo mundo no cavalo, pô”. Eu logo ficava pronto esperando o resto do pessoal. Tinha uns caras que tinha que botar banquinho, encostar num canto no barranco. Sabe aqueles camaradas que são cavaleiros somente porque estão montados? Com a mão na cela e pá. Tem muito disso, né? Então, eu levava vantagem nisso. Então, esses caras que montavam mal ou que tinham medo do cavalo, meu irmão, ele cagava em cima desses caras. Ele dava um esporro filha da puta. Então, esses caras não gostavam muito dele (risos). 

Z- Mas o seu relacionamento com ele foi tranqüilo? 

TC- Ótimo, ótimo. Tanto que eu trouxe ele uma vez aqui em Laranjal Paulista, porque a gente ia rodar um filme aqui. A gente ia rodar numa fazenda centenária onde nós tomamos o melhor café da nossa vida. A dona da fazenda tinha mandado um menino de onze anos passar um café pra gente. Ele foi lá, torrou, moeu, fez e trouxe na mesa pra nós. Foi o café mais gostoso que eu tomei na minha vida até hoje. O Candeias ficou doido. Então, a amizade nossa foi muito grande. A gente viajou por esse Brasil, procurando, fazendo coisas, foi bacana. Ficávamos horas e horas naquela Boca batendo papo. A gente ia junto pro Largo do Arouche, onde eu morava na época. Ficávamos horas conversando. Ele tinha muita coisa pra falar, muita coisa pra fazer e tinha muita vontade de fazer cinema, sabe? 

Z- Ele tinha muita paixão por cinema? 

TC- Ele era apaixonado por cinema. E eu era outro. Então, nós dois combinávamos muito. 

Z- Porque dinheiro ele nunca ganhou com cinema… 

TC- Dinheiro ele nunca ganhou. Sempre fudido. 

Z- Ele sempre andava meio esculachado? 

TC- Esculachadão. Não usava paletó, nunca usava uma gravata, sapato então… Ele foi em um coquetel de lançamento de filme de sandália havaiana cara (risos). Se não me engano, isso foi no Cine Olido. Ele ainda me falou: “Que merda. Ninguém vai olhar o meu pé”. Ele era foda. Mas um puta de um camarada bacana. Tinha uma luz do cacete. Um cara bom. Eu conheci uns caras bons na época. 

Z- Por quê vocês não fizeram mais filmes juntos? 

TC- Foi falta de oportunidades. Na época, eu estava em outras produções. Ele não ia parar e ficar me esperando. Nunca nos filmes dele teve um personagem escrito para mim. Ele ia fazer um bangue-bangue com o Nelson Teixeira Mendes, um filme de caubói no estilo spaghetti. Eu ia trabalhar com um chicote. Ele chegou a fazer esse roteiro. Eram três pistoleiros, um usava a canhota e eu usava o chicote. Eu tenho esse chicote até hoje, mas o filme acabou não saindo. 

Z- Acredito que ele é um cara que merecia um maior reconhecimento. Apesar desse lado duro, ele era tido por muitas pessoas como um cara doce. 

TC- Na realidade, o Candeias era muito simples. Só não se dava bem com ele quem não queria. Tinha uns caras que ele era meio arrogante, porque ele era meio fechadão. O Candeias era o seguinte: ele foi motorista de caminhão, um cara grosso. Não tinha aquela cultura, não era aquele cara de academia. Ele era um autodidata por causa da cabeça dele. 

Z- Mas ele conhecia muito cinema. 

TC- Conhecia demais. Ele dava aula pra qualquer um. Era algo impressionante. Não sei onde ele ia buscar isso. 

Z- Ele era um tipo caboclo? Porque ele era do interior de São Paulo. 

TC- Bem caboclão. Bem grossão mesmo, tal, bermudão, sandália havaiana. Camisa aberta no peito, barba por fazer. O cara não tava nem aí. Tranquilo. Com dinheiro ou sem dinheiro, ele era sempre o mesmo. Eu gostava dele por causa disso, um homem muito simples. 

Z- Um outro filme que você fez na Boca: Fora das Grades, do Astolfo Araújo. 

TC- Fora das Grades foi uma participação especial só. Foi algo pequeno. Era um negócio de fuga de cadeia, uns fugitivos brigando e quebrando pau no meio do palco. Quem era? Eu, Luigi Picchi, um outro baixinho. Foi pequena, mas que marcou bastante também. Valeu. 

Z- Você fez um filme com um diretor interessante: Flávio Ribeiro Nogueira. O longa se chama Nua e Atrevida. 

TC- Nossa… nesse filme trabalhou eu, Tony Vieira, Edgar Franco. Essa fita foi uma loucura. Nesse trabalho, se eu não me engano, ele fazia um topógrafo. Eu era o motorista particular de um ricaço e transava com a mulher dele. Puta… uma menina bonita, linda. Não consigo me lembrar o nome dela. 

Z- Ela era famosa? 

TC- Era famosa sim. Qual era o nome dela, rapaz? O personagem era um motorista malandrão com gravatinha, luva na mão, tranquilo. Ficava só observando o povão nas festinhas, levando a patroa pra cima e pra baixo. Transando com a patroa (risos), foi um troço até gostoso. Não tinha muita interpretação, mas foi um personagem que marcou. Foi um filme também que não deu dinheiro. 

Z- Esse Flávio Nogueira era bom diretor? 

TC- Não. O cara não entendia bulhufas de cinema. Ele tinha dinheiro, era dono de uma construtora e concreteira em São Paulo. Era algo que mexia com concreto, sei que ele ganhava muita grana. Adorava cinema e queria ficar no meio da mulherada, aquela coisa toda, e inventou esse filme (risos). Olha rapaz, tem uma cena em que eu estou atirando num cara e ele usou uma expressão: “Levanta o senho. Levanta o senho”. Mas foi uns troços, ele usava uma linguagem que não tinha nada haver com cinema. A gente ria pra caceta. Tem uma luta em que estava eu, Edgar Franco, o Moreiras.  O Moreiras depois foi um grande assistente de câmera, iluminador. Ele foi casado com a maior continuísta do Brasil. 

Z- Sim, com a Silvinha. 

TC- Isso, a Silvinha. Parece que o Moreiras já morreu, certo? 

Z- Sim.  Ele tava nesse filme do Flávio? 

TC- Tava. Eu lembro que a gente ria muito nesse trabalho em relação a esse diretor. Poxa, diretor entre aspas. Ele não dirigiu, ele guiou o filme (risos). 

Z- O Flávio era amigo do Tony? 

TC- Não me lembro disso. Nesse filme, o Tony fazia um papelzinho até bom. Se não me engano, ele fazia um topógrafo que trabalhava com teodolito. 

Z- Vamos falar dos filmes que você fez com o Rafaelle Rossi. Você conheceu ele na Boca? 

TC- Sim, através do Roberto Mauro. Na época, eu mexia bastante com teatro. Foi quando nós iniciamos a produção do O Homem Lobo. Daí a gente embalou, fizemos esse trabalho. Depois de algum tempo, nós voltamos juntos para terminar O Homem Lobo, que levou vários anos para ser terminado. Esse trabalho se iniciou em 67 e terminamos em 71. Depois, fomos fazer Pedro Canhoto logo em seguida. Mas juntos nós tivemos uma distribuidora de filmes de dezesseis milímetros, uma série de coisas. Tive uma sociedade com ele. Fui diretor de produção dos dois longas, além de atuar. Tanto que no Homem Lobo eu levei Chitãozinho e Xororó pra cantarem no filme. Tem a foto deles no cartaz por eles terem participado. 

Z- Eles estavam começando? 

TC- Exatamente. Isso foi feito através do Geraldo Meirelles. 

Z- O “marechal da música sertaneja”. 

TC- Exatamente. Foi através dele que conseguimos os dois. 

Z- O senhor conheceu bastante ele? 

TC- Conheci muito. Ele fez várias apresentações nossas na TV Record. A gente falava em luta livre e ele entrevistava os lutadores. Tive várias passagens com ele.

 Z- Ele está em Casa Branca, cara. Tem programa de rádio e tudo. 

TC- Não sei como ele está hoje. Ele não tem 90 anos, não? 

Z- Não sei. Mais de oitenta com certeza. O Homem Lobo foi rodado em preto-e-branco, certo? 

TC- A gente não tinha dinheiro. Puta merda… comprava uma lata de filme e rodava. Acabava a lata de filme, a gente parava o trabalho. Dois ou três meses depois, a gente juntava um dinheiro e comprava outra lata: “Vamos rodar mais um pouco” (rindo). Rodamos aqui em Piracicaba, em Alterosa em Minas Gerais, em São Paulo. Foi um saco bicho. Foram vários anos que a gente brigou pra fazer. Passamos fome… puta que pariu. Tem história pra caramba. No meu livro, tem uma puta história do Raffaele e eu, conto muita coisa dele. Na realidade, ele é o culpado de eu ter entrado no cinema. Foi ele que me introduziu na arte. 

Z- O Raffaele nunca foi um cara muito bem tido na Boca, certo?  

TC- Ele era um cineasta maldito entre o grupo, entre os colegas. Tanto que eu era mal visto por um grupo lá dentro por ter amizade com o Raffaele. Eu intermediava tudo. Nós íamos alugar equipamento no Primo Carbonari, era tudo alugado. Íamos juntos comprar lata de filme na Kodak… negativo. Pedaço, meia lata. Sabe? A gente fazia cada rolo que você não tem ideia. 

Z- Você nunca trabalhou com o Fauzi Mansur?  

TC- Fauzi Mansur. Esse camarada me deve 300,00 reais até hoje. Eu vendi umas fitas do Raffaele Rossi, sabe? Uns negativos pra ele. O Raffaele se não filmava, vendia pra fazer dinheiro. Fazia aquele puta rolo. O Fauzi um dia falou pra mim: “Traz pra mim que depois eu pago”. Ele não me pagou até hoje (risos). Eu ia fazer um filme com o Fauzi em seguida porque eu era muito amigo do David Cardoso. O David era inclusive diretor de produção nesse filme. Um dia antes da gente viajar, era pra eu receber 20% do contrato, o David me falou: “O Fauzi achou outro cara pra fazer”. Tudo bem e acabei não fazendo esse longa. Eu e o David somos amigos até hoje, grandes amigos. A gente se dá muito bem. Tanto que eu conto no livro que nós éramos três amigos inseparáveis na Boca: eu, Chico de Franco e David Cardoso. Ali, nós apelidamos um e outro. Por exemplo, galã brejeiro, galã rústico e galã aquático. Galã aquático eu coloquei no David Cardoso porque ele passou a fazer filme só no mar, pegava as meninas e descia pro litoral. Ficou galã brejeiro pro Chico de Franco e ele colocou eu como galã rústico. Eu falo isso no meu livro também, sabe? Então, são as histórias que ficaram da nossa amizade gostosa. 

Z- Com o David você nunca trabalhou em longa? 

TC- Nunca. Treinamos juntos. Ele morava na (avenida) São João e ele tinha um apartamento com academia. O David treinava halteres. Na época, eu fazia judô e halteres ao mesmo tempo. Eu treinava com ele de noite nessa academia. Ele só fazia peito e braço, dizia: “Câmera só mostra peito e braço” (risos). “Precisa também fazer perna David”. Eu fazia corpo inteiro. Halterofilismo você precisa fazer corpo inteiro: pé até pescoço, cabeça. Ele só fazia peito e braço. Ele é filha da puta, né? Tanto que ele tinha um físico bonito. Eu conheci o filho dele pequeninho lá com oito, dez anos no máximo. 

Z- O David era uma figura. Vocês juntos aprontavam muito? 

TC- Gente fina. Um pouquinho, pouquinho (rindo). É nós vivemos uma época muito boa. Como eu tava em São Paulo sozinho, ia jantar no Eduardo´s, no Viking. Era aquele grupinho perto da TV Excelsior, no Piolim. O pessoal de teatro saia à meia-noite e ia tudo lá. 

Z- Diversos filmes da Boca se passavam no Eduardo´s.  

TC- Sim. O pessoal que estava com dinheiro ia no Eduardo´s, quem não estava ia no Piolim. Ou então comia coxinha na Boca (risos). 

Z- Só voltando aos trabalhos com o Raffaele: O Homem Lobo deu grana? 

TC- Nada. Só perdemos dinheiro. Deu prejuízo. 

Z- E o Pedro Canhoto? 

TC- O Pedro Canhoto remediou. Esse remediou porque o Cassiano (Esteves), da Marte Filmes, assumiu na época. Foi nesse que ele entrou no cinema porque ele só distribuía, né? A partir daí, ele terminou esse longa, pagamos o pessoal e deu um dinheirinho. Não deu aquele troço, mas abriu caminho pro Raffaele como diretor respeitado na Boca. Passaram a ver ele melhor como amigo. Depois, ele estourou e foi embora. 

Z- Foi um dos seus poucos trabalhos como protagonista. 

TC- Sim. 

Z- É difícil ser protagonista? 

TC- Não é difícil. Eu podia ter sido, por exemplo, no Um Certo Capitão Rodrigo. Acabou não dando certo por causa de dinheiro. Não fiz aquele jogo. Tem muitas histórias e isso envolve muita gente. Eu não gosto de falar nisso. Aquele troço: “O papel é seu. Mas o contrato é tanto. Você assina por isto e leva isto”. Eu não aceito isso cara, sabe? É brincadeira. Sabe aquele negócio… eu vou falar a verdade: a prostituição é uma merda. Ou você dorme com a diretora ou com a produtora, ou você dá pra não sei quem, pra outro. Sabe? É um troca-troca do cacete e eu não aceito isso. Eu tenho a minha personalidade, sou profissional. Faço e pergunto pra pessoa: “Serve pra você? Meu preço é tanto”. Eu fiz filme de graça. Eu trabalhei com o Dedé Santana quando nós fizemos Os Irmãos Sem Coragem de graça. O Dedé é meu amigo, meu irmão até hoje. Onde a gente se encontra é uma festa. Você me entendeu? Eu fiz de graça pra ele. Ele me falou: “Toni não tem dinheiro”, “Sem problema. Vamos embora”. Ele teve em Bauru e deu uma puta de uma entrevista: “O Toni Cardi é meu irmão. Ele trabalhou de graça pra mim, você sabia?”, saiu uma meia-página de jornal. Ele falou: “O Toni é o maior profissional que eu conheci”, sendo que ele mete pau numa turma fudida. Me elogiou porque eu trabalhei de graça como profissional. Por exemplo, o (Carlos) Manga. Eu fui fazer um filme com ele chamado O Marginal, com o Tarcísio Meira. Nisso, eu acabei indo três vezes pra filmar uma noite num bar. Mas não conseguimos filmar. O assistente dele era… 

Z- O Sílvio de Abreu. 

TC- Sílvio de Abreu. Não conseguiam. Eu fui lá, ensaiei, esperamos… três vezes nós fomos. Chegou no dia que eles eliminaram a cena, mudaram tudo. Um dia, o Manga tava andando lá na Boca e disse: “Toni Cardi! Você é o profissional que o cinema precisa. Te devo essa”. Foi a maior festa. Aí chegou o Sílvio e me disse: “No meu próximo trabalho você tá na cabeça”. Depois eu acabei saindo fora e acabei não trabalhando com eles. Cheguei a falar com o Sílvio depois de muito tempo, ele já estava fazendo novelas. Eu tenho certeza que se eu ligar para ele hoje e falar: “Sílvio, me dá um trabalhinho. Quero voltar para a televisão”. Eu tenho certeza que ele me coloca lá porque a gente se entendeu bem. Existe um respeito muito grande entre nós. 

Z- Não aconteceu o trabalho, mas ficou um respeito… 

TC- Exatamente. Ficou um respeito muito grande entre nós três. Melhor isso do que eu ter feito qualquer coisa e nada ter dado certo. 

Z- O senhor acabou sabendo que o Raffaele tinha morrido por mim? 

TC- Sim. Fazia três anos que eu tinha falado com ele e dois que ele tinha morrido. Quando eu falei com a Renata (Candu), eu soube o final dele. Mas a última vez que eu falei com ele, ele estava meio xaropão, com a doença de Alzheimer? 

Z- Sim, uma pena. Mas foi você que chamou o Gaiotti pra fazer esse filme do Pedro Canhoto? 

TC- Isso foi ideia minha. Eu chamei o Gaiotti, o Nivaldo Lima, o Cavagnoli. Como eu fazia a produção, eu acabei chamando todo esse pessoal. Eu e o Gaiotti éramos muito amigos, eu falo com os filhos dele pelo Orkut. Mas não dá tempo. Eu estou com três empreendimentos em Piracicaba agora. Estou a serviço. 

Z- Fala um pouco sobre o Irmãos Sem Coragem, que o senhor fez com o Dedé Santana. 

TC- O Dedé me chamou um dia pra fazer um delegado nesse longa. A gente fez Os Trapalhões antes do Renato Aragão aparecer, inclusive, na Excelsior. Eu trabalhei com eles, fazendo cena de luta. Trabalhou eu, a Vanusa, Wanderley Cardoso. Então, a nossa amizade nasceu ali. Eu fiz teatro também, circo, luta livre em circo. A gente sempre se trombava em circos por aí. O Dino (Santana, irmão do Dedé) é piracicabano, nasceu aqui num circo. Nesse filme, eu lembro do Gibe… 

Z- Esse filme tinha o Gibe, o Bucka. 

TC- Todos eles trabalharam. Nisso, o Dedé chegou em mim: “Eu preciso de um delegado. Você que vai fazer o meu delegado. Mas eu não tenho dinheiro”. Nós filmamos na delegacia de Pinheiros, o delegado saiu da mesa e nós fizemos ali mesmo a cena (risos). 

Z- Foi um papel pequeno? 

TC- Foi uma participação especial. 

Z- E o filme Sob o Domínio do Sexo que você fez com o Tony Vieira? 

TC- Foi um papel bom, bacana. Eu fui indicado como ator revelação nesse trabalho. Foi o meu único filme em que eu apareço nu. Os caras arrancam toda a minha roupa, descem o cacete e eu desço nu procurando. Até que o meu personagem chega num varal e rouba a roupa. Tudo isso sem cair no ridículo, entende? Foi muito criticado e foi um papel muito bem-visto pela crítica na época. 

Z- Esse filme do Tony fez bilheteria? 

TC- Sim, deu dinheiro. Foi se eu não me engano o primeiro longa dele que pegou pra valer na bilheteria. 

Z- E você fez um faroeste com o Luigi Picchi chamado A Última Bala. Como foi esse trabalho? 

TC- O Luigi foi um grande cara. Além de excelente ator, um grande elemento, gente pra xuxu. Uma pena que morreu cedo também, né? Mas um camarada que merece muito o meu respeito, onde ele estiver. 

Z- O filme, infelizmente, a gente não tem cópia. 

TC- Pois é. Eu estou pedindo, inclusive, pra um menino pra trazer onde tem uma cópia. É o dono do cinema em Guaxupé (interior de Minas Gerais), onde foi rodado esse trabalho. Eu já pedi pra ele arrumar umas quatro vezes, pra ele me mandar uma cópia, mas ele não manda. Até fundaram uma comunidade no Orkut do Última Bala. Eu entrei e falo com o pessoal, sabe? Eu estive lá em Guaxupé e procurei o cara. Ele estava viajando. Deixei recado com a secretária dele: “Fala que é o Toni, ator do filme, que quer uma cópia. Vê quanto custa, que não importa pra mim e manda pra mim”. Porque eu fiz grandes amizades lá. Então, de vez em quando, eu fui lotear uma área grande nessa cidade e tive diversas vezes lá. Só que eu não consegui falar com eles e não consegui uma cópia. Mas eu sei que ele tem porque ele andou fazendo umas exibições especiais pro pessoal lá. 

Z- O Luigi Picchi era bom diretor? 

TC- Bom. Eu gostei dele como realizador. Como ator, ele sabia transmitir o que ele queria em cena. Foi um cara muito bom. 

Z- Era uma produção grande, né? 

TC- Grande. Só que a história não foi na realidade o que ele queria filmar. A ideia do Luigi era algo sobre Januário Garcia, o sete orelhas. Esse foi um caso escrito em 1800 e alguma coisa. A ideia dele era contar sobre esse camarada. Mas eu não sei por qual motivo ele teve um caso com uma russa, que era a produtora dele. Ela queria um roteiro meio diferente e ele acabou mudando a história. Foi mais ou menos parecido, mas não tem nada haver com a história do Januário Garcia. Tanto que os nomes dos protagonistas mudaram. O roteiro original desse filme está comigo e nunca foi filmado. 

Z- Por quê o senhor acredita que esse tenha sido o seu melhor papel no cinema? 

TC- Eu gostei pela condução do diretor e o personagem é muito bom. Às vezes não adianta o ator ser bom. Ele tem que ter uma boa direção também, uma boa enquadração. Um ator medíocre com um diretor bom, que saiba enquadrar, dá um texto bom, e você conduz a cena boa. Depois, o público vai falar: “Esse cara é ótimo”. Ao contrário, eles acabam estragando os atores em certas coisas. O Pedro Canhoto pecou muito com isso. Isso aconteceu por duas razões: a maneira dele conduzir os atores, ele sabia enquadrar, mas na direção artística ele pecava muito. Outra coisa que nos prejudicou muito foi o filme começar numa época, parar e depois continuar. Então, a continuidade dele é muito sofrida e deixou muito a desejar. 

Z- Isso prejudicou o resultado final? 

TC- Exatamente. Mas o Noiva da Noite e A Última Bala foram mais bem trabalhados. Foi uma sequencia rápida, boa, bem-feita. Quando a coisa é mais bem conduzida, acaba dando um outro resultado final pro filme. Isso é importantíssimo pra um trabalho audiovisual. 

Z- Como foi feito aquele filme com o Pelé? 

TC- Eu já conhecia o Anselmo (Duarte) naquela época do Capitão. Então, a gente estava sempre trocando figurinha lá na Boca, ele tomando os uísques dele e eu o meu suco de laranja (risos). Às vezes, a gente tomava conhaque junto. Quando ele estava fazendo esse filme, eu estava em Bauru e me lembro que foi durante um carnaval. Na produção, estava o Iragildo Mariano, que depois trabalhou na produção do Beto Carrero. Eu levei ele no Mazzaropi, foi meu assistente e depois prosseguiu na área. Ele estava na produção e eles precisavam de um cara meio galã, que fosse bom de briga. Era o personagem que iria fazer umas cenas de luta com o Pelé. Trocando figurinhas entre eles dois, o Iragildo sugeriu: “E se você trouxesse o Toni?”. Nisso, o Anselmo perguntou: “Mas onde anda o Toni? Ele sumiu”. Aí o Ira falou: “Mas eu tenho o telefone dele”. Ele havia trabalhado comigo no ramo imobiliário e tinha os meus contatos. Me ligou de noite, umas nove horas da noite, dizendo que o Anselmo queria falar comigo. O homem da Palma de Ouro foi firme: “Estamos fazendo um filme com o Pelé. Tem um personagem pra você que é um puxador de carro assim, assim”. Eu perguntei: “É pra bater no negão?”. “Isso, é do jeito que você gosta”. Era pra eu estar de manhã em São Paulo, eles estavam no Hotel Jaraguá. “Quanto vocês vão pagar?”, “São quatro dias de filmagem”. Acertei com o Ira, peguei o carro umas dez horas da noite. Eu tinha um Maverick V8 que voava na estrada (risos), fui de Bauru pra São Paulo rapidinho. Lá eu fiquei uns quatro dias, durante as filmagens desse longa. Quando eu terminei, no último dia apareceu o Ary Fernandes me chamando pra ir fazer O Vigilante. Isso foi no primeiro semestre de 1978, no carnaval de 78. 

Z- Como foi o seu relacionamento com o Pelé? 

TC- Gente finérrima. Ele me surpreendeu… o cara tinha chegado do Cosmos com aquele puta nome. Eu até tinha ensaiado algumas palavras pra conhecer o cara e quando eu cheguei o Anselmo nos apresentou. O Pelé me desmontou: “Pô, você que é o Toni? Te conheço meu, você é foda hein?”, aí não teve mais jeito. Filmamos juntos, foram uns quatro dias juntos e temos algumas histórias bonitas com o Pelé. Algumas passagens com ele. 

Z- Tem alguma que você lembre mais? 

TC- Não dá pra contar aqui. Está alguma coisa no livro… 

Z- Mas não tudo? 

TC- Não, não pode porque senão vira bagunça (risos). Mas o negão é gente fina pra cachorro, educado, um grande companheirão. Eu tinha um apartamento, ele tinha outro, e me chamava pra eu ir na casa dele. Na época, ele tava treinando a canção Cidade Grande. Essa música ele fez nos Estados Unidos e treinou durante as filmagens. Depois, o Jair Rodrigues gravou e nós cantávamos essa música juntos o tempo todo. Nós ficamos amigos e nos telefonávamos durante muito tempo. Ele me deu um relógio de presente e eu dei dois terrenos pra ele de presente em Santa Cruz do Rio Pardo. Eu tinha um loteamento milimetrado lá, vendi metade e não conseguia vender o resto. Falei com ele: “Pelé vou te dar um terreno. Posso colocar o seu nome lá?”. Dei dois lotes, fotografamos, colocamos no jornal e vendi todo o loteamento. Nós só botamos uma placa: “Propriedade de Edson Arantes do Nascimento”, saiu no jornal ele assinado a escritura. Foi uma amizade muito grande, bacana. 

Z- Esse filme dos Trombadinhas deu dinheiro? 

TC- Também não deu dinheiro. Entender o público é algo complicado.

Parte 1 / Parte 3

Entrevista: Toni Cardi – Parte 3

Dossiê Toni Cardi
Parte 3- Novelas, vivência no ramo imobiliário e o futuro     

Toni Cardi em cena de Nua e Atrevida (1972)

  

 Z- Em novelas, o senhor fez papéis pequenos? 

TC- A maioria era coisa pequena. Eu fiz quatro novelas na Tupi e uma na Record. Meu maior papel foi quando eu fiz um médico na antiga Tupi. Inclusive, foi nesse trabalho em que eu contracenei muito com a grande Eva Wilma. 

Z- Isso aconteceu em qual novela? 

TC- Isso foi na primeira versão do Mulheres de Areia. A direção era do grande Walter Avancini. Eu tenho um grande respeito por esse cara. Pra mim, ele foi o maior diretor de novelas do Brasil. Ele sabia tudo. Eu fazia um médico meio galã que foi um estouro na época. Poxa, eu estava lá em cima. No elenco tinha muita gente boa e eu peguei um destaque fudido ali. Você não precisa ser o principal. Tanto que o Aldo César falava pro (Carlos) Zara: “Bota esse cara na parada que ele vai estourar”. Tinham vários galãs na época…que hoje estão todos velhinhos (risos). Mas o Carlos acabou não seguindo essa indicação do Aldo César, que era muito meu amigo. Teve uma série de problemas durante a realização da novela. Quando a gente estava fazendo Mulheres de Areia, a Eva Wilma capotou um fusca preto descendo a serra em Santos. Na época, ela tinha acabado de se separar do John Herbert pra se casar com o Zara. Na realidade, não sei… houve uma cisma do Carlos comigo. Eu não sei o motivo e ele começou a me cortar. Então, eu não tive muita chance na Tupi. Mas como o meu forte era cinema, eu não liguei muito para isso. 

Z- Como o senhor avalia os seus papéis na televisão? 

TC- Esse do Mulheres de Areia foi o melhor. O da Record poderia ter sido mais trabalhado. Eu fiz um matador, um capanga do Jonas Mello que era contratado pra matar o Hélio Souto. O meu personagem era um jagunço, sabe? Usava chapéu tolado, suspensório, arma. Eu era um daqueles caras que andam de cabeça baixa procurando gente pra matar. Então, eu estou lá em dez, doze capítulos. Teve um dia que eu fui fazer um comercial do avião Bandeirante e cheguei tarde na gravação da novela. Mas eu tinha avisado o assistente de direção. O diretor era o Waldemar de Morais, muito polêmico esse cara. Ele era muito encrenqueiro, chato, foi o pior diretor que eu conheci dentro do segmento de televisão. Quando eu cheguei de manhã, já tinha avisado o assistente: “Fala que eu vou chegar um pouco depois porque eu vou filmar um comercial de manhã”. Esse comercial foi rodado na Embraer, em São José dos Campos. Quando eu cheguei, fui direto pro camarim colocar a roupa e me preparar porque eu sabia que eu ia gravar naquele dia. Quando eu passei pelo estúdio, o Waldemar me chamou num canto: “Toni essa é a hora de chegar? Você não tem nada pra me dizer?”. “Não, por quê?”, eu disse. Ele me respondeu: “Mas pô, essa hora?”. Eu eu: “O seu assistente não passou pra você que eu ia chegar mais tarde?”. Aí ele ficou questionando que eu deveria ter falado diretamente com ele e não com o assistente. “Mas eu falei com ele que eu iria chegar umas onze horas porque eu ia fazer um comercial”, respondi. Ele começou a reclamar e eu falei: “Então, aproveita e mata o meu personagem ou manda viajar porque eu tenho um filme pra fazer e você vai me liberar”. Naquele dia mesmo eu filmei umas três cenas seguidas, sabe? Fui dispensado e saí da novela. 

Z- O diretor era meio ignorante? 

TC- Não, o cara era grosso, muito grosso. Ninguém gostava desse cara. Waldemar de Moraes,  pode procurar esse nome. Os caras metiam pau nesse cara. 

Z- Por quê você se afastou da vida artística? 

TC- Porque eu fiz duas coisas que no Brasil não dão dinheiro: arte e judô. O cinema, que estava no sangue, não dá dinheiro. Não sei de ninguém que ganhou dinheiro com cinema até hoje. Televisão somente os cabeças, que são dois ou três, ganharam algo. Televisão é uma máquina de fazer louco, não é o meu caso porque eu não gosto disso. Fiz judô cara… uma modalidade que sempre sofreu muitas dificuldades. Por exemplo, você ia fazer uma competição, mas não tinha patrocinador, não tinha nada. Você tinha que comprar quimono, pagar passagem, hospedagem. As minhas competições eram um sacrifício pra fazer. Pra eu pegar faixa preta… hoje custa em torno de dois mil reais um exame de faixa preta. 

Z- O senhor chegou a fazer teatro? 

TC- Sim. Fiz muito com o Raffaele Rossi e com o Francisco Di Franco. Eu e o Chico viajamos esse Brasil inteiro fazendo Jerônimo, o Herói do Sertão. Inicialmente, essa história tinha sido feita para o rádio e, posteriormente, foi para a televisão. Nós levamos para o teatro. O Chico fazia o Jerônimo, eu fazia o bandido, e tinha uma menina que fazia a mocinha. Infelizmente, eu não me lembro o nome dela, uma atriz de teatro. Nós viajamos esse Brasil inteiro dentro de um Dodge Dart. 

Z- E o Chico já era muito famoso nessa época? 

TC- Ele era o galãzão na época. O Chico era meu irmão. Nós tínhamos a mesma altura, o mesmo tipo físico. Então, a gente viajou muito junto até por conta da nossa amizade. Nossa cara, eu senti muito quando ele morreu. 

 Z- Você chegou a ser profissional no judô?                             

 TC- Sim, eu era faixa preta. Tive academia, tudo. Cheguei a disputar o Campeonato Paulista em 64. Eu não tinha patrocinador pra fazer o exame, então você tinha que emprestar, virar, correr e buscar de várias pessoas. Você vê um menino que no ano passado, um rapaz forte, representou o Brasil no estrangeiro e não tinha dinheiro pra fazer um exame de faixa preta. Ele não tinha dinheiro, certo? É uma vergonha isso pro país. Então, são duas coisas que eu fiz que não deram dinheiro. 

Z- Então você resolveu parar. 

TC- Resolvi parar. Como eu mexia com empreendimentos imobiliários, acabei ficando na área. Na realidade, isso sempre deu dinheiro e me sustentou. Eu investi e resolvi ficar por aqui mesmo. Mexer com terra foi a melhor coisa que eu fiz.  

Z- Você vende lote pelo interior?

 TC- A maioria é pelo interior de São Paulo. Eu já fiz 237 loteamentos em cidades como Piracicaba, Registro, Campinas. Poxa, eu tive até em Macapá, lá no Norte. Eles pegaram uma área grande e dividiram em terrenos. Nisso, eu vendi à prestação pra esse povo que não tem condição de comprar fazenda ou sítio. Sou construtor também, cheguei a levantar dois prédios em Bauru. Isso tudo dá dinheiro e vale a pena. Já deu mais que hoje. Hoje a concorrência é muito grande. Antigamente, a procura era maior que a oferta. Eu tenho o recorde brasileiro: já vendi 586 terrenos em um dia. Eu tinha 54 corretores e durante um dia inteiro eu vendi 586 terrenos. Não deu tempo de almoçar, fomos jantar à meia-noite. Poxa, eu tive que comer uma bolacha e ir atendendo o pessoal. Essas coisas que vale a pena fazer com uma equipe grande e eu sempre tive uma equipe de verdadeiros profissionais para me acompanhar. A gente vem rodando esse Brasil afora. Eu tenho uma imobiliária em Bauru, outra em Prudente e aqui em Piracicaba trabalho em assessoria pra lançamento de loteamento. Dou ideias em projetos para loteamento. 

Z- Durante o período em que você ficou nessa área, você sentiu muita falta do cinema? 

TC- Meu irmão: o cinema é um câncer. Um bichinho que entra no sangue. Se você chegar em mim agora e falar: “Olha, estou com um convite de um produtor, um diretor e ele quer que você leia um roteiro pra você fazer um personagem”. Poxa, eu vou ficar ansioso, vou querer ler, ver essa porra. Então, está dentro e morre com a gente, bicho, não tem jeito. A arte é fogo, viu? Ela contamina. Entrou no cinema é foda, não tem jeito de fugir. Às vezes, eu ligo a televisão e vejo os colegas. Quero ver a interpretação dele, o que ele está fazendo. Fico admirando como o cara está, se envelheceu, se engordou. Você começa a recordar coisas do passado… tenho vários amigos que estão na ativa.

 Z- Você mesmo escreveu a sua biografia? 

TC- Eu mesmo escrevi na terceira pessoa. Eu não uso o meu nome na biografia, que se chama A Simetria de Uma Trajetória. No livro, eu uso o apelido de James, que era outro apelido que eu tive. Então, você não vai ver o Toni Cardi na história, e eu tinha de James pela minha semelhança com o Sean Connery. A obra ficou bonita, todo mundo que acompanhou e ajudou gostou. Tanto que os comentários foram bastante emotivos. O livro está na editora e está faltando somente colocar as fotos nas páginas certas. Depois, vou mandar imprimir os exemplares. 

Z- Como surgiu a ideia de você escrevê-lo? 

TC- Cara, eu comecei a escrevê-lo ainda na época da máquina de escrever. Isso começou há uns dezoito anos. Tinha umas 70 páginas e enfiei na gaveta. Agora como eu me separei, estou sozinho, os filhos estão criados, dá pra sentar e ficar sossegado escrevendo. Um dia eu abri aquilo e realçou tudo que estava na cabeça. Joguei tudo no computador e hoje montado deu 186 páginas. Está bom, bom pra cachorro (rindo). 

Z- O que o senhor espera com esse livro?  

TC- Na realidade, a minha história é muito complexa. É uma história bonita. Eu venho de uma origem muito humilde, eu pastei muito. Pastei pra cachorro. Cheguei a ter meu nome na imprensa bonito, na mídia correndo pra cima e pra baixo, fui considerado galã. Ganhei dinheiro, por onde passei sempre fui famoso. Sou famoso ainda, onde eu passo me perguntam: “Toni? Poxa é você? Você não trabalhou em cinema?”. Eu ainda sou reconhecido e tenho uma história muito séria ligada ao espiritismo. E eu me tornei espírita. Como bom filho de europeus, eu sou católico apostólico romano de criação e princípios. Mas por força do destino acabei me tornando espírita e hoje eu sou feito no candomblé, eu sou do candomblé. O meu pai e a minha mãe me mandaram algumas mensagens depois de mortos. Então, eu tive tinha muita coisa, muita perseguição na minha vida. Já era pra eu ser muito mais rico e ter muito mais do que eu tenho. Muito, mas muito. Mas eu tenho uma história que lendo o livro dá pra entender. Eu omito o nome de pessoas em terceira pessoa pra evitar certos problemas. Senão, ia dar muitos processos em cima da história. Então, eu quero transmitir mensagens pra jovens e adultos que tenham fenda nos olhos. Que a maioria… eu tive exemplo hoje à noite toda do meu lado. Eu cheguei em casa nove e meia da noite. Tinha um grupo parado com umas motos do lado do meu vizinho com um som alto dentro de casa. Quatro e meia da manhã, eu escutei briga na rua com umas meninas gritando. A festa, ao invés de ser dentro de casa é na rua. Então, você vê aquele vexame de mulher, umas meninas de dezesseis, dezessete anos brigando e falando palavra de baixo calão na rua. A festa foi até meio-dia hoje. Então, eu pergunto: o que elas esperam da vida? Porque eu tenho experiência de todos os lados da vida. Então, esse livro é uma mensagem. Tudo o que eu conto é realidade, não tem fantasia. Por ser muito real e envolver pessoas, eu tive que omitir muita coisa. É fora de série. 

Z- É uma obra sobre a sua carreira no cinema… 

TC- Da minha história de vida toda. 

Z- Também tem esse lado religioso no livro? 

TC- Sim, eu tive que mostrar esse lado. Porque aí vem a perseguição, a briga, a falência. Eu cheguei à falência e fui até o fim do poço. Tive que me reerguer e hoje estou bem de vida de novo. Isso aconteceu graças a uma série de coisas. Então, é muito bacana. A história vale a pena. Você vai rir, vai chorar e falar: “Esse filha da puta tem coisa pra caceta”. E não é da cabeça, é história mesmo com datas e tudo. São coisas que eu busco lá no fundo, entendeu? Então, esse livro é pro novo, pro velho e pro intermediário. É pra todos lerem esse livro com muito carinho porque vale a pena. Tem uma mensagem muito bonita. 

Z- Na época, os filmes que vocês faziam eram tidos como pornochanchada. Isso incomodava você? 

TC- Eu nunca fiz pornochanchada. Não, eu nunca participei de pornochanchada. Mesmo sexo explícito quando entrou eu estava saindo. Nada me atingiu. A minha trajetória em cinema foi boa e eu gosto muito dela. 

Z- Você fez muitos filmes em pouco tempo de carreira.  

TC- Exatamente. Eu fiz bastante coisa, tanto que no comentário do (ator) Carlos Miranda do meu livro, ele comenta: “Um profissional com o qual todo diretor, produtor e colega gosta de trabalhar. Sucesso Toni”. Mas eu não pretendo seguir carreira como escritor, vou ficar somente nesse livro aqui. Então, eu sou reconhecido pelo trabalho e pela forma que eu conduzi a minha carreira. Deixei grandes amizades, grandes amores, grandes paixões. Tudo isso faz parte da vida.

  Parte 2 / Início 

Entrevista: Carlos Miranda

Dossiê Toni Cardi

Entrevista com Carlos Miranda

 Por Matheus Trunk

A voz calma e a educação formal escondem um homem que é ídolo de várias gerações. Aos 78 anos, o ator Carlos Miranda é um senhor de palavras gentis. Ele atendeu a reportagem da Zingu! num final de tarde por telefone. Nosso objetivo era falar sobre sua parceria de trabalho com o amigo Toni Cardi. “Poxa, você me desculpe, mas hoje está tudo corrido. O meu computador deu um problema e perdi muita coisa”. Mesmo assim, fomos atendidos pelo intérprete do lendário vigilante Carlos. 

Zingu!- Como o senhor conheceu o Toni Cardi?

Carlos Miranda- Na realidade, eu estou na área cinematográfica há mais tempo que ele. Eu comecei antes até porque sou mais velho que ele (risos). Entrei no cinema em 1949, na produtora Maristela. Depois, fui escolhido entre mais de 100 candidatos para ser o protagonista do famoso seriado Vigilante Rodoviário. O meu primeiro contato com o Toni Cardi aconteceu na Boca. Lá era o centro da produção. Logo  nos tornamos amigos e isso se intensificou com o passar dos anos. Visitei ele em Bauru inúmeras vezes.  

Z- Qual é a sua avaliação sobre ele como ator?

CM- O Toni é um excelente ator. Nessa época, a gente respirava cinema e passávamos muito tempo juntos. Ele tinha um tipo bom que se encaixava em diversos papéis, cabia tanto como galã até como marginal. Uma característica marcante é que ele sabia desempenhar muito bem as cenas de luta.  

Z- Como foi o trabalho de vocês no Até o Último Mercenário?

CM- Nós fizemos uma cena de luta que foi muito elogiada. Inclusive, nesse longa trabalhou a Marlene França, nossa colega que, infelizmente, faleceu recentemente. Ela foi uma descoberta do Ary quando ele estava fazendo A Rosa dos Ventos no Nordeste. Fui muito próximo a Marlene durante o período em que ela foi casada com o Milton Amaral. Felizmente, nesse trabalho deu tudo certo tanto na minha interpretação quanto na do Toni. 

Z- Durante esse filme, você chegou a ver o Toni profissionalmente. Não mais o seu amigo pessoal. Como ele era nesse aspecto?

CM- Ele sempre foi um cara sério, comprometido com o trabalho. É o companheiro ideal quando você quer realizar um longa-metragem. Eu sempre louvo o profissional e a pessoa dele.  

Z- Como era o relacionamento do Ary Fernandes com o Toni?

CM- Olha, o Ary gostava muito dele. Aliás, todo o pessoal da Boca tinha um carinho especial por ele.  

Z- Depois, ele e o Ary fizeram uma segunda versão do Vigilante Rodoviário, que acabou não tendo grande sucesso. Na opinião do senhor, por que isso aconteceu?

CM- Eles tentaram pegar embalo na primeira versão do Vigilante. Mas não teve a mesma receptividade do público. Nesse período, eu já me dedicava a outros projetos e acabei não entrando. 

Z- O senhor também trabalhou como diretor de produção de diversos longas. Mas nunca chamou o Toni para atuar em alguma dessas produções. Por que isso aconteceu?

CM- Durante um período, eu fui ator. Depois, entrei na Polícia Militar Rodoviária e me dediquei somente a comerciais e documentários ligados a corporação. A minha carreira dentro do cinema de longa-metragem ficou prejudicada. Fico chateado por não ter conseguido trabalhar com o Toni mais vezes. Mas ele é meu amigo pessoal, eu conheci a família dele e ele a minha. Um grande sujeito.

 

 

Entrevista: José Lopes

Dossiê Toni Cardi

 

Entrevista com José Lopes 

Por Matheus Trunk

Foto: Beto Ismael (www.pornochancheiro.blogspot.com)

São 70 anos de vida e mais de 40 dedicados a sétima arte. José Lopes, o Índio, viveu diversos momentos cruciais da história do cinema paulista. O versátil ator trabalhou em diversos longas-metragens com diversos realizadores. Num primeiro momento, liguei para ele durante a semana. Mas Lopes negou-se a dar declarações por telefone. “Passa na galeria essa semana que a gente conversa”, respondeu com seu usual sotaque baiano.

Alguns dias depois, nos encontramos num bar da galeria Boulevard, no centro. Esse é o local em que a velha guarda do cinema se reúne diariamente. Sem qualquer problema, conversamos sobre Toni Cardi, amigo que Índio não vê há anos.

 

Zingu!– Como você conheceu o Toni Cardi?

José Lopes- Olha, o Toni Cardi já era galã quando eu conheci ele. Inclusive, ele trabalhou em vários filmes do Mazzaropi, fazendo quase sempre esse tipo de papel. Nós estivemos juntos no O Grande Xerife. Ele era um grande cartaz, acredito que depois do Mazza ele fosse a maior estrela do longa. 

Como foi o relacionamento entre vocês?

JL- O Toni Cardi é um grande amigo e nós sempre nos demos bem. Hoje, ele está no interior e acredito que ele esteja muito bem, porque ele merece. Ele sempre foi um molecão, sabe? (risos). Então, muitas vezes ele aprontava com o pessoal. Mas aprontava numa boa. Não era algo para denegrir ou humilhar ninguém. 

Z- Você se lembra de algum episódio engraçado dele?

JL- Sim. Lembro que lá na fazenda do Mazza todo mundo arrumava com todo mundo. Uma vez, ele pegou o meu colchão, ensopou tudo com água e depois colocou o cobertor por cima. Depois, quando eu pulei na cama só foi água que voou (risos). 

Z- O que você achava do Toni ator?

JL- Além de ser um cara legal e brincalhão, ele era um bom ator. Amigo e era um bom tipo pra cinema. Acontece que nos filmes do Mazzaropi só tinha espaço para uma estrela: o próprio Mazza. Ele era o dono do negócio e um grande comediante. Então, fica difícil pros outros atores aparecerem muito. Verdade seja dita: eu acredito que o Mazzaropi seja um dos melhores no segmento dele no cinema brasileiro, senão for no mundo. 

Z- No Grande Xerife teve uma confusão e ele acabou saindo antes do filme. Você se lembra disso?

JL- Foi uma besteira. O Toni era um cara educado com todo mundo. Eu sei que um dia a equipe estava jantando. Parece que ele pediu um negócio pro cozinheiro e o pessoal da cozinha começou a fazer onda. Quero deixar bem claro que o Mazzaropi não fazia questão de comida, só que o empregado dele tinha umas frescurinhas. O cara não quis dar e o Toni Cardi se invocou, jogou o prato e fez uma confusão. Nisso, ele saiu do filme. Daí pra cá, não sei se ele andou fazendo mais algumas coisas. Esse imprevisto realmente aconteceu com ele. Mas todo mundo gostava dele lá no Mazzaropi. Só que o cara se desentendeu e ele estava de saco cheio. 

Z- Você lembra como era o relacionamento dele com o Pio Zamuner?

JL- Se davam bem. O Pio tinha trabalhado em várias produções com o Mazza. Mas o Pio você conhece bem, é aquele italianão estouradão, né? Ele até hoje é assim. Mas esse desentendimento naquele filme foi uma besteira e tudo bem. 

Z- Ele chegou a fazer alguns trabalhos com o Tony Vieira. Você chegou a acompanhar como era o relacionamento dos dois?

JL- Sei que antes da Boca ir acabando, o Toni foi pro interior e começou a mexer com imobiliária. Inclusive, ele vendeu um terreno pro Tony num lugar além de Campinas. Os dois se chamavam de xará e se gozavam. O Toni se deu bem graças a Deus, foi pro interior e está bem de vida. Eu sei que ele fez vários trabalhos. São essas coisas, vai passando o tempo e a gente vai esquecendo uma porção de coisas. Mas o que eu tenho que afirmar é que o Toni Cardi é um puta de um cara legal, não é mau ator. Era um puta de um tipo. Como colega de trabalho e fora, é uma pessoa muito decente. Ele que fez certo, saiu antes da bucha pegar fogo (rindo). 

Papo Furado com Toni Cardi

Dossiê Toni Cardi

 
 
 

Dedé Santana e Toni Cardi em cena de Os Irmãos sem Coragem (1972)

Papo Furado com Toni Cardi 

Por Matheus Trunk

Como Toni Cardi é um personagem especial do cinema brasileiro, Zingu! pediu que ele respondesse a esse questionamento. O ator deu sua opinião sobre algumas pessoas que fizeram parte de sua trajetória artística e recomendou um diretor, uma musa e um herói.
 

David Cardoso: Galã aquático. Era assim que eu e Chico Di Franco chamava-o após ele produzir filmes na praia. 

Dedé Santana: “Meu largo e profundo amigo”, (expressão muito usada por ele). É um irmão camarada, grande companheiro.

Marlene França: A fogosa. Minha irmãzinha do coração, morreu praticamente esquecida da mídia. Uma pena.

Ozualdo Candeias: O Professor. Antipático para muitos, para mim, excelente camarada.

Pio Zamuner: O italianinho. Figura maravilhosa, mesmo após algumas cervejas, pilotava uma câmera como ninguém.

Raffaele Rossi: Rafa, o culpado por eu trilhar nesta vida de malucos, “a sétima arte no Brasil”.

Um diretor: Cecil B. de Mille

Uma musa: Shirley MacLaine

Um herói: Nelson Mandela

 

Reflexos em Película

Por Filipe Chamy

 

Reflexos em película: As rainhas estão nuas
 

A televisão brasileira, de modo geral, apresenta um nível baixíssimo. 

Não vou falar do que representa essa situação, e nem dos fatores históricos envolvidos, ou mesmo de eventuais maneiras de mudar esse quadro. O que acontece é que a televisão brasileira não só é consumida por gente, digamos, “simplória” das ideias como também é feita por gente assim. 

É fácil em qualquer site ou revista “de fofoca” encontrar uma entrevista com alguma atriz em evidência na telinha, e a pergunta virtualmente mais recorrente é a sobre nudez. “Você teria problemas em filmar cenas nua? Toparia aparecer nua numa novela?” etc. 

A resposta mais recorrente é: “se a personagem exigir”. E suas variações: “depende do contexto”, “se for importante para a história”, “se não for uma cena gratuita”. 

Contrariamente a isso tudo, temos o cinema brasileiro sendo conhecido como um antro de “putaria”, de esbórnia, de mulher pelada. O que é essa discrepância e o que ela significa? 

A meu ver, essa questão da nudez é muito mal entendida. Essas atrizinhas televisivas gostam de aparentar classe, refinação e pudor, mas, quando muito, soam apenas ridículas: o que seria nudez “gratuita” ou “fora de contexto”? Havendo a personagem, toda cena com ela é “importante” para sua história. 

Carlos Reichenbach é um dos que zombam desse moralismo de fachada. Não com agressão gratuita (agora sim a palavra é adequada), mas com inteligência. A primeira cena de Garotas do ABC, por exemplo, traz a bela atriz Michelle Valle (Aurélia Schwarzenega) completamente nua em seu quarto, dançando e simultaneamente colocando suas roupas; primeiro a calcinha, depois a calça, em seguida a blusa. Então arruma os cabelos, e pronto. O que há de “apelativo” (outro termo impróprio usado à exaustão) nisso? O que pode ser mais natural que uma garota nua em seu quarto, ouvindo música enquanto se troca? É um naturalismo incrível e ainda assim cotidiano, esse que Reichenbach apresenta. É nudez, nudez sincera e nudez exposta, nudez da verdade da personagem, porque assim ela é. Também o seria caso o filme mostrasse a garota no banho, ou masturbando-se no banheiro, ou o que quer que fosse. Por que exigir uma hipócrita camada de respeitabilidade no que é, em essência, tão comum e habitual? Que dogmatismo é esse que as intérpretes televisivas evocam em suas entrevistas quando falam de cenas “importantes”, “não gratuitas” e “contextualizadas”? O que não seria assim? O que elas pretendem com essas declarações esdrúxulas? 

Porque aí chegamos também na estranha contradição: algumas atrizes protegem-se virginais contra a exposição de seus corpos na televisão e não fazem esse charminho no cinema, onde revelam intrépidas o esplendor de sua nudez. Exemplos não faltam: a desinibida Paola Oliveira de Entre lençóis, a outrora recatada Carolina Dieckmann mostrando os seios em Onde andará Dulce Veiga? e agora, parece, Camila Pitanga em Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios — filme que já vem sendo muito comentado justamente pelas cenas com a moça despida. 

Talvez Pedro Cardoso, em seu controverso “manifesto” contra a exploração da nudez em fitas nacionais, não estivesse tão errado assim. É que há um certo jogo de interesses na valorização ou depreciação de nudez (sobretudo feminina, a que discuti) nas artes brasileiras. Ou então talvez haja uma tremenda cultura de subserviência cega ao estrangeiro e depreciação pura e simples do nacional, para tantas críticas infundadas e incoerentes. Ou, o mais provável, há ignorância e gente ignorante sempre se intrometendo. 

Musas Eternas

Brigitte Bardot

Por Filipe Chamy
           

Brigitte Bardot não faz um filme há quase quarenta anos. 

No entanto, segue firme como um ícone, uma lenda, um arquétipo. 

Na verdade, ela é talvez a maior prova do que o cinema pode eternizar enquanto arte. A Brigitte Bardot lembrada, reverenciada e (ainda) amada é a jovenzinha de ar petulante misturado a uma sórdida candura, os dentes separados dando o tom de um sorriso franco, intenso, marcante. 

Todos sabemos que hoje Brigitte Bardot é uma reclusa senhora que beira os oitenta anos e que vive para proteger animais – por meio, aliás, de sua fundação, em atividade há já vários anos. Também são notórios os processos em que se envolve por, alegadamente, fomentar preconceitos raciais e étnicos. E o que dizer de seu suposto reacionarismo político, sua aproximação com a direita extrema francesa e seu desprezo aparente pela maior parte das pessoas? 

Nada disso importa muito. Brigitte Bardot foi um cometa que riscou o céu do cinema, não adianta mais apontar telescópios para cima: o astro já passou. 

Fenômenos como essa francesa, nascida em 1934 numa família tradicional da classe média burguesa, não são fáceis de explicar. Até hoje há quem não a ache uma grande beleza – na década de 1950, um jornalista descreveu sua figura como detentora de um “físico de empregadinha”-, pouco ou nada talentosa, uma farsa inventada pela mídia e superestimada pela imprensa. Ou apenas “um rostinho bonito”. Ou uma vulgar prostituta, vendendo seu corpo a cada filme. 

Brigitte Bardot sempre uma estrela ao contrário: não gostava de enfeitar-se com joias e roupas caras e pomposas, odiava holofotes e câmeras apontados para ela e preferia ficar em sua casa com seus amigos e bichos do que num set de filmagem, ou numa coletiva ou evento social qualquer. Isso lhe valeu a fama de esnobe e caprichosa que, de certo modo, mantém até hoje. 

Mas é digna de admiração a forma como chegou ao estrelato. Ao contrário de tantas estrelas forjadas, Brigitte começou timidamente, como discreta protagonista de filmes de qualidade duvidosa ou, mais ativamente, como coadjuvante (às vezes, quase figurante) em produções de nomes respeitáveis como Sacha Guitry, René Clair e Anatole Litvak. Aos poucos foi, com seu carisma insuperável, galgando degraus na escada da fama – também por algumas pequenas incursões em publicidade; o que, aliás, a levou ao cinema – e despontando finalmente com o hit mundial E Deus criou a mulher, dirigido por seu então marido Roger Vadim. A sensualidade espontânea da jovem garota de pouco mais de vinte anos conquistou o mundo, e filmes como Desfolhando a margarida, em que faz uma encantadora menina “maluquinha” (um de seus papéis recorrentes nessa fase), confirmam que a aposta do planeta não estava errada: Brigitte Bardot era um achado. 

Com a hipocrisia reinante no mundo pré-feminismo “institucionalizado”, Brigitte era execrada pela Igreja, pelos “cidadãos de bem”, pelas mães zelosas, pelas esposas fiéis, enfim, por toda a moralidade vigente. É difícil hoje mensurar o impacto que BB (suas famosas iniciais) causou na sociedade de então, com a exibição de sua nudez em filmes, suas fotos e ensaios sensuais, seus hábitos progressistas de usar biquínis diminutos, fazer topless e ter vários maridos e amantes. Não que sua vida seja um exemplo de consciente liberação feminina; muitas de suas opções foram casuais, ou mesmo equivocadas, mas seu desejo de ser honesta a si mesma criou, como esperado, muitas inimizades para a controversa jovem vedete do cinema francês e mundial. Suas fitas eram tidas por “luxuriosas”, muitas agressões foram sofridas em diversas localidades por ela estar sempre associada ao “mal” e ao “pecado”, e muitos homens a usaram, muitos diretores a exploraram, muitos repórteres a importunaram. Sua vida pessoal era devassada, sua privacidade, destruída. Seus momentos de intimidade eram fotografados, vendidos a mil jornais e revistas, deturpados e “sensacionalizados” pelo jornalismo marrom. Não é muito diferente do que se vê hoje, com facilidade, nas perseguições dos paparazzi e público descontrolado a gente como Justin Bieber, Miley Cyrus, Taylor Lautner. Os astros da moda, que o pessoal segue por imposição midiática e falta de referência, sem hesitar, sem dar trégua. 

Mas BB não era farinha desse saco. Não tinha a vaidade ridícula desses artistas improvisados, e essa violência a agredia, a constrangia, a deixava desgostosa e contrariada. Foi esse o germe para sua decisão de se aposentar do cinema, precocemente, aos trinta e oito anos. 

De qualquer modo, a moça segue fazendo muitos filmes durante todos os anos cinquenta, e sua década seguinte veria uma filmografia mais ambiciosa, em que diretores legendários se acotovelam para tê-la em suas produções. 

O primeiro filme dessa fase mais determinada, na qual se mostra mais madura como intérprete, é o clássico instantâneo A verdade, do “mão de ferro” Henri-Georges Clouzot, filme que arrebatou público e crítica logo em sua estreia em 1960 – época em que Brigitte se via às voltas com o nascimento do primeiro e único filho, Nicolas, cujo pai foi seu segundo marido, o hoje não muito lembrado ator Jacques Charrier. 

Seguem seus encontros com Louis Malle, em três fitas: Vida privada, em que dividia a cena com ninguém menos que Marcello Mastroianni, obra melancólica sobre os tormentos da celebridade; Viva Maria!, farsa western com Jeanne Moreau, em que se diverte, canta e sensualiza; e William Wilson, um dos segmentos de Histórias extraordinárias, filme baseado em textos de Edgar Allen Poe que contava ainda com episódios de Federico Fellini e de seu ex-marido Roger Vadim (agora dirigindo sua atual companheira, Jane Fonda).

 Enquanto isso, em 1963, ocorre a parceria mais inusitada do cinema francês de então: Brigitte Bardot e Jean-Luc Godard! A estrela clássica e o diretor iconoclasta, juntos em um filme que contaria ainda com Michel Piccoli, Jack Palance e Fritz Lang (!). Tratava-se, claro, de O desprezo. BB adorava o romance de Alberto Moravia, mas hesitava em filmar com Godard — que queria tratar a história a sua maneira, realizando tantas modificações que no final das contas dava a impressão de ter utilizado outra fonte. O filme é hoje muito justamente um clássico, tido entre os melhores filmes de Godard, ou talvez o melhor isolado. Em O desprezo há crítica social, referências cinéfilas, brincadeiras metalinguísticas e toda a irreverência que marcou a fase mais aceita de Godard. 

Apesar de ainda fazer comédias “inconsequentes”, romances formulaicos e filmes “leves”, alguns filmes que Brigitte faz nessa época vão mais a fundo em sua vida e, por vezes, parecem relatos autobiográficos: por exemplo, a amante acusada e julgada por todos em seu comportamento “imoral” em A verdade não era senão ela, com tentativas de suicídio semelhantes às que praticava na vida fora das telas, com a mesma incompreensão generalizada e a mesma zombaria de quem a taxava de rapariga e, no entanto, não conseguia olhar para ela sem imaginar e desejá-la nua; do mesmo modo, a celebridade perseguida e acossada pela fama em Vida privada também era a jovem BB, eterna caça alvo dos olhares atentos de todo o planeta. 

Brigitte sempre gostou de cantar e também lançou álbuns de música em seus anos de maior popularidade. Durante esses anos sessentistas, firmou uma grande dupla com o mitológico Serge Gainsbourg, e juntos fizeram História com obras como Comic strip, Bonnie and Clyde e Harley Davidson; além, é claro, de Je t’aime moi non plus, talvez a canção mais famosa de Gainsbourg, que ficou engavetada por anos e anos — para não comprometer seu terceiro casamento, com o playboy Gunther Sachs —, até ser lançada na voz da nova companheira do compositor, Jane Birkin. 

Bem no final da década, BB faz um dos filmes que mais lhe encheram de orgulho: O urso e a boneca, do grande e subestimado Michel Deville. Temperamental, ela se orgulha em dizer que foi uma das filmagens mais tranquilas por que passou, e que fez grandes amigos na produção — entre eles o também grande e subestimado Jean-Pierre Cassel, seu co-star. Brigitte Bardot entrava na década de 1970, e poucos anos e filmes a separam de seu voluntário ocaso cinematográfico. 

Menos de meia dúzia de trabalhos após O urso e a boneca e BB encerraria definitivamente sua participação na indústria cinematográfica. Seus últimos filmes não foram felizes: quase todos fracassos na concepção e na bilheteria, ela teria entre seus últimos momentos de atriz encontros com Annie Girardot (As noviças), Claudia Cardinale (Les petroleuses) e Jane Birkin (Se Don Juan fosse mulher, de seu ex-marido e eterno amigo Vadim). 

Incomodada com sua carreira, com o ofício que exercia e com a constante monitoração da imprensa sobre sua vida pessoal, Brigitte Bardot dá um adeus definitivo à vida pública em 1973. De lá para cá só apareceu em eventos sociais específicos, programas televisivos esporádicos e mobilizações determinadas, quase sempre motivada pelo seu desejo de conscientizar as pessoas sobre a terrível sorte dos animais, os inúteis sacrifícios de que são vítimas constantemente e a necessidade de tratá-los de maneira mais digna e sustentável. Nessas ocasiões, acompanha-se do quarto marido, com quem divide a vida há quase vinte anos. 

BB ainda é um enigma. O que se sabe dela são seus rumorosos (e numerosos) casos românticos, com Jean-Louis Trintigant, Sacha Distel, Gilbert Bécaud e muitos outros famosos ou anônimos, suas casas e chalés que ficaram conhecidos mundialmente, seu firme e polêmico posicionamento nas causas em que se envolve e sua extrema popularidade durante certos anos no cinema francês e mundial. Porém, o que se sabe da mulher? Os recentes livros que escreveu aos poucos vão ligando os pontos. E deixando claro que se nunca foi uma santa, também é inadequadamente trajada de demônio, devoradora de homens, mulher de vida fácil. 

É fácil apontar o dedo para os outros. Brigitte Bardot é a prova viva de que às vezes a pior hipocrisia é condenar quem leva a vida que você inveja. 

Nossa Canção

Por Edu Jancz

Ponteio, Domingo no Parque, Alegria Alegria, Roda Viva – músicas que marcaram uma geração – em Uma Noite em 67
 

Vi e vivi os Festivais da Record. Costumo dizer que eles têm, que eles devem ter o status de um “movimento” da MPB – Música Popular Brasileira.

O documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, registra não apenas os últimos momentos do Terceiro Festival de Música da Record. Ele testemunha  uma história de qualidade, realidade, alegria, participação popular e magia centrada num país a caminho de uma Ditadura violenta, estúpida e ultrajante – que se diplomou com a assinatura do Ato Institucional número 5, pelo general Arthur da Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968.

Embasado pelas imagens da TV Record – deliciosos documentos –  Uma Noite em 67, começa com  Edu Lobo e Marília Medalha cantando a música vencedora desse Festival: Ponteio, de Edu Lobo e Capinan:

Era um, era dois, era cem
Era o mundo chegando e ninguém
Que soubesse que eu sou violeiro
Que me desse o amor ou dinheiro… 

Era um, era dois, era cem
Vieram pra me perguntar:
“Ô você, de onde vai
de onde vem?
Diga logo o que tem
Pra contar”… 

Não era somente Edu Lobo que tinha algo para contar. Gilberto Gil, com Domingo no Parque, segundo lugar do Festival, provou que uma letra social podia ser simples e ter, ao mesmo tempo, um arranjo sofisticado: 

O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!… 

A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi prá Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi prá lá
Pra Ribeira, foi namorar… 

O jovem Chico Buarque, num ato que parecia premonitório,  não foi namorar e cantou os tempos difíceis e de resistência que o povo brasileiro precisaria viver para manter sua dignidadade. A música, Roda Viva

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu… 

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá … 

Caetano Veloso, desenhando os primeiros passos da Tropicália,  retoma a bandeira da esperança  e exalta seu mais límpido desejo de Alegria, Alegria

Caminhando contra o vento
Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou… 

O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou… 

Uma Noite em 67 é um documento exemplar. Nas imagens gravadas pela TV Record, você vai curtir o clima emocionado e participativo nesses Festivais. Como tempos difíceis se aproximavam, boa parte do público encontrou naquele auditório a sua tribuna livre. Torciam fervorosamente pelas músicas prediletas. Vaiavam músicas que “pareciam não pertinentes ao momento político-social”. Como a música Beto Bom de Bola, de Sérgio Ricardo, incidente que culminou com Sérgio “perdendo a cabeça”, aos gritos acusando o público: “Vocês venceram”, quebrando e arremessando o violão na platéia. 

O que me emociona em Uma Noite em 67 é perceber o grau de intensidade com que o público ali presente queria se manifestar. Participar! Havia uma disputa mesclada de sinceridade e paixão – com todos os excessos da paixão. Uma efervescência no palco, entre os jurados, no auditório que tinha um grau de festa popular e  liberdade de expressão. Que há muito não vejo. 

Depoimentos atuais dos principais participantes desta Uma Noite em 67, Solano Ribeiro, Sergio Cabral (o pai), Zuza Homem de Mello, Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Caetano Veloso,  ampliam a nossa compreensão do que foi aquele momento e de como esses artistas entendem o legado para o século 21.