Brigitte Bardot
Por Filipe Chamy
Brigitte Bardot não faz um filme há quase quarenta anos.
No entanto, segue firme como um ícone, uma lenda, um arquétipo.
Na verdade, ela é talvez a maior prova do que o cinema pode eternizar enquanto arte. A Brigitte Bardot lembrada, reverenciada e (ainda) amada é a jovenzinha de ar petulante misturado a uma sórdida candura, os dentes separados dando o tom de um sorriso franco, intenso, marcante.
Todos sabemos que hoje Brigitte Bardot é uma reclusa senhora que beira os oitenta anos e que vive para proteger animais – por meio, aliás, de sua fundação, em atividade há já vários anos. Também são notórios os processos em que se envolve por, alegadamente, fomentar preconceitos raciais e étnicos. E o que dizer de seu suposto reacionarismo político, sua aproximação com a direita extrema francesa e seu desprezo aparente pela maior parte das pessoas?
Nada disso importa muito. Brigitte Bardot foi um cometa que riscou o céu do cinema, não adianta mais apontar telescópios para cima: o astro já passou.
Fenômenos como essa francesa, nascida em 1934 numa família tradicional da classe média burguesa, não são fáceis de explicar. Até hoje há quem não a ache uma grande beleza – na década de 1950, um jornalista descreveu sua figura como detentora de um “físico de empregadinha”-, pouco ou nada talentosa, uma farsa inventada pela mídia e superestimada pela imprensa. Ou apenas “um rostinho bonito”. Ou uma vulgar prostituta, vendendo seu corpo a cada filme.
Brigitte Bardot sempre uma estrela ao contrário: não gostava de enfeitar-se com joias e roupas caras e pomposas, odiava holofotes e câmeras apontados para ela e preferia ficar em sua casa com seus amigos e bichos do que num set de filmagem, ou numa coletiva ou evento social qualquer. Isso lhe valeu a fama de esnobe e caprichosa que, de certo modo, mantém até hoje.
Mas é digna de admiração a forma como chegou ao estrelato. Ao contrário de tantas estrelas forjadas, Brigitte começou timidamente, como discreta protagonista de filmes de qualidade duvidosa ou, mais ativamente, como coadjuvante (às vezes, quase figurante) em produções de nomes respeitáveis como Sacha Guitry, René Clair e Anatole Litvak. Aos poucos foi, com seu carisma insuperável, galgando degraus na escada da fama – também por algumas pequenas incursões em publicidade; o que, aliás, a levou ao cinema – e despontando finalmente com o hit mundial E Deus criou a mulher, dirigido por seu então marido Roger Vadim. A sensualidade espontânea da jovem garota de pouco mais de vinte anos conquistou o mundo, e filmes como Desfolhando a margarida, em que faz uma encantadora menina “maluquinha” (um de seus papéis recorrentes nessa fase), confirmam que a aposta do planeta não estava errada: Brigitte Bardot era um achado.
Com a hipocrisia reinante no mundo pré-feminismo “institucionalizado”, Brigitte era execrada pela Igreja, pelos “cidadãos de bem”, pelas mães zelosas, pelas esposas fiéis, enfim, por toda a moralidade vigente. É difícil hoje mensurar o impacto que BB (suas famosas iniciais) causou na sociedade de então, com a exibição de sua nudez em filmes, suas fotos e ensaios sensuais, seus hábitos progressistas de usar biquínis diminutos, fazer topless e ter vários maridos e amantes. Não que sua vida seja um exemplo de consciente liberação feminina; muitas de suas opções foram casuais, ou mesmo equivocadas, mas seu desejo de ser honesta a si mesma criou, como esperado, muitas inimizades para a controversa jovem vedete do cinema francês e mundial. Suas fitas eram tidas por “luxuriosas”, muitas agressões foram sofridas em diversas localidades por ela estar sempre associada ao “mal” e ao “pecado”, e muitos homens a usaram, muitos diretores a exploraram, muitos repórteres a importunaram. Sua vida pessoal era devassada, sua privacidade, destruída. Seus momentos de intimidade eram fotografados, vendidos a mil jornais e revistas, deturpados e “sensacionalizados” pelo jornalismo marrom. Não é muito diferente do que se vê hoje, com facilidade, nas perseguições dos paparazzi e público descontrolado a gente como Justin Bieber, Miley Cyrus, Taylor Lautner. Os astros da moda, que o pessoal segue por imposição midiática e falta de referência, sem hesitar, sem dar trégua.
Mas BB não era farinha desse saco. Não tinha a vaidade ridícula desses artistas improvisados, e essa violência a agredia, a constrangia, a deixava desgostosa e contrariada. Foi esse o germe para sua decisão de se aposentar do cinema, precocemente, aos trinta e oito anos.
De qualquer modo, a moça segue fazendo muitos filmes durante todos os anos cinquenta, e sua década seguinte veria uma filmografia mais ambiciosa, em que diretores legendários se acotovelam para tê-la em suas produções.
O primeiro filme dessa fase mais determinada, na qual se mostra mais madura como intérprete, é o clássico instantâneo A verdade, do “mão de ferro” Henri-Georges Clouzot, filme que arrebatou público e crítica logo em sua estreia em 1960 – época em que Brigitte se via às voltas com o nascimento do primeiro e único filho, Nicolas, cujo pai foi seu segundo marido, o hoje não muito lembrado ator Jacques Charrier.
Seguem seus encontros com Louis Malle, em três fitas: Vida privada, em que dividia a cena com ninguém menos que Marcello Mastroianni, obra melancólica sobre os tormentos da celebridade; Viva Maria!, farsa western com Jeanne Moreau, em que se diverte, canta e sensualiza; e William Wilson, um dos segmentos de Histórias extraordinárias, filme baseado em textos de Edgar Allen Poe que contava ainda com episódios de Federico Fellini e de seu ex-marido Roger Vadim (agora dirigindo sua atual companheira, Jane Fonda).
Enquanto isso, em 1963, ocorre a parceria mais inusitada do cinema francês de então: Brigitte Bardot e Jean-Luc Godard! A estrela clássica e o diretor iconoclasta, juntos em um filme que contaria ainda com Michel Piccoli, Jack Palance e Fritz Lang (!). Tratava-se, claro, de O desprezo. BB adorava o romance de Alberto Moravia, mas hesitava em filmar com Godard — que queria tratar a história a sua maneira, realizando tantas modificações que no final das contas dava a impressão de ter utilizado outra fonte. O filme é hoje muito justamente um clássico, tido entre os melhores filmes de Godard, ou talvez o melhor isolado. Em O desprezo há crítica social, referências cinéfilas, brincadeiras metalinguísticas e toda a irreverência que marcou a fase mais aceita de Godard.
Apesar de ainda fazer comédias “inconsequentes”, romances formulaicos e filmes “leves”, alguns filmes que Brigitte faz nessa época vão mais a fundo em sua vida e, por vezes, parecem relatos autobiográficos: por exemplo, a amante acusada e julgada por todos em seu comportamento “imoral” em A verdade não era senão ela, com tentativas de suicídio semelhantes às que praticava na vida fora das telas, com a mesma incompreensão generalizada e a mesma zombaria de quem a taxava de rapariga e, no entanto, não conseguia olhar para ela sem imaginar e desejá-la nua; do mesmo modo, a celebridade perseguida e acossada pela fama em Vida privada também era a jovem BB, eterna caça alvo dos olhares atentos de todo o planeta.
Brigitte sempre gostou de cantar e também lançou álbuns de música em seus anos de maior popularidade. Durante esses anos sessentistas, firmou uma grande dupla com o mitológico Serge Gainsbourg, e juntos fizeram História com obras como Comic strip, Bonnie and Clyde e Harley Davidson; além, é claro, de Je t’aime moi non plus, talvez a canção mais famosa de Gainsbourg, que ficou engavetada por anos e anos — para não comprometer seu terceiro casamento, com o playboy Gunther Sachs —, até ser lançada na voz da nova companheira do compositor, Jane Birkin.
Bem no final da década, BB faz um dos filmes que mais lhe encheram de orgulho: O urso e a boneca, do grande e subestimado Michel Deville. Temperamental, ela se orgulha em dizer que foi uma das filmagens mais tranquilas por que passou, e que fez grandes amigos na produção — entre eles o também grande e subestimado Jean-Pierre Cassel, seu co-star. Brigitte Bardot entrava na década de 1970, e poucos anos e filmes a separam de seu voluntário ocaso cinematográfico.
Menos de meia dúzia de trabalhos após O urso e a boneca e BB encerraria definitivamente sua participação na indústria cinematográfica. Seus últimos filmes não foram felizes: quase todos fracassos na concepção e na bilheteria, ela teria entre seus últimos momentos de atriz encontros com Annie Girardot (As noviças), Claudia Cardinale (Les petroleuses) e Jane Birkin (Se Don Juan fosse mulher, de seu ex-marido e eterno amigo Vadim).
Incomodada com sua carreira, com o ofício que exercia e com a constante monitoração da imprensa sobre sua vida pessoal, Brigitte Bardot dá um adeus definitivo à vida pública em 1973. De lá para cá só apareceu em eventos sociais específicos, programas televisivos esporádicos e mobilizações determinadas, quase sempre motivada pelo seu desejo de conscientizar as pessoas sobre a terrível sorte dos animais, os inúteis sacrifícios de que são vítimas constantemente e a necessidade de tratá-los de maneira mais digna e sustentável. Nessas ocasiões, acompanha-se do quarto marido, com quem divide a vida há quase vinte anos.
BB ainda é um enigma. O que se sabe dela são seus rumorosos (e numerosos) casos românticos, com Jean-Louis Trintigant, Sacha Distel, Gilbert Bécaud e muitos outros famosos ou anônimos, suas casas e chalés que ficaram conhecidos mundialmente, seu firme e polêmico posicionamento nas causas em que se envolve e sua extrema popularidade durante certos anos no cinema francês e mundial. Porém, o que se sabe da mulher? Os recentes livros que escreveu aos poucos vão ligando os pontos. E deixando claro que se nunca foi uma santa, também é inadequadamente trajada de demônio, devoradora de homens, mulher de vida fácil.
É fácil apontar o dedo para os outros. Brigitte Bardot é a prova viva de que às vezes a pior hipocrisia é condenar quem leva a vida que você inveja.