O Grande Xerife – Texto II

Dossiê Toni Cardi

 

O grande xerife
Direção: Pio Zamuner
Brasil, 1972. 

Por Edu Jancz
  

O argumento de O Grande Xerife é de Amácio Mazzaropi  e do escritor e roteirista Marcos Rey.

Tive o prazer de conhecer Marcos Rey nas Bienais do Livro. No final de março de 1999 – alguns dias antes de sua morte –  tive o privilégio de estar em sua casa. Claro que a conversa girou sobre literatura. Com  algum tato, perguntei do Marcos Rey roteirista. Donde ele me contou um encontro de trabalho entre ele e o velho Mazza.

Disse que Mazza o recebeu  vestindo um elegante robe de chambre. De um dos bolsos tirou um pacote de notas e passou ao escritor. Estava saldando um roteiro aprovado. Assim era o Mazza, pagava só e somente com dinheiro vivo. Nada de cheque ou depósito em conta.  Marcos saiu preocupado por estar com um pacote de dinheiro. Felizmente, nada aconteceu.

O Grande Xerife é outro exemplar de faroeste caboclo à moda Mazzaropi. No início, tal como nos westerns americanos ou italianos, um cavaleiro solitário cavalga por uma planície. Ele é Inácio Pororoca (Mazza), um simples chefe do Correio, valente, corajoso, viúvo, pai da Mariazinha. E um dos moradores mais antigos da Vila do Céu.

Nem tudo corre bem por lá. Um bando, sob a tutela  de João Bigode, espalha o terror na região, roubando e matando. Inclusive, o xerife é assassinado. Com a cidade sem uma autoridade legal, o prefeito, o dono do banco e alguns fazendeiros resolvem eleger Inácio Pororoca para o cargo. Não por acreditar em sua capacidade. Mas na esperança de que ele fosse rapidamente eliminado pelo bando de celerados, visto Inácio saber alguns “podres” dos donos do poder.

Inácio Pororoca é daquele matuto tinhoso, sem medo e disposto a não fugir de uma boa briga. Armado de uma espingarda com cano torto – para atingir bandidos que fugiram por uma esquina, ele vai levar sua luta adiante.

Em determinado momento, quando sabe que os bandidos vão atacar uma fazenda, Inácio pede ajuda da população. Um a um, os homens negam. Dizem estar ocupados. Tal como Gary Cooper em Matar ou Morrer ele parece estar só. Parece!

Em O Grande Xerife o tom de farsa predomina o tempo todo. O humor praticado por Mazza e seus personagens é simples, popular e lembram o fazer circense.

As cenas de luta e tiroteios permeiam o filme de ponta a ponta. Filmadas com grande habilidade pelo diretor Pio Zamuner

Toni Cardi aqui tem um papel de coadjuvante segunda linha e  interpreta o capataz Júlio. De início parece o mocinho, cena seguinte, ele está com o bando de João Bigode. É um personagem dúbio, traíra, instável e inconfiável. O que permite ao ator um bom exercício de interpretação.

O Grande Xerife – Texto I

Dossiê Toni Cardi

 

O grande xerife
Direção: Pio Zamuner
Brasil, 1972. 

Por Filipe Chamy 

 

Que O grande xerife é uma paródia, parece bem claro. 

Não chega a ser nada tão evidente quanto certas comédias da mesma época – o próprio Mazzaropi havia atuado num filme onde já no título aparecia um “Djeca” -, mas todo o filme é centrado mesmo na ideia de brincar com os clichês consagrados do faroeste como o conhecemos. 

Apesar da premissa pouco animadora (tendo em vista a extrema limitação das paródias), O grande xerife não faz nada tão feio. É uma brincadeira, e, todavia, uma brincadeira saudável, trazendo um tipo de iniciativa que até hoje parece meio tabu no cinema brasileiro: o filme de gênero. 

O faroeste aqui é rural, com jeito roceiro e cujas diligências não passam de charretes, as cidades de fronteira são em verdade zonas de lavoura e a criação é mais de animais domésticos de pequeno porte que de grandes manadas e rebanhos para corte, venda e afins. Quer dizer: aqui se trata de brincar de “releiturar” as convenções do western com elementos típicos do Brasil; mais ou menos o que Mojica já praticava há alguns anos, com o terror e o cinema de insinuação de violência. 

Para coroar o absurdo da coisa, o herói da vez é um improvisado carteiro, feito pelo mítico Mazzaropi. Homem de pavio curto, humilde, ignorante, mas firme, incorruptível e muito vivo, Inácio Pororoca recebe a incumbência de defender a pequena cidade de Vila do Céu de uma corja de malfeitores desembestados, liderados pelo famigerado João Bigode. Ligando o lado “bom” e o “mau” dos personagens, está Júlio, feito pelo nosso homenageado Toni Cardi: o insuspeitável capataz da primeira fazenda atacada no filme é na verdade o leva-e-traz dos bandidos, que faz do jogo duplo uma segunda natureza. A mocinha da vez é enredada em seus encantos e “o grande xerife” terá a missão também de acabar com essa ilusão, desmascarar o agente maligno infiltrado na paz daquela gente simples e impor de vez na comunidade uma decência e moralidade de que, no fundo, ele próprio duvida. Porque é ele quem, com suas tiradas espirituosas, seu comportamento inegavelmente iconoclasta, subverte a lógica falsamente heroica da estruturação tradicional dos bangue-bangues; então quando Inácio Pororoca olha desconfiado para o capataz e alerta sobre o perigo de se confiar naquele homem, é preciso entender que não é uma falha do roteiro deixar a situação inalterada até muito depois; é simplesmente mais um giro na tradição, com Mazzaropi (quem diria!) salvando a situação no final após ter bagunçado a reputação viril desse tipo de narrativa ao confrontar João Bigode, Júlio e demais crápulas com uma trupe de mulheres valentes que, na ausência da determinação e coragem masculinas, arregaçam as mangas dos vestidos e vão à luta endireitar as coisas. 

A subversão ultrapassa a diegese do filme: o tão atacado Mazzaropi, o alegado reacionário autor de fitas comerciais ocas, é quem dá a voz às mulheres no cinema tupiniquim dos anos setenta, sob o disfarce de uma fantasia em faroeste e sob a ironia de ser uma fita passada em outra “realidade” que não a nossa. Digamos logo que O grande xerife é um pastiche, mas não esvaziado de política e de comentários críticos e precisos sobre mazelas sociais de seu tempo, travestidas de entretenimento raso e diversão descompromissada. 

O grande xerife arrisca troçar de cânones, celebrar o anti-heroísmo e questionar a natureza dos símbolos, com uma figura bizarra (Mazzaropi) cumprindo a mesma função de um Gary Cooper, um John Wayne — talvez apenas com um acréscimo de irreverência. Não é pouca ambição, reconheçamos.

Pedro Canhoto, O Vingador Erótico

Dossiê Toni Cardi

Pedro Canhoto, o Vingador Erótico
Direção: Raffaele Rossi
Brasil, 1974.

Por Rodrigo Pereira

Em 1972, à procura de áreas para lotear na região de Ribeirão Bonito, no interior paulista, o corretor imobiliário Moacir Maurício chegou até a cidade de Dourado. Na padaria onde entrou para comer algo, deparou-se com um mexicano – não de verdade, mas desses de cinema, gorducho, com poncho, chapelão e bigode com pontas em caracol. Perguntou se ele tinha fome e, diante da resposta afirmativa, lhe pagou um lanche. Papo vem, papo vai, descobriu não se tratar de um mendigo excêntrico, e sim de um ator de Pedro Canhoto, faroeste que vinha sendo rodado na cidade havia dois anos. O “mexicano” Nestor Lima levou Moacir à casa onde ele e seus colegas de elenco estavam hospedados. E contou que aguardavam o retorno do diretor Raffaele Rossi, italiano radicado no Brasil, e do astro da película, o piracicabano Irineu Antonino Travalini, artisticamente conhecido como Toni Cardi. Os dois tinham partido em busca de um produtor disposto a investir o dinheiro necessário para conclusão do filme.

A energia elétrica da casa fora cortada por falta de pagamento, e não havia mais comida para a equipe. Emocionado com o sonho daquelas pessoas, o corretor abasteceu a dispensa da casa, deu dinheiro a Nestor para que pagasse a conta de luz e voltou para Ribeirão Bonito. Umas três semanas depois, surgem em seu escritório Nestor Lima e o diretor Raffaele Rossi. Este veio lhe restituir o dinheiro gasto com a equipe. Cassiano Esteves, dono da distribuidora Marte Filmes, na Rua dos Gusmões, em São Paulo, aceitara investir em Pedro Canhoto e as filmagens podiam enfim recomeçar – foi a primeira produção de Cassiano Esteves, responsável nos anos seguintes por mais 50 filmes da Boca do Lixo. O intérprete de Rodrigo, filho do vilão coronel Martinez, havia assumido outros compromissos artísticos durante a paralisação das filmagens e não poderia retornar de imediato. Moacir Maurício tinha o mesmo tipo físico do artista ausente e foi por isso convidado a participar de algumas cenas, de costas, sem mostrar o rosto. O Rodrigo original acabou não voltando e o corretor assumiu de vez o papel, fazendo assim sua estreia no cinema – ele rodaria apenas outros dois filmes, ambos também da E. C. Produções Cinematográficas, produtora criada por Cassiano Esteves para Pedro Canhoto.

Essa historieta de bastidores, quase anedótica, mostra bem como se deu a realização desse pastiche nacional de western spaghetti – um exemplar daquilo que a imprensa nacional começava a chamar, pejorativamente, de “westerns feijoada”. Em função da falta de recursos, Pedro Canhoto resultou num filme “remendado”. E se isso compromete a qualidade, por outro lado confere a obra um aspecto bárbaro, selvagem, que dificilmente poderia ser alcançado intencionalmente. A ação se passa na região do fictício povoado de Santa Clara de La Sierra, na fronteira dos Estados Unidos com o México. A mando do coronel Martinez (Cavagnole Neto), os capangas do mercenário apelidado de General (José Velloni) matam a família de Pedro (Toni Cardi). Este acaba capturado por Rodrigo (Moacir Maurício) e pelos homens do General, que o torturam, esmagam os dedos de sua mão direita e deixam-no amarrado para morrer. Um velhinho mexicano (Nestor Lima) passa por ali com seu burrico e consegue libertar o “gringo”. Com a mão direita toda enfaixada, o personagem-título aprende a atirar com a esquerda e parte para o acerto de contas. Se junta a ele um mendigo (Nivaldo Lima) que testemunhara o massacre da família de Pedro – na verdade, trata-se de um temido pistoleiro que havia abandonado a vida de crimes.

As referências aos westerns spaghetti começam pela trilha sonora que se apropria sem cerimônia de temas musicais como os de Por um Punhado de Dólares (1964) e O Dólar Furado (1965). À época, a coletânea O Melhor do Bang-Bang à Italiana fazia enorme sucesso nas lojas de disco do Brasil; é provável que as músicas ouvidas em Pedro Canhoto tenham sido extraídas diretamente dos sulcos daquele LP (há apenas uma composição original, por sinal composta pelo corretor imobiliário convertido em ator, Moacir Maurício). Num rápido flashback, quando o mendigo relembra os homens que já matou, vemos um duelo inspirado no final de Três Homens em Conflito (1966): o personagem de Nivaldo Lima enfrentando o de Heitor Gaiotti, em participação especial, num cemitério. Gaiotti, vale lembrar, se parecia fisicamente com Lee Van Cleef e costumava encarnar um tipo malandro nos westerns feijoada de Tony Vieira – bem aos moldes do Tuco vivido por Eli Wallach naquela obra-prima de Sergio Leone. O esmagamento dos dedos do herói busca reproduzir uma das duas seqüências mais marcantes de Django (1966) – a outra é a da metralhadora no caixão, claro. Também vem do clássico dirigido por Sergio Corbucci a inspiração para as cenas nas quais o sádico General manda seus capangas torturarem a amante dele, Mariana (Adélia Coelho), que nadava nua num lago.

O intérprete do General, aliás, foi outro ator colocado no filme já com as filmagens avançadas. Vereador em Ribeirão Preto, José Velloni havia atuado com o astro de Pedro Canhoto, Toni Cardi, em algumas comédias de Mazzaropi. E aceitou o convite dele para substituir o primeiro General, um italiano que era dono da academia de judô onde Toni Cardi treinava em São Paulo, no oitavo andar do Edifício Martinelli. Durante uma das várias interrupções da filmagem, Giovanni viajou até sua Itália natal e não voltou mais. Foram aproveitados apenas alguns takes nos quais aparecia de costas, com o traje militar, ou a cavalo junto com seu bando. É impactante a seqüência em que o General, sentado numa escadaria e bebendo vinho, ri de forma doentia enquanto “observa” seus homens espancando Pedro – claramente, as cenas de José Velloni na escadaria e as de Toni Cardi levando pancada foram rodadas em momentos distintos.

Atos nojentos de comer e beber são recorrentes em Pedro Canhoto, do General deixando escorrer vinho pelos cantos da boca ao mendigo que suja a própria barba enquanto come feito um animal o prato de arroz que ganhou. Cenas assim contribuem para dar ao filme um tom bizarro, quase surrealista. O cenário de fachadas de madeira também caminha nessa linha, parecendo mais uma cidade cenográfica do que uma cidade propriamente dita. E os bandidos, recrutados entre os lutadores que treinavam junto com Toni Cardi na academia de Giovanni, completam a galeria de imagens grotescas da fita – entre eles, merece destaque o nissei Kazuachi Emmi, com seus 117 quilos e 1,80 metros, na pele de um índio-mexicano.

Cassiano Esteves resolveu lançar Pedro Canhoto com o subtítulo de O Vingador Erótico, provavelmente para se aproveitar do fato de que outro western feijoada – Gringo, o Último Matador (1973), de Tony Vieira – vinha sendo exibido em algumas praças com o título alternativo de Gringo, o Matador Erótico. No cartaz, em vez de usar alguma das cenas de Toni Cardi com o cabelo loiro – “Fiz tanta descoloração e pintura durante esse período que quase fico careca”, lembra o galã –, o produtor preferiu uma foto de… Lee Van Cleef (!!). Nenhuma dessas estratégias de marketing impediu o fracasso de Pedro Canhoto, o Vingador Erótico, lançado em São Paulo no dia 6 de junho de 1974. Os planos de Toni Cardi e Raffaele Rossi para outros filmes com o personagem foram deixados de lado. Embora o ator tenha vivido com garra uma série de personagens marcantes na carreira, nunca mais voltou a protagonizar um filme. Quanto ao cineasta, ele só emplacaria um grande sucesso de bilheteira oito anos depois, com Coisas Eróticas (1982) – o primeiro filme nacional de sexo explícito a ser liberado pela censura no Brasil. Mas isso, como todos sabem, já é outra história.

 

Rodrigo Pereira é jornalista e pesquisador. Escreveu com Daniel Camargo e Fábio Vellozo a biografia Anthony Steffen – A Saga do Brasileiro que se Tornou Astro do Bangue-Bangue à Italiana (Matrix, 2007). Atualmente prepara o livro-reportagem Faroeste Caboclo – Filmes de Cangaço e Westerns Made in Brazil, baseado em sua dissertação de mestrado, Western Feijoada: o Faroeste no Cinema Brasileiro (2002).

 

Fora das Grades

Dossiê Toni Cardi

Fora das Grades
Direção: Astolfo Araújo
Brasil, 1971.

Por Adilson Marcelino

Há na cinematografia brasileira uma penca de cineastas que foi jogada de lado por grande parte da crítica.

Pura injustiça!

O paulista Astolfo Araújo é um desses nomes.

Astolfo Araújo, nascido em Ribeirão Preto, sempre andou em grande companhia: foi assistente de direção de A Hora e Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos; fundou a Data Cinematográfica com Rubem Biáfora; roterizou Profissão: Mulher (1982), de Cláudio Cunha.

Em sua carreira de produtor e cineasta, dirigiu apenas cinco filmes de ficção, sendo dois deles notáveis. E políticos do cóccix até o pescoço: As Armas (1969) e Fora das Grades (1971).

No centro da ação de Fora das Grades está, acima de tudo, um tom trágico da condição humana. E aqui, paira no ar muito do clima em que se vivia do lado de fora, não das grades, mas na vida real mesmo, onde a repressão rolava solta e sem freios. Afinal, estamos nos sangrentos Anos de Chumbo.

Na trama, Sérgio Hingst, o Profeta de um tipo de albergue para deliquentes, vê a cidade do alto e proclama para seus súditos que ela os vê como sombras, mas que é para jamais eles se esquecerem que são gente. Vez ou outra, um daqueles marginais desce para o asfalto para pequenas trapaças ou mesmo assassinatos, mas acabam sempre voltando para aquele estranho lugar que, eles acreditam, os protege.

Já lá em baixo, na cidade, Luigi Picchi cruza o portão depois de 10 anos trancafiado. Pousa em um hotel barato, onde come seu pão dormido, e vive promessa de amor com uma cantora decadente da noite interpretado por Joana Fomm. E, vez ou outra, faz um assalto aqui, tenta um roubo acolá, e ainda tenta fugir de um tipo policial que o quer como informante.

Fora das Grades, que também tem argumento e roteiro de Araújo, tem vários momentos impactantes: Joana Fomm loira cantando na espelunca e sequestrando o olhar de Picchi; Liana Duval como outra cantora decadente dançando com Fomm e recebendo achaques de Roberto Maya – Prêmio Governador do Estado de São Paulo de Atriz Coadjuvante; Francisco Cúrcio com sua dignidade ultrajada; Luigi Picchi em atuação inesquecível. Toni Cardi faz pequena participação como um dos presos em uma briga.

Até o Último Mercenário

Dossiê Toni Cardi

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Até o Último Mercenário
Direção: Penna Filho.
Brasil, 1971.

Por Gabriel Carneiro

Buscando capitalizar ainda mais em cima do sucesso que O Vigilante Rodoviário foi, tanto na TV quanto no cinema, o produtor Ary Fernandes resolveu reunir mais uma vez o combo ‘Carlos Miranda + polícia’, dessa vez entregando a direção às mãos do então novato Penna Filho. Até o Último Mercenário narra a história de Capitão Carlos, que sai investigando um grande acidente ocorrido entre contrabandistas, e se vê metido nas agruras do mundo militar/policial. Capitão Carlos é, claro, interpretado por Carlos Miranda, o nosso típico policial nobre. No elenco, ainda estão Marlene França, Bentinho e Toni Cardi, como membros do grupo de mercenários sem escrúpulos.

É muito curioso ver um filme como Até o Último Mercenário que, apesar das muitas explosões, tiros, e afins, mais parece um longa infanto-juvenil, pela maneira romântica com que o ofício militar é abordado, num viés claramente maniqueísta, em que o exército está lá apenas para fazer o bem e os bandidos são apenas malvados. Não há interesse, no roteiro ou na direção, em dar mais substância ao personagem, além dos tradicionais clichês, com um herói bem definido, que passa por poucas e boas, tentando salvar a pseudo-namorada (é evidente que gostam um do outro, mas sequer se beijam), o irmão dela e o mundo inteiro das garras daqueles bandidos odientos. Isso tudo é reforçado pelo uso de marchas militares como trilha sonora que não condizem em nada com as cenas de ação, quase numa auto-chacota – o que deixa certamente o trabalho mais interessante.

Esse aspecto é quase uma afronta com o que acontecia na época. Realizado durante a ditadura militar, no governo Médici, Até o Último Mercenário reforça apenas estereótipos pró-governo, quase numa propaganda escancarada sobre o exército. É de se entender que, sem tantas imagens institucionais, o filme dificilmente sairia o papel e a força comercial do longa justificava esse apadrinhamento, porém é difícil engolir o que parece ser uma história tão boba – o herói Carlos Miranda repete apenas o que fez dele famoso, em O Vigilante Rodoviário, mas sem o mesmo carisma, culpa de seu próprio personagem -, e sem qualquer maior preocupação estética.

A Noiva da Noite – Desejo de 7 Homens

Dossiê Toni Cardi
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A Noiva da Noite – Desejo de 7 Homens
Direção: Lenita Perroy
Brasil, 1974.

Por Gabriel Carneiro

A Noiva da Noite tinha tudo para ser um grande filme. Lenita Perroy constrói uma trama de ação e aventura sobre a extração de pedras preciosas de uma região de grutas, repleta de traições e vinganças. O melhor disso tudo é trazer personagens tão ambivalentes e dotados de uma malevolência, fazendo com que se fuja de estereótipos maniqueístas, afinal, são pessoas que dificilmente podem ser enquadradas como heróis. De um lado, há um grupo de capangas que dominam a região, com chefia de um velho senhor, que não tem pudores para tirar quem quer que seja do caminho. De outro, há Danilo, um minerador, que encontrou muitas pedras, e fica no caminho do velho. Acusado de muito, é espancado e torturado pelo covarde e provocador Galante, interpretado por Toni Cardi, e preso. Dez anos depois, é solto e resolve se vingar, seqüestrando a filha do velho, que vai se casar com o capanga-mor.

Perroy se sai muito bem na criação desse mundo tão tomado por gananciosos inescrupulosos, justamente por ter várias camadas, várias intenções por trás de seus atos, não simplesmente jogando-os em situações que poderiam ser descabidas e absurdas. A única inocente na história é a filha e noiva, interpretada por uma belíssima Rossana Ghessa, de feição angelical. Sequestrada, o único mal realizado é ser filha e noiva de assassinos. Vestida de noiva, ela é levada por Danilo através do matagal.

Nisso, Perroy consegue ótimos resultados. Com a perseguição, vamos conhecendo cada vez mais os intrigantes personagens, com boas doses de diversão – tanto do alívio cômico que é o personagem de Toni Cardi, quanto das boas cenas de tiroteio – e encantamento – por conta de Ghessa.

Só que, a partir de certa altura do filme, as coisas se invertem e a necessidade de um herói faz-se presente, na cabeça dos roteiristas – além de Perroy, o diretor de fotografia Oswaldo de Oliveira e o montador Sylvio Renoldi. Do nada, numa virada machista e certamente explicada por Freud, a jovem noiva começa a sentir desejos sexuais por seu seqüestrador, Danilo. É então eleito herói: sua vingança é a lei de Talião – só o faz porque foi escorraçado no passado – e sua redenção vem por parte de sua vítima, já que agora ela o quer. Essa lógica invertida em transformar um mau caráter em herói seria muito bem vinda com um viés crítico. Mas A Noiva da Noite não se interessa por isso, quer apenas um final feliz para satisfazer o público, nem que isso signifique transformar um sujeito apático e pouco carismático no príncipe encantado. A Noiva da Noite tinha tudo para ser um grande filme. Infelizmente, não é.

O Jeca e a Freira

Dossiê Toni Cardi

O Jeca e a Freira
Direção: Amácio Mazzaropi
Brasil, 1968.

Por Edu Jancz

O Jeca criado por Mazzaropi é um personagem multifacetado. Características básicas como honestidade, bondade, laços familiares honrados, coragem para enfrentar as agruras da vida e os poderosos – normalmente vistos como gananciosos sem limites e pouco ou nenhum respeito pela condição dos menos  favorecidos – praticamente estão sempre presentes.

Muda o clima, muda a trama, muda a época, mas aquele homem de jeito muito simples – porém nada ingênuo – está sempre cercados de “tombos”  que a vida ou pessoas de má índole lhe reservam.  O que eles não sabem e nem esperam é a reação desse “caipira” , que acuado,  demonstra ter sangue nas veias e força para lutar sozinho, com a ajuda da família ou amigos de sua comunidade.

O Jeca e a Freira acontece no século XIX.   Nosso herói mora numa fazenda com sua família e sobrevive com dificuldade – visto o parco salário pago  pelo proprietário – o Coronel Pedro. O Jeca, aqui de nome Sigismundo, vive outro drama que corrói seu coração. Sua filha – Celeste – foi lhe tirada a força pelo Coronel Pedro, que a criou como filha e prometeu um dia devolvê-la. Trato que nunca pretendeu cumprir. Também  nunca revelou a verdade  para a menina, que  pensa ser ele o verdadeiro pai.

A filha, linda adolescente,  volta do colégio católico acompanhada pela freira Isabel. O coronel Pedro deixa claro a Sigismundo e sua mulher que a moça nunca mais vai voltar para a casa dos verdadeiros pais. O coronel tem verdadeiro ciúme da moça e a mantém como prisioneira – sempre ao lado da freira. E o pior, em meio a beijos e abraços “paternais”, ele  demonstra suas más intenções com Celeste.

Sigismundo vai lutar com bravura e principalmente esperteza – ajudado pela freira – para restabelecer a verdade e reaver sua filha. Não sem antes enfrentar a fúria do coronel e seus capangas.

Melodrama e humor bem maroto, simples, fazem a marca de O Jeca e a Freira. A relação poder, poderosos e povo, é colocada como uma equação simples e fácil de ser observada.  Mas  o filme não  é maniqueísta ao apresentar a família de Cláudio, de posses, como justa e contrária as falcatruas e crimes  cometidos pelo coronel Pedro.

No elenco, Maurício do Valle interpreta com correção o coronel Pedro. O então muito jovem Ewerton de Castro dá corpo ao jovem Cláudio. E Toni Cardi, com aquele seu aspecto de mau, faz um dos capangas do Coronel.  Cardi convence bem como um aliado incondicional do coronel, a quem respeita e cumpre suas ordens sem pestanejar.

 

Carta ao Leitor

 

A Zingu! 50 destaca dois grandes atores do cinema popular brasileiro: Toni Cardi e Wilza Carla.

Ele foi o galã do cinema rural, dos faroestes, de filmes como Pedro Canhoto, o Vingador Erótico e Noiva da Noite – Desejo de 7 Homens.

Atuou em duas dezenas de filmes e foi dirigido por nomes como Amácio Mazzaropi, Ary Fernandes, Ozualdo Candeias, José Mojica Marins e Raffaele Rossi.

Ela é ícone inconteste do imaginário popular brasileiro por suas atuações em filmes, novelas, programas de auditório, humorísticos e desfiles de fantasia de carnaval.

Foi requisitada por diretores de diferentes escolas, como Carlos Hugo Christensen, Luiz de Barros, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues, Elyseu Visconti, J.B.Tanko,  Pedro Carlos Róvai e Fauzi Mansur.

Toni Cardi é o grande dossiê do mês. Entrevistado por Matheus Trunk, Cardi fala sobre sua vida e repassa toda a sua trajetória cinematográfica.

O dossiê apresenta ainda entrevistas com os parceiros de cena Carlos Miranda e José Lopes, mais depoimentos de Castor Guerra e Virgílio Roveda. Integram ainda o dossiê um papo furado com o homenageado,  críticas de 12 filmes e filmografia.

Já Wilza Carla, falecida em junho deste ano, ganha um especial que procura fazer um recorte que apresente a diversidade da carreira cinematográfica da atriz, formada por comédias, dramas, filmes engajados e filmes experimentais.

No especial Wilza Carla, texto perfil, crítica de 10 filmes, mais filmografia.

E, claro, tem também as colunas tradicionais: a nudez de nossas atrizes, o reinado dos festivais de música, a juventude dos anos 80, e as musas Brigitte Bardot e Fátima Antunes.

 

Tenham todos uma ótima leitura!

 

Adilson Marcelino
Editor-Chefe da Zingu!

Inventário Grandes Musas da Boca

Fátima Antunes

Por Adilson Marcelino

Saudada por Carlos Reichenbach como uma das belezas do cinema paulista, Fátima Antunes saiu de Pernambuco para ser uma das musas da Boca do Lixo.

Nascida em Pernambuco, onde se tornou miss de seu estado, Fátima Antunes foi descoberta por David Cardoso, ao lado de quem atuaria em filmes protagonizados e/ou produzidos por ele.

A estreia no cinema se dá em dois filmes protagonizados por David Cardoso: Trindad… É Meu Nome, de Edward Freund, e Caingangue – A Pontaria do Diabo, de Carlos Hugo Christensen.

Em Trindad… É Meu Nome (1973),  David Cardoso é o Trindad do título, um garanhão que é confundido com um famoso pistoleiro. Já em Caingangue – A Pontaria do Diabo ele é um mestiço envolvido em uma vingança. Em ambos, Fátima Antunes enche a tela com sua beleza morena.

A parceria com David Cardoso continua e a atuação em filmes de grandes cineastas também, pois além de Freund e Christensen, a atriz seria ainda dirigida por mais dois mestres: Ozualdo Candeias e Jean Garrett.

Com Candeias, Fátima Antunes atua em um dos sempre grandes filmes do diretor: Caçada Sangrenta (1974). Produzido pela Dacar de David Cardoso, o filme tem a cara do cineasta, que aposta em uma realidade crua e desejo idem, em filmes que não abrem concessão nenhuma para o público da época – mesmo o merchandising para o governo de Mato Grosso do Sul é muito particular.

Aqui, David Cardoso é um ex-presidiário que se envolve com uma milionária, a maravilhosa Marlene França – falecida recentemente -, e que depois da morte dela foge para o interior do país. E é nessas andanças que vai se encontrar, e se encantar, com a personagem de Fátima Antunes.

O outro filme produzido pela Dacar se tornou um grande sucesso nos cinemas paulistanos, dirigido por aquele que se tornaria um dos mais talentosos cineastas do pedaço, e um elenco que reuniu verdadeiras deusas.

Estamos falando de A Ilha do Desejo (1975), filme de estreia de Jean Garrett e que marcou a pareceria entre o cineasta e David Cardoso na atuação e produção – os outros rebentos da dupla são os ótimos Amadas e Violentadas (1975) e Possuídas pelo Pecado (1976).

Já o elenco de deusas, veja só: Helena Ramos, Zaira Bueno, Sonia Garcia, Frances Mary, Carmen Angélica, Marizeth Baumgartein. E, claro, Fátima Antunes, como Sandra. Todas elas, jovens que são recrutadas em boates para encontros eróticos em uma ilha.  O que poderia render dias e noites de desejos acaba resultando em mortes misteriosas das moças.

Infelizmente, depois desses quatro filmes, Fátima Antunes abandona o cinema sem deixar muitos vestígios.

No entanto, bastou esses encontros com David Cardoso e os talentosos cineastas para fazer dela uma das amadas musas da Boca.

 

Filmografia

Trindad… É Meu Nome, 1973, Edward Freund
Caingangue – A Pontaria do Diabo, 1973, Carlos Hugo Christensen
Caçada Sangrenta, 1974, Ozualdo Candeias
A Ilha do Desejo, 1975, Jean Garrett

Filme-Farol

Por Adilson Marcelino

 

Baixo Gávea
Direção: Haroldo Marinho Barbosa
Brasil, 1986.

Filmes-referência é fácil de apontar nos dedos, pois, geralmente, existe toda uma fortuna crítica sobre eles e que não nos deixam, mesmo que quiséssemos, passar ao largo deles.

Agora, e aqueles que são referência exclusivamente para nós, individualmente? Aqueles do coração? O tal filme-farol? Não para a história do cinema, mas para a nossa vida?

Bom, pode ser o tema, pode ser a história, pode ser a direção, pode ser a presença de um ator ou atriz. E pode ser também por causa da linguagem, da fotografia, da montagem, da trilha sonora.

É fato que a trilogia de Ana Carolina – Mar de Rosas (1977), Das Tripas, Coração (1982) e Sonho de Valsa (1987) – sobre os mecanismos de opressão sobre a mulher foi decisiva para toda a minha pesquisa sobre as mulheres do cinema brasileiro. E, claro, ela é do coração.

É fato também que Eros, O Deus do Amor (1981), do amado Walter Hugo Khouri, também fincou estaca fundamental para essa pesquisa, mesmo antes de sequer imaginá-la – e é do fundo do coração também.

Mas quando penso sobre o tema da coluna, o filme que brota na memória e na epiderme de imediato é com certeza Baixo Gávea, de Haroldo Marinho Barbosa.

Tem outros? É claro que sim. Tem Os Imorais (1979), de Geraldo Vietri, tem Império do Desejo (1980) e A Ilha dos Prazeres Proibidos (1978), de Carlos Reichenbach, tem Romance da Empregada (1988), do Bruno Barreto, tem Engraçadinha (1981), do mesmo Haroldo Marinho Barbosa, e têm aqueles adoráveis filmes de Antônio Calmon.

Ainda assim, Baixo Gávea se impõe com tamanha força, que é ele o escolhido para figurar aqui nesta coluna da Zingu!

Por quê? Porque afora ter um roteiro que adoro, direção idem e ter interpretações luminosas de Lucélia Santos e Louise Cardoso, o que mais me nocauteia, e encanta, é o que é para mim um dos mais brilhantes finais de filme da história do cinema.

Peraí peraí… Não pensem que vou contar final de filme, pois o que mais gosto é de entrar no cinema ou colocar um DVD ou VHS sem sequer imaginar do que aquele filme se trata. Há anos que só leio críticas e informações mais detalhadas sobre um filme apenas depois de assisti-lo.

Mas como é de praxe falar um pouco da sinopse por aqui, permito-me dizer apenas que Baixo Gávea conta a história de duas amigas, uma diretora de teatro e uma atriz, que estão montando um espetáculo sobre vida e obra de Fernando Pessoa. E que enquanto isso, cada uma procura pelo amor nas noites do baixo Gávea, enquanto tomam chopes e riem e choram com seus encontros, desencontros e abandonos.

Haroldo Marinho Barbosa é um daqueles GRANDES cineastas brasileiros que, injustamente, não gozam do grande prestígio da crítica, o que poderia colocá-los em um patamar acima. Azar, burrice dessa crítica tacanha.

Esse carioca tem uma filmografia sensacional, com filmes sempre interessantes, como Vida de Artista (1972), Ovelha Negra, Uma Despedida de Solteiro (1974), Engraçadinha (1981), e esse melancólico e estupendo Baixo Gávea.

Louise Cardoso e Carlos Gregório receberam os prêmios de Melhor Atriz e de Melhor Ator no Festival de Brasília de 1986 por Baixo Gávea, e eu fiquei felicíssimo na época. Ainda que Lucélia Santos deveria ter sido igualmente premiada como Louise. Lembro-me que fiquei injuriado por não ter sido uma premiação dupla de Melhor Atriz.

É uma dupla inesquecível. Como Susan Sarandon e Geena Davis em Thelma e Louise (1991), de Ridley Scott; Renata Sorrah e Márcia Rodrigues em Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Júlio Bressane, e Helena Ignez e Maria Gladys nos filmes do Cinema Marginal.

As duas estão perfeitas – em elenco ótimo com Carlos Gregório, Dirce Migliaccio, Analu Prestes, José Wilker, Wilson Grey – neste que é um dos mais pungentes retratos da juventude desnorteada dos anos 80.