Dossiê Toni Cardi

Pedro Canhoto, o Vingador Erótico
Direção: Raffaele Rossi
Brasil, 1974.
Por Rodrigo Pereira
Em 1972, à procura de áreas para lotear na região de Ribeirão Bonito, no interior paulista, o corretor imobiliário Moacir Maurício chegou até a cidade de Dourado. Na padaria onde entrou para comer algo, deparou-se com um mexicano – não de verdade, mas desses de cinema, gorducho, com poncho, chapelão e bigode com pontas em caracol. Perguntou se ele tinha fome e, diante da resposta afirmativa, lhe pagou um lanche. Papo vem, papo vai, descobriu não se tratar de um mendigo excêntrico, e sim de um ator de Pedro Canhoto, faroeste que vinha sendo rodado na cidade havia dois anos. O “mexicano” Nestor Lima levou Moacir à casa onde ele e seus colegas de elenco estavam hospedados. E contou que aguardavam o retorno do diretor Raffaele Rossi, italiano radicado no Brasil, e do astro da película, o piracicabano Irineu Antonino Travalini, artisticamente conhecido como Toni Cardi. Os dois tinham partido em busca de um produtor disposto a investir o dinheiro necessário para conclusão do filme.
A energia elétrica da casa fora cortada por falta de pagamento, e não havia mais comida para a equipe. Emocionado com o sonho daquelas pessoas, o corretor abasteceu a dispensa da casa, deu dinheiro a Nestor para que pagasse a conta de luz e voltou para Ribeirão Bonito. Umas três semanas depois, surgem em seu escritório Nestor Lima e o diretor Raffaele Rossi. Este veio lhe restituir o dinheiro gasto com a equipe. Cassiano Esteves, dono da distribuidora Marte Filmes, na Rua dos Gusmões, em São Paulo, aceitara investir em Pedro Canhoto e as filmagens podiam enfim recomeçar – foi a primeira produção de Cassiano Esteves, responsável nos anos seguintes por mais 50 filmes da Boca do Lixo. O intérprete de Rodrigo, filho do vilão coronel Martinez, havia assumido outros compromissos artísticos durante a paralisação das filmagens e não poderia retornar de imediato. Moacir Maurício tinha o mesmo tipo físico do artista ausente e foi por isso convidado a participar de algumas cenas, de costas, sem mostrar o rosto. O Rodrigo original acabou não voltando e o corretor assumiu de vez o papel, fazendo assim sua estreia no cinema – ele rodaria apenas outros dois filmes, ambos também da E. C. Produções Cinematográficas, produtora criada por Cassiano Esteves para Pedro Canhoto.
Essa historieta de bastidores, quase anedótica, mostra bem como se deu a realização desse pastiche nacional de western spaghetti – um exemplar daquilo que a imprensa nacional começava a chamar, pejorativamente, de “westerns feijoada”. Em função da falta de recursos, Pedro Canhoto resultou num filme “remendado”. E se isso compromete a qualidade, por outro lado confere a obra um aspecto bárbaro, selvagem, que dificilmente poderia ser alcançado intencionalmente. A ação se passa na região do fictício povoado de Santa Clara de La Sierra, na fronteira dos Estados Unidos com o México. A mando do coronel Martinez (Cavagnole Neto), os capangas do mercenário apelidado de General (José Velloni) matam a família de Pedro (Toni Cardi). Este acaba capturado por Rodrigo (Moacir Maurício) e pelos homens do General, que o torturam, esmagam os dedos de sua mão direita e deixam-no amarrado para morrer. Um velhinho mexicano (Nestor Lima) passa por ali com seu burrico e consegue libertar o “gringo”. Com a mão direita toda enfaixada, o personagem-título aprende a atirar com a esquerda e parte para o acerto de contas. Se junta a ele um mendigo (Nivaldo Lima) que testemunhara o massacre da família de Pedro – na verdade, trata-se de um temido pistoleiro que havia abandonado a vida de crimes.
As referências aos westerns spaghetti começam pela trilha sonora que se apropria sem cerimônia de temas musicais como os de Por um Punhado de Dólares (1964) e O Dólar Furado (1965). À época, a coletânea O Melhor do Bang-Bang à Italiana fazia enorme sucesso nas lojas de disco do Brasil; é provável que as músicas ouvidas em Pedro Canhoto tenham sido extraídas diretamente dos sulcos daquele LP (há apenas uma composição original, por sinal composta pelo corretor imobiliário convertido em ator, Moacir Maurício). Num rápido flashback, quando o mendigo relembra os homens que já matou, vemos um duelo inspirado no final de Três Homens em Conflito (1966): o personagem de Nivaldo Lima enfrentando o de Heitor Gaiotti, em participação especial, num cemitério. Gaiotti, vale lembrar, se parecia fisicamente com Lee Van Cleef e costumava encarnar um tipo malandro nos westerns feijoada de Tony Vieira – bem aos moldes do Tuco vivido por Eli Wallach naquela obra-prima de Sergio Leone. O esmagamento dos dedos do herói busca reproduzir uma das duas seqüências mais marcantes de Django (1966) – a outra é a da metralhadora no caixão, claro. Também vem do clássico dirigido por Sergio Corbucci a inspiração para as cenas nas quais o sádico General manda seus capangas torturarem a amante dele, Mariana (Adélia Coelho), que nadava nua num lago.
O intérprete do General, aliás, foi outro ator colocado no filme já com as filmagens avançadas. Vereador em Ribeirão Preto, José Velloni havia atuado com o astro de Pedro Canhoto, Toni Cardi, em algumas comédias de Mazzaropi. E aceitou o convite dele para substituir o primeiro General, um italiano que era dono da academia de judô onde Toni Cardi treinava em São Paulo, no oitavo andar do Edifício Martinelli. Durante uma das várias interrupções da filmagem, Giovanni viajou até sua Itália natal e não voltou mais. Foram aproveitados apenas alguns takes nos quais aparecia de costas, com o traje militar, ou a cavalo junto com seu bando. É impactante a seqüência em que o General, sentado numa escadaria e bebendo vinho, ri de forma doentia enquanto “observa” seus homens espancando Pedro – claramente, as cenas de José Velloni na escadaria e as de Toni Cardi levando pancada foram rodadas em momentos distintos.
Atos nojentos de comer e beber são recorrentes em Pedro Canhoto, do General deixando escorrer vinho pelos cantos da boca ao mendigo que suja a própria barba enquanto come feito um animal o prato de arroz que ganhou. Cenas assim contribuem para dar ao filme um tom bizarro, quase surrealista. O cenário de fachadas de madeira também caminha nessa linha, parecendo mais uma cidade cenográfica do que uma cidade propriamente dita. E os bandidos, recrutados entre os lutadores que treinavam junto com Toni Cardi na academia de Giovanni, completam a galeria de imagens grotescas da fita – entre eles, merece destaque o nissei Kazuachi Emmi, com seus 117 quilos e 1,80 metros, na pele de um índio-mexicano.
Cassiano Esteves resolveu lançar Pedro Canhoto com o subtítulo de O Vingador Erótico, provavelmente para se aproveitar do fato de que outro western feijoada – Gringo, o Último Matador (1973), de Tony Vieira – vinha sendo exibido em algumas praças com o título alternativo de Gringo, o Matador Erótico. No cartaz, em vez de usar alguma das cenas de Toni Cardi com o cabelo loiro – “Fiz tanta descoloração e pintura durante esse período que quase fico careca”, lembra o galã –, o produtor preferiu uma foto de… Lee Van Cleef (!!). Nenhuma dessas estratégias de marketing impediu o fracasso de Pedro Canhoto, o Vingador Erótico, lançado em São Paulo no dia 6 de junho de 1974. Os planos de Toni Cardi e Raffaele Rossi para outros filmes com o personagem foram deixados de lado. Embora o ator tenha vivido com garra uma série de personagens marcantes na carreira, nunca mais voltou a protagonizar um filme. Quanto ao cineasta, ele só emplacaria um grande sucesso de bilheteira oito anos depois, com Coisas Eróticas (1982) – o primeiro filme nacional de sexo explícito a ser liberado pela censura no Brasil. Mas isso, como todos sabem, já é outra história.
Rodrigo Pereira é jornalista e pesquisador. Escreveu com Daniel Camargo e Fábio Vellozo a biografia Anthony Steffen – A Saga do Brasileiro que se Tornou Astro do Bangue-Bangue à Italiana (Matrix, 2007). Atualmente prepara o livro-reportagem Faroeste Caboclo – Filmes de Cangaço e Westerns Made in Brazil, baseado em sua dissertação de mestrado, Western Feijoada: o Faroeste no Cinema Brasileiro (2002).