Macunaíma

Especial Wilza Carla

 

 

Macunaíma
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Brasil, 1969. 

Por Filipe Chamy
 

Se a adaptação literária em cinema já é um imbróglio suficientemente intrincado com livro que seja, que dirá com Macunaíma

Além de ser um romance capital da literatura modernista (e moderna) brasileira, o livro é tão famoso que não só é ícone como objeto de paródias, releituras, análises mil e inúmeros tipos de revisões, influências e homenagens. 

E não só isso: é uma obra de linguagem, de métrica (ou de falta de métrica, de sua irrelevância), de vozes de todo tipo se confrontando, de vanguardismo poético, de todo tipo de surrealismo chocando sentidos textuais e não textuais. 

Para adaptar uma sinfonia caótica dessas, apenas alguém pelo menos tão capacitado (ou imaginativo) quanto seu autor, o célebre Mário de Andrade. E a pessoa ideal, claro, era Joaquim Pedro de Andrade.

 Já desde o início Joaquim Pedro vai insinuando sua visão de mundo no meio do intrincando cosmos de retalhos de folclore, crítica social e proposta de estrutura descritos por Andrade. Agrega elementos de suas percepções e idiossincrasias, como quando põe Ci (feita por uma bela e elétrica Dina Sfat), uma espécie de guerrilheira, ao sabor da efervescência política dos “anos de chumbo”, ou quando enche a narrativa de máquinas modernas, carros e outros contrastes com a ideia inicial (na história) de calma, bucolismo, indianismo.           

Aliás, o caráter “sem caráter” do herói da nossa gente é representado brilhantemente por uma dupla transição: nasce Macunaíma feito por Grande Otelo, de uma mãe-entidade feita por Paulo José; depois, uma mágica água transforma o negro Grande Otelo no branco Macunaíma Paulo José, que terá um filho que é negro e… Grande Otelo! Essa dualidade, ou melhor, essa “falta” de aparência, esse amorfismo, está presente em todo o romance, e em todo o filme, de maneiras diferentes, opostas mas complementares. Que não se diga que Joaquim Pedro traiu “o espírito” do livro, pois seu Macunaíma é tão bizarramente irreverente, iconoclasta e (claro) preguiçoso quanto o das linhas publicadas em 1928. 

Pontuando essa carnivalização étnica de nossa gente, espécie de desfile de nossa cultura caricaturada por uma mente gozadora, está uma galeria de personagens grotescas que faria inveja a Alejandro Jodorowsky (aliás, grande admirador de Joaquim Pedro): Rodolfo Arena é Maanape, irmão de Macunaíma com veneranda aparência de druida – ou mais propriamente um hippie, pois Woodstock foi quase simultâneo a este filme -; Milton Gonçalves é Jiguê, o outro irmão, meio sobra de uma saudade colonialista (o que é irônico, pois ele é de pele negra também); Jardel Filho é Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente, detentor da muiraquitã, a pedra-símbolo da busca inalcançável por identidade de Macunaíma. E, para fechar o cortejo, a recém-falecida Wilza Carla é uma senhora de proporções fellinianas e caráter não menos expansivo e circense: é ela a estranhamente terna mulher que cuidará (com aparentes segundas intenções) da convalescença do herói quando ele se ressente do embate contra o gigante; ela acompanhará boa parte do confronto, torcerá, o apoiará e cuidará de sua depressão no fracasso. No fundo, é o papel de um treinador de boxe, que acudirá com água e uma toalha seu campeão prostrado no ringue. 

Mas Macunaíma não pode perder a luta: é a brasilidade em jogo. Mas como Joaquim Pedro nunca foi bobo, o discurso é o mínimo que interessa a ele para dar seu recado. Aos ufanistas ele repetirá incessantemente as palavras do herói: “ai, que preguiça”.

Loucuras de um Sedutor

Especial Wilza Carla

Loucuras de um Sedutor
Direção: Alcino Diniz
Brasil, 1976

Por  Leonardo “Leo Radd” Freitas
 

Lourenço é um personagem feito sob medida pro ator Paulo César Pereio, pois exige um certo talento natural pro tipo mulherengo, canalha, sedutor, cínico, e pilantra. Pra um papel desse tipo, não pode ser um ator qualquer: é preciso ser convincente e fazer com que o espectador torça pro malandro se dar bem e passar a perna em todo mundo durante o filme todo (de preferência saindo impune no final, independente de todas as vigarices que tenha aprontado). Assim transcorre o filme Loucuras de um Sedutor (de 1976), estabelecendo logo de cara uma relação de identificação entre personagem e espectador.   

O filme já começa com Lourenço fugindo da cidadezinha onde morava no dia de seu casamento (forçado) com a filha do violento Coronel Manoelão. Ao ser descoberta a fuga, o malandro passou a ser caçado pela população inteira da cidade e, principalmente, pelo coronel: que não admitia ficar com uma filha grávida plantada no altar. Mas apesar do atraso do trem, o “noivo” conseguiu embarcar e escapar da turba enfurecida. E de quebra ainda mandou uma “banana” pra todo mundo (já a salvo no trem, é claro).

Essa abertura (tudo isso acontece antes de entrar a vinheta animada com os créditos) já dá o tom do filme: o malandro será caçado e perseguido pelo coronel onde quer que tenha ido, e a amoralidade do personagem principal não tem limites, interessando-lhe apenas traçar a mulherada e se dar bem (às custas dos outros, obviamente).

Chegando ao Rio de Janeiro, Lourenço passa a viver de pequenos golpes pra sobreviver na cidade grande. Ele assume diversas personalidades e identidades ao longo do filme: se faz passar por fazendeiro, por escritor (inclusive tirando proveito da ingenuidade de um talentoso mas insano doente mental e assinando as obras por ele), e até mesmo um afeminado costureiro: papel que usa pra seduzir mulheres da alta sociedade, aproveitando-se do fato de que os maridos nem desconfiam que um costureiro aparentemente homossexual irá se fartar sexualmente das mulheres deles.

Numa dessas pilantragens, Lourenço se depara com uma voluptuosa ricaça (Wilza Carla) e acaba se envolvendo com ela pra tentar faturar uma graninha fácil, mas nem tudo que parece fácil acaba sendo de fato, como logo o vigarista percebe. E com a frustração de um golpe mal-sucedido, o negócio é partir pra outro e mais outro, afinal, pro bom malandro o importante é se dar bem com o mínimo de esforço possível.

Paralelamente a tudo isso, o Coronel Manoelão segue os rastros de Lourenço e acaba se hospedando na mesma pensão (onde acaba transando com uma bela loira gostosa e interesseira). Essa pensão, aliás, é um antro de personagens clichês típicos das pornochanchadas dos anos 70: tem a vizinha gostosa e desinibida; o homossexual caricato que serve de alívio cômico pra platéia machista; e inquilinos encrenqueiros e/ou trapalhões. Diante de tudo isso, o coronel (um homem respeitável e moralmente íntegro) acaba se corrompendo pela imoralidade que antes tanto criticava.

Lourenço, até então um sedutor por natureza, acaba ele próprio se deixando seduzir pela belíssima Vera Gimenez (que até o ajuda em alguns golpes). Mas finalmente é capturado pelo coronel e levado de volta ao altar. Só que o bom malandro sempre tem uma carta na manga, e depois de algumas aventuras sexuais na cidade grande, o moralista coronel também passou a ter um telhado de vidro: fato usado pelo malandro pra sair “limpo” dessa no final (já que o coronel se viu obrigado a arrumar outro “otário” pra casar com a filha).

Enfim, filmes protagonizados por malandros poderiam render até mesmo um sub-gênero da nossa produção nacional. Temos vários ótimos exemplos de filmes que seguem o mesmo estilo narrativo e as mesmas características básicas de apresentar as aventuras (ou desventuras) de personagens amorais diante de um contexto onde se deparam com vida dura da cidade grande e precisam usar seus “talentos” pra passar a perna nas pessoas (evitando terem de trabalhar) e seduzir as mulheres (coisa que todo malandro gosta). Memórias de um Gigolô (baseado no livro homônimo), Embalos Alucinantes – A Troca de Casais, O Bom Marido (também estrelado por Pereio), Gente Fina é Outra Coisa, e esse Loucuras de um Sedutor: expoentes desse gênero que se sai muito bem naquilo que se propõe, ou seja, divertir e fazer rir sem maiores pretensões e usando e abusando de estereótipos.

 

Leonardo “Leo Radd” Freitas é autor do blog Submundo HQ (http://submundo-hq.blogspot.com/)

    

Guerra Conjugal

Especial Wilza Carla
 

Guerra conjugal
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Brasil, 1975. 

Por Filipe Chamy
 

Histórias do cotidiano seguirão existindo enquanto as pessoas viverem suas vidas. Basta ficar um pouco atento nos ônibus e ouvir essas crônicas diariamente, cada uma com um tempero e uma graça diferentes. 

Filmes sobre esses acontecimentos fugazes não são tão comuns quanto deveriam. A megalomania impera e o desejo dos cineastas e público é por grandiloquência, temas épicos, superproduções que se distanciem o máximo possível de suas vidas. 

Assim também com o cinema brasileiro, que tenta mostrar-se importante aos olhos do mundo investindo em denúncias sociais, críticas políticas e demais panfletarismos passageiros. 

Aos inteligentes, resta a glória duvidosa da subestimação, e Joaquim Pedro de Andrade está nessa situação. Um filme como Guerra conjugal é muito mais importante, enquanto cinema, que tolices como nossas novas “sociochanchadas” (termo já difundido na nossa Zingu!), com suas premissas demagógicas e seus filmes mal desenvolvidos. 

Estruturando a obra em várias esquetes interligadas, temos Joaquim Pedro brincando com a sofisticação narrativa de coisas, afinal, triviais, corriqueiras. Casamentos, traições, disputas verbais ou físicas, desentendimentos, desilusões, fracassos. Não é preciso ser genial como o realizador para perceber que o microcosmos da ventura humana está aí nessas pinceladas do dia a dia das personagens: como ser mais épico do que ao retratar a luta das pessoas em seus dramas diários? 

Claro que o sexo dá as caras, mas não se adentra (felizmente) o vulgar terreno das pornochanchadas, as comédias sexuais do cinema brasileiro. Como o filme foi escrito pelo célebre escritor Dalton Trevisan e pelo próprio Joaquim Pedro, a intenção é mais ambiciosa, e plenamente satisfeita. Fala-se de sexo, claro, mas ele não é o fim de tudo, a obsessão primordial. Antes é preciso zombar das convenções, amoralizar a caretice da iconoclastia ingênua das farsas de humor produzidas em tão largo ritmo: então Cristina Aché é a moça “flor que não se cheire”, que se esfrega de calcinha no namorado cafajeste na frente da avó cega (após um sugestivo diálogo sobre cuspir e engolir), mas a avó também é “santa do pau oco” e apalpará esse namorado canalha enquanto fala sobre velhice e abandono; Jofre Soares é o marido vilão que se sente humilhado pela impotência de perceber-se ridículo, digno do nojo da esposa; Lima Duarte é o advogado que se divide entre o amor, o sexo e a culpa pela indefinição de seus desejos (ainda mais com uma proposta indecorosa que lhe é feita); e Carlos Gregório, o namorado ordinário apalpado pela velha indecorosa, precisa pular de galho em galho até descobrir a que árvore pertence. Numa de suas experiências, depara-se com nossa homenageada Wilza Carla, descrita por ela própria como “noventa e nove quilos de carne”, uma nem tão sutil assim crítica à “objetificação” feminina dos filmes brasileiros de então, onde a mulher geralmente é resumida a carne de abate e consumo. 

Causa uma saudável estranheza uma fita como Guerra conjugal, que parece não ter propósito e não se empenhar em passar qualquer moral. Mas a mensagem é justamente essa: não ter mensagem. As histórias estão lá, as anedotas e “causos”, pintados com suas tintas reais e veiculados convencionalmente como um filme (bem filmado), para quem quiser ver, sem embutir aí qualquer “dedo na cara” ou obrigação cívica — o que parece estar muito em voga hoje. Na verdade, cineastas medíocres e filmes enganosos sempre foram o prato do dia no cardápio de qualquer filmografia, em qualquer país. Mas eventos como Guerra conjugal fazem pensar que as exceções sempre fazem tudo valer a pena.

As Massagistas Profissionais

Especial Wilza Carla

As Massagistas Profissionais
Direção: Carlo Mossy
Brasil, 1976.

Por Ailton Monteiro
 

O humor de As Massagistas Profissionais (1976) lembra um pouco o de Os Trapalhões, só que com muito mais pimenta e escatologia. É um tanto vulgar e com aspecto amador, mas, por outro lado, o erotismo – o tesão ainda se conserva – é o que de melhor o filme tem. Há também o ar anárquico, o fato de o diretor (Carlo Mossy) não estar se lixando em contar uma história nos moldes clássicos, embora as várias subtramas (se é que dá pra se chamar assim) sejam amarradas no final.

Wilza Carla é uma das duas massagistas que sai da roça para o Rio de Janeiro para trabalhar numa clínica de massagem chamada Academia Mãos de Ouro. Ela e a amiga ficam loucas para serem tão desejadas quanto as mais bonitas do lugar, chefiado por um sujeito chamado Dr. Jacinto Brochard (Fernando José), que na maioria das vezes aparece de jaleco e cueca. O protagonista da trama é Duda (Edson Rabello), um rapaz mulherengo que quer pegar tudo quanto é mulher bonita que aparece pelo caminho. Ele é um malandro simpático que engana inclusive a senhora a quem ele deve o aluguel.

O filme passa a impressão de ter sido feito sem roteiro. A chegada, por exemplo, do chinês Fung-Ku (Amândio) fica parecendo uma ideia inventada na hora. Ele vai perseguir Duda ao estilo dos desenhos animados da Warner, por ele ter transado com sua mulher – que já aparece no filme com um decote bem provocante. 

Há também uma pequena trama de um sujeito que é corneado e que vai parar na academia de massagem para relaxar. A falta de graça nas piadas, que envelheceram mal, é o principal demérito do filme, embora humor seja uma questão de gosto ou de estado de espírito. A própria Wilza Carla não se incomoda em ser objeto de escárnio na cena em que aparece de maiô numa praia e os banhistas a chamam de jamanta. Enfim, uma comédia que funciona como representativa de um tempo.

 

Uma Pistola para Djeca

Dossiê Toni Cardi

Uma Pistola para Djeca
Direção: Ary Fernandes
Brasil, 1969.

Por Edu Jancz
 

Evidente brincadeira do velho Mazza com os faroeste italianos tão comuns em nossos cinemas no final dos anos 60 e começo dos 70. Dos quais – confesso sem nenhum pudor, sou fã incondicional. Só para lembrar alguns nomes de aqui adotados: Uma Pistola para Ringo; Uma pistola para um Covarde; Uma Pistola para Cem SepulturasUm Colt na Mão do Diabo e Uma Pistola para Django. Elementar, não, meus caros!

Paródia que leva o signo – marca – do seu criador. O filme de Mazzaropi tem, ao mesmo tempo, o tom de exagero dos westerns spaguetti e toda a brejeirice e caipirice do seu autor, criador e ator principal. O cenário é puro Mazza, localizado em sua fazenda em Taubaté e desenhando  sua vila/cidade com a cara do nosso faroeste caboclo.

Humor, tragédia, estrepulias e reviravoltas conduzem essa trama com belo vestuário, pontual e correta música de Hector Lagna Fietta.

O enredo: Gumercindo, viúvo e homem honesto, dono de princípios nobres, trabalhador de uma fazenda. Uma tragédia – sua filha Eulália é violentada pelo filho do Coronel  – muda completamente a sua vida. Do ataque criminoso nasce Paulinho, neto e filho querido que carrega a mágoa de, aparente, ter “pai morto” e ser rejeitado pelos colegas de escola. Tanto Gumercindo quando Eulália vivem em função do neto, aniquilando parte de seus sonhos.

Até que um dia, Gumercindo ganha a sua tão desejada Pistola – presente de uma velha pretendente. Eulalia vai à luta e resolve acertar as contas com o filho do Coronel. Tudo termina num tribunal.

O nosso querido Toni Cardi faz pequena participação como um dos capangas do Coronel. O elenco traz ainda a presença de Rildo Gonçalves e Tony Vieira.

 

Os Trombadinhas

Dossiê Toni Cardi 

Os Trombadinhas
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1979. 

Por Sérgio Andrade
 

Tudo bem que Pelé se preocupasse com a situação de abandono das crianças carentes brasileiras, a quem dedicou seu milésimo gol. Ele só não precisava ter feito um filme sobre o assunto, ainda por cima contando com nosso único vencedor da Palma de Ouro para dirigi-lo. 

Com argumento do próprio jogador (assinando como Edson Arantes do Nascimento) ao qual Carlos Heitor Cony tentou dar uma melhorada, a trama de Os Trombadinhas mostra um poderoso empresário, Frederico (Paulo Goulart), que ao presenciar trombadinhas agindo nas ruas de São Paulo, decide investir na resolução do problema e para tanto consegue a colaboração do ex-jogador Pelé, agora treinador dos juvenis do Santos. No processo, descobrirão que por trás da ação dos garotos se escondem adultos inescrupulosos. O mais incrível é que Pelé, apesar de não ter nenhum treinamento específico, vai pras ruas perseguir os garotos e enfrentar bandidos armados no braço. 

Como se pode prever o ator/autor passa a maior parte do tempo dizendo frases edificantes sobre responsabilidade social e coisas do gênero. Felizmente, apenas ele passa o filme pronunciando tais discursos. Até a estudante de sociologia e filha de Frederico (Kátia D’Angelo) tem um ponto de vista reacionário. Dessa forma, os atores de verdade da película conseguem se destacar, como é o caso do policial parceiro de Pelé, Bira, vivido por Paulo Vilaça, do líder da quadrilha Manteiga (o grande Sergio Hingst, numa excelente interpretação) e sua amante Arlete (Ana Maria Nascimento e Silva), e dos empresários amigos de Frederico (Roberto Maya e Francisco Di Franco). Raul Cortez e Alberto Ruschel aparecem rapidamente, em participações especiais. Já Toni Cardi acaba se destacando no elenco secundário como um dos membros da quadrilha, Gibi, que em determinado momento entra em luta corporal com nosso herói, com direito a rasteiras, pernadas e poses de lutadores de karatê.     

Entre os garotos, nenhum se destaca em especial (terá sido o surgimento do preparador de elenco um bem pro nosso cinema?). 

E o que podemos dizer da direção de Anselmo Duarte? 

Ele se esforça para dar um mínimo de coerência e unidade naquilo tudo, porém o sólido cineasta de Absolutamente Certo, O Pagador de Promessas, Vereda da Salvação, nem em sua melhor forma conseguiria dar conta de diálogos péssimos, cenas de brigas ridículas, erros de continuidade (na sequência de perseguição aos trombadinhas na Praça da República, Bira num momento está de camisa, no seguinte com um blusão por cima) e a canastrice de seu ator principal, que transformam o que era pra ser um drama com denúncia social numa comédia involuntária. 

Este foi seu último filme. Recomendação: esqueçam este triste canto de cisne.

O Estranho Mundo de Zé do Caixão – episódio O Fabricante de Bonecas

Dossiê Toni Cardi

 

O Estranho Mundo de Zé do Caixão (episódio “O Fabricante de Bonecas”)
Direção: José Mojica Marins
Brasil, 1968. 

Por Daniel Salomão Roque
 

Graças à sua premissa, que parece diretamente arrancada dos muitos gibis de terror que circulavam nas bancas da época, ou até mesmo dos filmes europeus de baixo orçamento dedicados ao gênero, O Fabricante de Bonecas é, dentre os três segmentos que compõem o longa O Estranho Mundo de Zé do Caixão, aquele em que menos se percebe o toque pessoal de Mojica. Nem por isso o episódio deixa de ser impactante, que fique bem claro: temos aqui uma parábola acerca da violência como corruptora do universo infantil. 

Toni Cardi está entre os delinqüentes (liderados por Luis Sergio Person!) que decidem estuprar as filhas de um velho artesão e acabam por descobrir, da pior forma possível, o segredo por trás da expressividade dos olhos de suas bonecas. Estes rapazes são legítimos representantes do lado negro da Jovem Guarda: imersos no iê-iê-iê e entediados com a mesmice do cotidiano burguês, acabam encontrando no espancamento de idosos e na violação de garotas indefesas uma válvula de escape muito mais eficiente que as dancinhas e paixonites ingênuas. E assim, movidos por instintos sombrios e ignorantes acerca do futuro que os aguarda, eles seguem perpetrando seus atos de covardia, enquanto são observados por nós – e também pelo olhar impassível das bonecas e santos católicos. 

No Paraíso das Solteironas

Dossiê Toni Cardi

No Paraíso das Solteironas
Direção: Amácio Mazzaropi
Brasil, 1969.

Por Vlademir Lazo

Sétimo filme dirigido por Mazzaropi (logo após O Jeca e Freira), No Paraíso das Solteironas é mais um produto que a sua Produções Amácio Mazzaropi (PAM) colocava em cartaz anualmente nos cinemas brasileiros nas décadas de 1960/1970, sempre aproveitando a popularidade do astro. Os filmes foram ficando progressivamente piores  à medida que o comediante envelhecia, mas No Paraiso das Solteironas, feito na virada da década, ainda pode manter a atenção dos curiosos por sua filmografia.

Mazzaropi foi um caso raro em nosso cinema de profissional que, em determinado momento, acumulou as funções de intérprete, diretor, produtor e roteirista (como em No Paraíso das Solteironas). Não porque fosse um artista com vocação para se inclinar ao trabalho de um filme em todas as suas etapas, simplesmente sabia que em seus filmes apenas o que importaria para atrair grandes multidões era a sua presença na tela, não fazendo diferença, portanto, quem dirigisse, escrevesse ou produzisse. Sendo assim, poderia ele mesmo, perfeitamente, sempre que tivesse disposição, assumir essas atribuições sem prejuízo do sucesso de suas fitas, poupando gastos e evitando a contratação de outros profissionais para ocupar esses cargos. Se fosse possível, ele próprio também venderia os ingressos na bilheteria  e controlaria a fila nas entradas dos cinemas (do que também jamais descuidou).

É inegável que Mazzaropi tenha sido sobretudo fruto do atraso nacional. Comediante com algum talento e graça, seus melhores filmes foram alguns dos primeiros em que atuou (os rodados na Vera Cruz), quando mesmo que as produções fossem veículos para o seu estrelato, havia uma preocupação maior com a equipe técnica, com os roteiros e a contratação de diretores mais competentes como Abílio Pereira de Almeida, envolvendo criações um pouco melhor elaboradas (Sai da Frente, Nadando em Dinheiro), e até uma versão regional de Cândido, de Voltaire (Candinho). Quando compreendeu a mina de ouro que era, passou a dispensar maiores cuidados e fazer com que pelas mãos dele saísse todo ano filme com seu nome estampado nos cartazes.

O tipo caboclo perpetuado por Mazzaropi encontrava um sucesso garantido no público pouco letrado que vindo do campo no êxodo rural dos anos sessenta enchia as salas de cinema para prestigiar os filmes do comediante, nos quais reconheciam seus ambientes, linguajar e identidades. O próprio No Paraíso das Solteironas utiliza o contexto do êxodo rural em seu argumento: com a perda de sua vaca de estimação, Mazzaropi resolve sair da roça e tentar a vida na cidade. Sua intenção é arranjar o dinheiro para livrar do matadouro o animal que lhe foi tirado.

Na pensão em que se hospeda, passa a ser alvo das atenções e perseguições das solteironas do lugar. Descobre que a cidade onde chegou é cheio delas, incluindo a dona da pensão, cujo nome é o mesmo da vaca de Mazzaropi. Durante um bom tempo as piadas giram em torno das confusões geradas pela coincidência dos nomes. No Paraíso das Solteironas gira muito em torno das mesmas piadas e situações repetidas à exaustão: além dessas com a nomenclatura de personagem e animal, as cantadas das demais solteironas pra cima do protagonista, a dupla de anões metidos a sedutores aproveitando-se da solteirice das matronas, etc.

Uma intriga envolvendo um veneno e a dona da pensão é estabelecida, além de conflitos com o delegado da cidade (o grande Átila Iório), com uma quadrilha de bandidos e um grupo de ciganos, e dos pretendentes que disputam a mão da filha de Mazzaropi. No elenco, mais uma vez Toni Cardi atuando num filme de Mazzaropi, sempre fazendo um papel de durão.

Mas falta um fôlego maior depois de uns 40 minutos para manter a atenção de quem não seja fanático pelo comediante, muito longe que estamos do excelente artesanato das melhores comédias da Atlântida ou mesmo as da Vera Cruz, na década anterior. No Paraíso das Solteironas é recomendado quase que exclusivamente para os nostálgicos pela figura de Amácio  Mazzaropi, na qual gravita cada um de seus filmes sem maiores interesses que não seja a presença do comediante.

A Virgem e o Machão

Dossiê Toni Cardi

 

A Virgem e o Machão
Direção: J. Avellar (José Mojica Marins)
Brasil, 1974. 

Por Daniel Salomão Roque
 

Como todo gênero a se consolidar numa conjuntura específica, a pornochanchada fincou no imaginário coletivo uma série de arquétipos, estereótipos e clichês: a manipulação destes, por sua vez, não dependia somente do carisma, beleza e desinibição do elenco, mas também da criatividade e habilidade técnica das pessoas que permaneciam, vestidas, atrás das câmeras. Se, por um lado, as obras de Carlos Reichenbach, Jean Garret e Cláudio Cunha constituem exemplos vivos de que sexualidade e sátira de costumes podem, sim, conviver em harmonia com o esmero, a inventividade e com os ideais libertários, por outro somos obrigados a engolir uma infinidade de títulos que, analisados isoladamente, parecem justificar todos os preconceitos existentes contra as comédias eróticas brasileiras. 

A Virgem e o Machão se enquadra nessa categoria. O machismo, a precariedade e a celebração da ignorância são as matérias-primas de sua estrutura puramente formulaica, dentro da qual nosso riso e excitação se transformam em verdadeiros atestados de boçalidade. O desleixo que, do início ao fim, caracteriza a fita nada mais é do que a conseqüência imediata da concepção de cinema que se esconde por trás dela: a linguagem, aqui, não está a serviço da construção de um universo pulsante – ela é apenas veículo para uma narração bidimensional composta por uma série de situações imbecis que se sucedem umas às outras. 

Aqui, tudo gira em torno de uma prostituta frígida conhecida pela alcunha de Maria Sorvete, célebre pelo peculiar hábito de chupar picolés enquanto atende aos clientes, e da aposta que um grupo de amigos (entre eles, Toni Cardi) realiza em torno dela: quem conseguisse levá-la ao orgasmo ganharia uma bolada em dinheiro. Quando as esposas traídas descobrem a disputa criada pelos maridos, elas estabelecem um plano de vingança que se torna a gênese de conflitos extremamente patéticos e pitorescos, mas nunca engraçados. 

Os filmes que nos despertam a vontade de vivenciar o cotidiano com mais intensidade e experimentar o cinema em todas as suas formas encontram em A Virgem e o Machão uma perfeita antítese: com uma sonoplastia rasteira, decalcada dos piores desenhos animados, a assinalar quando devemos rir, uma infinidade de piadas mongolóides de duplo sentido e uma utilização extremamente pobre do humor físico, essa pornochanchada colabora com o emburrecimento dos espectadores e desperta em nós uma enorme preguiça em relação às telas. José Mojica Marins, um dos maiores gênios que o cinema brasileiro já teve, tanto sabia disso que fez questão de assinar essa bomba com o pseudônimo de J. Avellar.

 

Meu Nome É Tonho

Dossiê Toni Cardi

 

Meu Nome é Tonho
Direção: Ozualdo Candeias
Brasil, 1969. 

Por Daniel Salomão Roque
 

Na abertura de Meu Nome é Tonho, os créditos aos atores surgem sobre rápidos planos de seus rostos, que, sucedendo-se ao som de uma viola sertaneja, formam uma espécie de videoclipe onde podemos identificar diversos sujeitos que, em algum momento de suas carreiras, acabaram passando pelas lentes de José Mojica Marins: Eddio Smanio, Walter Portela, Mário Lima, Nivaldo Lima e Esmeralda Ruchel, além, é claro, de Toni Cardi. 

Não se trata de uma coincidência: a obra em questão compartilha uma série de afinidades com o cinema de Mojica, que vão muito além da escalação de um elenco específico. De certo modo, não seria nenhum pouco equivocado afirmar que a relação mantida por Meu Nome é Tonho com os faroestes é a mesma que À Meia-Noite Levarei sua Alma estabelece com o terror. Em ambos os casos, deparamos-nos com um primitivismo exacerbado, que atinge a rudeza sem, no entanto, dissolver o apuro estético em momento algum. 

Com efeito, o segundo longa de Candeias é um dos filmes mais violentos da década de 60. Sua narrativa é uma colagem de atos brutais, e na banda sonora escutamos mais disparos que diálogos – por sinal, os personagens estão sempre grunhindo, gargalhando cinicamente ou gritando, mas quase nunca falando. Uma velha senhora é espancada, mulheres levam bala pelas costas, bandidos cogitam estuprar as freiras de um convento, uma carruagem leva uma pilha de cadáveres: em Meu Nome é Tonho, a barbárie é o único sentimento a ser explicitado. 

Sobre o resto, pairam as penumbras – esta é uma obra marcada pela indefinição. Um letreiro nos diz que as filmagens ocorreram em Vargem Grande do Sul; os acontecimentos capturados pela câmera, contudo, parecem ter se desenrolado num elo perdido entre o velho oeste norte-americano e o interior paulista. Não sabemos de onde vieram os malfeitores que aterrorizam a população, tampouco as motivações do justiceiro que, também vindo de algum lugar desconhecido, surge no final da fita; e, embora Candeias quebre a quarta parede ao inserir uma claquete entre os créditos iniciais e a primeira cena propriamente dita, seus personagens estão mais preocupados em levar adiante a própria vida do que em prestar contas ao espectador. Justamente por isso, Meu Nome é Tonho se torna um filme árido e exasperante, mas profundamente arrebatador.