O Pão que o Diabo Amassou

Especial Liana Duval

O Pão que o Diabo Amassou
Direção: Maria Basaglia
Brasil, 1958.

Por Adilson Marcelino

Hoje, no cinema pós-Retomada, temos mais de 150 mulheres dirigindo filmes de longa-metragem. O número é mesmo impressionante, sobretudo se pensarmos que até a década de 1960 tivemos apenas seis pioneiras nesse formato: Cléo de Verberena, Carmen Santos, Gilda de Abreu, Maria Masaglia, Carla Civelli e Zélia Costa – dentre elas, Basaglia e Civelli são italianas.

O Pão que o Diabo Amassou foi a estreia no cinema brasileiro de Maria Basaglia, que já havia dirigido filmes na Itália, mas depois aportou por aqui na década de 50 – época da Segunda Guerra Mundial – com o marido, o produtor Marcelo Albani. Ainda por aqui, ela dirigiria a comédia de costumes Macumba na Alta (1959), e o casal fundaria a Paulistânia Films e o estúdio de dublagem Odil Fono-Brasil.

O Pão que o Diabo Amassou é um melodrama, com argumento e roteiro também assinados por Basaglia, que reúne alguns nomes da nata teatral da época: Jayme Costa, Ítalo Rossi, Elizabeth Henreid, Wanda Kosmo, Liana Duval. A trama gira em torno do agiota Álvaro, interpretado com brilho por Jayme Costa, afogado em avareza e crueldade não só com seus clientes, mas também com toda a sua família.

À sua volta estão os filhos Ana e Mário – Elizabeth Henreid e Egydio Eccio -, o genro Jorge – Carlos Zara, e o empregado fiel Borboleta – Ítalo Rossi. A todos Álvaro trata com palavras e gestos rudes, sempre negando ajudar a quem quer que seja, a não ser , claro, que possa lucrar com isso. Certo dia, aparece como cliente a prostituta de luxo Aída – Liana Duval, que fica atraída pelo soturno velhaco e acaba por se envolver tanto na sua vida particular quanto na de seus negócios. Essa relação, que poderia ser fortuita, vai desencandear uma reviravolta na vida de Álvaro e de toda a sua família.

O Pão que o Diabo Amassou é filme de interesse, sobretudo histórico. Afinal, estamos frente a um dos primeiros longas dirigidos por mulheres e a um elenco de feras do palco. Alguns ressaltam um tom carregado de teatralidade na interpretação e na condução dos atores, mas o interesse com o qual acompanhamos a trama desfaz esse possível desconforto. Obviamente, alguns realmente carregam nas tintas, como Elizabeth Henreid e Carlos Zara. Já outros, como Jayme Costa e Ítalo Rossi, conduzem muito bem seus personagens.

Liana Duval, com seu corpão-violão, é presença arrebatadora de ponta a ponta como a prostituta de luxo que apresenta nuances de personalidade muito bem interpretadas. Ela é tanto a mulher . experiente que cai de amores e tenta seduzir o agiota, quanto a puta de bom coração que ajuda uma das clientes de Álvaro. E é também o anjo exterminador que põe em ebulição e de perna para cima toda uma aparente e falsa estrutura familiar.

Ótimo momento dessa atriz que marcou a história do cinema brasileiro em dezenas de filmes.

Uma Senhora Atriz

Especial Liana Duval

 

Por Adilson Marcelino

Quando se pensa no cinema popular dos anos 1970, logo vem à mente musas estonteantes de beleza e gostosura como Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Aldine Muller e Adéle Fátima. Mas há também uma longa lista de mulheres que marcavam presença com seu talento nos filmes em que essas deusas reinavam, interpretando as personagens mais velhas, como a mãe, a tia, a sogra, a empregada. E em vários desses filmes está lá a presença majestosa de Liana Duval.

Mas não pensem que Liana Duval sempre foi essa senhora, como a empregada que fica boquiaberta com as cenas eróticas entre Zélia Diniz e um gafanhoto no episódio de John Doo em Pornô, ou a aflita mãe em Joelma 23º. Andar, de Clery Cunha. Liana parava quarteirões com seu corpo bem talhado quando começou a carreira ainda nos anos 40, a ponto de ser elencada como uma das desejadas vedetes da época, mas posto em que ela nega em entrevista para o site Mulheres do Cinema Brasileiro. Lá, diz que atuou apenas em duas revistas como convidada, uma como atriz e outra como vedete.

O que não nega é que foi sim uma das Dez Certinhas do Lalau, do saudoso Stanislaw Ponte Preta, posto cobiçado pelas mulheres da época e que fazia babar os marmanjos de plantão. Seu corpão-violão é ressaltado também por Ìtalo Rossi no filme O Pão que o Diabo Amassou, dirigido por um de nossas cineastas pioneiras, a italiana Maria Basaglia, em filme protagonizado por Jaime Costa e no qual ela estrela ao lado de Elizabeth Henreid, Carlos Zara, Egydio Eccio e o próprio Rossi.

Falecida no mês passado, Liana Duval nasceu em 06 de junho de 1927, em Paraguaçu Paulista, São Paulo. Com atuação importante no teatro e trabalhos na televisão, a atriz marcou a história do cinema brasileiro, atuando em várias fases do Cinema Nacional e com mais de 50 filmes no currículo.

Liana Duval começou sua carreira nos palcos. Depois de nascer em uma fazenda em Paraguaçu Paulista e viver alguns anos em Presidente Prudente, ela se muda de mala e cuia para São Paulo para estudar jornalismo. Só que assiste uma peça do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, apaixona-se e acaba fazendo teste para uma escola de arte dramática, no qual passa em segundo lugar e carimba seu destino.

Durante essa trajetória, fez curso com o mítico Marcel Marcel e atuou em peças históricas como O Rei da Vela, com direção de José Celso Martinez Correa – só no Oficina ficou cerca de cinco anos, em espetáculos que foram marcos, como Galileu Galilei e Os Pequenos Burgueses. Gota D´Água, protagonizada por Bibi Ferreira, é outro momento histórico.

Na televisão estreou em novelas em Marcados pelo Amor, de Walter Negrão e Roberto Freire, baseada em radionovela de Oduvaldo Vianna, protagonizada por Francisco Cuoco e Miriam Melher, e exibida na Excelsior em 1864/65. Na TV, atua no marco Nino, O Italianinho, de Geraldo Vietri, em 1969, mas intensifica sua participação na telinha só a partir da década 70. Depois vieram muitas outras, sendo da última fase duas assinadas por Silvio de Abreu – A Próxima Vítima (1995) e Torre de Babel (1998).

Liana Duval estreou no cinema fazendo uma ponta em Sai da Frente, de Abílio Pereira de Almeida, em 1952. O filme, protagonizado por Mazaroppi, foi um grande sucesso e foi produzido pela Vera Cruz. A parceria com Abílio e Mazzaropi voltaria no filme seguinte, Nadando em Dinheiro (1952), agora sim com papel importante.

Da mesma época é João Gongorra (1952), de Alberto Pieralisi, em que estrela. Começava aí uma das mais extensas carreiras de atriz no cinema brasileiro, que vai da década de 50 até os anos 90. Em sua trajetória cinematográfica, a atriz passa por vários estúdios e modelos de filmagem, como a Paulistania Film, a Multifilmes, a Vera Cruz, as Chanchadas, o Cinema Marginal, a Pornochanchada e o cinema dos anos 80.

Liana Duval tem um currículo invejável, sendo dirigida por nomes de diferentes tendências como Abílio Pereira de Almeida, Luciano Salce, José Carlos Burle, Maria Basaglia, Carlos Hugo Christensen, Flávio Tambellini, Lenita Perroy, Rubem Biáfora, Jean Garret, Geraldo Santos Pereira, Carlos Reichenbach, John Doo, Roberto Santos, John Herbert, Eduardo Escorel, dentre outros.

O Cinema Marginal, o cinema popular e as pornochanchadas são um capítulo à parte, com atuações arrebatadoras. A atriz barbariza nos clássicos marginais O Pornógrafo (1970), de João Callegaro e Em Cada Coração Um Punhal (1970), episódio de Sebastião Souza, dois de seus melhores trabalhos. Já no cinema popular, marca presença em vários, como Mulher, Mulher (1979), de Jean Garret, e Ariella (1980), de John Herbert. Com Carlos Reichenbach, atua em dois grandes momentos do cineasta: Amor, Palavra Prostituta (1981) e Filme Demência (1986).

Durante sua trajetória, Liana Duval sempre buscou conforto espiritual, em caminho de busca percorrido desde os anos 70 e efetivado de vez na década de 90, quando abandona a carreira artística. Daí, muda-se para uma comunidade rural fundada por Trigueirinho Neto em Carmo da Cachoeira, no interior de Minas Gerais.

Liana Duval faleceu no dia 23 de março de 2011.

Fontes:

– Site Mulheres do Cinema Brasileiro
– Site Teledramaturgia

Filmografia

Dossiê Liana Duval

 

Filmografia

Sai da Frente, 1952, de Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida
João Gangorra, 1952, de Alberto Pieralisi
Nadando em Dinheiro, 1953, de Abílio Pereira de Almeida
Uma Vida Para Dois, 1953, de Armando de Miranda
Floradas na Serra, 1954, de Luciano Salce
O Craque, 1954, de José Carlos Burle
A Pensão de Dona Estela, 1956, de Ferenc Fekete e Alfredo Palácios
O Pão Que o Diabo Amassou, 1957, de Maria Basaglia
Hoje o Galo Sou Eu, 1958, de Aloísio T. de Carvalho
Só Naquela Base, 1960, de Ronaldo Lupo
Crônica da Cidade Amada, (1964, de Carlos Hugo Christensen
O Beijo, 1965, de Flávio Tambellini
O Pornógrafo (1970), de João Callegaro
Em Cada Coração Um Punhal, 1970), episódio de Sebastião de Souza
Fora das Grades 1971, de Astolfo Araújo
A Infidelidade ao Alcance de Todos, 1972, de Aníbal Massaini Neto e Olivier Perroy
Mestiça, A Escrava Indomável, 1973, de Lenita Perroy
Anjo Loiro, 1973, de Alfredo Sternheim
Pensionato de Mulheres, 1974, de Clery Cunha
Macho e Fêmea, 1974, de Ody Fraga
As Delícias da Vida, 1974, de Maurício Rittner
A Casa das Tentações, 1975, de Rubem Biáfora
Amantes, Amanhã se houver Sol, 1975, de Ody Fraga
Excitação, 1976, de Jean Garret
O Seminarista, 1977, de Geraldo Santos Pereira
Mágoa de Boiadeiro, 1977, de Jeremias Moreira Filho
A Santa Donzela, 1978, de Flávio Porto
O Outro Lado do Crime, 1978, de Clery Cunha
Por Um Corpo de Mulher, 1979, de Hércules Breseghelo
Mulher, Mulher, 1979, de Jean Garret
Milagre – O Poder da Fé, 1979, de Hércules Breseghelo
Joelma, 23o Andar, 1979, de Clery Cunha
Dani, Um Cachorro Muito Vivo, 1979, de Frank Dawe
Os Amantes da Chuva, 1979, de Roberto Santos
Império das Taras, 1980, de José Adolfo Cardoso
Ariella, 1980, de John Herbert
Ato de Violência, 1980, de Eduardo Escorel
Pornô!,1981, de David Cardoso, Luiz Castellini e John Doo
Amor, Palavra Prostituta, 1981, de Carlos Reichenbach
O Vale dos Amantes, 1982, de Tony Rabatoni
Um Casal de 3, 1982, de Adriano Stuart
Tchau Amor, 1982, de Jean Garret
A Noite das Taras II, 1982, de Ody Fraga e Cláudio Portioli
Aluga-se Moças, 1982, de Deni Cavalcanti
O Encalhe – Sete Dias de Agonia, 1982, de Denoy de Oliveira
Tudo na Cama, 1983, de Antônio Melliande
Nasce Uma Mulher, 1983, de Roberto Santos
De Todas as Maneiras, 1983, de Mário Lúcio e Marcelo Motta
Filme Demência, 1986, de Carlos Reichenbach
A Dama do Cine Shanghai, 1987, de Guilherme de Almeida Prado
Vera, 1987, de Sérgio Toledo
Dudu Nasceu, 1992), curta de João Batista de Andrade
Coentro e Quiabo na Carne de Sol, 1995, curta de Eduardo Abad

Nossa Canção

Os Saltimbancos Trapalhões, de J.B. Tanko

Por Maurílio Martins

Dentre os filmes que sempre revejo, por vários motivos, há uma categoria especial, aquela constituída por filmes com forte carga afetiva e que nem sempre passam pelo crivo do senso crítico adquirido posteriormente, mas sempre ocupa lugar especial nas listas dos meus longas-metragens prediletos. Os filmes dos Trapalhões, especialmente os produzidos até 1990, encabeçam o topo dessas escolhas, e os motivos são vários, indo da relação que eu, criança, estabelecia com o quarteto, numa adoração que extirpava de antemão qualquer falha que pudesse decorrer dos filmes, até o fato de, e isso conta muito, ter entrado pela primeira vez numa sala de cinema justamente para ver um filme do grupo, que até então eu só acompanhava na televisão aos domingos à noitinha e em algumas sessões da tarde na Globo.

Dessa época me lembro, com sorriso no rosto e com tintas lindas de nostalgia, dos clássicos Os Trapalhões e o Mágico de Oróz, Os Trapalhões no Auto da Compadecida, Os Trapalhões na Serra Pelada, dentre outros. E estão todos ali, devidamente guardados nesse baú da memória, e cada um com sua história particular, com minha relação não só com o filme em si, mas com tudo que o cercava e me constituía, fazendo com que, muitas vezes, eu consiga lembrar-me de como vi, com quem vi e qual foi o impacto na minha vida naquele momento.

Dentre a vasta obra do quarteto (que já foi trio), há um filme em especial. O ano de produção é 1981, mas nasceu para mim poucos mais de seis anos depois, numa tarde de um meio de semana, assistindo na casa de um amigo da mesma idade. Os Saltimbancos Trapalhões, dirigido por J.B. Tanko, saltava na tela da televisão do Seu Totonho, uma das poucas coloridas da cercania, comprada para a copa do mundo realizada no ano anterior. O fascínio foi imediato e é lembrança recorrente o menino eufórico saindo pelas ruas cantando as canções do filme, principalmente Hollywood, no agudo doce e penetrante de Lucinha Lins, acompanhadas por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

O fato de quase não haver videocassetes (e nenhum outro meio de assistir um filme a não ser o cinema ou a tevê aberta) provocava um efeito maravilhoso que era o de, tão logo terminava um grande filme infantil na televisão, ter a certeza de encontrar, minutos depois, os amigos da mesma idade na rua, todos deslumbrados com o filme da vez, afinal quase tudo era novidade naquele tempo. E se havia canção que marcasse, fato era que boa parte já daria as caras por ali, assoviando ou cantando o trecho que havia decorado. Era como um sinal coletivo de aprovação ao filme.

O que não faltava em Os Saltimbancos Trapalhões eram músicas que marcasse, mas se a minha preferência naquele momento era pela canção dos moços se aventurando na meca do cinema (numa das cenas mais geniais do filme, quando a patota passeia pelos famosos estúdios e brincam com gêneros cinematográficos), a preferida pela turma, e cantada seguida de uma coreografia absurda e muito engraçada, era Piruetas, onde os Trapalhões, nos vocais, acompanhavam nada mais nada menos que Chico Buarque, o responsável pela trilha do filme – na modesta opinião desse escriba, das mais belas e instigantes feita para um filme no Brasil.

Bem, certo é que muitos dirão que a mesma foi quase toda feita para uma peça, o que é certo, mas não tirando, com isso, a força dela no longa-metragem (bem longe disso por sinal) e a participação de Renato Aragão, Dedé Santana, Mauro Gonçalves e Antônio Carlos Bernardes nessas músicas deram o tom e o charme exato que a trilha precisava. E reside aí a genialidade de tudo. A união das mais populares figuras da televisão e do cinema brasileiro do período com um dos maiores compositores de todos os tempos da música tupiniquim. E não há como não atestar e verificar esse transbordar de talento e de carisma ao se ouvir Meu Caro Barão. Conforme havia feito em Construção (e algumas outras músicas), o irmão da nossa atual ministra da Cultura brinca, literalmente, com a gramática e produz uma das mais fantásticas e inteligentes canções feita para o público infantil no Brasil. Não! Vou além! Retiro do escopo infantil e digo que uma das mais brilhantes da MPB. Para público de qualquer idade.

E o grande trunfo do filme é esse. Os Saltimbancos Trapalhões é um filme atemporal e para qualquer espectador, em qualquer época. Considerado pela crítica (e, creio eu, por boa parte daqueles que cresceram assistindo os quatro humoristas no cinema), como o melhor filme protagonizado pelos Os Trapalhões, o filme conta com um elenco afinado, uma direção segura e elegante do diretor iuguslavo radicado no Brasil, J.B. Tanko, e, principalmente, por ser uma espécie de musical, com as canções. Além das citadas, podia discorrer por horas sobre a emocionante Alô Liberdade, cantada por Bebel Gilberto, e que vinha a calhar com o momento que o país vivia, ainda em plena ditadura militar, mas já começando a almejar e vislumbrar uma liberdade que já acenava na esquina, mas de forma tímida. “Olá Liberdade, desculpe eu vir assim sem avisar(…) A minha companhia vai cantar, sutil melodia pra te acordar”. E esse tom percorre todas as nove canções do disco. E não há como não emocionar com a faixa final, “Todos Juntos, que conclama uma união de todos os bichos, de todos os oprimidos, para que se rebelem e mudem o estado das coisas. Era Chico, eram os Trapalhões tentando mudar as ordens das coisas e soprando vida inteligente nas canções e nos filmes infantis e, muito mais que isso, marcando uma geração inteira, que cresceu fascinada com o filme e sua espetacular trilha sonora.

Na véspera de encerrar esse texto e enviá-lo para o meu amigo e editor da Zingu!, Adilson Marcelino, me deparo com uma coincidência e uma sensação que não havia como ficar de fora dessas linhas que seguem, tal qual foi a emoção que me acometeu na hora. Quase vinte e cinco anos depois do dia que ouvi pela primeira vez a voz de Lucinha Lins cantando Hollywood e dizendo sobre ela ser “ali bem perto” e ser um “sonho de cenário”, eu me encontrava no ônibus voltando do Rio de Janeiro, onde havia ido tirar o visto para acompanhar a exibição de um curta-metragem dirigido por mim (em parceria com o Gabriel Martins), e cuja exibição seria justamente em Los Angeles, mais precisamente em Hollywood. E naquele momento de ócio dentro daquele veículo, coloquei o fone no celular e pus o mesmo para tocar mp3 em modo randômico, o que sempre me estimula mais, já que nunca sei qual a música que virá a seguir. E quando a primeiríssima da lista começou eu me dei conta da força, mais uma vez, que a trilha de Chico Buarque exercia em mim. E não tive dúvida, ouvindo Hollywood naquela estrada e na véspera de ir com um filme para lá, que era essa a trilha sonora de um filme que mais marcou a minha vida. E que ainda marca.

Maurilio Martins é cineasta, sócio da Filmes de Plástico e editor da revista eletrônica Lateral (www.revistalateral.com.br)

Filme-Farol

Por Vlademir Lazo

O Segredo da Múmia
Direção: Ivan Cardoso
Brasil, 1982

 
Como apontar um único filme como farol na vida de qualquer amante do cinema brasileiro? Não necessariamente um filme preferido (que é algo que pode mudar de seis em seis meses, ou às vezes de um dia pro outro), mas algum que tenha servido (e sempre será lembrado) como ponto de partida para um olhar, um fascínio que veio despertar a curiosidade em conhecer mais do cinema nacional. É difícil pensar numa só sessão tendo em vista filmes muito caros, pelos quais tenho toda a admiração do mundo e que foram tão deflagradores (falo pessoalmente, claro, porque essa é a razão da pauta). A maior parte dos filmes nacionais que admiro assisti na adolescência em diante, depois de ter sido ganho ao cinema brasileiro vendo os filmes de José Mojica Marins (À Meia-Noite Levarei Sua Alma foi o primeiro), num ciclo que a TV Bandeirantes exibiu nas madrugadas de um final de ano na década de 90, no período em que à tarde o cineasta apresentava o famigerado Cine Trash. Na mesma época, o canal exibiu chanchadas com Oscarito e Grande Otelo, outra descoberta pessoal minha dessa fase (ainda não existia o Canal Brasil). Mas não, por mais que tenha sido uma surpresa e um susto me deparar com a qualidade desses filmes, eu já era bem grandinho nos meus quatorze anos, e se fui assistir com interesse e curiosidade esses filmes sem saber muito sobre eles a não ser que eram brasileiros (eram tempos pré-internet), então é porque antes houveram outros momentos deflagradores.  

Tampouco adiantaria remontar à primeira vez que assisti a um filme brasileiro (certamente algum dos Trapalhões no cinema). Era época de muito filme na TV, muita Sessão da Tarde (quando a programação era realmente decente e respeitosa com seu público) e eventuais filmes mais adultos (bons e ruins) no horário nobre da noite, geralmente após a novela da Globo. Muito cinema americano, claro, mas também alguns brasileiros, numa sessão da extinta TV Manchete que passava filmes nacionais ao longo da semana, na faixa das dez ou onze horas da noite. Geralmente filmes com alguma putaria, mas nada escandalosos (não mais do que pode ser visto em outros programas de qualquer grade de programação de TV hoje em dia ou mesmo na época), quase sempre comédias eróticas inofensivas que eu nos meus oito anos assistia com um irmão mais velho. Filmes que competiam com o americano que estivesse passando na Globo naquele mesmo horário. O Segredo da Múmia não foi o primeiro que assisti naquela sessão, mas foi dos poucos que jamais me saiu da memória dentre os nacionais que conheci na época, e sobretudo, o que mais me impressionou. Tantos anos depois, o mais importante é reconhecer agora que o filme traz consigo muito do que me interessaria depois em matéria de cinema. 

Sim, porque nunca deixa de ser uma surpresa maravilhosa essa de, ao rever um filme da infância (no caso de O Segredo da Múmia, só o assisti pela segunda vez agora para escrever esse artigo), descobrir uma obra de qualidades para muito além da nostalgia e da pura diversão mera e simples. Do Ivan Cardoso poderiam ser citados o curta Nosferatu no Brasil (talvez seu filme mais underground) ou o divertidíssimo O Escorpião Escarlate. O seu episódio em Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez e As Sete Vampiras (ambos vistos na mesma época na Manchete), entretanto, nunca me empolgaram (mas só os assisti naquela ocasião – tá na hora de rever). Mas O Segredo da Múmia é todo especial. Nele Ivan Cardoso expressa e materializa na tela toda a sua paixão pelos filmes B americanos, os ciclos de horror da Hammer e da Universal (o de Cardoso, por sinal, é superior ao ótimo O Jovem Frankenstein, talvez o melhor filme de Mel Brooks, e paródia desses clássicos da Universal), filmes de gênero, de aventura, fantasia, chanchadas, pornochanchadas e cinema marginal brasileiro. Ver O Segredo da Múmia é encontrar e entrar em contato com cada uma dessas vertentes de cinema apontadas acima. Não como paródia (embora uma das propostas do filme seja o de ser bastante engraçado, cujo objetivo é atingido plenamente), mas como assimilação de todo esse cinema. Como processo de antropofagia e deglutição de toda uma influência estrangeira e nacional, O Segredo da Múmia não está muito distante do conceito de um Bandido da Luz Vermelha. Ou dos filmes de Quentin Tarantino, que também surgem da proposta de se criar uma obra nova a partir de todo um imaginário cinematográfico anterior. 

O Segredo da Múmia é filme de um descendente de Mojica e Sganzerla. Uma comédia de terror tanto quanto uma chanchada experimental (lembrando que a chanchada foi uma referência visivel também em alguns dos filmes mais radicais de Sganzerla e no Glauber Rocha de A Idade da Terra). Impressiona o quanto o filme de Cardoso é experimental (para se ter uma idéia, o filme mereceu um capítulo inteiro no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, a bíblia do cinema experimental brasileiro). Depois de um prólogo (com direito a participação especial do próprio Mojica Marins como um arqueólogo moribundo que distribui aos presentes ao seu redor partes de um mapa que indica a localização do túmulo da múmia de Runamb) que serve para nos apresentar ao professor Expeditu Vitus (Wilson Grey, de mais de uma centena de trabalhos no cinema, mas pela primeira vez em um papel principal; depois seria protagonista uma outra em A Dança dos Bonecos, 1986, de Helvécio Ratton), descobridor da múmia, o filme durante grande parte do tempo mal tem sequências lineares, desenvolvendo-se em uma liberdade formal cativante com pequenas vinhetas que Cardoso procura conectar (críticos reacionários e caretas devem ter interpretado erroneamente como uma incapacidade do diretor em contar uma história). “O negócio é experimentar”, diz a certa altura o professor Expeditus, verbalizando as intenções do cineasta. De professor brilhante e ridicularizado à cientista louco é um passo, e temos também o seu fiel ajudante Igor (Felipe Falcão), sádico e disforme, perseguindo a empregada brejeira, garotas com pouca ou nenhuma roupa sendo atacadas pela múmia ressuscitada pelas experiências do professor, e louras burras, bandidos, repórteres, etc. E imagens de cinejornais (como a do poeta Manuel Bandeira condecorando a então miss Marta Rocha) fundindo-se à narrativa de Ivan Cardoso. Tudo com uma grande fluência que serve como maior atrativo para o filme, que se move de uma cena (ou “ideogramas visuais”, como se referiu o crítico Juliano Tosi num texto sobre o filme para o catálogo da mostra Cinema Marginal Brasileiro) para a próxima com incrível facilidade. 

Algumas das melhores sequências de O Segredo da Múmia são as dos flashbacks com a vida e morte de Runamb (interpretado por Anselmo Vasconcelos) e suas odaliscas sensuais num antigo Egito filmado em algum lugar do Rio de Janeiro. São fragmentos de grande beleza pictórica e atmosfera, alguns puramente poéticos. Contribui também ao filme inteiro uma trilha sonora extremamente bem-cuidada feita pelo maestro Julio Medaglia, além de uma salada de canções e sons de espécies diversas que pairam como uma nuvem sonora sobre a película. Perto do final, uma trama de policial de terror desenha-se com maior vigor, com a múmia atacando mulheres e cometendo assassinatos (até encontrar uma repórter que identifica como uma antiga paixão sua no Egito), sendo perseguido pelo policial interpretado pelo lendário Jardel Filho. Uma trama clichê (para não dizer absurda) que Ivan Cardoso utiliza para fazer cinema de invenção, contando com a ajuda da imaginação fértil do roteirista Rubens F. Lucchetti (autor de algumas das obras-primas com Zé do Caixão). Vale citar também as participações rápidas de Hélio Oiticica, Joel Barcellos e Paulo César Pereio. Mas acima de tudo me fascina como o projeto de Cardoso neste filme parece se encaixar perfeitamente em espaços dispares, é ao mesmo tempo um filme experimental perfeito para festivais (ganhou uma penca de prêmios em Brasília e Gramado e até no exterior) e uma divertidíssima matinê. Em suma, a obra de um apaixonado pelo cinema e para com o cinema, procurando transmitir esse sentimento em seu filme para quem o assiste. O esforço foi amplamente bem-sucedido.

Carta ao Leitor

Já virou quase um clichê dizer que a montagem é o coração de um filme. Alguns concordam, outros não. Não quanto ao clichê, mas quanto à afirmação em si. Para alguns, o que conta mesmo é o diretor, que seria o verdadeiro autor de um filme. Mesmo que o fato de cinema ser uma arte em equipe seja de conhecimento de todos. Fernanda Montenegro, quando em uma de suas entrevistas para o lançamento do filme O Outro Lado da Rua (2003), de Marcos Bernstein, foi taxativa: no cinema o ator não tem controle de nada, quem manda é o diretor e o montador.

Se no cinema o que vale mais não é a história em si, mas a forma de contá-la, é fato que a arte da direção e da montagem caminhem juntas, e, não raro, o trabalho da segunda é acompanhada literalmente de perto pela primeira. O cinema brasileiro tem ótimos montadores, sejam homens ou mulheres, com trajetórias importantes e longínquas. Mas por ficarem totalmente nos bastidores, ainda que o resultado do trabalho esteja na tela de ponta a ponta, muitos deles não são conhecidos, isso quando não são sequer citados ou lembrados pelo público.

Nesta edição de maio, e também na próxima, de junho, a Zingu! vai apresentar uma série formada por dois dossiês sobre montadores levado a cabo por Matheus Trunk, que idealizou o projeto especialmente para trazer à luz esses personagens incríveis dessa arte essencial. Quem abre a série é o veterano Luiz Elias, montador amado por seus pares e que esteve à frente da série O Vigilante Rodoviário, e de filmes essenciais de cineastas como Roberto Santos, José Mojica Marins, Walter Hugo Khouri e Hector Babenco.

Aqui no Dossiê, o leitor terá a possibilidade de conhecer a trajetória de Luiz Elias a partir de uma longa entrevista realizada por Matheus Trunk, além de depoimentos, entrevista com Mojica e ainda filmografia.

Esta edição de maio reservou espaço também para outra personalidade importantíssima do cinema brasileiro, mas nem sempre reconhecida: a atriz Liana Duval. Falecida no mês passado, no dia 23 de março, Liana Duval atuou em mais de cinquenta filmes, passando por vários ciclos do cinema brasileiro e sendo dirigida por diretores de várias escolas.

Liana Duval não tinha nenhum tipo de preconceito, podia tanto estrelar um filme, como O Pão que o Diabo Amassou, de Maria Basaglia, em que protagoniza ao lado de Jayme Costa, Elizabeth Henreid, Carlos Zara, Ítalo Rossi e Egydio Éccio, como fazer uma simples ponta, como em A Dama do Cine Shanghay, de Guilherme de Almeida Prado. E aí podia marcar presença em filmes completamente diversos, seja em produções para o talento de Mazzaroppi, como Nadando em Dinheiro; do Cinema Marginal, como O Pornógrafo, de João Callegaro; ou nas produções características da Boca do Lixo como Joelma 23º Andar, de Clery Cunha, e no episódio O Gafanhoto, de John Doo, do longa Pornô!. Todos eles resenhados nesta edição.

A Zingu! faz homenagem à Liana Duval com um especial em que são destacados dez filmes de sua longa carreira, mais texto perfil e filmografia.

Há também, claro, as colunas tradicionais, com espaço para o arrasa-quarteirão Rio, de Carlos Saldanha; uma reflexão sobre o cinema brasileiro; a trilha inesquecível de Os Saltimbancos Trapalhões; o talento de Ivan Cardoso em O Segredo da Múmia; e as musas Eva Nil, Valéria Vidal e Rejane Arruda.

Tenham todos uma ótima leitura!

Adilson Marcelino
Editor-Chefe da Zingu!

Entrevista: Luiz Elias

Dossiê Luiz Elias

luizelias

Por Matheus Trunk

O fã de cinema brasileiro pode não conhecer o nome de Luiz Elias. Mas com certeza já assistiu um filme montado por este simpático senhor. Aos 71 anos, este empenhado técnico possui um currículo extenso. Ele trabalhou em filmes clássicos do cinema brasileiro como À Meia Noite Levarei a Sua Alma (José Mojica Marins), O Grande Momento (Roberto Santos) e Pixote: A Lei do Mais Fraco (Hector Babenco).  Isso sem falar na série O Vigilante Rodoviário e numa bem-sucedida parceria com o realizador Walter Hugo Khouri. São mais de 40 filmes em 56 anos de carreira.

Nessa entrevista a revista Zingu!, Luizinho recorda toda sua trajetória como técnico. “Não sou de dar depoimentos. Estou abrindo uma exceção hoje”, disse ele antes de iniciarmos a entrevista. Bastante centrado nas respostas, Elias evitou falar mal de qualquer colega do meio. Veterano da nossa cinematografia, ele iniciou sua carreira na produtora Maristela e está em atividade até hoje.

 

Parte 1- O início na Maristela e a montagem de O Grande Momento

Parte 2- Os trabalhos com Mojica, Candeias e Tambellini

Parte 3-Vigilante Rodoviário , os trabalhos com Khouri e Babenco

Parte 4- Os trabalhos na Boca e o futuro

Entrevista: Luiz Elias – Parte 4

Dossiê Luiz Elias
Parte 4- Outros trabalhos e o futuro

Por Matheus Trunk 

 

Z- Existia uma concorrência entre o senhor e os outros montadores da época? 

LE- Era uma concorrência sadia. Cada um tinha praticamente os seus clientes. O Sylvio trabalhava muito na Boca, o Mauro montava os filmes do Babenco. Eu praticamente fiquei em comerciais e quando tinha um longa eu fazia esse bate-bola. Mas a gente nunca tinha contato, de reunião, estar junto. Cada um tinha o seu setor. 

Z- O senhor acredita que o Roberto Leme era um bom editor? 

LE- Ele trabalhou comigo um tempo. Eu não vi nenhum trabalho dele pra ser sincero. 

Z- O Marginal do Carlos Manga foi ele quem montou. 

LE- Eu não vi esse filme. Não posso opinar. 

Z- Desses da época qual o senhor acredita que eram os grandes montadores? 

LE- O Sylvio eram um dos grandes montadores. Lupe, Máximo, Glauco. Você assiste o São Paulo S.A. e percebe que a montagem do Glauco é excelente. 

Z- O Carlos Coimbra também montava bem? 

LE- Coimbra também, muito bem. Eu fui assistente dele, acho que no Lampião, o Rei do Cangaço. Ele participou do Pelé Eterno fazendo alguma coisa, dando sugestão de texto. 

Z- O Coimbra era uma profissional tranquilo? 

LE- Tranquilo. Mas era ágil na montagem, muito bom montador. 

Z- O Coimbra é uma pessoa que todo mundo fala bem. 

LE- Coimbra… uma simpatia. 

Z- O senhor conheceu o Ugo Giorgetti trabalhando em publicidade? 

LE- Exatamente. Conheci ele trabalhando em publicidade. Eu sempre gostei do jeito despojado dele. Gosto muito da linguagem dele, as figuras que ele trabalha nos filmes são bem fellinianos, tudo escrachado. Eu gosto muito. Fiz com ele o Quebrando a Cara, mas tem aquele negócio… quando ele fez os outros filmes eu estava trabalhando com outras pessoas. 

Z- Mas ele chamou o senhor? 

LE- Chamou. E eu acabei fazendo o trailer do Sábado, senão me engano. Mas ele também já acertou com um montador dele mesmo. 

Z- O senhor freqüentava o Soberano? Os bares da Boca? 

LE- Não. Eu vim uma vez pra tirar fotografia porque o Candeias me encheu o saco e ele queria fazer um documentário sobre a Boca. Então, ele precisava tirar uma fotografia minha na Boca. Vim uma vez para falar com o Civelli, outra falar com o Ary quando ele fez o Águias de Fogo. Raramente eu ia lá. Eu ia e voltava. 

Z- Vamos falar do Mulher Objeto. O senhor teve até um atrito com o diretor? 

LE- Foi numa cena em que a atriz principal… 

Z- A Helena Ramos. 

LE- A Helena Ramos estava um pouco deprimida lá e ela ia tomar comprimidos num copo de água. Numa seqüência ela pegou um comprimido e colocou na boca. Depois corta pra close e tem o close dela bebendo o outro comprimido. Eu não montei os closes. Nisso, o Sílvio me falou: “Tem o close dela bebendo”. Eu falei pra ele: “Mas isso é muito óbvio. Ela vai fazer uma ação você corta pra cá, vai fazer outra ação você corta pra lá”. Ele me respondeu: “Mas eu não dirijo o óbvio”, e eu falei: “Eu não monto óbvio”. Mas também foi uma relação muito legal, foi só isso. Mas ele era uma pessoa que me entregava material e vinha até depois assistir a seqüência. Também não tive problema nenhum. Foi um problema de ego da parte dele ou talvez da minha também. 

Z- O senhor fez dois filmes com o Dionísio Azevedo. Como foi trabalhar no Chão Bruto? 

LE- Nossa, foi muito bom, muito legal. O Dionísio foi uma pessoa que virou amigo da minha família e começou a freqüentar a minha casa. Chegou a ir em aniversário dos meus filhos. Uma pessoa que eu só guardo boas lembranças. 

Z- A Flora Geny, esposa dele, o senhor conheceu também? 

LE- A Flora também. O Chão Bruto aconteceu uma coisa gozada… gozada não, trágica. Eu tinha já montado todos os ruídos de tiroteio… cada tiro você tem que montar um ruído. Eu estava com o filme prontinho pra mixar. Eu tinha montado no Enzo Barone, que ficava na (rua) Treze de Maio. Eu montava comerciais e O Chão Bruto também nas horas vagas. Só que nisso chegou a época do Natal. Só que todo Natal eu ia pro Guarujá. Parava dia 20 e voltava lá pelo dia 10 de janeiro. Sei que eu recebi uma notícia que a firma tinha pegado fogo e destruído todo material, tudo. Morreu o guarda inclusive… só sobrou o cachorro que ele foi indo, indo e chegou no banheiro. Ali era uma estrutura toda de madeira, mesmo a minha sala tinha uma escadinha de madeira. Os andares da parte de cima também eram de madeira. Então não sobrou nada: as latas de filme, o copião, tudo. O laboratório teve de copiar tudo de novo, eu tive de montar o filme todo de novo. Mas trabalhar com o Dionísio foi um prazer imenso.

Z- Ele sentava na mesa de montagem com o senhor? 
 

LE- Não, ele não era muito de ficar ali não. Ele era mais ou menos igual ao Khouri e o Babenco. Chegava, assistia o material, a gente discutia e eles voltavam depois de uma semana. Eu detesto, não gosto de diretor do lado porque só atrapalha. Diretor igual eu te falei: se apaixona por determinada cena ou determinada atriz e ás vezes quer que você defenda aquilo. Mas você acha que pro filme como ritmo e ação pode ser cortado.

 Z- O senhor trabalhou com Antônio Meliande? 

LE- Não, fiz um filme na Boca com o Sílvio de Abreu. 

Z- Mas está aqui na lista do senhor: Os Indecentes do Antônio Meliande. O senhor se lembra de ter montado este filme? 

LE- Os Indecentes…não me lembro. Os Indecentes não é do Meliande, é do Clery Cunha, né? 

Z- Do Clery o senhor fez Os Desclassificados. Como foi trabalhar com ele? 

LE- O Clery coitado… ele também estava começando na época. Ele era da trupe do Mojica e acho que tinha feito pouca coisa, não entendia muito. Até há um ano, dois, eu encontrei com ele aqui e ele me agradeceu: “Valeu pelas listas que você dava pra eu refilmar”. Mas foi legal também. Nessa época eu já tinha um pouco mais de experiência de montagem, conhecia bem o ritmo e fazia uma lista de coisas pra refilmar. O Clery foi uma pessoa legal que deixava a montagem caminhar. 

Z- Do Dionísio, o senhor montou dois longas? 

LE- Isso. A Virgem e Chão Bruto. 

Z- O senhor acha que os técnicos no cinema brasileiro são pouco lembrados? 

LE- Eu acho que sim. Porque sempre estão fazendo livros, catálogos sobre diretores e montadores. Mas nunca sobre um assistente de câmera, fotógrafo, eletricista, contra-regra, os caras de som. Mas essas funções são importantes também né? É como um time de futebol, desde o roupeiro até o técnico todos têm o seu valor. 

Z- O senhor também montou o Pelé Eterno. Esse filme foi feito em digital e depois em película? 

LE- Sim. Depois de editado ele foi pra película. Esse filme foi feito tudo com material de arquivo. Pouquíssima coisa foi gravada com alguns depoentes como amigos, pessoas da família, ex-jogadores, amigos de infância. O resto foi tudo material de estoque e foi meio complicado. 

Z- Foi difícil de montar? 

LE- Foi. Uma coisa é você ter um jogo de futebol e muitas vezes você não consegue transmitir a emoção do jogo. Porque aquilo foi filmado daquela forma, alguns jogos antigos foram feitos por uma câmera de cordinha. Os caras filmavam um pouquinho e a câmera abaixava. Então, você não tem lances inteiros de uma jogada que vem até o gol pra criar um pouco de emoção. Então é complicado. Você tem que colocar um torcedor vibrando e participando de tudo. 

Z- O Aníbal é um cara tranquilo pra se trabalhar? 

LE- Tranquilo. Desde que você tenha o Pelé sempre na tela (risos). 

Z- Tem algum trabalho que o senhor gostou mais de ter trabalhado? 

LE- Do Khouri. Os com o Babenco, Mojica… dos primeiros O Vigilante. São filmes que deram prazer de fazer. Mesmo o Pelé, eu gosto dessas coisas complicadas. 

Z- O senhor trabalharia com cineastas mais novos? 

LE- Eu estou fazendo o Pelé Eterno há doze anos. Pretende pendurar a chuteira depois de terminar esse trabalho. 

Z- O senhor não pretende continuar na área de montagem depois? 

LE- Ah não, eu já estou de saco cheio disso. Estou nisso… porra, desde 55. São 55 anos. Chega. 

Z- É muito diferente montar na moviola ou no computador? 

LE- Muito, totalmente. O computador é dinâmico. Você não tem durex nas pernas, faz cortes e muda na hora. Você inverte e faz fusão, acelera, faz um speed. Na moviola é tudo imaginável, né? Fusão você faz um risco imaginando que a cena vai ser de uma maneira. Com o computador se não der certo você pode diminuir, aumentar. 

Z- Na moviola é mais difícil? 

LE- Muito mais complicado. Eu prefiro mil vezes o computador. Apesar dele ter tirado o emprego de muitos montadores. Eu tive o privilégio, porque logo me convidaram pra fazer um teste com esse equipamento novo e eu fui pegando a manha. Nessa parte eletrônica eu só conheço o básico. 

Z- O que o senhor acha do cinema brasileiro hoje? O que o senhor acha do Tropa de Elite? 

LE- O Tropa de Elite eu vi. Eu acho a linguagem do diretor excelente. Acho que a gente está chegando lá como sempre chegou. Só que muitas vezes a gente não tinha técnica. O nosso áudio sempre foi muito prejudicado no sistema de gravação de celulóide. Então, todo aquele som bonito que você tinha no magnético não correspondia no áudio. Você ia numa sala de cinema e tinha uma decepção. Hoje, nós temos digital, equipamentos de primeiro time. Temos bons filmes, bons diretores. Acredito que estamos bem encaminhamos. 

Z- Hoje o circuito do cinema está mais concentrado em shoppings. Isso incomoda o senhor? 

LE- Isso pra mim isso não tem problema. 

Z- O senhor via os filmes que montava? 

LE- Não. Em alguma estreia eu ia. Mas normalmente eu nunca acompanhei muito. O filme estava entregue certo? Então, ele podia receber a carteira de maior e sair pra vida. 

Z- O senhor tem alguma mágoa na profissão? Acha que devia ter mais reconhecimento pelo seu trabalho? 

LE- Não. Primeiro porque eu nunca fui de freqüentar panelinhas, dar entrevista também que eu não gosto. Não tenho mágoa nenhuma não. Sou feliz. 

Z- Pra gente fechar: o que o senhor acha que fica do senhor e dos outros montadores pra posteridade? 

LE- Acho que fica alguma coisa. Não sei… acho que plantei, criei alguns técnicos como o Robertinho, o Gilbertinho, Hélio Pedroso. Aquela assistente do Mojica (Nilcemar Leyart). Fica alguma coisa pra quem participou e acompanhou os meus filmes.

                                                                                                         Parte 3 / Parte 1

Entrevista: Luiz Elias – Parte 3

Dossiê Luiz Elias
Parte 3- Vigilante Rodoviário e os trabalhos com Khouri 

 

Por Matheus Trunk

 

Z- Como o senhor conheceu o Ary Fernandes? 

LE- Eu conheci o Ary na Maristela. Ele fazia produção e quando terminou a produtora, ele e o Palácios não tinham muito o que fazer. Eles começaram a fazer alguns comerciais e eu editava pra eles. Aí eles tiveram uma ideia que eu não sei se foi do Ary, do Palácios ou do Carlinhos (risos). Cada um diz que é sua. A ideia era de um seriado brasileiro chamado Vigilante Rodoviário. Nisso, foi feito um primeiro piloto que eu também acompanhei ajudando em alguma coisa. O Ary tinha uma certa experiência por ter trabalhado na Maristela. O Palácios conhecia de cinema também. Então foi feito o primeiro episódio. O Ary era muito dinâmico, pé de morto pra trabalhar… 

Z- Muito dedicado. 

LE- Muito dedicado à coisa. Ele sabia dirigir né? Mas era assim: ele estava dirigindo, o material vinha e eu ia montando. Sempre que faltava alguma coisa eu sempre pedia algo e no dia seguinte ele resolvia. Ele também teve um puta de um suporte que foi o “Carcaça”, Osvaldo de Oliveira. Puta crânio, conhecia cinema e tinha uma boa escola da Maristela. Então, ele estava bem calçado. É isso… não dava tempo de interferir em nada porque ele dirigia, o material vinha e eu montava. Depois, o material ia pra Vera Cruz e o pessoal dublava. Eu já escolhia os tapes, as músicas, os ruídos, montava, mixava, tirava a cópia e já via a cópia pronta. Ele, o Palácios, o Petraglia também acompanhavam tudo. Foi um trabalho bonito. 

Z- A ideia era fazer um seriado brasileiro. Quando começou o senhor pensou que fosse dar certo? Não ficou um pouco desconfiado? 

LE- A gente achava que não ia dar nada. Pensávamos: “É um piloto”, era mais um piloto. 

Z- Fez um sucesso gigante. 

LE- Muito, muito. Hoje está em DVD toda a série. Eu fiz umas cópias pra alguns amigos que moram no interior e muitos falam: “Nossa, eu não perdia um”. Isso o pessoal da minha idade mais ou menos, 60, 70 anos. Pena que depois invés dele insistir nisso, ele quis fazer o Águias de Fogo que é uma merda, muito ruim. 

Z- O senhor não gosta do Águias de Fogo? 

LE- Não. 

Z- O Vigilante foi feito sem estrutura? Vocês faziam quase tudo, certo? 

LE- A gente tinha um galpão na rua dos Lavapés, no Cambuci, e ali a gente fazia comida em latas de filme. Juntava dinheiro eu, o Osvaldo Leonel, o Ary mesmo, o Palácios, Carcaça. Todo mundo dava um dinheiro e a gente fazia macarronada. Fazia macarronada porque era mais barato, pegava molho pronto e era uma estrutura em que todo mundo fazia tudo. Eu montava, acompanhava a dublagem, fazia sonoplastia quando o sonoplasta não podia. Quando o José Moura não podia fazer contra-regra eu fazia. O Ary dirigia e fazia a produção, o Carlinhos fazia a produção, o Damiani que era motorista fazia tudo que precisava. Era uma equipe pequena, mas útil. 

Z- O pessoal se dedicava bastante? 

LE- Se dedicava muito. E tinha que se dedicar porque a televisão estava em cima. Era um episódio por semana e ás vezes demorava 10, 12 dias se você pegasse uma temporada de chuva. Ás vezes tinha que parar um filme e começar outro dentro daquele clima. Era pauleira. 

Z- Como era a relação do Ary com o Palácios? Era de bastante confiança? 

LE- Sim, porque eles sempre foram vizinhos. Os dois vinham da Maristela. Eu não participava desse lado muito. Eu conhecia os dois, me dava com os dois. Mas era de pura confiança. O Palácios fazia o roteiro e falava pro Ary: “Boa viagem”.  

Z- O senhor acha que o Ary, como profissional de cinema e TV no Brasil, deveria ser mais reconhecido? 

LE- Principalmente por esse trabalho. Deveria ser muito reconhecido. Ele foi um pioneiro e abriu um campo muito importante. 

Z- A TV brasileira não era nada, certo? 

LE- Não, não. Na época tinha um seriadinho chamado Chips que era de moto. Mas o Vigilante fez um puta sucesso. Teve uma grande repercussão. 

Z- É verdade que o senhor dormia ás vezes nos estúdios do Cambuci? 

LE- Dormia eu e o (eletricista) Osvaldo Leonel, conhecido pelo apelido de Mazza. O Osvaldo Leonel praticamente não tinha casa, ele dormia no estúdio lá. Eu saia de casa no Jaçanã na segunda-feira e voltava no domingo. Era direto né? Eu tinha duas e três assistentes que iam pra casa de tarde e voltavam no dia seguinte. Era pauleira. 

Z- O Ary acompanhava a montagem do seriado? 

LE- Não. Uma que não dava tempo porque ele tava filmando e o material vinha pra mim no dia seguinte. Nisso, eu já ia montando. Somente antes de mixar tudo eu passava o seriado pra ele, pro Palácios e pro Petraglia por uma questão formal de hierarquia. Mas muitas vezes era aquilo mesmo. Não dava tempo pra você falar: “Vamos remontar. Vamos refilmar”. Nem pensar. 

Z- E o cachorro? 

LE- Era muito bom o cachorro, o Lobo. Ele era muito treinado. O Ary também cuidava muito dele, levava ele pra casa. O dono dele se chamava Luiz… 

Z- Parece que ele tinha uns problemas com álcool. 

LE- Tinha (rindo). Ele era meio alcoólatra e o Ary era quem cuidava dele. Mas era um bicho muito inteligente. Basta você ver os episódios. É óbvio que tem montagem nisso. Mas muita coisa é o cachorro mesmo que faz. Depois, o Lobo ficou doente e eles botaram um dublê lá, mas o dublê não deu certo. 

Z- O senhor não trabalhou muito em longas-metragens com o Ary. Por quê isso? 

LE- Igual eu te falei: eu não frequentava a Boca do Lixo. Eles faziam os filmes aqui. Eu fiz O Jeca e o Bode com o Ary. 

Z- Com o Chico Fumaça… 

LE- Chico Fumaça. Fiz dois ou três longas do Vigilante, mas era só juntar cinco ou seis capítulos. Na época, eu trabalhava muito na Odil no Sumaré. Os longas que eu pegava, eu montava tudo lá. Eu não frequentava a Boca. 

Z- O pessoal de publicidade da época tinha muito preconceito contra a Boca? 

LE- Olha, inclusive eu. Eu tinha. Achava que vir pra cá, você estava se rebaixando um pouco porque era um cinema meio sujo, meio porco. Era só filme de sacanagem…um quarto, uma cama. 

Z- Só filme erótico. 

LE- Sacanagem mesmo. Um quarto, uma cama e filmava, punha duas, três mulheres. Alguns se salvavam, mas eu tinha preconceito realmente.

 Z- O senhor ainda acha isso? Pro senhor, a pornochanchada foi algo válido? 

LE- Hoje eu acho válido. Como os Estados Unidos teve a época do western, a gente teve aqui a época dos pornô, a época das chanchadas, dos cangaceiros. Acho que tudo é válido. Nessa época, teve muitos profissionais bons que trabalharam nesses filmes.

 Z- Como era pro senhor ver profissionais como o Carcaça ter que fazer este tipo de trabalho? Como era isso? 

LE- Na época, a gente podia achar isso um pouco frustrante. Igual eu te falei: eu realmente não frequentava aqui por causa disso. Eu pensava: “Não vou lá montar filme da Boca”. Eu já tinha montado O Pixote com o Babenco e tinha montado alguns filmes do Khouri. 

Z- Sobre o Ary, ele sempre foi um cara consagrado pelo trabalho no Vigilante. O senhor acredita que ele teve algum receio de fazer pornochanchada? Você acredita que ele fez por que estava precisando? 

LE- Eu acho que sim. Eu não sei o motivo que ele não era bem visto na Boca. Ele tinha um ar meio pedante. Pra mim, era uma simpatia e sempre nos demos muito bem. Mas ele tinha um ar de superioridade por ter feito O Vigilante. Talvez ele tenha evitado fazer pornô, mas chega uma época que o dinheiro fala mais alto. 

Z- Como o senhor iniciou essa parceria com o Khouri? 

LE- O Khouri acho que foi no Eu… 

Z- Mas antes o senhor trabalhou no Eros- O Deus do Amor. 

LE- Ah…foi o Eros o primeiro né? 

Z- Sim. Como o senhor conheceu o Khouri? 

LE- Acho que foi através do Aníbal. Eu já tinha feito alguma coisa pro Aníbal. Mas foi uma satisfação imensa trabalhar com o Khouri, uma pessoa que entende tudo, educado. Ele conhecia timming, direção, sonorização, sonoplastia, tudo de cinema. E sabia filmar muito bem. Ele me dava um material na mão, muito material… em excesso até. Mas era um material em que você podia se esbaldar e criar á vontade. Se você pensasse numa sequencia, você teria a cena pra responder por aquilo. 

Z- O Khouri tinha um jeito calmo, sossegado. O senhor chegou a acompanhar as filmagens dele? 

LE- Só na moviola mesmo. 

Z- O senhor não chegou a acompanhar como era a direção de atrizes dele? 

LE- Não, porque eu não acompanhava as filmagens. Sei que ele se apaixonava pelas atrizes (rindo), pelos closes. Tinha aquela… a Monique Lafond. 

Z- Kate Lyra. 

LE- Kate Lyra. Ele se apaixonava, então era a câmera no close e roda filme. 

Z- Ele conversava com o senhor sobre o enredo do filme? Ele chegava e falava: “Olha, o personagem Marcelo sou eu”. 

LE- Não, você deduzia. Mas ele nunca falou nisso. 

Z- O senhor chegou a ter uma aproximação pessoal do Dionísio, do Mojica. Com o Khouri isso não aconteceu? 

LE- Não, era mais profissional. Mas era uma relação muito amigável. Ele adorava levar um queijinho na montagem né? Era assim. Mas eu gostava dele porque a gente assistia junto dez rolos de material. Depois, ele ia embora e voltava depois de uma semana. Raramente ele pedia uma refração, ele costumava pedir muito alguns fotogramas a mais e algum close. “Aí, aí põe mais um negocinho assim que vai ficar bonito”. Ele pedia dez, você punha um e ele não via. 

Z- Foi o diretor que o senhor mais gostou de trabalhar? 

LE- Foi. Eu gostei muito do Babenco também, que era muito profissional, muito objetivo. Ele também não perturbava na edição, também tinha material. Você não precisava se preocupar em fazer lista pra filmagem porque você tinha material. Foi um dos bons diretores que eu trabalhei. 

Z- Como o senhor conheceu o Babenco? Na época, ele não tinha esse nome que ele tem hoje. 

LE- Não tinha. Ele tinha feito um filme meio musical com tango… 

Z- Com o Paulo José. 

LE- Esse foi o segundo filme. Eu conheci através do Enzo Barone, que eu montava comercial pra ele na Estados Unidos. Foi ele quem me apresentou pro Babenco, a gente acertou e eu conheci ele lá. 

Z- O senhor achou estranho um argentino fazendo cinema no Brasil? 

LE- É… eu tinha um pouco, não gostava muito disso. Mas pagava bem (risos). Não tanto pelo dinheiro, mas pela importância do filme em si. O clima do filme eu gostava muito. 

Z- Os atores mesmo são muito bons. A Marília Pêra está muito bem. 

LE- Sim. É um filme profissional, Marília Pêra é um show, o menininho também. Os meninos que fazem o Dito e a Lilica também são muito bem-dirigidos. E o Babenco tinha uma pessoa que fazia o laboratório com o pessoal. 

Z- É um trabalho que o senhor gosta, esse com o Babenco? 

LE- Gosto muito. 

Z- O senhor tem ideia por que montou somente um filme dele? 

LE- Depois cada um pega um rumo. De repente eu vou pra outro lugar. Na época, ele fez O Beijo da Mulher Aranha e eu cheguei a falar com o Ramalho. Eu estava fazendo algum filme do Khouri, mas depois ele continuou com o Mauro. Acho que foi uma boa escolha. 

Z- Por que As Feras demorou tanto tempo para ficar pronto? 

LE- O Aníbal como produtor nunca interferiu na montagem. As Feras eu montei na Espiral Filmes, onde eu trabalhava com comerciais. Aí a montagem estava pronta e um dia o Aníbal foi lá assistir. Ele meio com um espírito boquense, da Boca, queria que eu aumentasse uma cena de uma sequencia de sexo do Nuno com a Cláudia Liz. Eu botei dois, três segundos, mas era uma coisa que nem cheirava nem fedia. O Khouri me ligou no dia seguinte: “E aí o Aníbal assistiu o filme?”. “Ele gostou”, nisso o Khouri me perguntou se o Aníbal tinha mexido no filme. Eu ao invés de agüentar… mas como eu respeitava e gostava muito do Khouri falei: “A única coisa que ele pediu foi na sequencia de sexo aumentar um segundinho”. Ele me respondeu: “Não, ele não pode fazer isso. Ele não tem esse direito”. Bom, enfim virou o maior rebu, juiz e a coisa parou. Por causa disso. 

Z- Três segundos? 

LE- Três segundos. Uma coisa que podia passar perfeitamente e eu nem precisava ter falado. Mas com respeito… porque essas cenas de sexo o Khouri nem assistia. 

Z- Ele não gostava? 

LE- Não. Ele falava pra mim: “Isso você monta do jeito que você quer. Como você achar melhor. Eu sei que você vai evitar certas coisas”. Ele não tinha nem visto a sequencia que eu tinha montado. Eu só falei por uma questão de respeito e deu esse perereco todo. 

Z- A relação do Khouri e do Aníbal sempre foi próxima? 

LE- Acho que não. Deveria haver algum conflito porque o Aníbal não participava do filme, ele não ia lá assistir. Não sei se fazia parte do contrato só assistir no final. Acho que já devia ter alguma coisa pra acontecer esse tumulto todo por nada. Á partir daí cada um foi pra um lado. 

Z- O senhor ficou muito chateado quando soube da morte do Khouri? 

LE- Muito, muito. Porque depois ele fez outro longa… 

Z- Paixão Perdida. 

LE- Já na montagem desse último filme, ele estava um pouco cansado. Tinha hora que ele dormia do lado quando ele ia lá. 

Z- Estava diferente de antes. 

LE- Estava meio… me disseram que na montagem desse outro filme ele já não estava tão rigoroso quanto antes.

                                                                                      Parte 2 / Parte 4

 

Entrevista: Luiz Elias – Parte 2

Dossiê Luiz Elias
Parte 2- Os trabalhos com Mojica, Candeias e Flávio Tambellini 

 

Por Matheus Trunk

 

Z- O senhor sempre quis ser montador? 

LE- Nessa época, eu ainda não tinha ideia. Eu só tinha feito esse trabalho com o Roberto Santos. Depois quando terminou a Maristela, eu comecei a fazer sincronização de dublagem. Nisso, surgiu o filme do Mojica e eu me encantei pela montagem. Você ver o material bruto e a confecção, o ritmo, o timming das cenas. Eu também participei da sonorização, dos ruídos, de contra-regra, dublagem.

Z- Conhecia o processo todo do cinema? 

LE- Sim. Eu cheguei inclusive a dirigir no Vigilante Rodoviário. Ás vezes o Ary estava ocupado e não podia entrar numa sequencia de congestionamento, qualquer coisa rodoviária. Eu cheguei a fazer alguma coisa. Mas eu sempre gostei mais da minha área. Eu não gostava de misturar temperos. 

Z- O senhor conheceu o Mojica antes dele ser famoso e antes dele criar o personagem Zé do Caixão. Ele era muito diferente de hoje? 

LE- Bem diferente. Inclusive outro dia eu dei uma entrevista e as pessoas não gostaram muito do que eu falei. Mas é verdade: ele não entendia nada de cinema. O Augusto Pereira (Cervantes) que era o sócio dele tinha um escritório aqui no começo da (rua) 25 de Março. Isso aconteceu quando eu terminei a sincronização da dublagem e eu ia começar a montar, editar. Todo mundo na época gostava de fusão, era uma coisa chique nos filmes. Eles queriam fusões: “Faça muitas fusões na fita”. Eles me chamaram numa reunião no escritório pra acertar preço, detalhes e tudo. A grande preocupação deles era se o filme com muitas fusões ia ficar mais curto. Com isso, você vê que eles não entendiam porra nenhuma. “Mas quando você coloca fusão não encolhe?”, “Não, não encolhe. Tem um corte no meio e é um segundo que ultrapassa pra cá e outro que começa daqui pra cá”. Inclusive em algumas filmagens eu ia dar alguma assessoria pra ele. Tem um filme em que ele corta o dedo de um cara no bar e eu falei pra ele: “Filma em play reverse que depois na truca a gente encaixa tudo”. Eu tentava dar alguma dica pra ele. 

Z- A Sina foi um filme difícil pra montar pro senhor? 

LE- Foi difícil porque eu não tinha muita experiência e o diretor não tinha muito material. Tinha uma briga numa cachoeira que eu não tinha corte, não tinha como fazer. Então o que eu fiz: tinham dois caras brigando aqui, o bandido e o mocinho. Na trucagem eu dividi e fiz duas cenas pra ter um pouco de material pra brincar na montagem. 

Z- O senhor conheceu o Augusto Cervantes nessa época?   

LE- O Cervantes sim. Ele já era muito próximo ao Mojica, uma pessoa muito legal. Sempre andava elegante, bem-vestido. 

Z- De bigodinho bem aparado. 

LE- Sempre de bigodinho (risos). 

Z- O Mojica era um diretor inexperiente. Mas o senhor tinha ideia que ele seria um cineasta reconhecido internacionalmente? 

LE- Não. Eu não tinha até porque o tipo de filme era inovador na época. Não sei se nessa época já tinha pornochanchada e de repente ele vem com sangue, baratas, aranhas. Eu não tinha noção que ele ia chegar onde ele chegou. Ele tem méritos por isso. 

Z- Como se estabeleceu essa relação de parceria entre vocês? 

LE- Teve essa primeira montagem em que ele me deu essa chance. Nisso, ele acabou gostando de trabalhar comigo, eu gostei muito dele como pessoa. O Mojica me convidou pra esses outros filmes e eu acabei topando. Nessa época, eu trabalhava muito com comercial, documentário. 

Z- Filme institucional? 

LE- Também. Eu fazia muita coisa mesmo. Fiz muitas coisas com o Candeias inclusive. 

Z- Qual era a importância do Giorgio Attili pro cinema do Mojica? 

LE- O Giorgio Attili talvez tenha sido mais professor do Mojica que eu. Ele tinha mais experiência, então, ele foi dez pro Mojica porque ele conhecia bastante de cinema. Não sei onde ele tinha acumulado essa experiência, mas sei que ele tinha um grande conhecimento da área. Isso foi importante pro Mojica em enquadração, ângulos, não quebrar eixos. Era um cinema muito ortodoxo em que se respeitava muito eixo e contra-eixo. O Attili ajudava muito o Mojica nisso também. 

Z- O senhor teve bastante contato com o Attili? 

LE- Pouco contato. Ele fazia muitos documentários pro George Jonas e eu que praticamente montava tudo. Então, eu tinha um conhecimento profissional dele. 

Z- Nunca foi muito próximo dele pessoalmente? 

LE- Não. 

Z- Ele era um italianão? Chamava todo mundo de stroncio… 

LE- Era: “Stroncio, stroncio”. Ele, o Civelli. 

Z- Nesses trabalhos com o Mojica, o Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver tem uma parte que é colorido. Foi difícil montar esse filme? 

LE- Era difícil porque a produção não tinha muito dinheiro. O Augusto (Cervantes) não tinha como investir nas produções. Não sei de onde ele tirava.  Então, não é que filmava cinco, seis, dez vezes como hoje. Eram duas no máximo e você tinha que se virar com esse material. Muitas vezes você precisava de um close pra fazer um corte, alguma coisa e você não tinha material. Eu reclamava, fazia lista pra ele: “Preciso de um close em tal lugar. Um detalhe em tal lugar”. Mas ele não reclamava, ele fazia. 

Z- O senhor chegou a acompanhar algumas filmagens do Mojica? 

LE- Cheguei. Uma vez eles estavam fazendo um cenário grande na Mooca, que eram na verdade dois símbolos: uma vagina e um pênis. Ele queria saber se eu filmava de dentro ou de fora e a gente conversava sobre alguns detalhes de filmagens. 

Z- Com o Mojica o senhor trabalhava simultaneamente: montava enquanto o filme estava sendo feito. 

LE- Sim. Isso é importante porque sempre quando faltava algo eu pedia pra ele. Nós conversávamos muito: “Eu preciso que você filme um close aqui, um detalhe do ator olhando aqui”. Isso é muito importante numa montagem simultânea. 

Z- Mas não é em todo trabalho do senhor que isso aconteceu? 

LE- Não. Fiz montagem simultânea em alguns trabalhos com o Khouri. Apesar que o Khouri você não precisava pedir nada que vinha material em excesso. Eu nunca vi alguém saber filmar igual a ele. Ele filmava… close de mulher então ele botava na câmera e falava: “Tá bonito. Filmava mais…olha pra cima, olha pra baixo”. Então com ele eu não tinha muito problema de falta de material. 

Z- O senhor também montou Ritual dos Sádicos do Mojica? 

LE- Acho que sim. É tudo dentro da mesma linha, aí acho que é o segundo ou terceiro filme. Ele tinha um pouco mais de domínio, mas sempre dentro disso. Nesses filmes posteriores muitas vezes faltava material. Mas isso não acontecia por falta de segurança do Mojica como diretor. Isso vinha muito de problemas de ordem financeira que as produções dele tinham.

 Z- Tem muito diretor que o filme é como filho. O realizador não gosta de sentar na sala de montagem. O Mojica era diferente nisso? 

LE- Tranquilo, tranquilo. Muito pelo contrário: ele sempre aceitava as sugestões. Pra ele era uma escola também porque ele participava vendo os erros e acertos. A montagem é fria… de repente o diretor se apaixona por alguma cena, uma atriz e o montador tem que ser frio. Ele não pode ficar falando coisas assim: “Essa câmera demorou pra instalar. Demorou pra fazer um travelling ou porque está tudo coordenado”. De repente não presta e o montador joga fora. O Mojica filmava em excesso muita coisa assim banal às vezes. Uma barata entrando da xoxota da atriz, aranha. Umas coisas que podia se evitar um pouco. Não precisa chegar tanto né? 

Z- Depois o Mojica trabalhou com outros montadores como o Roberto Leme e a Nilce. 

LE- A Nilce foi assistente minha e aprendeu o ofício comigo. É que depois eu me afastei, entrei direto em propaganda e trabalhei mais nisso. Era difícil sair de propaganda porque se ganhava muito bem. Então, não dava pra você sair. Muitas vezes eu fiz intercâmbio como no filme do Ugo Giorgetti. O Quebrando a Cara foi feito dentro da Espiral Filmes com duas moviolas. Eu montava um comercial em uma e o filme dele em outra. Isso aconteceu com alguns filmes do Khouri, como o Eu

Z- É muito difícil fazer isso? Montar dois filmes ao mesmo tempo. 

LE- Não. Você isola né? Comercial é um ritmo e longa é outro. Comercial tem um poder de síntese grande. 

Z- Só pra fechar o Mojica. É verdade que ele chegou no casamento do senhor e roubou a cena? 

LE- Ele chegou a meia-noite (risos). Eu inclusive ofereci uma foto disso pra uma pessoa que escreveu um livro. Chegou meia-noite e me falaram: “Tem um senhor barbudo aqui” e era o Zé do Caixão. Ele entrou lá, tiramos a fotografia e tudo. Ele me levou acho que um relógio meio exótico (risos). 

Z- Um presente do universo dele. 

LE- Isso. Do universo dele (risos). 

Z- O Candeias o senhor conheceu pelo Mojica ou pelo Augusto? 

LE- O Candeias eu conheci porque ele trabalhava muito com o George Jonas. Ele fazia documentários… conheci ele no meio. Depois fizemos Meu Nome É Tonho, A Herança

Z- Zézero. 

LE- Zézero e mais um filme do David Cardoso. 

Z- Como era trabalhar com o Candeias? 

LE- O Candeias não interferia muito na montagem. Ele era um realizador que sabia o que queria. Ele tinha uma linguagem muito bonita trabalhando muito em close. Quando um personagem entrava em cena, o outro saindo. 

Z- Ele também era fotógrafo. 

LE- Também. Ele tinha uma linguagem interiorana. Era outro diretor muito seguro, tinha uma segurança muito grande. Eu gostava muito de trabalhar com ele. Mas também coitado, trabalhava nessa base de juntar dez metros de filme, filmar três cenas. Depois revelar, copiar, montar. Sempre na pobreza. 

Z- O senhor montou vários filmes do Candeias. Meu Nome É Tonho foi um faroeste? 

LE- É um filme com uma linguagem meio interiorana… aqueles caipiras que se encontram. Um não fala e o outro também não fala. Aí um vendia um cavalo pro outro e dizia que o defeito estava na cara. Na verdade, o cavalo estava cego. Qualquer coisa assim. 

Z- O senhor acredita que o Candeias tinha um conhecimento de cinema clássico maior que o Mojica? 

LE- Tinha, tinha. Inclusive o Candeias tinha um negócio gozado: a sonorização dos filmes dele. Ele pegava, por exemplo, o Paulinho Nogueira, colocava numa projeção, soltava o rolo e ia dedilhando a música de cabo a rabo. Dessa maneira, ele acaba sonorizando tudo. Então quando você queria um trecho que era necessário a música você simplesmente abria um canal. No Meu Nome É Tonho se eu não me engano nós fizemos duas versões. Uma com diálogos que são mínimos e outra com um passarinho falando: “Piu, piu, piu”. Um passarinho dialogando… nem sei se ele acabou utilizando isso no cinema. 

Z- O senhor trabalhou num filme do Tambellini: O Beijo. Como era ele? 

LE- Era um debilóide, um doido. A gente ia no restaurante com ele e ficávamos com vergonha porque ele tinha sofrido um acidente. Ele tinha um olho meio puxado e ficava a todo momento repetindo umas frases do filme. Tinha gente almoçando e ele falando alto: “Não foi beijo de compaixão. Foi beijo de amante, amante, amante”. O pessoal começava a olhar. Era algo muito estranho (risos). 

Z- Ele falava isso alto? 

LE- Alto. Ele também era muito inseguro. Eu já era o terceiro ou o quarto montador deste filme. Teve um inglês, o Sylvio, um cara do Rio e eu acho que já era o quarto montador do Beijo. Ele era um cara instável né? Ele imaginava coisas. Por exemplo: ele gravou muitos ruídos, então ele denominava os ruídos: datilografia, sons horripilantes, terríveis. E era uma maquininha simples. No filme tem um acidente de carro, em que vai um outro beijar ele. Mas era uma figura fraca, inclusive o furgão que vinha. Eu comentei com ele: “O furgão tem vir a 100 por hora”. Mas era uma furgãozinho pequeno e a gente colocava um ruído assustador… ficava diferente da imagem. Ou então eu tenho um peixe, uma boca do peixe que simboliza a morte. Só que o peixe era um lambarizinho e a gente imaginava uma boca de piranha pra você dar um impacto. Era assim: ele tinha ideias, mas não conseguia concretizar isso no celulóide. 

Z- O senhor chegou a ver depois o filme? 

LE- Não. Nem quis ver. 

Z- Ele era um crítico de cinema bastante respeitado na época. 

LE- Era crítico. Eu não sei se ele ficou assim, eu não conheci ele antes. Não sei se ele ficou assim depois do acidente que ele teve. Ele teve um acidente e ficou com um olho puxado. Ficou feio… 

Z- Era uma produção grande pra ter quatro montadores. 

LE- Tinha, mas eu não sei de quem. Eu não me lembro do produtor. Mas tinha dinheiro sim.

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