Os Saltimbancos Trapalhões, de J.B. Tanko
Por Maurílio Martins
Dentre os filmes que sempre revejo, por vários motivos, há uma categoria especial, aquela constituída por filmes com forte carga afetiva e que nem sempre passam pelo crivo do senso crítico adquirido posteriormente, mas sempre ocupa lugar especial nas listas dos meus longas-metragens prediletos. Os filmes dos Trapalhões, especialmente os produzidos até 1990, encabeçam o topo dessas escolhas, e os motivos são vários, indo da relação que eu, criança, estabelecia com o quarteto, numa adoração que extirpava de antemão qualquer falha que pudesse decorrer dos filmes, até o fato de, e isso conta muito, ter entrado pela primeira vez numa sala de cinema justamente para ver um filme do grupo, que até então eu só acompanhava na televisão aos domingos à noitinha e em algumas sessões da tarde na Globo.
Dessa época me lembro, com sorriso no rosto e com tintas lindas de nostalgia, dos clássicos Os Trapalhões e o Mágico de Oróz, Os Trapalhões no Auto da Compadecida, Os Trapalhões na Serra Pelada, dentre outros. E estão todos ali, devidamente guardados nesse baú da memória, e cada um com sua história particular, com minha relação não só com o filme em si, mas com tudo que o cercava e me constituía, fazendo com que, muitas vezes, eu consiga lembrar-me de como vi, com quem vi e qual foi o impacto na minha vida naquele momento.
Dentre a vasta obra do quarteto (que já foi trio), há um filme em especial. O ano de produção é 1981, mas nasceu para mim poucos mais de seis anos depois, numa tarde de um meio de semana, assistindo na casa de um amigo da mesma idade. Os Saltimbancos Trapalhões, dirigido por J.B. Tanko, saltava na tela da televisão do Seu Totonho, uma das poucas coloridas da cercania, comprada para a copa do mundo realizada no ano anterior. O fascínio foi imediato e é lembrança recorrente o menino eufórico saindo pelas ruas cantando as canções do filme, principalmente Hollywood, no agudo doce e penetrante de Lucinha Lins, acompanhadas por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.
O fato de quase não haver videocassetes (e nenhum outro meio de assistir um filme a não ser o cinema ou a tevê aberta) provocava um efeito maravilhoso que era o de, tão logo terminava um grande filme infantil na televisão, ter a certeza de encontrar, minutos depois, os amigos da mesma idade na rua, todos deslumbrados com o filme da vez, afinal quase tudo era novidade naquele tempo. E se havia canção que marcasse, fato era que boa parte já daria as caras por ali, assoviando ou cantando o trecho que havia decorado. Era como um sinal coletivo de aprovação ao filme.
O que não faltava em Os Saltimbancos Trapalhões eram músicas que marcasse, mas se a minha preferência naquele momento era pela canção dos moços se aventurando na meca do cinema (numa das cenas mais geniais do filme, quando a patota passeia pelos famosos estúdios e brincam com gêneros cinematográficos), a preferida pela turma, e cantada seguida de uma coreografia absurda e muito engraçada, era Piruetas, onde os Trapalhões, nos vocais, acompanhavam nada mais nada menos que Chico Buarque, o responsável pela trilha do filme – na modesta opinião desse escriba, das mais belas e instigantes feita para um filme no Brasil.
Bem, certo é que muitos dirão que a mesma foi quase toda feita para uma peça, o que é certo, mas não tirando, com isso, a força dela no longa-metragem (bem longe disso por sinal) e a participação de Renato Aragão, Dedé Santana, Mauro Gonçalves e Antônio Carlos Bernardes nessas músicas deram o tom e o charme exato que a trilha precisava. E reside aí a genialidade de tudo. A união das mais populares figuras da televisão e do cinema brasileiro do período com um dos maiores compositores de todos os tempos da música tupiniquim. E não há como não atestar e verificar esse transbordar de talento e de carisma ao se ouvir Meu Caro Barão. Conforme havia feito em Construção (e algumas outras músicas), o irmão da nossa atual ministra da Cultura brinca, literalmente, com a gramática e produz uma das mais fantásticas e inteligentes canções feita para o público infantil no Brasil. Não! Vou além! Retiro do escopo infantil e digo que uma das mais brilhantes da MPB. Para público de qualquer idade.
E o grande trunfo do filme é esse. Os Saltimbancos Trapalhões é um filme atemporal e para qualquer espectador, em qualquer época. Considerado pela crítica (e, creio eu, por boa parte daqueles que cresceram assistindo os quatro humoristas no cinema), como o melhor filme protagonizado pelos Os Trapalhões, o filme conta com um elenco afinado, uma direção segura e elegante do diretor iuguslavo radicado no Brasil, J.B. Tanko, e, principalmente, por ser uma espécie de musical, com as canções. Além das citadas, podia discorrer por horas sobre a emocionante Alô Liberdade, cantada por Bebel Gilberto, e que vinha a calhar com o momento que o país vivia, ainda em plena ditadura militar, mas já começando a almejar e vislumbrar uma liberdade que já acenava na esquina, mas de forma tímida. “Olá Liberdade, desculpe eu vir assim sem avisar(…) A minha companhia vai cantar, sutil melodia pra te acordar”. E esse tom percorre todas as nove canções do disco. E não há como não emocionar com a faixa final, “Todos Juntos, que conclama uma união de todos os bichos, de todos os oprimidos, para que se rebelem e mudem o estado das coisas. Era Chico, eram os Trapalhões tentando mudar as ordens das coisas e soprando vida inteligente nas canções e nos filmes infantis e, muito mais que isso, marcando uma geração inteira, que cresceu fascinada com o filme e sua espetacular trilha sonora.
…
Na véspera de encerrar esse texto e enviá-lo para o meu amigo e editor da Zingu!, Adilson Marcelino, me deparo com uma coincidência e uma sensação que não havia como ficar de fora dessas linhas que seguem, tal qual foi a emoção que me acometeu na hora. Quase vinte e cinco anos depois do dia que ouvi pela primeira vez a voz de Lucinha Lins cantando Hollywood e dizendo sobre ela ser “ali bem perto” e ser um “sonho de cenário”, eu me encontrava no ônibus voltando do Rio de Janeiro, onde havia ido tirar o visto para acompanhar a exibição de um curta-metragem dirigido por mim (em parceria com o Gabriel Martins), e cuja exibição seria justamente em Los Angeles, mais precisamente em Hollywood. E naquele momento de ócio dentro daquele veículo, coloquei o fone no celular e pus o mesmo para tocar mp3 em modo randômico, o que sempre me estimula mais, já que nunca sei qual a música que virá a seguir. E quando a primeiríssima da lista começou eu me dei conta da força, mais uma vez, que a trilha de Chico Buarque exercia em mim. E não tive dúvida, ouvindo Hollywood naquela estrada e na véspera de ir com um filme para lá, que era essa a trilha sonora de um filme que mais marcou a minha vida. E que ainda marca.
Maurilio Martins é cineasta, sócio da Filmes de Plástico e editor da revista eletrônica Lateral (www.revistalateral.com.br)