Filme-Farol

Por Vlademir Lazo

O Segredo da Múmia
Direção: Ivan Cardoso
Brasil, 1982

 
Como apontar um único filme como farol na vida de qualquer amante do cinema brasileiro? Não necessariamente um filme preferido (que é algo que pode mudar de seis em seis meses, ou às vezes de um dia pro outro), mas algum que tenha servido (e sempre será lembrado) como ponto de partida para um olhar, um fascínio que veio despertar a curiosidade em conhecer mais do cinema nacional. É difícil pensar numa só sessão tendo em vista filmes muito caros, pelos quais tenho toda a admiração do mundo e que foram tão deflagradores (falo pessoalmente, claro, porque essa é a razão da pauta). A maior parte dos filmes nacionais que admiro assisti na adolescência em diante, depois de ter sido ganho ao cinema brasileiro vendo os filmes de José Mojica Marins (À Meia-Noite Levarei Sua Alma foi o primeiro), num ciclo que a TV Bandeirantes exibiu nas madrugadas de um final de ano na década de 90, no período em que à tarde o cineasta apresentava o famigerado Cine Trash. Na mesma época, o canal exibiu chanchadas com Oscarito e Grande Otelo, outra descoberta pessoal minha dessa fase (ainda não existia o Canal Brasil). Mas não, por mais que tenha sido uma surpresa e um susto me deparar com a qualidade desses filmes, eu já era bem grandinho nos meus quatorze anos, e se fui assistir com interesse e curiosidade esses filmes sem saber muito sobre eles a não ser que eram brasileiros (eram tempos pré-internet), então é porque antes houveram outros momentos deflagradores.  

Tampouco adiantaria remontar à primeira vez que assisti a um filme brasileiro (certamente algum dos Trapalhões no cinema). Era época de muito filme na TV, muita Sessão da Tarde (quando a programação era realmente decente e respeitosa com seu público) e eventuais filmes mais adultos (bons e ruins) no horário nobre da noite, geralmente após a novela da Globo. Muito cinema americano, claro, mas também alguns brasileiros, numa sessão da extinta TV Manchete que passava filmes nacionais ao longo da semana, na faixa das dez ou onze horas da noite. Geralmente filmes com alguma putaria, mas nada escandalosos (não mais do que pode ser visto em outros programas de qualquer grade de programação de TV hoje em dia ou mesmo na época), quase sempre comédias eróticas inofensivas que eu nos meus oito anos assistia com um irmão mais velho. Filmes que competiam com o americano que estivesse passando na Globo naquele mesmo horário. O Segredo da Múmia não foi o primeiro que assisti naquela sessão, mas foi dos poucos que jamais me saiu da memória dentre os nacionais que conheci na época, e sobretudo, o que mais me impressionou. Tantos anos depois, o mais importante é reconhecer agora que o filme traz consigo muito do que me interessaria depois em matéria de cinema. 

Sim, porque nunca deixa de ser uma surpresa maravilhosa essa de, ao rever um filme da infância (no caso de O Segredo da Múmia, só o assisti pela segunda vez agora para escrever esse artigo), descobrir uma obra de qualidades para muito além da nostalgia e da pura diversão mera e simples. Do Ivan Cardoso poderiam ser citados o curta Nosferatu no Brasil (talvez seu filme mais underground) ou o divertidíssimo O Escorpião Escarlate. O seu episódio em Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez e As Sete Vampiras (ambos vistos na mesma época na Manchete), entretanto, nunca me empolgaram (mas só os assisti naquela ocasião – tá na hora de rever). Mas O Segredo da Múmia é todo especial. Nele Ivan Cardoso expressa e materializa na tela toda a sua paixão pelos filmes B americanos, os ciclos de horror da Hammer e da Universal (o de Cardoso, por sinal, é superior ao ótimo O Jovem Frankenstein, talvez o melhor filme de Mel Brooks, e paródia desses clássicos da Universal), filmes de gênero, de aventura, fantasia, chanchadas, pornochanchadas e cinema marginal brasileiro. Ver O Segredo da Múmia é encontrar e entrar em contato com cada uma dessas vertentes de cinema apontadas acima. Não como paródia (embora uma das propostas do filme seja o de ser bastante engraçado, cujo objetivo é atingido plenamente), mas como assimilação de todo esse cinema. Como processo de antropofagia e deglutição de toda uma influência estrangeira e nacional, O Segredo da Múmia não está muito distante do conceito de um Bandido da Luz Vermelha. Ou dos filmes de Quentin Tarantino, que também surgem da proposta de se criar uma obra nova a partir de todo um imaginário cinematográfico anterior. 

O Segredo da Múmia é filme de um descendente de Mojica e Sganzerla. Uma comédia de terror tanto quanto uma chanchada experimental (lembrando que a chanchada foi uma referência visivel também em alguns dos filmes mais radicais de Sganzerla e no Glauber Rocha de A Idade da Terra). Impressiona o quanto o filme de Cardoso é experimental (para se ter uma idéia, o filme mereceu um capítulo inteiro no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, a bíblia do cinema experimental brasileiro). Depois de um prólogo (com direito a participação especial do próprio Mojica Marins como um arqueólogo moribundo que distribui aos presentes ao seu redor partes de um mapa que indica a localização do túmulo da múmia de Runamb) que serve para nos apresentar ao professor Expeditu Vitus (Wilson Grey, de mais de uma centena de trabalhos no cinema, mas pela primeira vez em um papel principal; depois seria protagonista uma outra em A Dança dos Bonecos, 1986, de Helvécio Ratton), descobridor da múmia, o filme durante grande parte do tempo mal tem sequências lineares, desenvolvendo-se em uma liberdade formal cativante com pequenas vinhetas que Cardoso procura conectar (críticos reacionários e caretas devem ter interpretado erroneamente como uma incapacidade do diretor em contar uma história). “O negócio é experimentar”, diz a certa altura o professor Expeditus, verbalizando as intenções do cineasta. De professor brilhante e ridicularizado à cientista louco é um passo, e temos também o seu fiel ajudante Igor (Felipe Falcão), sádico e disforme, perseguindo a empregada brejeira, garotas com pouca ou nenhuma roupa sendo atacadas pela múmia ressuscitada pelas experiências do professor, e louras burras, bandidos, repórteres, etc. E imagens de cinejornais (como a do poeta Manuel Bandeira condecorando a então miss Marta Rocha) fundindo-se à narrativa de Ivan Cardoso. Tudo com uma grande fluência que serve como maior atrativo para o filme, que se move de uma cena (ou “ideogramas visuais”, como se referiu o crítico Juliano Tosi num texto sobre o filme para o catálogo da mostra Cinema Marginal Brasileiro) para a próxima com incrível facilidade. 

Algumas das melhores sequências de O Segredo da Múmia são as dos flashbacks com a vida e morte de Runamb (interpretado por Anselmo Vasconcelos) e suas odaliscas sensuais num antigo Egito filmado em algum lugar do Rio de Janeiro. São fragmentos de grande beleza pictórica e atmosfera, alguns puramente poéticos. Contribui também ao filme inteiro uma trilha sonora extremamente bem-cuidada feita pelo maestro Julio Medaglia, além de uma salada de canções e sons de espécies diversas que pairam como uma nuvem sonora sobre a película. Perto do final, uma trama de policial de terror desenha-se com maior vigor, com a múmia atacando mulheres e cometendo assassinatos (até encontrar uma repórter que identifica como uma antiga paixão sua no Egito), sendo perseguido pelo policial interpretado pelo lendário Jardel Filho. Uma trama clichê (para não dizer absurda) que Ivan Cardoso utiliza para fazer cinema de invenção, contando com a ajuda da imaginação fértil do roteirista Rubens F. Lucchetti (autor de algumas das obras-primas com Zé do Caixão). Vale citar também as participações rápidas de Hélio Oiticica, Joel Barcellos e Paulo César Pereio. Mas acima de tudo me fascina como o projeto de Cardoso neste filme parece se encaixar perfeitamente em espaços dispares, é ao mesmo tempo um filme experimental perfeito para festivais (ganhou uma penca de prêmios em Brasília e Gramado e até no exterior) e uma divertidíssima matinê. Em suma, a obra de um apaixonado pelo cinema e para com o cinema, procurando transmitir esse sentimento em seu filme para quem o assiste. O esforço foi amplamente bem-sucedido.