Inventário Grandes Musas da Boca

Valéria Vidal

Por Adilson Marcelino

A Margem é filme mítico e divisor de águas no cinema brasileiro. Não só revelou o talento extraordinário do cineasta Ozualdo Candeias, como sinalizou para um modelo de produção e de temática. E, claro, revelou Valéria Vidal como musa da Boca do Lixo.

Valéria Vidal nasceu em 11 de janeiro de 1935, em Natal, Rio Grande do Norte. E foi pelas mãos de Candeias que inscreveu seu nome na história do cinema nacional.

Em 1967, Candeias sacudiu o cinema brasileiro com A Margem. Desconcertante, poético e metafísico, o filme foi fracasso de bilheteria, mas sucesso absoluto de crítica e, até hoje, só faz crescer em cada reavaliação.

Ao focalizar sua história de excluídos às margens do rio Tietê, em São Paulo, o cineasta escalou Valéria Vidal, que não tinha experiência como atriz, para um dos personagens-chave do filme.

A Atriz marcou para sempre não só o filme, mas toda a cinematografia brasileira – como esquecer sua prostituta, seu abandono e seu sonho abortado do casamento de véu e grinalda?

Por sua interpretação, Valéria Vidal ganhou o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante pelo Instituto Nacional de Cinema de 1967, que também premiou o diretor e a música de Luiz Chaves.

Ainda pelo filme, a atriz recebeu também menção honrosa no Festival de Brasília.

Depois de A Margem, Valéria Vidal atuou no sucesso de bilheteria O Cangaceiro Sanguinário, de Osvaldo de Oliveira, em 1969.

Produzido pela Servicine, O Cangaceiro Sanguinário revelou também o talento de Osvaldo de Oliveira como cineasta, pois antes dirigira apenas um episódio do seriado Vigilante Rodoviário – como fotógrafo já era mestre.

Em O Cangaceiro Sanguinário, Valéria Vidal tem papel de destaque ao lado de Maurício do Valle, em filme que conta com ótimo elenco: Isabel Cristina, Carlos Miranda, Joffre Soares, Sérgio Hingst e John Herbert.

O filme seguinte da atriz é, mais uma vez, revelador de outro cineasta. Dessa vez, Silvio de Abreu, que estreia como cineasta com Gente que Transa, filme protagonizado por Adriano Reys e Carlos Eduardo Dolabella, dois dirigentes de jornais rivais que disputam uma concessão de TV.

Por fim, Valéria Vidal atua em filme de outro nome fundamental da Boca do Lixo: o cineasta Francisco Cavalcanti. E também com ele, marca presença em um de seus primeiros trabalhos, o filme Mulheres Violentadas, realizado em 1977.


Filmografia
A Margem, 1967, de Ozualdo Candeias
O Cangaceiro Sanguinário, 1969, de Oswaldo de Oliveira
Gente que Transa, 1974, de Sílvio de Abreu
Mulheres Violentadas, 1977, de Francisco Cavalcanti

Musas Eternas

Eva Nil

Por Adilson Marcelino

 Desde a época muda que o cinema nacional vem construindo mitos. E com certeza, Eva Nil é uma das maiores musas dessa fase do cinema brasileiro.

Belíssima, a atriz foi uma das estrelas do ciclo Cataguases, pequena cidade mineira e importante pólo de cinema na década de 1920, cujo astro maior é o genial cineasta Humberto Mauro.

Eva Nil nasceu em 25 de junho de 1909, no Cairo, Egito, mas veio com seus pais com apenas seis anos de idade para o Brasil, quando aqui sua família chegou em 1914.

A família veio morar e trabalhar em uma colônia italiana, país de origem de seu pai Pedro Comello, na aconchegante Cataguases, mas logo se radicou na cidade mineira.

Com o pai, Eva se interessa pelo universo da fotografia, trabalhando junto a ele no estúdio que montou.

Mas é a amizade, e, posteriormente, a sociedade entre seu pai e o jovem Humberto Mauro que selaria o destino de pai e filha no cinema, e que reservaria para ela o posto irrefutável de musa dos anos 20.

Eva Nil estreou nas telas em Valadião, o Cratera, curta realizado pelo pai e por Humberto Mauro, em 1925. No filme, ela é a protagonista Eva, a mocinha da fita que sofre nas mãos do vilão Cratera até ser salva pelo herói romântico.

Logo depois, Comello, Mauro e o comerciante Agenor Gomes de Barros fundam a Phebo Sul América Film, cujo primeiro filme é o longa longa-metragem Na Primavera da Vida (1926), dirigido por Humberto Mauro, e mais uma vez com Eva Nil como protagonista, desssa vez vivendo a personagem Margarida.

O desempenho da atriz chama a atenção do jornalista, cineasta e futuro fundador do estúdio Cinédia, no Rio de janeiro, Adhemar Gonzaga, que alça a atriz ao posto de estrela na Revista Cinearte.

Após desentendimentos com Humberto Mauro, Eva Nil abandona Thesouro Perdido, filme dirigido por ele e no qual seria a protagonista. Sua próxima atuação será no curta Senhorita Agora Mesmo (1927), dirigido pelo pai, que saíra da Phebo e fundara a Atlas Film. Mas uma vez ela é a heroína cercada por vilões e mocinho, mas agora com tintas de uma mulher mais moderna.

Seu filme seguinte é o clássico Barro Humano, dirigido no Rio de Janeiro por Adhemar Gonzaga, que a convida para dar vida à personagem Diva, irmã do protagonista vivido por Carlos Modesto.

Barro Humano foi o último filme de Eva Nil, que abandonou o cinema no auge da fama, dedicando-se à fotografia e assumindo, em Cataguases, o estúdio do pai depois que ele faleceu.

Eva Nil morreu na cidade em 1990, aos 81 anos, deixando sua marca de musa eterna do cinema brasileiro.

Filmografia

Valadião, o Cratera, 1925, curta de Humberto Mauro e Pedro Comello
Na Primavera da Vida, 1926, de Humberto Mauro
Senhorita Agora Mesmo, 1928, curta de Pedro Comello
Barro Humano, 1929, de Adhemar Gonzaga

Fontes:

– Enciclopédia do Cinema Brasileiro – orgs. Fernão Ramos e Lui Felipe Miranda
– Dicionário de Filmes Brasileiros – Longas-metragens – Antonio Leão da Silva Netto
– Site Mulheres do Cinema Brasileiro

 

Reflexos em Película

Por Filipe Chamy

O Rio de Janeiro continua lindo

É notícia em mil jornais e revistas o enorme sucesso que a animação Rio vem fazendo. Atualmente, anuncia-se, é o filme de maior bilheteria de 2011. Mas qual foi o custo disso?

Não vi Rio. Não me interessam, a princípio, os filmes assinados por Carlos Saldanha. Posso ver Rio ou não ver, não tenho nada contra ou a favor do filme. O que eu questiono não é sua qualidade, portanto. É o aparato de que ele se reveste para fazer valer sua presença. Rio é sintomático de novas estratégias de divulgação e marketing de filmes de grande orçamento.

Qualquer revista semanal de grande circulação estampa um advertising do filme. Inúmeras celebridades de final de semana bradam a quatro ventos: “é divertidíssimo e faz uma linda homenagem a nossa cidade maravilhosa”. Os jornais divulgam os números de bilheteria e arrecadação, sob o pretexto de informar, mas contribuindo secretamente para aguçar subliminarmente a curiosidade de mil espectadores potenciais. Os ufanistas dizem que retrata o Rio de Janeiro como ele é, os nacionalistas dizem que retrata como ele devia ser, os patriotas dizem que é necessário fazer odes às belezas do país. Os revoltadinhos reclamam do retrato alegadamente pouco lisonjeiro do Rio em longas estrangeiros e aclamam Rio como uma justa e bem vinda resposta de nossa terra às provocações xenofóbicas de quem não sabe o que fala ou não conhece bem o assunto — é como se dissessem: “vocês estão errados porque não reconhecem que minha nação é linda”.

Isso tudo já é bastante questionável, mas, enfim, serve bem a mostrar que Rio agrada a todos, por isso faz sucesso. Mas faria sucesso sem tanta exposição? Não é algo nocivo enfiar goela abaixo do público um sucesso fabricado? Como poderia Rio dar errado? Mesmo se fosse um projeto da mais abominável técnica e competência, não se correria o risco de parecer alienado ou amoral achincalhar uma produção que, é dito, louva as maravilhas brasileiras?

Parece haver uma obrigação de assepsia. Limpeza, mesmo. Fazer a coisa bonita para inglês ver, e depois dizer ao inglês: “eu que fiz”. Rio não precisa ser visto para ser compreendido. Carlos Saldanha nem no Brasil mora, e isso diz muito de suas intenções. É portanto com certa reserva que eu observo essa história. O filme, pode ser bom ou ruim, já disse lá acima que não o vi.

Mas aí escorregamos nas velhas barreiras dos outros cinemas marginalizados por esses arrasa-quarteirões impostos por todos que têm poder para isso: mil filmes que não estreiam, não passam de duas semanas em cartaz, ou nem ao menos são vistos. Aí jogam para o bueiro os filmes tidos como menos “importantes” como o último de James L. Brooks — que está acenando sua despedida após menos de um mês em cartaz — ou como os últimos filmes de Jacques Rivette, Eric Rohmer, Jim Jarmusch, que nem ao menos tiveram uma chance nas salas brasileiras, mesmo com a imensa fama de seus realizadores. E se não quisermos que o fenômeno de À prova de morte, o filme de Tarantino que demorou três anos para estrear aqui, é preciso ir com calma na empolgação com os Rio da vida, mesmo que todos os banners, brindes de lanches e livros nas bancas forcem nossa vista e viciem nossa vontade.

Não é preciso sabotar nenhum lançamento ou ignorar todos os sucessos midiáticos, mas desenvolver o próprio julgamento e entender por que quando filmes como Rio vêm à luz há centenas de salas dispostas a passá-los e ganhar por fora com mil valores extra-filme. É cada vez mais fácil fabricar distrações.

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Nísio Teixeira

 

Quero tentar responder a essa pergunta a partir de outra, colhida do livro Ponte Clandestina, de José Carlos Avellar: o cinema, afinal, representa ou reapresenta o mundo? No caso, entender o que é o cinema brasileiro passa por entender como o cinema representa ou reapresenta o Brasil?

Boas perguntas, difíceis respostas. Acho que, de imediato, temos a tendência de pensar que o cinema brasileiro esteja associado à origem geográfica, ao gentílico daqueles envolvidos no filme. Mas, certa feita, numa mesa no Centro Cultural da Lagoa do Nado, em Belo Horizonte, o escritor e jornalista Jorge Fernando dos Santos lembrou um negócio interessante: o sufixo eiro não é, digamos, o mais adequado para determinar gentílicos. Afinal, se falamos de alguém nascido no Canadá, na França, no Peru, Moçambique, Japão ou Austrália, falamos que Fulano de tal é canadense, francês, peruano, moçambicano, japonês ou australiano. Mesmo quando lá de fora as pessoas falam de nós, falam de brazilian, brasileño, brésilien, mantendo a lógica bonitinha do sufixo de gentílico.

Mas nós nos referimos a nós mesmos como brasileiros, ou seja, ao invés de um tradicional sufixo gentílico, que seria brasiliano ou brasiliês, por exemplo, recorremos ao eiro, que, sabemos, é um sufixo de ocupação, de profissão, do tipo padeiro, marceneiro, açougueiro, e, enfim, brasileiro. Ser brasileiro seria mesmo então uma profissão de fé? Ou, como sugeriu o Jorge, algo que remonta até mesmo ao tráfico do pau-brasil nos tempos coloniais?

Fato é que, assim representado, parece-me que deriva dessa imagem a ideia de que o cinema brasileiro é aquele que, de certa forma, faz do Brasil e do cinema também sua profissão de fé. E que, por isso mesmo, talvez o cinema brasileiro seja aquele que reapresenta essa pergunta de maneira eloqüente em seus filmes. É, a um só tempo, um exercício de reconhecimento (ou descobrimento) pelo espectador, em um filme, de geografias, hábitos, problemas, costumes e personagens brasileiros – ou de suas diferentes representações (Lábios sem beijos, Macunaíma, Marvada carne, Cinema, Aspirinas e Urubus). Mas também pode ser uma forma brasileira de olhar o mundo (Terra Estrangeira) e, oxalá, a percepção, em contraponto, de como o mundo nos olha (Orfeu da Conceição).

Pensar a questão da identidade como representação e reapresentação, dessa forma, pode ser um exercício interessante de resposta. Apenas a título de comparação, pensemos, por um momento, no que conhecemos como cinema canadense. Salvo uma ou outra exceção, os bons exemplos mais recentes remetem ao cinema do Quebec (que, não por acaso, tem uma política forte no setor), uma produção que reitera a identidade, a história, a geografia e a cultura daquela província francófona no Canadá (caso dos filmes de Denys Arcand, como Invasões Bárbaras). Mas não reconhecemos o Canadá, por exemplo, ao assistir a 24 horas ou Casamento Grego, pois apesar de eventualmente sabermos que a produção ocorre em cidades canadenses como Vancouver ou Toronto, o que temos são tais cidades travestidas como Los Angeles ou São Francisco.

Procurando expandir a questão nessa perspectiva, encerro a contribuição remetendo a outra passagem do mesmo livro com o qual abri o texto:

Arte imperfeita, espaço impreciso entre o teatro e a pintura, entre a pintura, entre a literatura e a música, entre a escultura em movimento e o sonho petrificado, entre a realidade e a imaginação, o cinema de um certo modo tem estimulado a discussão em torno da identidade. Em parte porque a grande indústria tem usado o filme para combater a construção de livres e diferentes identidades, para afastar o espectador do contato criativo com a realidade em volta dele. Em parte maior porque o cinema, como um todo, passou longo tempo à procura de sua essência, do seu específico, até descobrir que sua identidade é mesmo esta forma aberta e em movimento que tem algo de parecido com o jeito em transe da América Latina.

FIM

Nísio Teixeira é jornalista, professor da UFMG e intregante do revista Filmes Polvo.

Ariella

Especial Liana Duval

Ariella
Direção: John Herbert
Brasil, 1980.

Por William Alves

Apesar do temperamento arredio e a introversão, Ariella consegue notar que cresceu ao surpreender os olhares lascivos de Diogo em sua direção. Mas um indício mais forte também se apresenta: na falta de instrumentos mais apropriados, Ariella passa a esfregar a sua intimidade nos espelhos da enorme casa em que mora. Essa explosão hormonal não passa despercebida aos seus irmãos, Alfonso e Clécio, que têm idéias progressistas em relação ao incesto.

Nicole Puzzi, uma das mais belas fêmeas do cinema brasileiro, interpreta a protagonista. Com traços leves e compleição frágil, Puzzi se adapta com perfeição ao papel da virgem meiga, recheada de curiosidades. Essas curiosidades não abarcam apenas intenções heterossexuais, mas também Mercedes, interpretada por uma Christiane Torloni, noiva de Alfonso. Puzzi tinha 22 anos na época da produção, e, compreensivelmente, seu corpo nu oferece o grande atrativo visual do filme.

Na trama, Ariella divide uma enorme mansão com a sua suposta família, indivíduos hostis e desregrados que fazem pouco caso da moça. Não demora muito para que suas neuras se tornem realidade: essas pessoas não são quem dizem ser. Pior: usurparam a fortuna dos verdadeiros pais de Ariella, mortos. Seu único aliado é um casal de empregados. Liana Duval interpreta a serviçal que simpatiza com a “causa” da moça. Esse esforço, ínfimo, se resume a escolher roupas melhores para moça ou zombar dos patrões pelas costas.

Com poucas armas além da própria volúpia, Ariella empreende uma jornada pouco convencional de vingança. Aliás, “convencional” é grave eufemismo: ao tomar conhecimento da podridão que a rodeia, Ariella simplesmente solta os arreios do seu recato e resolve devorar, um a um, todos os membros do clã.

À medida que cresce a simpatia de Ariella pelo seu próprio corpo, se evidencia também o desejo dos outros em possui-lo. Alfonso e o amigo Diogo, interpretado por John Herbert, são os candidatos mais vorazes. Consciente da farsa, Ariella ora atiça, ora despreza as investidas, investida de uma enigmática inexpressividade facial.

Como Herbert, que assina a direção, faleceu recentemente, a pergunta fica sem resposta: essa impassibilidade é característica de Puzzi ou de Ariella?

Excitação

Especial Liana Duval

Excitação
Direção: Jean Garret
Brasil, 1976.

Por Sérgio Alpendre

Dentro do saudável exercício com gêneros feito na Boca do Lixo, Excitação, dirigido por Jean Garrett em 1976, é um dos mais brilhantes. É também um dos muitos registros da arte de uma atriz pouco falada, Liana Duval, falecida em março de 2011. Ela interpreta a empregada de Kate Hansen.

É um filme de horror, certamente, mas o horror não está apenas no fantasma que aparece para a pobre esposa (Kate Hansen) de um paulistano safado (Flávio Galvão), na casa de veraneio que compraram no litoral. Esse é o horror óbvio, latente. O horror velado, que se entranha na mente da pobre esposa traída como um germe destruidor, é o corpo exuberante de Zilda Mayo, no que ele representa de ameaça para a estabilidade do casamento, ou ao menos, para a fidelidade do marido.

Essa ameaça acaba se materializando em aparelhos que ligam sozinhos, em aparições teatrais e ridículas e, finalmente, em uma crise nervosa. Não importa que é tudo falso, que os aparelhos e as aparições sejam criadas pelo marido para aterrorizar a abalar a mente da esposa. O que importa é que ela acredita, favorecendo que o horror de ordem sexual seja acrescido do horror clássico de um espírito perturbado.

Assim, Garrett nos brinda com um truque inusitado. Já que realizar um filme na boca sem mulheres nuas era quase garantia de fracasso comercial, o diretor usa o corpo de suas atrizes como aparições fantasmagóricas de outra ordem, mais ameaçadoras ainda, porque carnais, que assombram a mente de uma esposa ciente da capacidade de traição de seu marido. Isto faz com que o sexo se integre à trama com precisão, ao contrário do que é comumente falado sobre o filme. Afinal, o motivo da criação de sustos era um caso do marido com a vizinha (Betty Saddy), logo, um outro corpo feminino que parecia mais sedutor, tanto do ponto de vista do marido quanto da esposa insegura e abalada pelas aparições.

Filme incrivelmente feminino do grande Garrett, como quase todos que realizou. Porque talvez um dos horrores que atormentam uma mulher após os 30 anos seja exatamente esse: a certeza de que o corpo, a beleza, a saúde e, consequentemente a possibilidade de ser mãe, não duram para sempre.

Sérgio Alpendre é crítico de cinema, editor do blog Chip Hazard, redator da Folha de S. Paulo (Guia livros, discos, filmes), do UOL, e da Foco.

Nadando em Dinheiro

Especial Liana Duval

 

Nadando em Dinheiro
Direção: Abílio Pereira de Almeida e Carlos Thiré
Brasil, 1952

Por William Alves

Quando Isidoro Colepícula, roto e mal educado personagem de Amácio Mazaroppi, se descobre milionário, a constatação de que ele não saberá administrar tal fortuna é instantânea. Afinal, o caminhoneiro nunca teve em mãos tamanha quantia (20 milhões de cruzeiros). Pelo menos, não em seu próprio nome. Portanto, o final do filme já é conclusão óbvia. O que nos resta, então, é espiar o tremendo arsenal de baboseiras que o personagem irá cometer durante todo o longa.

Nadando em Dinheiro, de 1952, é mais uma produção da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, estúdio que dominou o cinema paulista nos anos 50. É a segunda aventura do motorista Isidoro, que já havia marcado presença em Sai da Frente, lançado no mesmo ano.

Isidoro é um caminhoneiro de poucas posses, um homem pouco mais feliz do que admite ser. Bem-humorado, se envolve em um acidente com um bando de grã-finos, e o barraco que ele arma atrai toda uma multidão ao redor, rindo desmedidamente do chilique do caminhoneiro. Isidoro é levado a uma mansão gigantesca e lá ele descobre que é neto e único herdeiro de um empresário milionário. Que, convenientemente, está à beira da morte.

Pouco a pouco, Isidoro vai sendo corrompido pelas benesses fáceis da boa vida. Além de ostentar um esnobismo que não estava lá, ele se envolve com mulheres de más intenções, o que acaba afastando a esposa e a filha pequena, que preferem a vida anterior. Liana Duval interpreta a empregada bem-apessoada que persegue Isidoro e o seu “CEOs”. Mesmo sem emitir uma única palavra durante a trama, seus sorrisos ambíguos, que atingem com tal intensidade tanto Isidoro quanto os seus empregados de alto escalão, são o bastante para delinear a nova vida de Isidoro. Afinal, antes dos vinte milhões, que empregada gostosa iria sorrir para aquele maltrapilho?

Mazaroppi, que realizava seu segundo filme, cumpre com o orgulho a patetice a que se propõe. Dono de um vocabulário e etiqueta limitados, Isidoro constrange de todas as formas possíveis os membros da elite que freqüentam aquela que agora é a sua morada. Não faltam oportunidades para o personagem galhofar: ele cai, engatinha, marcha e fala alto, além de, eventualmente, nadar em dinheiro. Destaque para o “veja você”, que o motorista sempre deixa escapar quando se sente ludibriado.

Diante de tal mote, os personagens secundários se tornam irrelevantes. O que interessa mesmo é acompanhar todos os atos do motorista esfarrapado. Exceção, claro, para aquela empregada…

Floradas na Serra

Especial Liana Duval

Floradas na Serra
Direção: Luciano Salce
Brasil, 1954

Por Filipe Chamy

A Vera Cruz dava seu canto de cisne com este Floradas na serra, após anos fazendo um cinema que possuía como principal característica um certo mimetismo do cinema americano de gênero — não era raro achar fitas como O cangaceiro e O tico-tico no fubá parecidas com certas produções assinadas por gente como William Wyler e George Stevens. Floradas na serra não foge desse padrão, e portanto não tem grandes arroubos visuais ou invencionices de qualquer sorte; no entanto, assim como seus predecessores, não é feia reprodução de tendências que diferenciavam o cinema americano e o brasileiro da época (o que levaria muita gente a pronunciar admirada exclamações como: “é tão bom que nem parece filme nacional!”).

Ainda que em superfície seja um filme tradicional, Floradas na serra foge do convencionalismo. Para começar, dá a uma atriz de teatro — a prestigiada Cacilda Becker — uma personagem literária em uma adaptação cinematográfica! Unindo três mídias o filme foge de um esquematismo muito dogmático de atuação e encenação, algo que hoje ainda tateiam em muitas obras que misturam atores de cinema com os emergentes astros da televisão.

Outra marca distintiva é justamente ter uma mulher de protagonista, mérito aliás próprio da escrita autora da obra original, Dinah Silveira de Queirós, que todos conhecem como pioneira escritora em um mundo de letras masculinas. Mas Floradas não é um filme que se prega modernista, ele simplesmente faz o que pode ser feito quando uma mulher é sua principal figura: trata-a como humana e não a estereotipa. A Lucília a nós apresentada é uma mulher forte, mas não viril: ela tem fraquezas, fragilidades e mesmo assim se impõe, toma iniciativas, não é um fantoche de melodrama vil.

Também é preciso destacar a modernidade do relato: máquinas, maiôs, carros, Floradas mostra uma sociedade em evolução tecnológica e estagnação sentimental, com suas intrigas de alcova que no fundo se mantêm inalteradas há séculos, os mesmos conflitos que encontramos em romances de séculos atrás, mas que, próprios de seu tempo, não soam patéticas “novelices” adequadas a folhetins amorfos. São pessoas integradas a meios que não usam essas condições para esconder falhas de seu desenvolvimento (como personagens ou como pessoas). Não é desvio de caráter ser sincero, e do contrário não se pode acusar uma narrativa como a deste filme.

Seus intérpretes também contribuem para essa verossimilhança, com seus tipos mais físicos que morais (por exemplo, Jardel Filho em sua aparência juvenil de galã dissimulado). Aqui, de Liana Duval, fazendo a expansiva empregada Firmina, a um alheio a tudo John Herbert, tudo conspira para que a barreira ator-personagem-espectador seja esquecida e que a mensagem seja diretamente recebida personagem-espectador.

Sobre a protagonista, sem dúvida a alma do filme, a narrativa alterna seus “altos e baixos” com o próprio espírito de Lucília: se no começo ela se mostra disposta e a narrativa clara, transparente, no decorrer de sua tortura emocional e seu descompasso amoroso tudo vira trevas, escuridão, uma vegetação que assola a tela e cobre a imagem quase como uma surrealista floresta malvada assustando Branca de Neve em sua fuga desordenada. Floradas na serra é uma epopeia urbana.

Se no asilo para tratamento e repouso, na piscina ou em Campos de Jordão, a ambientação não importa muito. Para efeitos de força, todas as criaturas de Floradas na serra retiram seu impacto de seus próprios dramas íntimos. Talvez pareça esquisito tratar o assunto “de dentro para fora”, mas metáforas também podem florescer.

Pornô – episódio O Gafanhoto

Especial Liana Duval

Porno_cartaz

Pornô! (episódio O Gafanhoto)
Direção: John Doo
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

O Gafanhoto é hoje, talvez, um dos filmes mais cults da Boca, por aproximar o universo fantástico e macabro para a produção erótica, somado ao bizarrismo da já famosa cena de sexo entre um gafanhoto e uma mulher. Essa fama não é desmerecida: O Gafanhoto é uma pequena surpresa, um filme a ir se descobrindo, completamente díspar aos antecessores (As gazelas, de Luiz Castellini, e O Prazer da Virtude, de David Cardoso), ainda que busquem nos fetiches incomuns seu denominador comum.

Em O Gafanhoto, Zélia Diniz faz uma bela e sedutora mulher cega, que domina tudo que está em volta da sua casa através do simples desejo. Lá, ela mantém como escravo sexual Marcos (Arthur Roveder), um rapaz que se considera um gafanhoto solitário – fraco e perdido, sem poder nada fazer. O curioso, a princípio, é notar que uma mulher cega domina completamente o marmanjo. Logo, essa curiosidade será morta, quando descobrimos que, enquanto Diana (Zélia Diniz) é cega, ela tem o poder de ver tudo através de espelhos, que são estrategicamente disponibilizados na casa. Não só, os espelhos funcionam como verdadeiros portais, transportando-a ao local que quiser no casarão onde reside com Marcos.

Ao longo de 40 minutos, o erotismo é transformado em macabro, mas não como os slashers gostam de fazer, em que o cunho erótico só é definido pela nudez, e não pela ambiência. As belíssimas cenas de uma sedutora Zélia Diniz vão, aos poucos, ganhando o contorno do perverso, pela sua persona autoritária e enigmática, que tudo vê pelos espelhos. Aliás, estes são uma perfeita metáfora do poder da imagem e do reflexo, do entendimento do caráter humano. É só à frente do espelho que Diana pode enxergar – assim como só à frente dele em que ela é realmente vista e está vulnerável, como se suas persona verdadeira só estivesse à mostra quando à frente do objeto.

Destaque para Liana Duval, que faz Ruda, a governanta bisblioteira, que presencia a cena com o real gafanhoto, e fica horrorizada. Aqui vale fazer um paralelo entre sua personalidade em O Gafanhoto e em O Pornógrafo: em ambos, ela faz uma mulher contraditória moralmente, que aceita algumas práticas e condena fervorosamente outras.