Dossiê Luiz Elias
Parte 2- Os trabalhos com Mojica, Candeias e Flávio Tambellini
Por Matheus Trunk
Z- O senhor sempre quis ser montador?
LE- Nessa época, eu ainda não tinha ideia. Eu só tinha feito esse trabalho com o Roberto Santos. Depois quando terminou a Maristela, eu comecei a fazer sincronização de dublagem. Nisso, surgiu o filme do Mojica e eu me encantei pela montagem. Você ver o material bruto e a confecção, o ritmo, o timming das cenas. Eu também participei da sonorização, dos ruídos, de contra-regra, dublagem.
Z- Conhecia o processo todo do cinema?
LE- Sim. Eu cheguei inclusive a dirigir no Vigilante Rodoviário. Ás vezes o Ary estava ocupado e não podia entrar numa sequencia de congestionamento, qualquer coisa rodoviária. Eu cheguei a fazer alguma coisa. Mas eu sempre gostei mais da minha área. Eu não gostava de misturar temperos.
Z- O senhor conheceu o Mojica antes dele ser famoso e antes dele criar o personagem Zé do Caixão. Ele era muito diferente de hoje?
LE- Bem diferente. Inclusive outro dia eu dei uma entrevista e as pessoas não gostaram muito do que eu falei. Mas é verdade: ele não entendia nada de cinema. O Augusto Pereira (Cervantes) que era o sócio dele tinha um escritório aqui no começo da (rua) 25 de Março. Isso aconteceu quando eu terminei a sincronização da dublagem e eu ia começar a montar, editar. Todo mundo na época gostava de fusão, era uma coisa chique nos filmes. Eles queriam fusões: “Faça muitas fusões na fita”. Eles me chamaram numa reunião no escritório pra acertar preço, detalhes e tudo. A grande preocupação deles era se o filme com muitas fusões ia ficar mais curto. Com isso, você vê que eles não entendiam porra nenhuma. “Mas quando você coloca fusão não encolhe?”, “Não, não encolhe. Tem um corte no meio e é um segundo que ultrapassa pra cá e outro que começa daqui pra cá”. Inclusive em algumas filmagens eu ia dar alguma assessoria pra ele. Tem um filme em que ele corta o dedo de um cara no bar e eu falei pra ele: “Filma em play reverse que depois na truca a gente encaixa tudo”. Eu tentava dar alguma dica pra ele.
Z- A Sina foi um filme difícil pra montar pro senhor?
LE- Foi difícil porque eu não tinha muita experiência e o diretor não tinha muito material. Tinha uma briga numa cachoeira que eu não tinha corte, não tinha como fazer. Então o que eu fiz: tinham dois caras brigando aqui, o bandido e o mocinho. Na trucagem eu dividi e fiz duas cenas pra ter um pouco de material pra brincar na montagem.
Z- O senhor conheceu o Augusto Cervantes nessa época?
LE- O Cervantes sim. Ele já era muito próximo ao Mojica, uma pessoa muito legal. Sempre andava elegante, bem-vestido.
Z- De bigodinho bem aparado.
LE- Sempre de bigodinho (risos).
Z- O Mojica era um diretor inexperiente. Mas o senhor tinha ideia que ele seria um cineasta reconhecido internacionalmente?
LE- Não. Eu não tinha até porque o tipo de filme era inovador na época. Não sei se nessa época já tinha pornochanchada e de repente ele vem com sangue, baratas, aranhas. Eu não tinha noção que ele ia chegar onde ele chegou. Ele tem méritos por isso.
Z- Como se estabeleceu essa relação de parceria entre vocês?
LE- Teve essa primeira montagem em que ele me deu essa chance. Nisso, ele acabou gostando de trabalhar comigo, eu gostei muito dele como pessoa. O Mojica me convidou pra esses outros filmes e eu acabei topando. Nessa época, eu trabalhava muito com comercial, documentário.
Z- Filme institucional?
LE- Também. Eu fazia muita coisa mesmo. Fiz muitas coisas com o Candeias inclusive.
Z- Qual era a importância do Giorgio Attili pro cinema do Mojica?
LE- O Giorgio Attili talvez tenha sido mais professor do Mojica que eu. Ele tinha mais experiência, então, ele foi dez pro Mojica porque ele conhecia bastante de cinema. Não sei onde ele tinha acumulado essa experiência, mas sei que ele tinha um grande conhecimento da área. Isso foi importante pro Mojica em enquadração, ângulos, não quebrar eixos. Era um cinema muito ortodoxo em que se respeitava muito eixo e contra-eixo. O Attili ajudava muito o Mojica nisso também.
Z- O senhor teve bastante contato com o Attili?
LE- Pouco contato. Ele fazia muitos documentários pro George Jonas e eu que praticamente montava tudo. Então, eu tinha um conhecimento profissional dele.
Z- Nunca foi muito próximo dele pessoalmente?
LE- Não.
Z- Ele era um italianão? Chamava todo mundo de stroncio…
LE- Era: “Stroncio, stroncio”. Ele, o Civelli.
Z- Nesses trabalhos com o Mojica, o Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver tem uma parte que é colorido. Foi difícil montar esse filme?
LE- Era difícil porque a produção não tinha muito dinheiro. O Augusto (Cervantes) não tinha como investir nas produções. Não sei de onde ele tirava. Então, não é que filmava cinco, seis, dez vezes como hoje. Eram duas no máximo e você tinha que se virar com esse material. Muitas vezes você precisava de um close pra fazer um corte, alguma coisa e você não tinha material. Eu reclamava, fazia lista pra ele: “Preciso de um close em tal lugar. Um detalhe em tal lugar”. Mas ele não reclamava, ele fazia.
Z- O senhor chegou a acompanhar algumas filmagens do Mojica?
LE- Cheguei. Uma vez eles estavam fazendo um cenário grande na Mooca, que eram na verdade dois símbolos: uma vagina e um pênis. Ele queria saber se eu filmava de dentro ou de fora e a gente conversava sobre alguns detalhes de filmagens.
Z- Com o Mojica o senhor trabalhava simultaneamente: montava enquanto o filme estava sendo feito.
LE- Sim. Isso é importante porque sempre quando faltava algo eu pedia pra ele. Nós conversávamos muito: “Eu preciso que você filme um close aqui, um detalhe do ator olhando aqui”. Isso é muito importante numa montagem simultânea.
Z- Mas não é em todo trabalho do senhor que isso aconteceu?
LE- Não. Fiz montagem simultânea em alguns trabalhos com o Khouri. Apesar que o Khouri você não precisava pedir nada que vinha material em excesso. Eu nunca vi alguém saber filmar igual a ele. Ele filmava… close de mulher então ele botava na câmera e falava: “Tá bonito. Filmava mais…olha pra cima, olha pra baixo”. Então com ele eu não tinha muito problema de falta de material.
Z- O senhor também montou Ritual dos Sádicos do Mojica?
LE- Acho que sim. É tudo dentro da mesma linha, aí acho que é o segundo ou terceiro filme. Ele tinha um pouco mais de domínio, mas sempre dentro disso. Nesses filmes posteriores muitas vezes faltava material. Mas isso não acontecia por falta de segurança do Mojica como diretor. Isso vinha muito de problemas de ordem financeira que as produções dele tinham.
Z- Tem muito diretor que o filme é como filho. O realizador não gosta de sentar na sala de montagem. O Mojica era diferente nisso?
LE- Tranquilo, tranquilo. Muito pelo contrário: ele sempre aceitava as sugestões. Pra ele era uma escola também porque ele participava vendo os erros e acertos. A montagem é fria… de repente o diretor se apaixona por alguma cena, uma atriz e o montador tem que ser frio. Ele não pode ficar falando coisas assim: “Essa câmera demorou pra instalar. Demorou pra fazer um travelling ou porque está tudo coordenado”. De repente não presta e o montador joga fora. O Mojica filmava em excesso muita coisa assim banal às vezes. Uma barata entrando da xoxota da atriz, aranha. Umas coisas que podia se evitar um pouco. Não precisa chegar tanto né?
Z- Depois o Mojica trabalhou com outros montadores como o Roberto Leme e a Nilce.
LE- A Nilce foi assistente minha e aprendeu o ofício comigo. É que depois eu me afastei, entrei direto em propaganda e trabalhei mais nisso. Era difícil sair de propaganda porque se ganhava muito bem. Então, não dava pra você sair. Muitas vezes eu fiz intercâmbio como no filme do Ugo Giorgetti. O Quebrando a Cara foi feito dentro da Espiral Filmes com duas moviolas. Eu montava um comercial em uma e o filme dele em outra. Isso aconteceu com alguns filmes do Khouri, como o Eu.
Z- É muito difícil fazer isso? Montar dois filmes ao mesmo tempo.
LE- Não. Você isola né? Comercial é um ritmo e longa é outro. Comercial tem um poder de síntese grande.
Z- Só pra fechar o Mojica. É verdade que ele chegou no casamento do senhor e roubou a cena?
LE- Ele chegou a meia-noite (risos). Eu inclusive ofereci uma foto disso pra uma pessoa que escreveu um livro. Chegou meia-noite e me falaram: “Tem um senhor barbudo aqui” e era o Zé do Caixão. Ele entrou lá, tiramos a fotografia e tudo. Ele me levou acho que um relógio meio exótico (risos).
Z- Um presente do universo dele.
LE- Isso. Do universo dele (risos).
Z- O Candeias o senhor conheceu pelo Mojica ou pelo Augusto?
LE- O Candeias eu conheci porque ele trabalhava muito com o George Jonas. Ele fazia documentários… conheci ele no meio. Depois fizemos Meu Nome É Tonho, A Herança.
Z- Zézero.
LE- Zézero e mais um filme do David Cardoso.
Z- Como era trabalhar com o Candeias?
LE- O Candeias não interferia muito na montagem. Ele era um realizador que sabia o que queria. Ele tinha uma linguagem muito bonita trabalhando muito em close. Quando um personagem entrava em cena, o outro saindo.
Z- Ele também era fotógrafo.
LE- Também. Ele tinha uma linguagem interiorana. Era outro diretor muito seguro, tinha uma segurança muito grande. Eu gostava muito de trabalhar com ele. Mas também coitado, trabalhava nessa base de juntar dez metros de filme, filmar três cenas. Depois revelar, copiar, montar. Sempre na pobreza.
Z- O senhor montou vários filmes do Candeias. Meu Nome É Tonho foi um faroeste?
LE- É um filme com uma linguagem meio interiorana… aqueles caipiras que se encontram. Um não fala e o outro também não fala. Aí um vendia um cavalo pro outro e dizia que o defeito estava na cara. Na verdade, o cavalo estava cego. Qualquer coisa assim.
Z- O senhor acredita que o Candeias tinha um conhecimento de cinema clássico maior que o Mojica?
LE- Tinha, tinha. Inclusive o Candeias tinha um negócio gozado: a sonorização dos filmes dele. Ele pegava, por exemplo, o Paulinho Nogueira, colocava numa projeção, soltava o rolo e ia dedilhando a música de cabo a rabo. Dessa maneira, ele acaba sonorizando tudo. Então quando você queria um trecho que era necessário a música você simplesmente abria um canal. No Meu Nome É Tonho se eu não me engano nós fizemos duas versões. Uma com diálogos que são mínimos e outra com um passarinho falando: “Piu, piu, piu”. Um passarinho dialogando… nem sei se ele acabou utilizando isso no cinema.
Z- O senhor trabalhou num filme do Tambellini: O Beijo. Como era ele?
LE- Era um debilóide, um doido. A gente ia no restaurante com ele e ficávamos com vergonha porque ele tinha sofrido um acidente. Ele tinha um olho meio puxado e ficava a todo momento repetindo umas frases do filme. Tinha gente almoçando e ele falando alto: “Não foi beijo de compaixão. Foi beijo de amante, amante, amante”. O pessoal começava a olhar. Era algo muito estranho (risos).
Z- Ele falava isso alto?
LE- Alto. Ele também era muito inseguro. Eu já era o terceiro ou o quarto montador deste filme. Teve um inglês, o Sylvio, um cara do Rio e eu acho que já era o quarto montador do Beijo. Ele era um cara instável né? Ele imaginava coisas. Por exemplo: ele gravou muitos ruídos, então ele denominava os ruídos: datilografia, sons horripilantes, terríveis. E era uma maquininha simples. No filme tem um acidente de carro, em que vai um outro beijar ele. Mas era uma figura fraca, inclusive o furgão que vinha. Eu comentei com ele: “O furgão tem vir a 100 por hora”. Mas era uma furgãozinho pequeno e a gente colocava um ruído assustador… ficava diferente da imagem. Ou então eu tenho um peixe, uma boca do peixe que simboliza a morte. Só que o peixe era um lambarizinho e a gente imaginava uma boca de piranha pra você dar um impacto. Era assim: ele tinha ideias, mas não conseguia concretizar isso no celulóide.
Z- O senhor chegou a ver depois o filme?
LE- Não. Nem quis ver.
Z- Ele era um crítico de cinema bastante respeitado na época.
LE- Era crítico. Eu não sei se ele ficou assim, eu não conheci ele antes. Não sei se ele ficou assim depois do acidente que ele teve. Ele teve um acidente e ficou com um olho puxado. Ficou feio…
Z- Era uma produção grande pra ter quatro montadores.
LE- Tinha, mas eu não sei de quem. Eu não me lembro do produtor. Mas tinha dinheiro sim.