Nossa Canção

Os Saltimbancos Trapalhões, de J.B. Tanko

Por Maurílio Martins

Dentre os filmes que sempre revejo, por vários motivos, há uma categoria especial, aquela constituída por filmes com forte carga afetiva e que nem sempre passam pelo crivo do senso crítico adquirido posteriormente, mas sempre ocupa lugar especial nas listas dos meus longas-metragens prediletos. Os filmes dos Trapalhões, especialmente os produzidos até 1990, encabeçam o topo dessas escolhas, e os motivos são vários, indo da relação que eu, criança, estabelecia com o quarteto, numa adoração que extirpava de antemão qualquer falha que pudesse decorrer dos filmes, até o fato de, e isso conta muito, ter entrado pela primeira vez numa sala de cinema justamente para ver um filme do grupo, que até então eu só acompanhava na televisão aos domingos à noitinha e em algumas sessões da tarde na Globo.

Dessa época me lembro, com sorriso no rosto e com tintas lindas de nostalgia, dos clássicos Os Trapalhões e o Mágico de Oróz, Os Trapalhões no Auto da Compadecida, Os Trapalhões na Serra Pelada, dentre outros. E estão todos ali, devidamente guardados nesse baú da memória, e cada um com sua história particular, com minha relação não só com o filme em si, mas com tudo que o cercava e me constituía, fazendo com que, muitas vezes, eu consiga lembrar-me de como vi, com quem vi e qual foi o impacto na minha vida naquele momento.

Dentre a vasta obra do quarteto (que já foi trio), há um filme em especial. O ano de produção é 1981, mas nasceu para mim poucos mais de seis anos depois, numa tarde de um meio de semana, assistindo na casa de um amigo da mesma idade. Os Saltimbancos Trapalhões, dirigido por J.B. Tanko, saltava na tela da televisão do Seu Totonho, uma das poucas coloridas da cercania, comprada para a copa do mundo realizada no ano anterior. O fascínio foi imediato e é lembrança recorrente o menino eufórico saindo pelas ruas cantando as canções do filme, principalmente Hollywood, no agudo doce e penetrante de Lucinha Lins, acompanhadas por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

O fato de quase não haver videocassetes (e nenhum outro meio de assistir um filme a não ser o cinema ou a tevê aberta) provocava um efeito maravilhoso que era o de, tão logo terminava um grande filme infantil na televisão, ter a certeza de encontrar, minutos depois, os amigos da mesma idade na rua, todos deslumbrados com o filme da vez, afinal quase tudo era novidade naquele tempo. E se havia canção que marcasse, fato era que boa parte já daria as caras por ali, assoviando ou cantando o trecho que havia decorado. Era como um sinal coletivo de aprovação ao filme.

O que não faltava em Os Saltimbancos Trapalhões eram músicas que marcasse, mas se a minha preferência naquele momento era pela canção dos moços se aventurando na meca do cinema (numa das cenas mais geniais do filme, quando a patota passeia pelos famosos estúdios e brincam com gêneros cinematográficos), a preferida pela turma, e cantada seguida de uma coreografia absurda e muito engraçada, era Piruetas, onde os Trapalhões, nos vocais, acompanhavam nada mais nada menos que Chico Buarque, o responsável pela trilha do filme – na modesta opinião desse escriba, das mais belas e instigantes feita para um filme no Brasil.

Bem, certo é que muitos dirão que a mesma foi quase toda feita para uma peça, o que é certo, mas não tirando, com isso, a força dela no longa-metragem (bem longe disso por sinal) e a participação de Renato Aragão, Dedé Santana, Mauro Gonçalves e Antônio Carlos Bernardes nessas músicas deram o tom e o charme exato que a trilha precisava. E reside aí a genialidade de tudo. A união das mais populares figuras da televisão e do cinema brasileiro do período com um dos maiores compositores de todos os tempos da música tupiniquim. E não há como não atestar e verificar esse transbordar de talento e de carisma ao se ouvir Meu Caro Barão. Conforme havia feito em Construção (e algumas outras músicas), o irmão da nossa atual ministra da Cultura brinca, literalmente, com a gramática e produz uma das mais fantásticas e inteligentes canções feita para o público infantil no Brasil. Não! Vou além! Retiro do escopo infantil e digo que uma das mais brilhantes da MPB. Para público de qualquer idade.

E o grande trunfo do filme é esse. Os Saltimbancos Trapalhões é um filme atemporal e para qualquer espectador, em qualquer época. Considerado pela crítica (e, creio eu, por boa parte daqueles que cresceram assistindo os quatro humoristas no cinema), como o melhor filme protagonizado pelos Os Trapalhões, o filme conta com um elenco afinado, uma direção segura e elegante do diretor iuguslavo radicado no Brasil, J.B. Tanko, e, principalmente, por ser uma espécie de musical, com as canções. Além das citadas, podia discorrer por horas sobre a emocionante Alô Liberdade, cantada por Bebel Gilberto, e que vinha a calhar com o momento que o país vivia, ainda em plena ditadura militar, mas já começando a almejar e vislumbrar uma liberdade que já acenava na esquina, mas de forma tímida. “Olá Liberdade, desculpe eu vir assim sem avisar(…) A minha companhia vai cantar, sutil melodia pra te acordar”. E esse tom percorre todas as nove canções do disco. E não há como não emocionar com a faixa final, “Todos Juntos, que conclama uma união de todos os bichos, de todos os oprimidos, para que se rebelem e mudem o estado das coisas. Era Chico, eram os Trapalhões tentando mudar as ordens das coisas e soprando vida inteligente nas canções e nos filmes infantis e, muito mais que isso, marcando uma geração inteira, que cresceu fascinada com o filme e sua espetacular trilha sonora.

Na véspera de encerrar esse texto e enviá-lo para o meu amigo e editor da Zingu!, Adilson Marcelino, me deparo com uma coincidência e uma sensação que não havia como ficar de fora dessas linhas que seguem, tal qual foi a emoção que me acometeu na hora. Quase vinte e cinco anos depois do dia que ouvi pela primeira vez a voz de Lucinha Lins cantando Hollywood e dizendo sobre ela ser “ali bem perto” e ser um “sonho de cenário”, eu me encontrava no ônibus voltando do Rio de Janeiro, onde havia ido tirar o visto para acompanhar a exibição de um curta-metragem dirigido por mim (em parceria com o Gabriel Martins), e cuja exibição seria justamente em Los Angeles, mais precisamente em Hollywood. E naquele momento de ócio dentro daquele veículo, coloquei o fone no celular e pus o mesmo para tocar mp3 em modo randômico, o que sempre me estimula mais, já que nunca sei qual a música que virá a seguir. E quando a primeiríssima da lista começou eu me dei conta da força, mais uma vez, que a trilha de Chico Buarque exercia em mim. E não tive dúvida, ouvindo Hollywood naquela estrada e na véspera de ir com um filme para lá, que era essa a trilha sonora de um filme que mais marcou a minha vida. E que ainda marca.

Maurilio Martins é cineasta, sócio da Filmes de Plástico e editor da revista eletrônica Lateral (www.revistalateral.com.br)

Inventário Grandes Musas da Boca

Célia Olga Benvenutti

 

Por Adilson Marcelino

Com poucos filmes no currículo, mas com atuações arrebatadoras, Célia Olga Benvenutti é uma das musas da Boca do Lixo.

Célia Olga Benvenutti começou a carreira no teatro – fez a EAD – Escola de Arte Dramática;. Durante os anos 1970 e 1980 também atua em novelas na Record, Cultura e SBT, respectivamente, Pingo de Gente (1971), de Raimundo Lopes; Vento do Mar Aberto; (1981), de Mário Prata; Jogo do Amor (1985), de Azis Bajur. Mas é no cinema que seu talento vai explodir nas telas.

O primeiro filme, A Virgem, foi dirigido por Dionísio Azevedo, em 1973. O filme é protagonizado por Nádia Lippi, que também faz sua estreia nas telas. Ela é Lenita, uma jovem que tem sua virgindade disputada no palitinho pelo namorado, interpretado por kadu Moliterno, e seus amigos.

O filme reúne uma turma de amigos que praticam os ideais de liberdade e de amor livre, conceito personificado no modo de vida dos rapazes e suas namoradas. No elenco, Nuno Leal Maia, Alexandre Rodovani e Tony Tornado, e as beldades Nadir Fernandes, Miriam Mayo e Célia Olga Benvenutti.

A interpretação luminosa de Célia Olga carimba seu passaporte para o maior papel de sua carreira, o de Lilian M. em Liliam M.: Relatório Confidencial, de Carlos Reichenbach.

Cultuado filme de Carlão, Liliam M. ficou anos anos longe do público, até que a Lume lançou o filme na Coleção Cinema Marginal, um dos maiores acontecimentos cinematográficos dos últimos anos em termos de resgate de memória.

Incensado por gerações de críticos e de cinéfilos pelo domínio de cena de Reichenbach, que mistura vários gêneros em seu filme, Lilian M.: Relatório Confidencial possibilitou á Célia Olga Benvenutti mostrar todo o seu talento, já que é a protagonista absoluta. Na trama ela é um dona de casa que abandona o lar, o marido lavrador e os filhos para seguir um mascate, mas depois de um acidente se vê sozinha em São Paulo, onde se envolve com outros homens.

Lilian M: Relatório Confidencial fez sensação no Festival de Rotterdam, na Holanda, carimbando também a descoberta internacional do cinema de Carlos Reichenbach – o filme foi exibido também na França e na Bélgica.

Liliam M. faturou ainda o prêmio APCA de Melhor Roteiro em 1975; o Prêmio Especial de Realização – Prêmio Governador do Estado de São Paulo 1975.

Em entrevista à mítica Revista Cinema Em Close-up, bíblia dos cinéfilos dos anos 1970, Carlos Reichenbach contou que tinha abandonado o argumento de Lilian M durante anos. Quando retomou, escreveu o roteiro pensando em Joana Fomm, mas não pode contar com a atriz, que à época das filmagens estava grávida. Desestimulado, pois o filme requeria uma grande atriz, já que o filme gira em torno da personagem, pensou em abandonar novamente o projeto quando um amigo indicou o nome de Célia Olga Benvenutti. O resultado é um tour de force da atriz, neste que é um verdadeiro cult.

O que parecia ser a consagração definitiva da atriz nas telas não se confirmou, pois Célia Olga atua somente em mais três filmes, todos eles realizados na década de 80.

Por que as Mulheres Devoram os Machos é uma produção paulista de 1980, dirigida por Allan Pek, em três espisódios, reunindo as beldades Vera Gimenez, Ana Maria Kreisler e Célia Olga.

O Gosto do Pecado reúne alguns dos nomes mais talentosos da Boca do Lixo: Cládio Cunha na direção; Inácio Araújo na assistência de direção; Carlos Reichenbach na fotografia e na câmera; Cunha, Araújo e Jean Garret no roteiro. No filme, Célia Olga Benvenutti é uma das clientes do protagonista, o advogado Julio Garcia, interpretado por Jardel Mello.

E Por fim, Célia Olga Benvenutti atua em As Meninas de Madame Laura, único filme dirigido pelo produtor mineiro radicado na Boca, Ciro Carpentieri.

 

Filmografia


 A Virgem (1973), de Dionísio de Azevedo
 Lilian M.: Relatório Confidencia (1974/75)l, de Carlos Reichenbach
 Por que as Mulheres Devoram os Machos (1980), de José Alexandre
 O Gosto do Pecado (1980), de Cláudio Cunha
 As Meninas de Madame Laura (1981), de Ciro Carpentieri Filho

 

Musas Eternas

Odete Lara

Por Donny Correia

“A primeira vez que vi Odete…”

Mulheres são eternos mistérios, sabemos. No entanto, quando cercadas pelo quadrilátero da tela de cinema, em primeiro plano, ou num acintoso close-up, seus mistérios podem contribuir tanto para a ascensão, quanto para a queda do mito que as permeiam, caso não tenham o timing para usarem de seus predicados.

Não é o caso desta figura que pairou as películas brasileiras por quase 40 anos e deixou sua marca de musa intocável e inacessível aos deleites mundanos dos homens (e certamente de umas tantas outras mulheres).

A primeira vez que vi Odete Lara, eu não tinha mais do que uns 13 ou 14 anos. Uma cena muito bem filmada para os padrões da época. Tratava-se de um plongé da atriz, que, de braços abertos, balançava o cabelo com bastante charme e cantava uma canção triste de amor. Esta cena em questão fora pinçada de um dos últimos filmes realizados pela Atlântida, para o documentário sobre a produtora, realizado por Carlos Manga em 1973 (Assim Era a Atlântida). À época do filme pinçado, Odete estava apenas começando no cinema, mas já trazia bagagem da TV.

Hoje, refletindo sobre ela para escrever estas linhas, percebo que na minha avidez como colecionador do cinema nacional desde muito cedo, ela foi a figura feminina mais marcante, mesmo quando colocada ao lado de ícones mais apelativos como Norma Bengell, Lyris Castellani, Leila Diniz e tantas outras que despontaram nos primórdios dos sex-symbols nacionais.

Explico: Odete Lara, nascida Odete Righi, em 17 de abril de 1929, em São Paulo, construiu ao longo de tantos papéis a imagem mítica da mulher intocável, mesmo quando interpretando personagens tão mundanos e palpáveis, como D. Guigi em Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Não sei dizer onde exatamente reside esta aura, mas consigo identificar pelo menos três papéis de filmes tão distintos, que se complementam para consolidá-la no hall das Deusas.

Em 1957, Odete estrela Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte em sua estréia como diretor. Personagem dos mais usais para uma mulher de sua beleza, num filme um tanto quanto comum, para a bagagem do diretor. Interpretando um papel homônimo, ela é a namorada no vilão, colocada por este crápula manipulador vivido por Aurélio Teixeira na vida do herói da fita (o próprio Anselmo, claro!) para tentá-lo e manipulá-lo usando para isso os mais baixos golpes de sedução, de maneira que consiga se apossar do dinheiro que ele irá ganhar num programa de TV. Com a ruína do plano maligno, Odete se vê sem o vilão (agora preso), sem o dinheiro (que de fato ficou com nosso herói), e sem o herói (redimido nos braços da mocinha, que sempre amou). No entanto vai embora carregando consigo um ar de incólume, inabalável pela ingenuidade do mundo daqueles dias e do enredo feito à medida do espectador chanchadeiro. NOTA: O número musical cantado no filme por Odete é desnecessário, já que sua sensual voz grave não serve para cantar meras marchinhas de letra fácil e pegajoza. Se toca Anselmo!

Em Noite Vazia, obra-prima de Walter Hugo Khouri, aquela mulher assolada pelas tramas redondinhas a que a vida nas chanchadas esta submetida (leia-se: o bem sempre vence o mal), ressurge na terrível São Paulo de 1964 na pele de Regina, agora prostituta de luxo que, junto de Norma Bengell vivendo Mara, cai nas garras de dois típicos misóginos (Mário Benvenutti e Gabriele Tinti) em busca de farras intermináveis. Aqui Odete é a mulher que se tornou fria pela falta de oportunidades melhores, que é pragmática no exercício de suas funções, ao contrário de sua frágil amiga. Em seu papel, Odete não titubeia em deixar claro que negócios são negócios e que homem nenhum a passa para trás. Nevermore!. Nem mesmo uma possível transa lésbica para deleite de seus clientes a faz sair deste corporativismo da carne. Infelizmente para nós, espectadores, a cena não se consuma porque a amiga, Mara, refuga na hora H. Mas tudo bem! Khouri não nos daria mais que seus belos olhos e boca bem desenhada insinuando um ato sexual muito bem enquadrado. Aliás, é aí que a personalidade intocável de Odete aflora. Ao contrário de Norma Bengell, Odete Lara nunca é mostrada com os seios nus, ou em planos abertos quando despida. Sobre isso recai a ânsia de queremos desvendar esta atriz-personagem tão instigante congelada pelos percalços da vida (agora real até de mais) numa cidade cada vez mais vertical e vertiginosa. Queremos tocá-la com olhar atento, mas o corvo diz: Nevermore!

Se primeiro a vida era ingênua e depois dura demais, em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), dirigido por Glauber Rocha (também mito, porém alocado num outro departamento do panteão do cinema), a vida se torna sonho, pesadelo, delírio, êxtase, arquétipo, miragem, e todos os outros adjetivos que possam remeter ao “inusitado” e que o leitor sinta-se impelido a usar.

A mulher antes lançada ao acaso de suas poucas oportunidades, que precisava dispor da sedução, e que depois se tornou prostituta de pedra quente e macia, agora se torna Laura. “Odete Regina Laura” é a síntese da imagem de Odete Lara, que encarna a esposa oportunista de um coronel cego, velho e mesquinho (Joffre Soares), “rei” num vilarejo do sertão baiano. Esta Laura é o último estágio da personagem intocável que envolve Odete Lara. Seu “trem para as estrelas”. Nunca sabemos, ao longo do filme, se o que vemos é uma simples mulher desgostosa com a vida, ávida por beber até o último gole de sua própria beleza e juventude ao lado de Hugo Carvana, que aqui vive o secretário do coronel, ou um fantasma que nos surge a todo momento como a fonte de um prazer do qual jamais desfrutaremos.

É nesse papel polifônico que Odete consolida sua imagem de beleza inalcançável ao mundano, ao toque terreno de mãos poluídas pelo cotidiano medíocre. Com Laura, Odete Lara paira para fora da tela e vem acariciar atormentada nossos traumas e nossas consternações diante do mundo real onde fomos aprisionados. Sentimos sua carícia terrível (e por que não dizer mórbida?) em nossas retinas. Odete Lara já não pertence ao reino do palpável. Desperta a lascívia dos homens mesmo depois de morta no fim do filme. O anjo nasceu! NOTA: Se marchinhas não combinam com a voz de Odete, o mesmo não se pode dizer da letra de Carinhoso, deslizando doce por seus lábios afora, a certa altura da estória. Carvana, cala a boca e deixa o anjo cantar!

Outras mulheres passaram pela pele de Odete Lara, mas esta trinca que escolhi traduz a imagem que ficou na minha memória. Começo, meio e fim.

Odete Lara retirou-se de cena antes que o tempo e a TV de massa corroessem sua deidade, para se isolar no campo, como se este mundo não tivesse o direito de dizê-la sua. Nem mesmo o constrangedor roteiro (roteiro?) escrito e dirigido (se é que se pode dizer assim) por Ana Maria Magalhães em 2002, sob o título de Lara, supostamente sua cinebiografia, conseguiu trazê-la ao chão que nós, ínfimos e mortais cinéfilos, habitamos.

Quanto dura um mito?

Eternamente, se ele souber surgir no momento certo… e souber desaparecer quando vir que já espalhou sua magia.

Donny Correia, 1980, é paulista. Poeta e cineasta, publicou O eco do espelho (2005) e Balletmanco (2009). Teve seu curta-metragem Totem (2010) selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. É graduado em Letras – tradutor e intérprete, e pós-graduando pelo Instituto de Artes da UNESP e pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Atualmente, é gerente geral da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.

Reflexos em Película

As últimas sessões de cinema

Por Filipe Chamy

Há algumas semanas, o assunto mais discutido entre os cinéfilos paulistanos não era nenhum filme, diretor ou coisa do tipo, mas sim o fechamento de um cinema bastante tradicional, o Belas Artes. Organizaram passeatas, divulgaram via internet movimentos de protesto, petições pedindo o tombamento do edifício e outras mil medidas para segurar a vida do edifício.

Evitar que se repita a história de Cinema Paradiso é sem dúvida nobre, mas por que não houve essa comoção toda quando os cinemas também clássicos Top Cine e Gemini fecharam suas portas na mesma São Paulo tão “engajada”? Parece que há um certo estardalhaço em torno não de um cinema, mas de um determinado modo de vida.

Pois vejamos: o Belas Artes era conhecido principalmente por sua peculiar ideia de fazer um “Noitão”, evento em que filmes eram exibidos de madrugada, seguidos por confraternizações, cafés da manhã e todo tipo de entrosamento. Mas eu pergunto: e o cinema? Não sou radical e nem extremista, mas na verdade o que isso representa enquanto uma experiência de cinefilia? Isso está mais para uma festa, um encontro social, e aí não dá para entender bem por que milhares de pessoas se dizem carentes agora que o cinema fechou, já que filmes eram o que menos lhes interessava.

Tempos atrás, a Zingu! fez um Dossiê Marabá, sobre o destino desse célebre cinema e sua luta para ressuscitar repaginado como um multiplex. Se parece triste que um espaço de tradição cinematográfica vire uma vitrine de blockbusters, não dá muito para se surpreender: o público valoriza cada vez mais a experiência de se reunir ou festejar ou mesmo simplesmente sair do que a experiência propriamente dita de ir a um cinema, sentar-se e ficar durante duas horas imerso em mundos tão diferentes do seu.

O caso Marabá é bem sintomático do que vai acontecer em breve, com todos os filmes menos “espetaculosos” resumidos em um gueto, e cinemas, de rua ou de shoppings, exibindo apenas essas fitas em que os sentidos físicos do espectador são postos à prova. E o cinema, enquanto espaço, cada vez mais perderá a condição de “templo” e virará uma boate, um local para se divertir com os amigos, parque urbano onde os filmes a serem exibidos serão o brinde (ou a sobremesa, nunca o prato principal).

Então quando vemos esse debate todo sobre o Belas Artes é preciso que se perceba que o cinema é a última coisa que se discute. Ninguém quer saber dos filmes, ninguém se importa com eles. Porque outros cinemas fecharam e fecharão porque o público os abandonou, mesmo com boa programação, preço, acesso. O caso do Belas Artes não é para ser louvado como uma guerrilha de resistência, mas como uma tentativa de manter um estilo de comportamento que nada tem a ver com filmes ou cinema.

Nos últimos dias desse cinema, comportamentos dos mais diversos foram observados: pessoas se acotovelavam em grandes filas para assistir às últimas sessões especiais programadas pela casa para a exibição de filmes clássicos; gente se lamentava na bombonière — outro sinal de que cinema era só uma moldura desse quadro — sobre o iminente fim daquele espaço; ambulantes e outros particulares graciosos resolveram ganhar os seus cobres vendendo improvisados souvenirs, camisetas estilo “estive no Belas Artes em seu fechamento e lembrei de você”.

Mas são essas mesmas pessoas que dia após dia deixam a Cinemateca às moscas, não prestigiam as mostras e retrospectivas dos centros culturais e resumem sua experiência de ver filmes à televisão e aos “baixamentos” de mil coisas virtuais. Então é hora de tentar reverter a coisa e fazer do fim do Belas Artes um caminho de esperança para a cinefilia.

Nossa Canção

Romance, de Sérgio Bianchi

Por Heitor Augusto

A primeira música num filme a grudar na minha cabeça e resistir em me abandonar é Perseguição & O Sertão Vai Virar Mar, que Sérgio Ricardo escreveu para as imagens de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Quando criança, me sentia nas costas de um cavalo disparando tiros inocentes de uma velha espingarda dentro de um faroeste.

Um menino aventureiro que não sabia o que tiros causavam nas pessoas, muito menos entendia quem era o tal do Corisco, o que significava “mais fortes são os poderes do povo!” ou entendia bulhufas de narrativa alegórica. Mas um apaixonado pelo violão rasgado, a voz desavergonhada do cantor e as imagens do filme. Tudo junto a despertar um primitivo sentimento aventureiro. Adoraria descrever por horas todos os sentimentos que esta canção me despertou quando criança e ainda desperta agora já adulto. Mas, para esta coluna Nossa Canção, prefiro atirar no escuro e falar de uma trilha que não anda de boca em boca com tanta frequência. Por isso, a opção pelo trabalho do Grupo Chance para o Romance que Sergio Bianchi fez em 1988.

Não posso afirmar que é o melhor filme do Bianchi, mas é certamente sua obra que mais me emociona. A desesperança dos dois personagens que perdem o rumo após a morte de um intelectual de esquerda mitológico – Antônio César – contamina as estranhas. As músicas, ou melhor, comentários musicais, que o Grupo Chance fez para o filme criam uma atmosfera de labirinto, uma falta de rumo que invariavelmente vai levar à desilusão. Representação perfeita da prisão humana por meio da música.

Num filme de um cineasta tão direto e duro, os comentários musicais colocam mais espaços de indefinição, ruídos, perguntas e dores, elementos que contrastam com a câmera-faca de Bianchi, roubando o título de João Luiz Vieira no livro sobre o cineasta lançado em 2004.

Romance começa com Antônio Cesar, o morto, denunciado, por meio de imagens de arquivo, a miséria brasileira e os poderes constituídos, num discurso muito duro. Em seguida, uma sequência de seu enterro com personagens comentando – e Bianchi, invisível, satirizando por trás deles – o quão importante o militante era para a esquerda. Logo após, novamente uma afirmação retumbante do morto de presença tão viva.

Enquanto essas cenas remetem a ideias palpáveis, a música de cantos agudos e confusos do Grupo Chance nos coloca em outro registro. É tudo tão literal mesmo? Quem é de fato este Antônio César cheio de frases polêmicas? Por que se armou este circo em torno da morte do intelectual? E essa mulher com cara de aproveitadora que está ao seu lado na entrevista? Questões que os comentários musicais ajudam a instigar.

Após essa abertura, a mesma mulher – que descobriremos ser uma das companheiras de Antônio Cesar – está vestida de preto com a mão mergulhada em tinta preta. Frente a uma parede branca, traça linhas descoordenadas ao som de sintetizadores e distorções. Linda sequência! Fernanda (mais à frente saberemos seu nome) está sem rumo num filme que decreta a falência dos ideais de libertação sexual dos anos 1960 e 70. Mais do que isso: Romance olha para o Brasil de 1988 e decreta a falência do próprio país.

Desesperançoso em cada take, o filme ainda encontra espaço para fazer seu comentário mais poderoso: a falta de liberdade que a Aids trouxe, especialmente aos gays. Numa sequência absolutamente cadavérica, André (Hugo Della Santa) – que também fora companheiro de Antônio Carlos – anda pela escuridão da cidade à procura de sexo rápido e fugaz com o primeiro estranho que lhe atrair.

Mas ele não pode: Antônio Cesar morreu de Aids numa época que predominava a ignorância acerca da doença. André pode estar contaminado também e seria imprudente arriscar (triste curiosidade: Hugo Della Santa morreu no ano do lançamento do filme por causa da… Aids!). Ele vive uma dupla prisão: a de esconder publicamente a homossexualidade e de não poder extravasar seu desejo nem no mais obscuro canto da cidade. Como ser humano, ele está falido, como quase todos os personagens de Romance.

Nesses momentos, Bianchi captura racionalmente o espírito desiludido de uma época, enquanto os comentários musicais do Grupo Chance se encarregam de penetrar no fundo do peito e rasgá-lo sem dó, nos invadindo de uma tristeza absoluta.

Heitor Augusto é repórter e crítico de cinema. Atualmente, colabora com o Cineclick, no qual faz cobertura dos principais festivais no Brasil, escreve sobre os lançamentos do circuito e mantém a coluna mensal Clássico do DVD. Mantém, desde 2008, o blog Urso de Lata. Colaborou para a Agência Carta Maior e Revista de CINEMA.

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Daniel Caetano

 

A pergunta parece fácil, mas não é. Brasileiro é o sujeito que nasce no Brasil ou adquire cidadania, mas o que define a cidadania de um filme? Os atores, a locação, o diretor-autor, a empresa produtora ou a fonte de financiamento? Não sei, juro que não sei, mas não queria deixar a questão sem resposta. E olha que só falei do adjetivo. O que é cinema, então é uma pergunta cada vez mais difícil de responder com dados objetivos, embora tanta gente tenha convicção de saber. Talvez cinema seja como o jazz segundo o Louis Armstrong: se você precisa perguntar, nunca vai saber. Não sei se eu vou saber responder, mas tudo bem, porque não costumo perguntar.

Mas há, no entanto, aquela velha história de que é fácil sair do Brasil, difícil é tirar o Brasil da gente. Pois eu estou percebendo isso mais uma vez, já que estou passando uma curta temporada no exterior desde março. A gente é o que é mesmo (e talvez sobretudo) quando escolhe modelos pra imitar. Não tem nada mais brasileiro que todos aqueles filmes que querem parodiar o cinema americano – das chanchadas até os vídeos no youtube, passando pelos filmes dos Trapalhões e vários outros – e se tornam auto-depreciativos. A gente avacalha e se esculhamba, já disse o outro.

Talvez por aí, por essa sensação de esculhambação, a gente possa tatear um pouco mais a resposta. Talvez seja inviável e até doentio querer definir o “cinema brasileiro” como algo que possa ser sintetizado, como uma entidade única que tem uma cara determinada, ao invés de múltiplas facetas irredutíveis e inconciliáveis. Mas o nosso sentimento define a nossa relação, então não podemos deixar essa pista se perder. O que pode indicar essa sensação de avacalhamento que alguns filmes podem nos provocar?

Minha suspeita ainda é a dos velhos culturalistas: acho que essa sensação só acontece porque encontramos alguma identidade (mesmo que seja imaginária e delirante, mesmo que seja mentirosa) com o que estamos vendo. Vergonha alheia só existe quando a gente se sente pertencendo ao universo que nos constrange. Então talvez seja por aí que a gente possa definir, mesmo que seja só como espectador, o que é “cinema brasileiro”. Nós, brasileiros (por nascimento ou por opção), sabemos que ele é aquele cinema (ou seja, aquelas imagens e aquele ritual que consideramos cinema) que pode trazer uma realidade de nós mesmos que não conhecemos ou que preferíamos conseguir negar e esquecer. Ou seja, aquele cinema que sempre pode provocar, de modo súbito, uma identificação direta com o nosso meio e tudo que nele nos constrange.

Ou, nas melhores vezes, cria uma certa emoção por parecer que é por onde temos que ir: como uma representação que apresenta realidades ainda cheias de potência. Talvez seja o desejo de ver isso (mais uma vez) que nos motiva a encarar essas imagens que têm um potencial de desagrado ainda maior do que as que nos são estrangeiras.

Essa tentativa de resposta é tateante e por isso talvez seja pouco assertiva. Bem, mas é uma tentativa. Outras podem ser feitas para uma questão que por definição permanece em aberto, já que tanto o cinema como o Brasil mudam muito com o passar do tempo.

Daniel Caetano é professor, cineasta e crítico.