Chico Viola não Morreu

Especial Wilza Carla

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Chico Viola Não Morreu
Direção: Román Viñoly Barreto
Brasil/Argentina, 1955.

Por Gabriel Carneiro

Rei da Voz. Francisco Alves. Chico Viola. Todos esses nomes identificam uma pessoa, um cantor magistral que encantou o público nos anos 30 e 40, com sua potente voz e suas canções de amor, saudade e desilusão. Morto em 1952, ganhou uma cinebiografia pouco tempo depois, em 1955, pela Atlântida, que queria capitalizar em cima desse ícone da música, falecido precocemente num acidente de carro na via Dutra quando voltava de um show em São Paulo, aos 54 anos.

Filme de estrutura clássica, narrada a partir de um grande flashback – Chico Viola, no carro, relembra toda sua vida -, já acerta no título. Chico Viola talvez seja o nome mais íntimo e menos pomposo que o cantor recebeu, mais ligado às suas raízes – e é o que Chico Viola Não Morreu pretende, trazer de forma bastante humanizada o cantor, usando de todos os recursos que a ficção possibilita (assim como todos os clichês também). Afinal, Chico Viola, o ídolo, também é uma pessoa passível de problemas – vemos seu pai o reprimindo porque quer cantar, sua aventura pelo circo, sua passagem por várias funções profissionais, seus amores e desamores, sua descoberta num boteco de madrugada e, enfim, seu sucesso. Mas o sucesso, a priori, é o que menos importa. Todos conhecem seu sucesso, todos conhecem o Rei da Voz, todos conhecem Francisco Alves. Conheciam, ao menos, em 1955. O grande triunfo está aí, em trazer esse repertório desconhecido do público – e não importa minimamente que não seja o que realmente aconteceu. O Homem que Matou o Facínora, de John Ford, só foi realizado em 1962, mas seu principal ensinamento, já vinha sendo usado, de maneira até instintiva, muito antes. Entre a realidade e a lenda, publique-se a lenda: Chico Viola Não Morreu; ele permanece vivo através de suas músicas, ou algo do gênero – aliás, vale notar que Chico Viola não morreu muito antes que Elvis.

Com roteiro de Gilda de Abreu – que havia emplacado um dos maiores sucessos do cinema brasileiro dez anos antes, com o também musical O Ébrio, com Vicente Celestino -, Chico Viola Não Morreu traz grande elenco: Cyll Farney como Chico Viola, Eva Wilma como Maria das Trancinhas versão adulta, Wilson Grey como Maneco, Heloísa Helena como cigana e Wilza Carla em começo de carreira, esbelta, num físico muito diferente do qual ficou conhecida.

É claro, não se deve esperar uma grande obra-prima do filme. Não foi feito para isso. Mas dentro do que se propõe, o diretor argentino Román Viñoly Barreto consegue fazer um bom filme clássico, com muito menos problemas que esses dramas musicais tinham na época – e cito aqui novamente O Ébrio -, a começar pela duração (85 minutos), e sabendo bem o tom a usar. A se ver.

Com as Calças na Mão

Especial Wilza Carla

 

Com as Calças na Mão
Direção: Carlo Mossy
Brasil, 1975. 

Por Leo Pyrata
 

Em tempos de trevas cômicas onde o cinema brasileiro tem como representantes tranqueiras constrangedoras como Cilada.com e De pernas pro ar, a possibilidade de ter acesso através do Canal Brasil e da internet a filmes como Com as calças na mão é um privilégio. Dizem que todo pessimista costuma ser um apologista do passado, mas creio que não se trata de pessimismo e sim um desejo de que nosso cinema consiga voltar a lidar com a própria sexualidade sem soar reacionário, pudico e recalcado.

Com as calças na mão, de Carlo Mossy, começa pelo final com o personagem Reg (interpretado por Mossy) sendo levado amarrado numa maca para sua castração. Um grupo de mulheres acompanha a maca até a porta do centro cirúrgico. Na sala de operação, Reg apaga anestesiado e entramos em seu universo num momento anterior à crise do hospital. Não por acaso, somos transportados para outro momento crítico para Reg, que foge pela janela de um flagrante de Chinfrólio , marido de Onestalda .Estamos no maravilhoso mundo da pornochanchada e temos a comédia erótica brasileira num momento bastante inspirado.

Reg é o macho alfa cujas peripécias acompanhamos por diversos episódios. Dono na firma “Tem Tudo,” que sofre com a gagueira da secrétária e com a constante ausência de seus funcionários. O que leva Reg a delegar para si mesmo as entregas dos mais diversos produtos oferecidos por sua empresa. Logo percebemos que essa prontidão é levada por Reg ao pé da letra.

A proposta do cinema popular existente no Com as calças na mão aposta no humor picante e tempera suas situações deixando que a insinuação do erotismo transite elegante. Existe uma intenção clara de demarcar esse universo com os tons “sa-ca-nas” para que os personagens existam ali, criando um pacto tácito com o espectador. Afinal , como Mossy mesmo bem diz em um depoimento disponível no youtube dado nos bastidores do filme A Volta do Regresso, de Marcelo Valletta: “Todo brasileiro é pornochanchadeiro de nascimento”.

O meio encontrado pelo filme opera numa linguagem visual bem próxima dos quadrinhos, possibilitando o uso hiperbólico de todo um acúmulo de clichês e estereótipos bricolados de forma bastante potente no roteiro, propiciando a exploração antropofágica da narrativa. Assim, temos o farsesco a serviço do espetáculo cinematográfico .

Fazendo uso do duplo sentido e criando imagens onde a comédia física, o uso de gags cartunescas e um elenco caricato reforçam a liga produzida pela decupagem e pela escolha acertadíssima de grandes nomes do elenco como Wilson Grey, Zezé Macedo, Hugo Bidet, Henriqueta Brieba, Jorge Dória, Tião Macalé, Adele Fàtima,Lady Francisco, Wilza Carla e muitos outros.

Como esquecer Wilza Carla de enfermeira dublada de forma bastante sugestiva com um timbre sussurrado de garota indefesa contrastando com suas curvas de musa de Botero?A cena da aula de tênis erótico trás a lembrança do plano em que Jura Otero baila sobre a cidade em Bang Bang, de Andrea Tonacci.

Outro ponto sensacional do filme é a maneira bem resolvida com que os patrocinadores e apoiadores do filme são inseridos no roteiro, assim como a forma quase cínica com que seus produtos são apresentados. Com as calças na mão não é apenas um clássico da Pornochanchada, mas também um grande filme de cinema brasileiro. Um filme que soube fazer da história do tesão incontrolável de um homem um espetáculo engenhoso e divertido.

Os Monstros de Babaloo

Especial Wilza Carla

Os Monstros de Babaloo
Direção: Elyseu Visconti
Brasil, 1970. 

Por Sérgio Andrade
 

Um dos mais representativos exemplares do Cinema Marginal, Os Monstros de Babaloo foi interditado pela censura do regime militar provavelmente pelo modo pouco lisonjeiro com que retrata uma certa elite brasileira. Os monstros são os membros de uma família disfuncional que vive num palacete na fictícia ilha de Babaloo: o pai, o mega-empresário Dr. Badu, dono de fábricas de banana, jiló e sardinha, parece um elo perdido da evolução humana (Badu); a mãe, Madame de Bouganville, é obesa e tirana (Wilza Carla); o filho, Pudim, é meio mongo e gay; e a tia Babá uma velhinha de incríveis pernas tortas (Dona Yolanda), aos quais vem se juntar a filha mais velha, a única que aparenta alguma normalidade (Helena Ignês). Em torno deles circulam a empregada Frinéia (a impagável Zezé Macedo), o motorista japonês Tapioca (Kasuo Kon) e o chefe de polícia negro. 

A família vive isolada do mundo, alheia às notícias que vêm pelo rádio informando que o povo está tentando saquear e queimar suas propriedades aos gritos de “morte aos Babaloo” e “a ilha é nossa”. Dr. Badu apenas recomenda ao chefe da polícia que baixe a repressão no povo. 

A única preocupação deles é consumir. Comprar, comer, trepar. A Madame tem um caso com galã de bang-bang à italiana, enquanto o marido enfileira várias e jovens amantes: a manicure e duas “modelos e atrizes” (as então gatíssimas Betty Faria e Tânia Scher); o filho é seduzido por dois caras e a filha dá pro japa. 

Totalmente sem noção, esse pessoal só pensa em comprar coisas caras e inúteis, dar do bom e melhor pros amantes e exaltar seu ufanismo (numa cena eles cantam o hino da seleção de futebol de 70: noventa milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração…), legítimos filhos do “milagre econômico” que são. 

Quando seu contador lhe mostra números preocupantes sobre as dívidas das empresas, mostrando que 2 + 2 = 4, Badu responde categoricamente: “Não, 2 e 2 é 22!”. Com a chegada da falência, laços familiares e equilíbrio psicológico entram em colapso, levando a desagregação e a morte. No final, apenas quem se dá bem é a filha de aparência normal, mas na verdade ardilosa e gananciosa. Os outros membros da família, apesar da aparência grotesca, até provocam nossa simpatia pela caricatura de uma classe dominante alienada, preocupada apenas com seu bem-estar, mas sem ver maldade nisso. Como já disse alguém, as crianças adoram os monstros. 

Elyseu Visconti Cavalleiro, gravador e desenhista de formação, ao mesmo tempo em que cria cenas de puro trash, também sabe mostrar, como o Visconti italiano, a decadência de forma elegante, realçada pela fotografia de Renato Laclete, com uma pitada de Pasolini.  Reunindo um elenco de veteranos da chanchada, como Badu e Zezé (que tem um antológico número musical) e revelações recentes como Helena, Betty e Tânia ao lado de iniciantes e amadores, seu filme torna-se um regalo para o olhar. 

E boa parte disso deve-se a impressionante interpretação de Wilza Carla. Com uma cabeleira leonina, vestindo figurinos de Helio Eichbauer, sua Madame de Bouganville é a voracidade em pessoa, devorando latas de sardinha e marmelada, investindo contra a frágil Frineia, implicando com o filho, rolando na cama com o amante, exigindo que o marido compre, compre, compre e no final até matando, tudo com a classe de uma verdadeira dama da sociedade. 

Os Herdeiros

Especial Wilza Carla

Os Herdeiros
Direção: Carlos Diegues
Brasil, 1969.

Por Vlademir Lazo

Muitas das críticas mais exageradas (e algumas injustas) que se faz ao Cinema Novo brasileiro são perfeitamente aplicáveis a Os Herdeiros. Difícil demarcar quando, de fato, termina o movimento, mas existe quase um consenso de que ele não sobrevive muito tempo depois do AI-5, em dezembro de 1968. Depois ainda surgiriam alguns belos rebentos com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Macunaíma (concebidos nesse período), mas a pá de cal foi com o desastre artístico de Os Herdeiros. Com o AI-5 tornava-se impossível falar do país mais abertamente e com liberdade, e o resultado foi uma alegoria que não vai pra direção alguma como Os Herdeiros.

Por outro lado, todos que acompanham cinema brasileiro há certo tempo sabem que Carlos Diegues nunca foi bem-sucedido numa veia mais autoral. Seus melhores filmes foram realizados na segunda metade da década de setenta, quando soube lidar melhor com suas experiências e visão de cinema, de resto ele foi um dos tantos realizadores nacionais e estrangeiros que primeiro começam no cinema de arte e depois caem no pior comercialismo. Não seria exagero dizer que os seus filmes no Cinema Novo na década de 1960 foram os que dentre o movimento pior envelheceram  com o tempo.

Em Os Herdeiros, ele tenta dar conta de uma tarefa impossível àquela altura: falar do Brasil num passado recente e contemporâneo, compondo um painél da nação no século XX, adotando primeiro, por cerca de uma hora, uma estrutura bastante rígida, com capítulos curtos que sintetizam a nossa História dos anos 30 aos 50. O filme abre na fazenda de São Martinho, às vésperas da Revolução de 1930, em torno das oligarquias prestes a perderem alguns dos seus privilégios, e pula décadas e quinquênios passando pelo Estado Novo e suas torturas, o final da Segunda Guerra e a deposição de Getúlio Vargas, o retorno ao poder e posterior suicidio do presidente, etc. O núcleo dramático é uma família arruinada de plantadores de café, os Almeida, com a qual se alia Jorge Ramos (Sergio Cardoso), um jornalista ambicioso que se casa por interesse com a herdeira do clã, e após a redemocratização do país em 1945, instala-se na metrópole e se torna um político poderoso passando a perna em amigos e correligionários.

Durante quase toda essa primeira hora (o filme inteiro tem 95 minutos), Os Herdeiros beira a historiografia pura enquanto mostra a ascenção de Jorge Ramos. Não há cena ou diálogo que não esteja ali para ilustrar o seu respectivo momento histórico. Não fosse a suntuosidade da produção (a cenografia e o figurinos foram premiados), muitos de seus momentos poderiam passar como uma aula do Telecurso. Um épico didático-histórico com grande elenco: além de Cardoso, Mario Lago (como o patriarca dos Almeida), Odete Lara (com direito a um número musical, ela que gravou um disco excepcional com Vinicius de Moraes), Paulo Porto, Isabel Ribeiro, Luiz Linhares, Grande Otelo (como o lider de uma manifestação pela renúncia de Vargas e anos depois chora por sua morte), Hugo Carvana, Anecy Rocha, entre outros. Até estrelas internacionais surgem em cena: Jeanne Moreau aparece numa ponta (quatro anos depois ela protagonizaria um dos piores filmes de Diegues, o infeliz Joanna Francesa) e até Jean-Pierre Léaud (o ator fetiche da Nouvelle Vague), o qual suas aparições em Os Herdeiros causam constrangimentos. A homenageada do especial desta edição da Zingu!, Wilza Carla, aparece num breve momento, ao lado de um jovem Daniel Filho como hóspedes gringos numa refeição no Copacabana Palace nos anos 40.

Carlos Diegues talvez houvesse realizado um trabalho mais memorável se tivesse o amparo de um romance de qualidade como base para Os Herdeiros. Ao invés disso, preferiu ele próprio conceber um roteiro original para o seu filme, perdendo em substância e profundidade. Pode-se não ter paciência ou reclamar de alegorias como Terra em Transe ou A Idade da Terra, mas estes são puro cinema de invenção e radicais experiências de linguagem, enquanto que Os Herdeirose, em grande parte do tempo, ressente-se de ser quadradinho demais (e sem um inconformismo político de outros filmes brasileiros da época,  como o próprio Terra em Transe e O Desafio). Em determinadas sequências o filme mais parece uma minissérie de TV bem-cuidada com pano de fundo histórico.

Nos últimos trinta e cinco minutos, o filme se passa na década de 60 (a partir da fundação de Brasília), quando ao ter que falar de um período tão próximo da época de sua realização, Os Herdeiros se assume como alegoria pura, difusa e tropicalista, entre retornos a Fazenda de São Martinho e as lutas pelo poder em Brasília e no Rio de Janeiro, em meio ao advento da televisão. O conflito dramático dessa vez é entre Jorge Ramos e seu filho, o qual espera tornar o seu herdeiro, mas que se volta contra ele como vingança por suas vítimas, aliando-se aos militares e traindo o pai. Grande parte do filme é musicado por Villa-Lobos e canções populares, o que inclui a participação em cena de intérpretes como Dalva Oliveira, Nara Leão, Bob Nelson e um jovem Caetano Veloso.

Exibido na Quinzena de Realizadores em Cannes e no Festival de Veneza,  Os Herdeiros pode ser considerado um elefante branco do cinema brasileiro. Na época, Carlos Diegues, em entrevista para a Cahiers Du Cinèma, decretaria que o Cinema Novo morrera. Seu filme então seria o atestado de óbito.

O Rei da Boca

Especial Wilza Carla

O Rei da Boca
Direção: Clery Cunha
Brasil, 1982.

Por Ailton Monteiro
 

Roberto Bomfim é um ator que funciona perfeitamente para fazer tipos rudes, brutos. Um de seus papéis mais memoráveis no cinema foi o do sequestrador Mil e Uma, do drama Terror e Êxtase (1979), de Antônio Calmon. Ele é a coluna de sustentação de O Rei da Boca (1982), de Clery Cunha. Bonfim interpreta Pedrão, um sujeito que saiu da roça para se tornar o maior traficante e gigolô da Boca do Lixo em São Paulo. O filme já começa com o final, com o personagem sendo preso pela polícia e recebendo gargalhadas escarnecedoras da cafetina vivida por Wilza Carla, em pequeno, mas marcante papel. 

Desta cena, o filme volta no tempo e nos mostra a trajetória de Pedrão, de quando ele conhece dois homens que estão procurando a sorte à cata de pedras preciosas. Depois de meses sem encontrar nada, ele consegue achar uma pedra bem valiosa e por causa dela sofre torturas, tanto do patrão quanto da polícia. Mas sempre negando a acusação de ter escondido a pedra. Depois de apanhar da polícia e de pegar a pedra de volta, mata o colega traidor e o patrão e foge para São Paulo, depois de ter vendido a pedra por menos do que ela valia. Mal chegando na “selva de pedra”, ele se envolve logo numa discussão besta num bar e vai parar na cadeia, quando conhece um traficante de maconha. Como não tem o que fazer e não sabe ler nem escrever, aceita a oportunidade de se tornar vendedor da erva. Aos poucos, ele vai crescendo, a ponto de ter várias bocas e dominar muitos prostíbulos da região.

O filme tem uma essência bem marginal, com fotografia despojada, muito palavrão, sexo pago e corrupção por todos os lados. No entanto, Pedrão, apesar de tudo, não é um personagem a provocar o ódio da audiência, por piores que sejam os seus atos. Afinal, se todo o sistema é corrupto, incluindo advogados, delegados e policiais, não fica tão difícil assim seguir o personagem em sua trajetória sem julgá-lo. O que há de admirável nele é sua força e coragem. O que há de reprovável fica por conta da moral de cada espectador.  No grande elenco coadjuvante, destaque para Zaira Bueno, no papel de Valeska, uma stripper que se envolve com a gangue de Pedrão e contribui com dois dos melhores momentos do filme.

 

Macunaíma

Especial Wilza Carla

 

 

Macunaíma
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Brasil, 1969. 

Por Filipe Chamy
 

Se a adaptação literária em cinema já é um imbróglio suficientemente intrincado com livro que seja, que dirá com Macunaíma

Além de ser um romance capital da literatura modernista (e moderna) brasileira, o livro é tão famoso que não só é ícone como objeto de paródias, releituras, análises mil e inúmeros tipos de revisões, influências e homenagens. 

E não só isso: é uma obra de linguagem, de métrica (ou de falta de métrica, de sua irrelevância), de vozes de todo tipo se confrontando, de vanguardismo poético, de todo tipo de surrealismo chocando sentidos textuais e não textuais. 

Para adaptar uma sinfonia caótica dessas, apenas alguém pelo menos tão capacitado (ou imaginativo) quanto seu autor, o célebre Mário de Andrade. E a pessoa ideal, claro, era Joaquim Pedro de Andrade.

 Já desde o início Joaquim Pedro vai insinuando sua visão de mundo no meio do intrincando cosmos de retalhos de folclore, crítica social e proposta de estrutura descritos por Andrade. Agrega elementos de suas percepções e idiossincrasias, como quando põe Ci (feita por uma bela e elétrica Dina Sfat), uma espécie de guerrilheira, ao sabor da efervescência política dos “anos de chumbo”, ou quando enche a narrativa de máquinas modernas, carros e outros contrastes com a ideia inicial (na história) de calma, bucolismo, indianismo.           

Aliás, o caráter “sem caráter” do herói da nossa gente é representado brilhantemente por uma dupla transição: nasce Macunaíma feito por Grande Otelo, de uma mãe-entidade feita por Paulo José; depois, uma mágica água transforma o negro Grande Otelo no branco Macunaíma Paulo José, que terá um filho que é negro e… Grande Otelo! Essa dualidade, ou melhor, essa “falta” de aparência, esse amorfismo, está presente em todo o romance, e em todo o filme, de maneiras diferentes, opostas mas complementares. Que não se diga que Joaquim Pedro traiu “o espírito” do livro, pois seu Macunaíma é tão bizarramente irreverente, iconoclasta e (claro) preguiçoso quanto o das linhas publicadas em 1928. 

Pontuando essa carnivalização étnica de nossa gente, espécie de desfile de nossa cultura caricaturada por uma mente gozadora, está uma galeria de personagens grotescas que faria inveja a Alejandro Jodorowsky (aliás, grande admirador de Joaquim Pedro): Rodolfo Arena é Maanape, irmão de Macunaíma com veneranda aparência de druida – ou mais propriamente um hippie, pois Woodstock foi quase simultâneo a este filme -; Milton Gonçalves é Jiguê, o outro irmão, meio sobra de uma saudade colonialista (o que é irônico, pois ele é de pele negra também); Jardel Filho é Venceslau Pietro Pietra, o gigante comedor de gente, detentor da muiraquitã, a pedra-símbolo da busca inalcançável por identidade de Macunaíma. E, para fechar o cortejo, a recém-falecida Wilza Carla é uma senhora de proporções fellinianas e caráter não menos expansivo e circense: é ela a estranhamente terna mulher que cuidará (com aparentes segundas intenções) da convalescença do herói quando ele se ressente do embate contra o gigante; ela acompanhará boa parte do confronto, torcerá, o apoiará e cuidará de sua depressão no fracasso. No fundo, é o papel de um treinador de boxe, que acudirá com água e uma toalha seu campeão prostrado no ringue. 

Mas Macunaíma não pode perder a luta: é a brasilidade em jogo. Mas como Joaquim Pedro nunca foi bobo, o discurso é o mínimo que interessa a ele para dar seu recado. Aos ufanistas ele repetirá incessantemente as palavras do herói: “ai, que preguiça”.

Loucuras de um Sedutor

Especial Wilza Carla

Loucuras de um Sedutor
Direção: Alcino Diniz
Brasil, 1976

Por  Leonardo “Leo Radd” Freitas
 

Lourenço é um personagem feito sob medida pro ator Paulo César Pereio, pois exige um certo talento natural pro tipo mulherengo, canalha, sedutor, cínico, e pilantra. Pra um papel desse tipo, não pode ser um ator qualquer: é preciso ser convincente e fazer com que o espectador torça pro malandro se dar bem e passar a perna em todo mundo durante o filme todo (de preferência saindo impune no final, independente de todas as vigarices que tenha aprontado). Assim transcorre o filme Loucuras de um Sedutor (de 1976), estabelecendo logo de cara uma relação de identificação entre personagem e espectador.   

O filme já começa com Lourenço fugindo da cidadezinha onde morava no dia de seu casamento (forçado) com a filha do violento Coronel Manoelão. Ao ser descoberta a fuga, o malandro passou a ser caçado pela população inteira da cidade e, principalmente, pelo coronel: que não admitia ficar com uma filha grávida plantada no altar. Mas apesar do atraso do trem, o “noivo” conseguiu embarcar e escapar da turba enfurecida. E de quebra ainda mandou uma “banana” pra todo mundo (já a salvo no trem, é claro).

Essa abertura (tudo isso acontece antes de entrar a vinheta animada com os créditos) já dá o tom do filme: o malandro será caçado e perseguido pelo coronel onde quer que tenha ido, e a amoralidade do personagem principal não tem limites, interessando-lhe apenas traçar a mulherada e se dar bem (às custas dos outros, obviamente).

Chegando ao Rio de Janeiro, Lourenço passa a viver de pequenos golpes pra sobreviver na cidade grande. Ele assume diversas personalidades e identidades ao longo do filme: se faz passar por fazendeiro, por escritor (inclusive tirando proveito da ingenuidade de um talentoso mas insano doente mental e assinando as obras por ele), e até mesmo um afeminado costureiro: papel que usa pra seduzir mulheres da alta sociedade, aproveitando-se do fato de que os maridos nem desconfiam que um costureiro aparentemente homossexual irá se fartar sexualmente das mulheres deles.

Numa dessas pilantragens, Lourenço se depara com uma voluptuosa ricaça (Wilza Carla) e acaba se envolvendo com ela pra tentar faturar uma graninha fácil, mas nem tudo que parece fácil acaba sendo de fato, como logo o vigarista percebe. E com a frustração de um golpe mal-sucedido, o negócio é partir pra outro e mais outro, afinal, pro bom malandro o importante é se dar bem com o mínimo de esforço possível.

Paralelamente a tudo isso, o Coronel Manoelão segue os rastros de Lourenço e acaba se hospedando na mesma pensão (onde acaba transando com uma bela loira gostosa e interesseira). Essa pensão, aliás, é um antro de personagens clichês típicos das pornochanchadas dos anos 70: tem a vizinha gostosa e desinibida; o homossexual caricato que serve de alívio cômico pra platéia machista; e inquilinos encrenqueiros e/ou trapalhões. Diante de tudo isso, o coronel (um homem respeitável e moralmente íntegro) acaba se corrompendo pela imoralidade que antes tanto criticava.

Lourenço, até então um sedutor por natureza, acaba ele próprio se deixando seduzir pela belíssima Vera Gimenez (que até o ajuda em alguns golpes). Mas finalmente é capturado pelo coronel e levado de volta ao altar. Só que o bom malandro sempre tem uma carta na manga, e depois de algumas aventuras sexuais na cidade grande, o moralista coronel também passou a ter um telhado de vidro: fato usado pelo malandro pra sair “limpo” dessa no final (já que o coronel se viu obrigado a arrumar outro “otário” pra casar com a filha).

Enfim, filmes protagonizados por malandros poderiam render até mesmo um sub-gênero da nossa produção nacional. Temos vários ótimos exemplos de filmes que seguem o mesmo estilo narrativo e as mesmas características básicas de apresentar as aventuras (ou desventuras) de personagens amorais diante de um contexto onde se deparam com vida dura da cidade grande e precisam usar seus “talentos” pra passar a perna nas pessoas (evitando terem de trabalhar) e seduzir as mulheres (coisa que todo malandro gosta). Memórias de um Gigolô (baseado no livro homônimo), Embalos Alucinantes – A Troca de Casais, O Bom Marido (também estrelado por Pereio), Gente Fina é Outra Coisa, e esse Loucuras de um Sedutor: expoentes desse gênero que se sai muito bem naquilo que se propõe, ou seja, divertir e fazer rir sem maiores pretensões e usando e abusando de estereótipos.

 

Leonardo “Leo Radd” Freitas é autor do blog Submundo HQ (http://submundo-hq.blogspot.com/)

    

Guerra Conjugal

Especial Wilza Carla
 

Guerra conjugal
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Brasil, 1975. 

Por Filipe Chamy
 

Histórias do cotidiano seguirão existindo enquanto as pessoas viverem suas vidas. Basta ficar um pouco atento nos ônibus e ouvir essas crônicas diariamente, cada uma com um tempero e uma graça diferentes. 

Filmes sobre esses acontecimentos fugazes não são tão comuns quanto deveriam. A megalomania impera e o desejo dos cineastas e público é por grandiloquência, temas épicos, superproduções que se distanciem o máximo possível de suas vidas. 

Assim também com o cinema brasileiro, que tenta mostrar-se importante aos olhos do mundo investindo em denúncias sociais, críticas políticas e demais panfletarismos passageiros. 

Aos inteligentes, resta a glória duvidosa da subestimação, e Joaquim Pedro de Andrade está nessa situação. Um filme como Guerra conjugal é muito mais importante, enquanto cinema, que tolices como nossas novas “sociochanchadas” (termo já difundido na nossa Zingu!), com suas premissas demagógicas e seus filmes mal desenvolvidos. 

Estruturando a obra em várias esquetes interligadas, temos Joaquim Pedro brincando com a sofisticação narrativa de coisas, afinal, triviais, corriqueiras. Casamentos, traições, disputas verbais ou físicas, desentendimentos, desilusões, fracassos. Não é preciso ser genial como o realizador para perceber que o microcosmos da ventura humana está aí nessas pinceladas do dia a dia das personagens: como ser mais épico do que ao retratar a luta das pessoas em seus dramas diários? 

Claro que o sexo dá as caras, mas não se adentra (felizmente) o vulgar terreno das pornochanchadas, as comédias sexuais do cinema brasileiro. Como o filme foi escrito pelo célebre escritor Dalton Trevisan e pelo próprio Joaquim Pedro, a intenção é mais ambiciosa, e plenamente satisfeita. Fala-se de sexo, claro, mas ele não é o fim de tudo, a obsessão primordial. Antes é preciso zombar das convenções, amoralizar a caretice da iconoclastia ingênua das farsas de humor produzidas em tão largo ritmo: então Cristina Aché é a moça “flor que não se cheire”, que se esfrega de calcinha no namorado cafajeste na frente da avó cega (após um sugestivo diálogo sobre cuspir e engolir), mas a avó também é “santa do pau oco” e apalpará esse namorado canalha enquanto fala sobre velhice e abandono; Jofre Soares é o marido vilão que se sente humilhado pela impotência de perceber-se ridículo, digno do nojo da esposa; Lima Duarte é o advogado que se divide entre o amor, o sexo e a culpa pela indefinição de seus desejos (ainda mais com uma proposta indecorosa que lhe é feita); e Carlos Gregório, o namorado ordinário apalpado pela velha indecorosa, precisa pular de galho em galho até descobrir a que árvore pertence. Numa de suas experiências, depara-se com nossa homenageada Wilza Carla, descrita por ela própria como “noventa e nove quilos de carne”, uma nem tão sutil assim crítica à “objetificação” feminina dos filmes brasileiros de então, onde a mulher geralmente é resumida a carne de abate e consumo. 

Causa uma saudável estranheza uma fita como Guerra conjugal, que parece não ter propósito e não se empenhar em passar qualquer moral. Mas a mensagem é justamente essa: não ter mensagem. As histórias estão lá, as anedotas e “causos”, pintados com suas tintas reais e veiculados convencionalmente como um filme (bem filmado), para quem quiser ver, sem embutir aí qualquer “dedo na cara” ou obrigação cívica — o que parece estar muito em voga hoje. Na verdade, cineastas medíocres e filmes enganosos sempre foram o prato do dia no cardápio de qualquer filmografia, em qualquer país. Mas eventos como Guerra conjugal fazem pensar que as exceções sempre fazem tudo valer a pena.

As Massagistas Profissionais

Especial Wilza Carla

As Massagistas Profissionais
Direção: Carlo Mossy
Brasil, 1976.

Por Ailton Monteiro
 

O humor de As Massagistas Profissionais (1976) lembra um pouco o de Os Trapalhões, só que com muito mais pimenta e escatologia. É um tanto vulgar e com aspecto amador, mas, por outro lado, o erotismo – o tesão ainda se conserva – é o que de melhor o filme tem. Há também o ar anárquico, o fato de o diretor (Carlo Mossy) não estar se lixando em contar uma história nos moldes clássicos, embora as várias subtramas (se é que dá pra se chamar assim) sejam amarradas no final.

Wilza Carla é uma das duas massagistas que sai da roça para o Rio de Janeiro para trabalhar numa clínica de massagem chamada Academia Mãos de Ouro. Ela e a amiga ficam loucas para serem tão desejadas quanto as mais bonitas do lugar, chefiado por um sujeito chamado Dr. Jacinto Brochard (Fernando José), que na maioria das vezes aparece de jaleco e cueca. O protagonista da trama é Duda (Edson Rabello), um rapaz mulherengo que quer pegar tudo quanto é mulher bonita que aparece pelo caminho. Ele é um malandro simpático que engana inclusive a senhora a quem ele deve o aluguel.

O filme passa a impressão de ter sido feito sem roteiro. A chegada, por exemplo, do chinês Fung-Ku (Amândio) fica parecendo uma ideia inventada na hora. Ele vai perseguir Duda ao estilo dos desenhos animados da Warner, por ele ter transado com sua mulher – que já aparece no filme com um decote bem provocante. 

Há também uma pequena trama de um sujeito que é corneado e que vai parar na academia de massagem para relaxar. A falta de graça nas piadas, que envelheceram mal, é o principal demérito do filme, embora humor seja uma questão de gosto ou de estado de espírito. A própria Wilza Carla não se incomoda em ser objeto de escárnio na cena em que aparece de maiô numa praia e os banhistas a chamam de jamanta. Enfim, uma comédia que funciona como representativa de um tempo.

 

Seu Florindo e Suas Duas Mulheres

Especial Wilza Carla

Seu Florindo e Suas Duas Mulheres
Direção: Mozael Silveira
Brasil, 1978. 

Por Adilson Marcelino  

 

 

Paródia do sucesso arrasa-quateirão Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto – até há pouco tempo a maior bilheteria da história do cinema brasileiro, posto que perdeu para Tropa de Elite 2, de José Padilha – Seu Florindo e Suas Duas Mulheres é dirigido e protagonizado por Mozael Silveira.

Aqui, a Flor de Sônia Braga vira o Florindo de Mozael Siveira. Já o Vadinho de José Wilker vira a Vadia de Wilza Carla, e o Teodoro de Mauro Mendonça vira a Dora de Lameri Faria.

Como lá e no romance de Jorge Amado – origem da história -, Vadia tem morte fulminante em pleno carnaval. Daí, o professor Florindo, que é assediado pelas alunas, acaba se casando com Dora, a virgem do pau oco. Só que lá pelas tantas, o fantasma de Vadia volta para a vida e para a cama de Florindo, e, sobretudo, para a mesa de jogos, já que era viciada no carteado.

Seu Florindo e Suas Duas Mulheres aposta na estética de Mozael Silveira, um tanto tosca e recheada de humor físico e pastelão. O resultado quase nunca atrai, ainda que pareça que Mozael realmente confie na graça pretendida.

Vadia é mesmo um achado e cai como uma luva para Wilza Carla, que defende sua personagem com unhas e dentes, apesar  do roteiro não contribuir em nada. Há as quase inevitáveis cenas de gula associadas à obesidade da atriz como piada pretendida, como também os amassos de cama explorando a mesma obesidade. Tem também os figurinos exóticos, uma das marcas da atriz.

Como pesadelo involuntário, há o uso insuportável da trilha sonora, que quase não nos dá descanso em seus acordes pontuando as cenas de cabo a rabo.

São de Wilza Carla os únicos bons momentos desse Seu Florindo e Suas Duas Mulheres, que tem ótima abertura – o cordão de carnaval -, mas que não se sustenta em seus 96 minutos.