Por Nísio Teixeira
Quero tentar responder a essa pergunta a partir de outra, colhida do livro Ponte Clandestina, de José Carlos Avellar: o cinema, afinal, representa ou reapresenta o mundo? No caso, entender o que é o cinema brasileiro passa por entender como o cinema representa ou reapresenta o Brasil?
Boas perguntas, difíceis respostas. Acho que, de imediato, temos a tendência de pensar que o cinema brasileiro esteja associado à origem geográfica, ao gentílico daqueles envolvidos no filme. Mas, certa feita, numa mesa no Centro Cultural da Lagoa do Nado, em Belo Horizonte, o escritor e jornalista Jorge Fernando dos Santos lembrou um negócio interessante: o sufixo eiro não é, digamos, o mais adequado para determinar gentílicos. Afinal, se falamos de alguém nascido no Canadá, na França, no Peru, Moçambique, Japão ou Austrália, falamos que Fulano de tal é canadense, francês, peruano, moçambicano, japonês ou australiano. Mesmo quando lá de fora as pessoas falam de nós, falam de brazilian, brasileño, brésilien, mantendo a lógica bonitinha do sufixo de gentílico.
Mas nós nos referimos a nós mesmos como brasileiros, ou seja, ao invés de um tradicional sufixo gentílico, que seria brasiliano ou brasiliês, por exemplo, recorremos ao eiro, que, sabemos, é um sufixo de ocupação, de profissão, do tipo padeiro, marceneiro, açougueiro, e, enfim, brasileiro. Ser brasileiro seria mesmo então uma profissão de fé? Ou, como sugeriu o Jorge, algo que remonta até mesmo ao tráfico do pau-brasil nos tempos coloniais?
Fato é que, assim representado, parece-me que deriva dessa imagem a ideia de que o cinema brasileiro é aquele que, de certa forma, faz do Brasil e do cinema também sua profissão de fé. E que, por isso mesmo, talvez o cinema brasileiro seja aquele que reapresenta essa pergunta de maneira eloqüente em seus filmes. É, a um só tempo, um exercício de reconhecimento (ou descobrimento) pelo espectador, em um filme, de geografias, hábitos, problemas, costumes e personagens brasileiros – ou de suas diferentes representações (Lábios sem beijos, Macunaíma, Marvada carne, Cinema, Aspirinas e Urubus). Mas também pode ser uma forma brasileira de olhar o mundo (Terra Estrangeira) e, oxalá, a percepção, em contraponto, de como o mundo nos olha (Orfeu da Conceição).
Pensar a questão da identidade como representação e reapresentação, dessa forma, pode ser um exercício interessante de resposta. Apenas a título de comparação, pensemos, por um momento, no que conhecemos como cinema canadense. Salvo uma ou outra exceção, os bons exemplos mais recentes remetem ao cinema do Quebec (que, não por acaso, tem uma política forte no setor), uma produção que reitera a identidade, a história, a geografia e a cultura daquela província francófona no Canadá (caso dos filmes de Denys Arcand, como Invasões Bárbaras). Mas não reconhecemos o Canadá, por exemplo, ao assistir a 24 horas ou Casamento Grego, pois apesar de eventualmente sabermos que a produção ocorre em cidades canadenses como Vancouver ou Toronto, o que temos são tais cidades travestidas como Los Angeles ou São Francisco.
Procurando expandir a questão nessa perspectiva, encerro a contribuição remetendo a outra passagem do mesmo livro com o qual abri o texto:
Arte imperfeita, espaço impreciso entre o teatro e a pintura, entre a pintura, entre a literatura e a música, entre a escultura em movimento e o sonho petrificado, entre a realidade e a imaginação, o cinema de um certo modo tem estimulado a discussão em torno da identidade. Em parte porque a grande indústria tem usado o filme para combater a construção de livres e diferentes identidades, para afastar o espectador do contato criativo com a realidade em volta dele. Em parte maior porque o cinema, como um todo, passou longo tempo à procura de sua essência, do seu específico, até descobrir que sua identidade é mesmo esta forma aberta e em movimento que tem algo de parecido com o jeito em transe da América Latina.
FIM
Nísio Teixeira é jornalista, professor da UFMG e intregante do revista Filmes Polvo.