Inventário Grandes Musas da Boca

Nádia Destro


Por Adilson Marcelino

As musas da Boca do Lixo são eternas, mas algumas delas são, injustamente, menos lembradas. Esse é o caso da paulista Nádia Destro.

Nascida em 1º de junho de 1958, Nádia destro começou a carreira artística como modelo fotográfico, mas logo foi atraída pelo cinema, onde vai desenvolver trajetória de 13 filmes e ser dirigida pelos bambas da Boca.

Nádia Destro estreia no cinema já no final dos anos 1970, década de ouro da produção cinematográfica da Boca do Lixo, que no início dos 80 cairia de boca, com o perdão do trocadilho infame, no sexo explícito. Talvez por isso, a atriz não tenha ficado tanto no imaginário popular como outras deusas do pedaço.

No entanto, isso não impediu Nádia Destro de atuar sob a batuta de cineastas como Antonio Meliande em Damas do Prazer (1978), que marca sua estreia, Ary Fernandes em Sexo Selvagem (1979) e José Mojica Marins em Estupro (1979).

É na década de 80 que se situa grande parte da filmografia da atriz, sobretudo nos dois primeiros anos, 1980 e 81, já que com a chegada do explícito Nádia Destro será mais uma a debandar do cinema.

A comédia safada de Fauzi Mansur, O Inseto do Amor (1980), reúne deusas da Boca quase que por fotograma: Helena Ramos, Angelina Muniz, Zélia Diniz, Rossana Ghessa, Ana Maria Kreisler, Claudette Joubert, Liza Vieira, Alvamar Taddei, Misaki Tanaka, Ariadne de Lima, e, claro, Nádia Destro.

Ainda em 80, atua também em Império das Taras, de José Adalto Cardoso, Bacanal, de Antonio Meliande, e no cult A Prisão, de Osvaldo de Oliveira.

E é essa década também que marcará o encontro entre a musa e o cineasta Alfredo Stenrheim, que vai reservar duas personagens importantes para a atriz, em Corpo Devasso (1980), e Violência na Carne (1981).

Corpo Devasso é o ousado filme de Sternheim produzido e protagonizado por David Cardoso, um trabalhador rural que foge do interior e acaba se prostituindo em São Paulo, onde é sustentado por mulheres e faz grana em transas gays. Nádia Destro é Silvia, a filha da possessiva advogada Ângela (Meire Vieira), sendo que ambas disputam o amor e o corpo do caseiro, emprego que Beto (Cardoso) se aventura para tentar largar a prostituição, masque acaba lançando-o novamente para a cama.

Violência da Carne focaliza um grupo de teatro que é feito refém por bandidos que estão fugindo da cadeia. Nádia Destro é uma das vítimas do sadismo de alguns integrantes do bando, tanto ela quanto sua namorada interpretada por outra musa, a talentosa Sonia Garcia – o elenco tem mais duas deusas, Helena Ramos e Neide Ribeiro.

Antes de abandonar o cinema, Nádia Destro será dirigida ainda por três dos mais importantes diretores da Boca: José Miziara em Como Faturar a Mulher do Próximo (1981); Carlos Reichenbach no GRANDE O Império do Desejo (1981), e John Doo no cult Ninfas Insaciáveis (1981).

Filmografia

Damas do Prazer, Antonio Meliande, 1978
Sexo Selvagem, Ary Fernandes, 1979
Estupro, José Mojica Marins, 1979
O Inseto do Amor, Fauzi Mansur, 1980
Império das Taras, José Adalto Cardoso, 1980
Bacanal, Antonio Meliande, 1980
A Prisão, Osvaldo de Oliveira, 1980
Corpo Devasso, Alfredo Sternheim, 1980
Violência na Carne, Alfredo Sternheim, 1981
Como Faturar a Mulher do Próximo, José Miziara, 1981
O Império do Desejo, Carlos Reichenbach, 1981
Ninfas Insaciáveis, John Doo, 1981.

Filmografia

Dossiê Júlio Calasso

2011/2012 – concepção, produção e direção: “Nas Quebradas do Mundaréu”.
2012 – Plinio Marcos na Lapa: Dois Perdidos, Navalha na Carne, Abajur Lilás.
2005 – Electra no Municipal, documentário LM
2003 – Electra na Mangueira, documentário formato TV (56 minutos)
2001 – Incrível Encontro,  documentário formato TV (56 minutos)
1995    “A Última Noitada” Filme, ator

1994    “O Amor Está no Ar” Filme LM, produtor executivo
1993    “Pé de Pato”, ator
1992    “Nayara, a Mulher Gorila”, ator
1990    “Sua Excelência, O Candidato” Filme, produção
1987    “A Dama do Cine Shangai” Filme, ator
” Beijo 2348/72″ Filme, ator
“Real Desejo” Filme, ator
1986    “Fronteira das Almas” Filme, ator
1985    “Filme Demência” Filme, ator
1984    “O Baiano Fantasma” Filme, lançamento
1983    “Sargento Getúlio” Filme, lançamento
1980    “O Baiano Fantasma” Filme, ator
“Eh, Pagu, Eh!” Curta metragem, ator
“A Voz do Brasil” Curta metragem, ator
“O Homem Descasado”, média metragem, ator
1973    “Sítio do Pícapau Amarelo” Filme, produção
1970    “Prata Palomares” Filme, produção
“Longo Caminho da Morte” Filme, diretor, roteirista
1969    “República da Traição” Filme, produtor executivo
1968    “O Bandido da Luz Vermelha” Filme, produção e ator
“Viramundo” Documentário, assistência de direção.

Musas Eternas

Natalie Wood


Por Filipe Chamy

É difícil imaginar que com apenas quarenta e três anos de vida alguém pode ter conseguido incríveis trinta e sete de carreira. Também é de se espantar que uma existência tão repentinamente interrompida há trinta anos continua pulsando hoje em milhões de lugares mundo afora. O caso é que estamos falando da admirabilíssima Natalie Wood, morta em 1981 e no entanto mais viva do que nunca na televisão, nas mostras de cinema, nos produtos de home video. Sua celebridade continua tão firme quanto em sua época de maior notoriedade em vida.

O que poucos sabem é que a mocinha decididamente americana que encantou e encanta gerações décadas afora era, na realidade, de ascendência russa! Nem mesmo o macarthismo conseguiu se opor ao sucesso que era o destino e direito de Natalia Nikolaevna Zakharenko.

Começando ainda bem criança no cinema, a pequena Natalie conseguiu seu primeiro papel de destaque como a filha questionadora de Maureen O’Hara no clássico natalino De ilusão também se vive (ou, como hoje vem sendo mais fielmente traduzido, Milagre na rua 34). Sendo a verdadeira catalisadora da ação do longa, não é pouco para uma menininha salvar o Natal e um filme meio tendencioso na afirmação do American way of life.

Assim como Brigitte Bardot, Natalie Wood não foi nunca uma atriz imposta pela publicidade ou comcontatos facilitadores: durante anos e anos a jovem gastou seu talento em participações pequenas em seriados televisivos consideravelmente obscuros, filmes pouquíssimo ambiciosos e produções de luxo nas quais apenas era uma coadjuvante pouco importante — ou a leading lady quando moça. Dessa época, são os clássicos O fantasma apaixonado, Seu único desejo e O manto sagrado.

No meio da década de 1950 há a grande virada: seu decisivo encontro com Nicholas Ray, diretor-fetiche dos influentes críticos franceses que movimentariam o mundo do cinema pouco tempo depois, com a nouvelle vague. A obstinação de Natalie enfim é recompensada com um papel-chave em um filme que definiria certos rumos daquela geração: Juventude transviada. Na pele da rebelde Judy, demonstra que sua pouca idade (dezesseis anos) não era empecilho para seu desempenho dramático: o filme causa sensação, a crítica debruça-se sobre esse novo cinema que quebrava com os moldes clássicos do conservador star system hollywoodiano e Natalie consegue um impulso e tanto na carreira: é indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel.

Em 1956 dá-se o encontro com outro mestre das telas: John Ford. No seminal Rastros de ódio é Natalie quem faz a ligação entre o “civilizado homem branco” (John Wayne) e os “selvagens assassinos e amorais” (os índios). A jovem Debbie Edwards demonstra como essas convenções são estúpidas na real convivência dos povos, e como raças são totalmente inúteis para se definir caráter ou justiça. Ao final, é ela quem unirá de maneira um pouco esperançosa o conquistador e o conquistado.

Após mais um punhado de filmes, em que contracenava com figuras como Gene Kelly (Até o último alento), James Garner (Cash McCall), Tab Hunter (The girl he left behind), seu então marido Robert Wagner (All the fine young canibals), Tony Curtis e Frank Sinatra (Só ficou a saudade, drama romântico de guerra dirigido por Delmer Daves), Natalie Wood parte para a mais desafiadora, completa e autoral fase de sua filmografia, praticamente toda condensada nos anos sessenta.

Começando com o filme em que aparece mais linda, intensa e impressionante: Clamor do sexo,felicíssima parceria com Elia Kazan. Obra sobre decepções juvenis, ritos de iniciação na vida adulta, descompasso entre gerações, desabrochar sexual, chagas perenes e traumas profundos. No papel de Wilma Dean Loomis, Natalie provou definitivamente que era mais do que uma bela estrelinha de grandes olhos castanhos: era uma força incontrolável. Sua arrebatadora performance levou naturalmente à sua segunda indicação ao Oscar.

No mesmo 1961, outro grande sucesso: Amor, sublime amor. O musical dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins, no entanto, hoje não é tão bom exemplo do “toque” mágico dessa garota baixinha de estatura (cerca de um metro e meio): como Maria, a porto-riquenha irmã do líder de uma gangue rival daquela em que está seu apaixonado, Natalie faz o que pode num musical meio engessado, arrastado, coreografado mecanicamente e com músicas pouco consistentes; seu sotaque algo deslocado é o maior charme do filme, e a maquiagem que a torna artificialmente morena não impede que sua figura destile graça e leveza a cada passo ou movimento. Sua Maria é, portanto, doce e verdadeira, num filme que a desperdiça de todas as formas, inclusive com Marni Nixon dublando sua voz em todos os números.

Em seu próximo filme, Em busca de um sonho, Natalie divide a cena com Rosalind Russell, fazendo a icônica Gypsy Rose Lee. Infelizmente o filme de Mervin LeRoy sofre de um academicismo tremendo, que torna o já longo filme uma estafante experiência. De positivo destacam-se duas coisas: Natalie canta com sua própria voz e despe-se com desenvoltura e sensualidade encarnando o tipo fatal da famosa stripper.

Nesta época consolida-se outra faceta pouco difundida de Natalie Wood: seu talento cômico. Atriz versátil, convencia em papéis trágicos e reais como em Clamor do sexo ou em delirantes screwballs como Médica, bonita e solteira (de Richard Quine), em que faz par com Tony Curtis e diverte-se como uma maluquinha inconsequente. Tipo que repetiria com certas mudanças em A corrida do século, de Blake Edwards, onde personaliza o protótipo da Penélope Charmosa dos posteriores desenhos animados da Corrida Maluca. É uma agradável surpresa vê-la tão descontraída, numa trama divertida em que prega o feminismo e ataca a dominação chauvinista da sociedade enquanto não traja nada mais que uma provocante lingerie — ilustrando um paradoxo que é meio o arquétipo da comédia: o choque entre duas realidades.

Ainda nesse produtivo decênio, Natalie fez dois filmes com o subestimado Robert Mulligan, autor de obras-primas como O sol é para todos e No mundo da lua. Pelo primeiro filme, O preço do prazer (ridícula tradução moralizante para Love with the proper stranger), foi indicada ao Oscar pela terceira (e última) vez antes mesmo de completar vinte e cinco anos (foi a mais jovem atriz a concorrer em cada uma de suas três indicações, aliás). Trata-se a princípio de uma dolorosíssima jornada empreendida por uma jovem confusa com a inesperada perspectiva da maternidade; ocorre que depois de mostrar o mais duro e real relato sobre o aborto e suas dificuldades e condicionantes, Mulligan não conseguiu resistir à imposição de amenizar o tom de um filme estrelado por Natalie Wood e Steve McQueen — resultado: o terço final do filme transforma-se sem explicação numa comédia romântica! O segundo filme que Natalie e Mulligan fizeram juntos foi À procura do destino, obra bastante irregular sobre uma garota adolescente marginalizada por uma vida rude e que de repente desponta para a fama (e depois não aguenta o baque). Novamente miss Wood é dublada nas canções. Curiosidade: o filme foi roteirizado por Gavin Lambert, que se tornaria amigo de Natalie e seu biógrafo.

Após filmar Os prazeres de Penélope, de Arthur Hiller, Natalie co-estrela com o ainda estreante Robert Redford (com quem havia já aparecido em À procura do destino) Esta mulher é proibida, hoje considerado um dos melhores filmes de Sydney Pollack. Com produção de luxo, Francis Ford Coppola sendo um dos roteiristas e Natalie belíssima num technicolor deslumbrante, o filme ainda hoje é forte em seu retrato de uma mentalidade conservadora no trato sexual, a hipocrisia interiorana que está bem longe de parecer simplesmente uma alegoria ou metáfora: nossos costumes não mudaram tanto. Mas o filme padece de uma evidente parecença com Clamor do sexo, e nesse embate certamente sai perdendo: Pollack fez um bom trabalho, mas com Kazan estamos diante de uma obra-prima.

O filme seguinte é o ainda controverso Bob & Carol & Ted & Alice, de Paul Mazurksy. A doce Natalie Wood dos draminhas açucarados dos anoscinquenta agora é uma mulher completa, que faz e pensa sexo, que existe em carne, que está disposta a esquecer convenções e se deitar com outro homem que não seu marido. Neste filme uma Natalie selvagem tira literalmente as roupas sociais e, de calcinha e sutiã, anuncia o que não deveria nunca ser chocante: cada um vive da maneira como bem entender, da vida privada ninguém deve prestar contas a outrem. Para demonstrar que não estava brincando, casa-se pela segunda vez, e com o marido Richard Gregson tem sua primeira filha, Natasha, hoje dedicada ao ofício da mãe, a atuação.

Após essa década, memorável em variedade e expressão, Natalie para. Desmotivada aparentemente pela fraca recepção a seus últimos esforços, praticamente se aposenta do cinema, e dali aos próximos doze anos (seus últimos com vida) aparece mais, com irregular frequência, em alguns projetos de televisão, como um episódio do seriado Casal 20 — estrelado por Robert Wagner, com quem volta a se casar e tem uma segunda filha, Courtney —, a minissérie A um passo da eternidade (revivendo o papel criado no cinema por Deborah Kerr) e Gata em teto de zinco quente, com ela e Wagner recriando os personagens de Tenessee Williams eternizados por Elizabeth Taylor e Paul Newman duas décadas antes. Para o cinema, sua filmografia se encerra com quatro fitas pouco elogiadas: Pepper (com Michael Caine), Meteoro (ficção científica de Ronald Neame, com Sean Connery), The last married couple in America (comédia com George Segal) e Projeto Brainstorm. Natalie morreu no meio da filmagem desse filme co-estrelado pelo amigo Christopher Walken, e apenas em 1983 (dois anos após seu falecimento) seus realizadores conseguiram lançá-lo, com grandes modificações.

Christopher Walken, por sinal, é um dos protagonistas do insólito drama que culminou na prematura morte de Natalie em 1981, aos quarenta etrêsanos. Até hoje ninguém sabe o que aconteceu no tal iate em que se deu o passeio e a fatalidade, quais as circunstâncias e as ações dos envolvidos; à boca miúda, corre o boato de que Natalie teria sido morta por Robert Wagner, enciumado das atenções dadas por sua esposa a Christopher Walken. A única coisa certa é justamente a pior possível: Natalie Wood morreu afogada. O horror é ainda maior quando se tem a certeza, em mil entrevistas e depoimentos, de que essa terrível morte sempre foi o maior medo de Natalie. Então por mais cruel e irônico que soe, Natalia Nikolaevna Zakharenko seguiu à risca o ditado: “quem nasceu para morrer afogado, não morrerá enforcado”.

Natalie Wood, por causa de sua horrenda morte, é em parte vítima da mesma maldição das pessoas célebres que morrem jovens: a perseguição à sua vida particular. Comenta-se seu caráter, suas decisões pessoais, seus namoros (com gente como Elvis Presley, Warren Beatty, Dennis Hopper e Nicholas Ray), seus casamentos, disseca-se sua intimidade e procuram com isso estabelecer conclusões. Nem as inúmeras biografias impressas ou filmadas (até Peter Bogdanovich entrou no filão e filmou A misteriosa morte de Natalie Wood) dão conta do óbvio: Natalie era Natalia, que era uma mulher como qualquer outra, com suas contradições e seus conflitos. Ocorreu apenas que o cinema e a televisão registraram momentos de brilho dessa vida, e eternizaram a imagem de uma jovem talentosíssima, linda e de grande carisma e presença. Mas apesar de ser simplesmente humana, Natalie Wood conseguiu concretizar um feito sobrenatural: trinta anos depois de se apagar, sua estrela nunca mais deixará de brilhar.

Entrevista: Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Diretor de um única longa pra cinema – O Longo Caminho da Morte, vinculado, pela historiografia, ao Cinema Marginal -, Júlio Calasso Júnior, 71 anos, atualmente prepara um novo filme, o documentário Nas Quebradas do Mundaréu, sobre o dramaturgo Plínio Marcos. O filme nasce de um desejo de Calasso em retratar a linguagem e o processo teatral, coisa que começou a investigar depois que mudou para o Rio de Janeiro, no final dos anos 90, e a trabalhar no CETE, Centro Experimental Teatro Escola, registrando em sua câmera de fita mini-DV os processos e os espetáculos.

Calasso também tem longo passado no teatro, mas não documentando, e sim atuando. Já fez peças nos teatros Oficina e Arena, entre outros, além de ter atuado em dezenas de filmes, especialmente curtas, mas também em longas relevantes para a história do cinema paulista, como Sargento Getúlio, Filme Demência, A Dama do Cine Shanghai, entre outros.

Calasso é uma figura multifacetada. Já foi produtor de show, de eventos, dono de lavanderia, de padaria, etc e tal. No cinema, também foi o produtor de filmes emblemáticos do chamado Cinema Marginal, como O Bandido da Luz Vermelha, República da Traição e Prata Palomares.

Em entrevista exclusiva para a Zingu!, em sua casa no Butantã (São Paulo/SP), o diretor e ator contou de sua trajetória, sem deixar de falar, em boa dose, da vida. Novidade desta edição: você também poderá assistir trechos da entrevista, no nosso canal do Youtube.

 

Parte 1: Começando…

Parte 2: O Bandido da Luz Vermelha e o cinema marginal

Parte 3: O Longo Caminho da Morte

Parte 4: Anos 80, 90 e dias de hoje

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 4

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 4: Anos 80, 90 e dias de hoje

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Nos anos 80, você atuou em vários filmes paulistas que se tornaram significativos na história, como O Baiano Fantasma, Sargento Getúlio, O Beijo 2348/72

Júlio Calasso – Fiz todos os filmes do Waltinho Rogério, como ator: O Beijo 2348/72, Olhos de Vampa, e um média, A Voz do Brasil, em que ele faz um cineasta esperando o dinheiro chegar, é despejado, etc. A coisa que mais fiz no cinema brasileiro é vagabundo, ladrão, juiz, delegado e tira (risos). Todos os meus personagens são nessa área. É divertido pra caramba.

Z – Você ainda fez Real Desejo, Filme Demência e A Dama do Cine Shanghai. Como era atuar nesses filmes? Te davam direcionamento?

JC – Mais ou menos. O cara que me chamava pra fazer o papel já sabia quem era o Julio. Já tem isso, você sabe o caminho. Outra coisa: gosto de improvisar. Então o cara me fala qual é a situação e faço. Me dei bem e os caras gostam. Sou econômico, não enrolo muito e acabo ajudando o cara. Fiz os dois filmes do Tony [de Souza], que foi presidente do sindicato de trabalhadores. Fiz agora o filme do Toni Venturi, Estamos Juntos.

calasso-10A-300x168Z – Você chegou a ter algum problema em set, como ator, com algum diretor?

JC – Vários! (risos) Sou nojento. Mas tudo deu certo. Fiz muito filme de muito cara novo, que chega pra você e nem sabe o que dizer. Fiz um cacetão de curtas-metragens, que nem lembro mais. Só de alguns. Tem um filme, de uns 30 anos atrás, que minha amiga viu e me disse que falo uma das frases mais geniais do cinema brasileiro. “Essas coisas que você inventa na hora e depois não lembra mais”. Ela disse que falo no filme: “Pô, rapaz, se comesse todas as mulheres que minha mulher acha que como, e se fosse inteligente como minha mãe acha que sou, eu era dez.” (risos) Fiz um filme sensacional, em que briguei pra caralho com o cara, o Bernardo Vorobow, uma ficção, fotografada pelo Candeias. E o Candeias desgraçado colocava a luz na minha cara. Aquele foi um pau permanente. Filmei muito primeiros filmes, como o da Eliane Caffé.

Z – Você filmou o Filme Demência, do Carlão Reichenbach, em 1986, e o A Dama do Cine Shanghai, do Guilherme de Almeida Prado, em 1987. A Casa de Imagens é dessa época?

JC – Não. È de 1988, já tinha feito os dois filmes.

Z – Você poderia comentar seu projeto na Casa de Imagens, o Morre, meu Amor?

JC – Como não ia filmar, bolei esse Morre, meu amor, que não era nada. Meu projeto mesmo era o Ambição, uma ficção que quero fazer há 30 anos. A única pena é que quando bolei era um delírio antecipatório e hoje vira matéria de memória. Desse ponto de vista, tenha uma puta frustração. São 11 roteiros que não filmei. E as ideais estão aí, voando.

Z – Você foi chamado pelo Carlão para o projeto?

JC – Não, desculpa, bicho, mas eu é que chamei esses babacas. Morar no Rio foi minha salvação, porque a Casa de Imagens foi uma aventura terrível que tive aqui em São Paulo. Eu fui destituído da Casa de Imagens. Na calada da noite, saiu uma grana pra gente fazer dois filmes. De repente, recebo uma declaração de um advogado para aparecer numa reunião, para tratar dos meus interesses. Chego lá, estavam todos os bananas ali. O fantástico Andrea Tonacci, quando percebeu o movimento, saiu. Tirou o projeto dele, foi para Nova York e me mandou um cartão lindo – falando para me dedicar aos meus filhos, minha família. Não estava entendendo. Fui destituído. Foi um perrengue na minha vida muito difícil. A proposta da Casa de Imagens, que era minha, era absolutamente revolucionária e deu certo. A Conspiração é em cima desse modelo, a Casa de Cinema de Porto Alegre também, a Casa do Som, dos Saldanha.

Z – Como era esse modelo?calasso-8A-300x168

JC – Era o de uma grande cooperativa entre os seis em que cada um faria tudo. Nos dois primeiros filmes, eu e o Carlão [Reichenbach] não entramos para dirigir. Eu e ele seríamos os produtores dos caras. Fomos a única produtora que ganhou dois projetos. Quando apareceu a grana, o pessoal saiu fora. Tinha projeto, mas não entrei no concurso. Sinceramente, levantei a grana para desenvolvimento de projeto na Embrafilme. Ninguém acreditava. Fui pro Rio, levei essa ideia, quebrei a espinha do cara, ele deu a grana pra gente, e nós ganhamos o equivalente de 10 a 15 mil de hoje, para escrever o roteiro e o projeto. Contratamos assessores, fizemos um puta dum projeto. Nós víamos que a Embrafilme ia pro vinagre e precisávamos desenvolver outro modelo. Essa era a tentativa. E eu fui traído. Ponto final, não falo mais nada, mudando de assunto. Anos depois, ganhei um prêmio da Secretaria Municipal de Cultura, numa inflação de 3000% ao ano, sem correção monetária, pra fazer o Ambição. O José Antonio Garcia, cineasta e então presidente da APACI, achou aquilo uma baita sacanagem, falou com o pai dele, advogado, que representou a gente. Concluímos que deveria colocar o dólar como moeda de operação, porque era a única moeda estável. Concorri então a US$ 366 mil. Meu filme custava US$ 500 mil. Tinha a indústria todinha comigo, sempre fui organizador da velha indústria – os de hoje não sabem nem quem eu sou e é recíproco. A crise era grande. Entre o dia que lançou o edital e 45 dias depois quando fechou, a diferença caiu para US$ 297 mil. Quando foi feita a conversão, era US$ 170 mil. Eu recebi 70% de US$ 51 mil. Comprei os direitos, paguei os roteiristas, paguei os projetos. Não consegui fazer o filme, entrava ano e saía ano. Isso durou de 1992 até 1997. Em 1997, o Secretário, diante de uma série de informações nossas, mandou arquivar o processo. O único que conseguiu entregar o filme foi Ricardo Dias. Ele escreveu uma carta pro Secretário, dizendo que só conseguiu fazer o filme [No Rio das Amazonas (1994)] porque era sócio da Superfilmes, que assumiu produção, estrutura, etc. E ganhou o prêmio do Governo do Estado. O filme se passava no Amazonas, com três caras em cima de um barco, com o Paulo Vanzolini falando em off. O Galante não conseguiu fazer até hoje o filme do Ícaro Martins. Ele pegou o dinheiro e comprou gado, porque quando precisasse, teria o dinheiro valorizado. Era uma forma de proteger o valor do dinheiro e ainda assim não conseguiu. Tinha um babaca que trabalhava na Secretaria de Cultura, que inclusive havia sido mandado embora pelo Secretário que assumiu. Três pessoas haviam sido mandadas embora: Jairo Ferreira, Plácido Campos, e esse cara. Depois fiquei sabendo que fui processado por esse cara, a mulher dele era secretária do Guilherme Lisboa na Embrafilme, minha amiga. O cara entrou numa história que eu estava comendo a mulher dele. O ser humano é um bicho filho-da-puta, por isso vamos desaparecer da Terra. Fui condenado à revelia, sem saber. Não existe recurso, só tenho que pagar. Sou condenado eterno, para pagar um dinheiro que não recebi. Pegaram meu carro, ficam vasculhando minhas contas bancárias. Querem R$ 700 mil, que é pra pagar os US$ 366 mil, que não me deram, corrigidos no valor de hoje (risos). Conclusão: nada no meu nome, saí da firma. Mas tem já dois concursos que perdi por causa disso. Sempre tem um filho-da-puta que fala: ele não entrega o filme. Quem me contou isso foi o Mário Prata, que estava num júri. Disse que estava na lista pra ser o 10º a receber o prêmio. Começaram a falar que não entrego, fui pra 11º e só 10 ganhavam. De vítima me transformei em culpado. Mas tenho a consciência tranquila, porque nada devo.

Z – Quando que foi pro Rio de Janeiro? Foi fazer o que lá?

JC – Fui pro Rio de Janeiro, no dia 19 de março de 1998, contratado para formatar um projeto para a Fox americana. Formatei um projeto de capoeira, que acabou virando esse Besouro. Revi Antônio Pedro, Ricardo Petraglia, que tinham um trabalho maravilhoso, num grupo de teatro que estava parado. Dei sorte. Fiz várias sugestões. Tenho quatro filhos, estava com 25 anos de casado – um ano depois não daria mais. Queria começar de novo, eram doze anos de sofrimento. Meus filhos sofreram muito por causa disso. Hoje, eles são meus parceiros. Eu diria que eles me perdoaram. No Rio, minha vida nasceu de novo. Produzi 17 espetáculos pelo CETE [Centro Experimental Teatro Escola]. Criei aquele troço com aquele bando de gente, fizemos umas coisas loucas. Fizemos uma Electra, do Sófocles, na Mangueira, que se transformou numa ópera popular brasileira, colorida, multirracial, doida, com músicas extraordinárias. Vocês já ouviram o Seu Jorge falar que há alguns anos estava destruído, o irmão dele havia sido morto, estava jogado debaixo de um teatro e foi um pessoal e lhe perguntou se não sabia fazer nada? Ele disse que sabia tocar violão, então lhe responderam: vem tocar violão com a gente. Esses caras fomos nós. Ele e mais um cacetão de gente. Minha vida ali floresceu. Comecei a recuperá-la. Lá, trabalhando feito um doido, em três trabalhos, fazendo uma coisa que não faço que é beber, queimando fumo, trepando como um louco, tive um AVC, caí duro no meio do salão. Aí, três meses depois, o Plínio morre. Éramos muito amigos dele e fizemos um espetáculo em homenagem a ele, no porão da Fundição Progresso, na Lapa. Achava que ele era um cara natural-realista. Esses caras me mostraram a tragédia dentro das peças do Plínio, coisa que nunca tinha visto. Era um troço doido pra caralho. Navalha da Carne tinha dois elencos ao mesmo tempo, por exemplo. Perdeu todo o realismo e virou uma puta de uma alegoria. Eu choro. Comecei a fazer esse Plínio, desde 1999. Tenho várias montagens. Outra coisa que me salvou foi a VX 1000, uma camereta, que me permitia colocar no automático – porque não sou fotógrafo, mas sou maluco -, e fui criando uma história. Gravei 150 horas ao longo de sete anos, sem tripé, sem fotômetro, sem nada, de espetáculos, produções, processos, e de como isso tudo se desenvolveu. Tenho três documentários prontos [O Incrível Encontro, Electra na Mangueira e Electra no Municipal], que passaram na TV Cultura, TV Brasil, SescTV, etc. E tenho dois em pré-edição. Quero fechar esse pacote, uma caixa com cinco, em que fiz tudo sozinho. De vez em quando, pedia prum cara ficar com uma câmera lá em cima. O processo de trabalho do grupo me ajudou a fazer esses trabalhos, porque todo mês é um troço doido, 80, 100 pessoas, jovens de setores mais marginalizados da sociedade, misturados com a classe média que vem de Ipanema.

Z – O filme sobre o Plínio Marcos que você está fazendo, Nas Quebradas do Mundaréu, é nessa pegada também?

JC – Comecei nessa pegada. Tenho muito material em mini-DV. Mas quando saquei que queria mesmo fazer o filme, comecei a gravar mais espetáculos. Embora não seja o fundamento do filme, não dá pra fazer um filme de um dramaturgo da importância do Plínio sem mostrar os espetáculos. Quando comecei a editar o filme, descobri que a Rain Network, que tem um sistema B de exibição digital, não exibe mais [a janela] 4X3. Foi aí que entrou meu filho Pedro, começamos a pesquisar qual era a linguagem. Já tenho um bom tempo de filme. Acho que já sei pra onde ir, depois de uns 7, 8 meses em que fiquei no maior vazio. Tenho 70 anos, não sou mais moleque, por isso foi mais dolorido. E o editor, um cara premiadíssimo, me largou, por conta dessa questão. Trouxe ele ao projeto justamente porque achei que ia quebrar meu galho no digital, eu, que sou um cara analógico, apesar de editar desde 1997. Fiz cinco documentários para uma produtora paulista. Mas é muito louco isso. Por exemplo, o cara me sugeriu: vamos colocar uma fusão? Eu respondi desesperado: não! Por quê? Pra fazer uma fusão, precisava levar o negativo numa empresa chamada Truca, marcar com barbante onde começava e onde terminava a fusão, e depois de quatro dias ia lá buscar. Aí ele fez a fusão em cinco comandos, super rápido. Comecei a ver o fascínio pelo negócio. Agora é terminar o filme.

Parte 3

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 3

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 3: O Longo Caminho da Morte

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como nasceu a ideia para O Longo Caminho da Morte?

Julio Calasso – Na minha cabeça, Cinema Novo já estava me enchendo o saco. E sempre eram aqueles filmes rurais, com aqueles camponeses. Participei de muitos movimentos, sei da brutal desigualdade social. Mas do ponto de vista cinematográfico, o outro lado era bem interessante. Fui me envolvendo nesse tema com a necessidade de dizer outras coisas. Tinha um grande amigo, Cláudio Polopoli, corroteirista do filme do Ebert inclusive, nosso padrinho, que faleceu cedo. Nesse período, descobri Crônica da Casa Assassinada, do Lucio Cardoso, livro de linguagem mais sofisticada que me lembro – se bem que três meses atrás levei uma porrada com Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. Estávamos empolgados com a linguagem, não com a história, os personagens. Era basicamente os delírios de um poderoso de uma história que não existe mais. O Orestes é o fim de uma história que não existe mais, a decadência, a derrocada de quem está em cima. Os camponeses inclusive passam ao largo, você só escuta o som. Depois esse cara que você não viu aparece operário em São Paulo.

Z – Por que a oligarquia cafeeira de São Paulo?

JC – Porque estava em decadência. Nunca pensei nisso, mas talvez porque meu primeiro emprego tenha sido na Cooperativa Central dos Lavradores de Café, que não era dos lavradores e sim dos donos das fazendas. Escrevia e editava o jornal deles, O Cafeicultor. Era também a decadência de um setor, o café já havia saído de São Paulo e não tinha entrado a cana ainda. Tinham ido pro norte do Paraná, porque estava fora do circuito do granizo. Fiz o filme entre dezembro e janeiro. O ator que veio fazer meu filme, o Othon Bastos, tinha chegado de um do Ruy Guerra, Os Deuses e os Mortos, e depois foi fazer um do Leon Hirszman, São Bernardo. Os três filmes, com o mesmo ator, tinham o mesmo tema: a decadência de um personagem ligado à oligarquia da cidade. E nós não sabíamos um do outro. Os dois me afundaram, foram para a Europa. Quando você me pergunta ‘por quê?’, sei lá porque três pessoas fizeram na mesma época filmes com a mesma temática, e sei lá quantos tentaram. Talvez o momento, era 1970. Já havia tido o AI-5, um monte de gente já havia sido presa. Dei uma baita sorte, sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Estava no Rio, junto com o Ebert, fazendo o filme dele, República da Traição, que era mistério, sexo e aventura, que não daria nenhum problema, exceto pelo título. Não entenderam nada e mandaram prender o filme. Fomos pegar um carro que tinha fundido o motor, porque ninguém colocava óleo. Cinco minutos depois, o carro capota, sou jogado pra fora, o Ebert fica lá dentro. Fiquei um ano e meio de cama, passei por cinco operações, e os caras me procurando. Naquela época, não tínhamos telefone. Quem tinha, era minha sogra, na Mooca, íamos fazer produção lá. O Ebert ligou pra esse número e contou o que aconteceu. A minha primeira mulher, a Tânia, saiu de casa, às 5h. Às 6h, os caras chegaram. Destruíram meu apartamento, roubaram as joias dela – o pai dela era diretor da Pirelli, viajava muito e gostava de comprar pequenas joias e perfumes franceses pra ela -, comeram a comida da geladeira, cagaram em cima da minha cama e queimaram os meus livros. Antes de saírem, metralharam meu apartamento. Dei uma sorte, porque vários dos meus parceiros morreram. Outra parte sequestrou o embaixador. Fiquei andando numa maca, sendo escondido. Pra alugar um apartamento, naquela época, você tinha que levar uma ficha de aprovação em todas as delegacias, inclusive a de ordem política e social, o DOPS. Os zeladores eram parceiros da polícia e todo mês tinham que relatar as atividades no prédio pros caras. Pra arrumar um apartamento, teve que ser no nome do meu irmão, meu pai gastou uma puta grana com o zelador.

calasso-4A-300x168Z – Fazer O Longo Caminho da Morte foi uma forma de expurgar a questão da ditadura?

JC – Não. Fiz porque fiz. Claro, esses dados todos estavam me contaminando. Mas não fiz com essa finalidade. Era a dinâmica da vida. Estava envolvido com Lúcio Cardoso, com os concretos, não com os panacas. Estava mais interessado na linguagem do que no conteúdo. Hoje procuro brincar com os dois dados, um sem o outro não existe.

Z – Como o filme foi construído?

JC – Dando risada (risos). Estava contaminado por aquilo que me interessava, a linguagem. O ‘como’ me interessava mais do que o ‘quê’. O cinemão talvez estivesse mais interessado no ‘quê’ do que no ‘como’. O Longo Caminho da Morte era o filme que fiz com a grana e o tempo que tinha. Eram oito dias e dez latas de negativo. O tempo total do longa dá 8,1 latas, o que dá por claquete 1,03:1. Uma atriz do meu filme era a Cecília Thumin, esposa do Augusto Boal, que conhecia do Arena. Um dia o Boal apareceu lá, querendo negociar uma saída rápida da Cecília. Ficaríamos apenas dez dias em Serra Negra. No domingo, acabou o negativo. Teríamos de parar e arranjar dinheiro pro negativo no dia seguinte. O Boal chegou pra mim e perguntou quanto custava. Disse. Ele perguntou se não conhecia ninguém que talvez tivesse uma lata. Disse que conhecia. O Claudio Mamberti foi até São Paulo buscar e ainda capotou no caminho. Não adiantou nada, tiveram que ficar até terça. De lá, o Boal foi para a Argentina e de lá até Paris. Não sabia. Fizemos com 11 latas, porque ele deu essa. O filme tinha 68 planos no roteiro e tem 86 planos na tela. Era plano-sequência. Além de ser linguagem, era necessidade. Ensaiava três horas e rodava uma vez. Fazia três minutos de manhã, três minutos à tarde, estava com o dia feito. Tinha que inventar um troço pra dar conta do que tinha.

Z – Esse dinheiro era teu?

JC – Vinha de três fontes. Uma era minha. Uma era da minha sogra, que tinha me dado um milhão do dinheiro da época. E uma era de minha amiga, que me deu outro milhão. O que seria uns R$ 100 mil hoje, mais ou menos. Rodei numa fazenda onde tínhamos controle de tudo, alimentação, hospedagem. O pessoal da cidade trazia galinha, bezerro, arroz, feijão, o mercado dava. Automóvel, locação, tudo veio de uma forma bacana. O cachê era uma miséria. Quando comecei a fazer cinema, 70% era o custo de tecnologia, sistemas, métodos, e 30% de salário humano. Hoje em dia é o contrário. Estou fazendo um filme aqui. Claro, há filmes e filmes. Mas hoje você pode fazer um filme que vai às salas com R$ 30 mil. Naquele tempo não. Tinha uma equipe enxuta. O Rudá de Andrade me emprestou a câmera da ECA/USP com a condição de que levasse três alunos pra serem assistentes. A equipe era de cinco pessoas, mais três caras que vieram da ECA. Um veículo que era da prefeitura, a fazenda era de graça. Imagina hoje: quero filmar um plano de um túnel na Imigrantes e querem me cobrar R$ 23 mil. Conclusão: vou filmar o plano e estou me lixando pra eles. Tá escrito na frente do túnel: proibido filmar aqui? Queria colocar um cara naqueles carros-caçamba pra filmar. Não pode. Então vou com um carro fechado, uma câmera de um lado, uma do outro, e estou me lixando.

Z – O Longo Caminho da Morte chegou a estrear comercialmente?

JC – Sim, ficou duas semanas no Marachá. A primeira semana foi ótima. Aí o Álvaro Moya, que era diretor de programação, ficou super entusiasmado, e quis fazer uma segunda semana. Eu achava que não era pra tanto. Ele colocou. E foi um fracasso total. Ele fez São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. O cara que levou o filme pra Curitiba perdeu minha cópia. Meu filme também foi selecionado pro Festival de Locarno. Na semana que ia pra lá, não acharam a cópia, e mandaram o de um outro cara. Tinha 11 votos em 13. O cara teve 1 voto e foi. Porque era filho de embaixador, diplomata. No Brasil, na nossa área, não existe uma burguesia, mas a maior parte dos caras tem um pé no Estado e isso é ter acesso.

Z – Você escolheu o Othon Bastos por ter ficado encantado com ele em Deus e o Diabo na Terra do Sol?

JC – O Deus e o Diabo me fez amar o Othon Bastos. Mas quem ia fazer o papel do filme era o Raul Cortez. Primeiro era o Fernando Torres, junto com a Fernanda. Ela não pode, e aí virou Raul Cortez, com quem eu fazia Galileu Galilei, no Oficina. Íamos fazer depois do Galileu. Ele não pode. O Claudio Mamberti falou do Othon. Falei com ele, um cara divertido, que topou na hora. Não o conhecia. Estava morando em São Paulo fazia pouco tempo. O Mamberti era amigo da Martha Overbeck, esposa dele. Quebrei o pau com ele várias vezes, porque ele vinha de Deus e o Diabo e outros filmes épicos, da escola brechtiana. E o personagem era um cara da decadência. Ele não entendia nada. Teve uma hora que pedi o roteiro de volta e comecei a passar só as falas pra ele. E, além do mais, era mais velho que eu, estava afim de comer aquelas meninas, e as meninas não estavam a fim de dar pra ele, tava mal humorado pra cacete. Ele queria me encurralar e aí tirei o roteiro da mão dele. A gente se adora, até hoje. Depois que ele viu o filme… Foi uma guerra pra construir aquela história em tão pouco tempo. Gosto do filme pra cacete. Acho que hoje é um filme normal, que existe um repertório geral capaz de incorporar meu filme. Estou há mais de um ano batalhando com a Cinemateca. Tenho um contrato em que eles têm que cuidar do meu filme e eles não fizeram nada. Tento que, ao menos, me façam um telecine, porque aí eu pego a cópia, mexo aqui nessas máquinas que tenho e refaço som e imagem, e faço uma cópia digital pra exibir. Tenho certeza que vai funcionar melhor agora. É o primeiro filme ecológico, o mundo acaba no final.

Z – Depois de O Longo Caminho da Morte, você se afastou um pouco do cinema, trabalhou como produtor musical, foi ator no Oficina.

JC – Nos anos 70, fiz vários filmes, especialmente curtas-metragens, em que depois os caras não me chamaram pra fazer os longas (risos). Mas não fui eu que abandonei o cinema, o cinema que me abandonou. É muito difícil. Depois daquele acidente, fiquei três anos com uma situação muito complicada. E aí veio essa primeira lavandeira self-service do mercado, na Boca do Luxo, na r. Major Sertório, chamada Lav Secs Self-Service. Funcionava até às 22h. Entre 1974 e 1980. Travestis, bichas, putas, estudantes, bancários, eram quem frequentavam. Meu pai era sócio. E ele tratava os travestis de um jeito que nunca tinham sido tratados. Meu pai sabia o nome deles todos. Ali dirigi teatro, fiz filmes. Mas nunca consegui ganhar a grana que imaginava que ia ganhar pra fazer filmes. Ao contrário, comecei a fazer filhos. Fiz depois duas padarias, querendo isso. Cinema é algo que amo de paixão. Tem mais uma porrada de filme que quero fazer. O Manoel de Oliveira filma até hoje, com 102 anos. Meus pais morreram com 95, 98. E não tenho compromisso com ninguém, muito menos com a vida. Tenho 15 minutos. Meu horizonte é 15 minutos. Pode ser que isso vire 98. Se não for, tenho uma porrada de netos, meus filhos são uns puta caras, tudo bem então. Daqui pra frente sou eu, depois de muito tempo estou sozinho, construindo mais alguma coisa que não sei o que é. Ariano tem esse vício, de construir. Sinto falta de uma vivência que tive durante muitos anos com a política cinematográfica. Mas a grana é curta, meu pirão vem primeiro.

Parte 2 //   Parte 4

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 2

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 2: O Bandido da Luz Vermelha e o cinema marginal

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como você foi parar em O Bandido da Luz Vermelha?

Júlio Calasso – Tinha um pessoal que foi ver alguns atores na Excelsior, o João Batista de Andrade e o Francisco Ramalho Jr. me convidaram pra ser assistente de produção do João Silvério Trevisan, em Anuska, Manequim e Mulher. Lá apareceu um cara que acompanhou o nosso trabalho e veio me perguntar se não queria ser assistente de produção dele em outro longa. Fui. Me falaram para aparecer num escritório da Rua do Triunfo. Estava lá o Rogério Sganzerla, que já conhecia de trombada. Era O Bandido da Luz Vermelha. Fui pra formatar a produção, já tinha tido dois fracassos, a grana era quase nada. Ele era diretor de produção e pisou na bola. Tinham feito uns testes e só podiam ver isso depois que revelava o negativo, cinco dias depois. E o cara, ao invés de fazer o filme, estava fazendo um comercial com aquele negativo. O Rogério era um cara multipolar, mudava a cada 30 segundos. Ficou puto. Perguntou se segurava o filme. Disse que sim. Fiz todo o filme. Ele era uma pessoa maravilhosa. Mandei ele pra puta que o pariu muitas vezes. Se você perguntar como ele era, vou dizer: era um escroto, como eu. Virou o que virou depois. Somos humanos, depois viramos entidade. A vitalidade daquilo era justamente isso, éramos jovens. E tínhamos um velho maravilhoso por cima disso, que era o Peter Overbeck.

Z – Se o orçamento d’O Bandido estava tão escasso, como você fez pra reverter a situação?

JC – Marcava, por exemplo, com o cara, às 13h, almoçado. (risos) O outro marcava das 6h às 12h, almoça em casa. (risos) Tínhamos uma Kombi, que era do dono do circuito exibidor que colocou a primeira grana no filme. A exibidora não queria mais emprestar a Kombi. O dono estava em Santos. Fomos até lá e afanamos a Kombi. A Helena Ignez chegou às 7h da manhã de ônibus, fomos até um hotel na Duque de Caxias – onde morava o Nelson Gonçalves -, compramos algumas roupas e fomos fazer a primeira sequência dela. Chegou e filmou, sensacional. O Bandido contou com uma generosidade absurda. Essa subjetividade e sintonia, capacidade de todos estarem envolvidos. O filme teve de quatro a cinco semanas de filmagem. No último dia, mandei o Rogério mais uma vez pra puta que o pariu, e fui embora. O último dia não fiz, porque ele me ofendeu. Entreguei todo o dinheiro, inclusive um monte de moeda. Aí ele me escreveu uma linda carta, que guardo até hoje, mas não mostro para ninguém, porque é meu e dele, mas é algo maravilhoso. São declarações de amor e de amizade, de coisas que fizemos juntos, e troços que transformamos. Ele veio me falar: “tinha certeza que você ia roubar todo o meu dinheiro e aí você vai lá e me devolve até as moedas?” (risos) Nos trombávamos muito, especialmente em mostras de cinema. Ele tinha esse costume, quando conversava com as pessoas: “olha o Calasso. Calasso! Calasso! O Calasso é um puta dum gênio, e isso e aquilo lá”. Meia hora depois encontrava ele de novo, e novamente ela ia me apresentar: “Você conhece o Calasso? O Calasso é o cara que fez aquela bixinha escrota no meu filme” (risos). A cena do cinema foi feita no teatro Oficina, e tínhamos conseguido aquela puta locação. O cara que ia fazer o bixinha, que era um desses viadinhos mineiros do Jornal da Tarde, disse que não faria o papel de jeito nenhum. O Rogério quis desistir. Mandei ele a merda e disse que faria então a cena. Para resolver um problema de produção. (risos)

Z – Você já frequentava a Boca do Lixo?

JC – Cheguei à Boca em 1968, não frequentava lá. Fomos todos chegando meio juntos. Quem já estava lá era o Carlão Reichenbach, o Candeias, o Mojica.

calasso-9A-168x300Z – Nessa época, começou a se formar o chamado Cinema Marginal. Como se deu isso?

JC – Na realidade, muito rapidamente uma geração se estabeleceu no poder, que era a geração do Cinema Novo. Rapidamente tomaram conta da Embrafilme, da qual participa [Arnaldo] Jabor e sua turma, ligada ao regime militar. Essa é a origem. Todos eram ligados, de alguma forma, ao partidão, e tinham aquele vício de ensinar às massas e aos pobres a revolução, liderada por eles. Tem uma série de filmes didáticos, algumas grandes porcarias, e coisas muitos boas também, inventivas. O Glauber [Rocha] era um grande malandro, soberbo, inclusive porque tudo que ele falava repercutia. Porque viramos marginal? Porque a grana era pouca e eles não queriam dividi-la com a gente. Grana! Nós chegamos cheio de merda de cachorro no salão deles. De repente, chega um bando de cara que com um bando de filme que questiona, que faz perguntas e que dá certo. É um lance político e de gerações, sob o patrocínio da pouca grana, além de outras circunstâncias que não estão no âmbito da arte, da estética e da ética. Marginal era isso. Se perguntar pra qualquer cara da minha época se gostava de ser chamado de marginal, ele vai te mandar à merda. É pejorativo. Embora a molecada ache que não, que marginal é legal. Mas não, significava que não filmávamos. Mas todos tivemos a sorte de termos um cara que conseguiu observar esses caos, essas coisas aparentemente sem nexo, essas contradições, dar uma ordem nesse caos, paralelamente criando outra história caótica. Esse cara se chama Jairo Ferreira. Fui muito amigo dele, nos amamos pra caralho, estivemos sempre juntos, nos momentos mais fudidos da vida dele. Não estava aqui quando ele se suicidou. Mas tem um monte de babaca que está aqui à custa dele. Não estou nesse time. Continuou morando no meu coração. Mas não me envolvo nessa pataquada que está acontecendo com o nome dele. Os caras estão enterrando o nome dele. Essa adjetivação que fazem em torno do Jairo enterra ele. Porque os caras que contam essa historinha deles com o Jairo querem na verdade falar sobre eles, e não sobre o Jairo. Podia ter caído nessa armadilha, mas não caí. Estou fazendo um filme sobre o Plínio Marcos, que tinha muito a ver com o Rogério. Meu filme é sobre ele como transgressor de linguagem. Há uma comunicação entre peças do Plínio e os filmes do Rogério; inclusive Paulo Villaça e Sérgio Mamberti faziam Navalha da Carne e O Bandido. Não era à toa. Essa ebulição estava acontecendo na genética do planeta, há uma contaminação de muitos fatores que interagem nesse momento. Talvez seja o primeiro grande momento de comunicação planetária. Havia as possibilidades mais variadas. Pelo bem e pelo mal, andei em várias frentes. Fui muito contagiado pela política. Participei de grupos fortíssimos, que tinham a ver com política operária – nada de guerrilha, porque isso era aventura de classe média. Nós nos envolvemos com greves fortíssimas em São Paulo, de fábricas, no mesmo tempo que fazia Bandido, estava sendo ator, casando…  Não fiquei muito tempo naquela Boca. Mesmo porque – e não me levem a mal – não gosto de cerveja. Então aquele lugar regado à cerveja todo dia, às 6h da tarde, com aquele queijo amarelo passando, que tinha que colocar sal em cima, não gostava daquilo. Meu negócio era maconha. Queria correr outros riscos, porque não eram os meus.

Sou um especialista em generalidades. Fui dono de várias padarias, abri a primeira lavanderia self-service de São Paulo, tudo porque queria fazer cinema. É diferente de, por exemplo, o Carlão Reichenbach, que é um livrinho. Ele entrou lá com 17 anos e nunca mais saiu daquela porra, então ele vai poder te falar durante 300 horas daquele negócio lá. Eu não era isso aí. Inclusive o meu filme e os outros que queria fazer não tinha nada a ver com aquela estética. Eram outros riscos que estava disposto a correr. Claro, tudo aquilo contaminou. Não que tivesse tido qualquer problema com a Boca, mas não era meu único interesse. Fazia também teatro, estudava filosofia, tudo nessa época. Depois virei produtor musical, produzi mais de 150 shows, dos Novos Baianos, da fase solo do Moraes Moreira, do Joelho de Porco, fiz grandes eventos. Até hoje não trilho apenas um caminho. Hoje, por exemplo, estou produzindo aqui, com meu filho, música, um disco sensacional, no porão daqui de casa. Faz parte da minha tradição e do jeitão dele. O Pedro, meu filho, é meu editor. Ele também tem um pouco de ser generalista, como eu. Fica às vezes até difícil de explicar o currículo. E acontece que nem aconteceu. Um jornalista, que se diz crítico de cinema, um sub-Jairo Ferreira, há uns anos atrás, escreveu uma matéria sobre o Jairo e disse: “quem sumiu foi o Julio Calasso e o Zé Agrippino de Paula”. Oras, o Zé estava ali no Embu, continuando a fazer coisas loucas e maravilhosas, que esse babaca nunca tentou saber, e eu estava no Rio de Janeiro – e, em oito anos, produzi dezessete espetáculos e realizei cinco documentários. Segundo ele, estava sumido, porque não aparecia nas páginas da Folha de S. Paulo, que é a única merda que ele lê. Essa questão da relação com o trabalho, da maneira como entende a sociedade, é difícil. O Plínio Marcos dizia muitas vezes isso: a censura é da mídia, é da grana. Ele dizia: “estou tentando fazer com que apareça na mídia e eles não publicam.” Tenho um sobrinho que é um dos principais caras de um caderno cultural de um dos principais jornais do Brasil. Há dez anos, pedi, pela primeira vez, que fizesse uma matéria comigo, por ocasião do lançamento de quatro documentários na TV Cultura, feitos com uma mini-DV, que fiz tudo sozinho, 150 horas de material filmado. E sai a matéria sobre o diretor do espetáculo. Perguntei: “não era sobre eu?” Ele respondeu que eu não tava na mídia. O projeto era meu, o documentário que ia passar na TV Cultura era meu, e ele fala do outro, porque ele estava na mídia e eu não. E olha que é meu sobrinho. Já fiz várias mostras. Em 1975, o Oficina ia fechar e fiz uma mostra chamada Cinema Bandido. Quem apresentava as sessões era o Zé do Caixão, ocorriam todas as sextas-feiras à noite, e depois tinha um baile regado a vinho sangue-de-boi. Era Rogério, Bressane, Candeias… Depois fiz outra mostra. A segunda foi Cinema de Invenção, por conta do lançamento do livro do Jairo. Saímos eu, ele e o Candeias, num fusquinha cheio de latas de filme. O Candeias era um puta dum chato, ranzina pra cacete, ficava reclamando: “bota a terceira, tá demorando pra mudar a marcha”. (risos) Fiz um festival de cinema negro na Cinemateca, há uns sete, oito anos atrás, e agora tenho uma mostra que vai pra terceira edição, chamado Cine Teatro Brasil, com documentários sobre o processo de criação do teatro.

Parte 1 //    Parte 3

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 1

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 1: Começando…

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como era sua infância? É daqui de São Paulo mesmo?

Julio Calasso – Sim, sou paulistano. Nascido e criado aqui. Nasci no Bom Retiro. Fiquei lá até 3, 4 anos. Aí chegou o asfalto. Meus pais acharam que estava meio sufocante, delicada a situação lá. Passava ônibus na rua, etc. Nos mudamos para a Vila Carrão. Naquela época, era o dobro da lonjura de onde tinha acabado São Paulo, tanto que havia a estrada do carrão pra chegar lá. Tinha lagoas, árvores, andávamos descalços, jogávamos bola na rua. Tinha um cheiro muito característico, tanto que minha memória olfativa daquela época é ainda muito forte; às vezes, lembro daquele passado pelo cheiro. Fiquei lá até 6 para 7 anos, e fiz o primeiro ano da escola. Mais uma vez meus pais se anteciparam e fomos para a Mooca. Meu crescimento e adolescência foram lá. Sou um cara da Mooca, daquele momento da história da cidade. Anos 50, fábricas que paravam às 16h, crises de energia elétrica. Meus pais não são operários, meu pai era funcionário público e minha mãe era das prendas domésticas, era calceira, ajudava em casa. Lá, acompanhei uma passagem importantíssima da vida da cidade. Uma coisa era essa prosopopeia da libertação das mulheres de classe média, outra coisa era aquelas mulheres pobres que trabalhavam para caralho, em fábricas, com crianças, às vezes em quatro teares ao mesmo tempo. Levava a marmita pra essas mulheres, com amigos meus. No próprio bairro da Mooca, também vi a chegada de imigrantes italianos e espanhóis, mão-de-obra especializada para as novas indústrias automobilísticas. Transformação que São Paulo viveu e sofreu. O futuro aqui às vezes é ontem, cresceu de uma forma imprevisível. Outro ponto importante em minha formação: só estudei em escola pública, tive esse privilégio de ter estudado em uma época em que o ensino público era da maior qualidade. Entrei na USP, em Filosofia. Cursei dois anos. Só parei porque sofri um acidente entre 1969/70, durante uma filmagem, e fiquei um ano e meio de cama. Quando voltei, já não era mais nada daquilo que havia me tornado um cara mais aberto.

Z – Qual filme era?

JC – República da Traição, do Carlos Alberto Ebert. Era meu parceiro, éramos moleques que se conheceram na aventura que foi O Bandido da Luz Vermelha. Todo jovem tem capacidade de viver aventuras e isso é muito verdadeiro, especialmente na arte. Embora fosse pretensamente um poeta – fui um dos primeiros caras a conhecer no Brasil o Fernando Pessoa, por uma razão muito simples: o Carlos Felipe Moisés, que é uma das maiores autoridades internacionais em Pessoa -, jamais imaginei que pudesse me transformar num profissional do cinema e do teatro. Trabalho desde os 13 anos de idade e me orgulho muito disso. Sou o que sou hoje por conta do trabalho. Fui office-boy, bancário, fui um monte de coisa. Quando era jovem, conheci pessoas que foram fatais para os caminhos que tomei. Uma delas era um ‘japa’, que tinha uma editora. No meu colégio tinha grandes colônias judaicas, italianas, negras e japonesas. Transitei por tudo isso desde menino. Tinha muito mais a política do que a arte no horizonte. Aprendi marketing, pensamento estratégico, feição de projeto, décadas antes que isso virasse pauta. Estava com 23 anos, jogava sinuca com meu amigo japa, de família rica e cabelo engordurado, cheio de brilhantina, e ele bolou uma rifa, mas não conseguia desenvolver o projeto. Fiz dar certa essa história. A ideia foi a de ir a dois teatros e conseguir que eles vendessem dois ingressos pelo preço de um, numa época em que não existia meia-entrada. Fui no TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] e o cara praticamente me expulsou de lá. Lá trabalhava o Manolo, uma bicha espanhola maravilhosa, amiga de todo mundo da classe teatral, que me disse pra procurar um teatro na Rua Jaceguai, um teatro novo que estava começando, o Oficina, e disse pra eu procurar um tal de Zé Celso [José Celso Martinez Corrêa]. Chego lá. A administradora parecia a dona Marta, do Glauco, e disse pra entrar e ficar quietinho, porque ele estava mexendo em algumas coisas e depois me atenderia. Entrei no Oficina e fiquei lá no escuro. Eles estavam fazendo a luz de Pequenos Burgueses [texto de Máximo Gorki]. Comecei a chorar de emoção. Essa poesia doida, era ali que queria continuar minha vida. Eles toparam a venda dos ingressos naquele esquema, o teatro Arena topou, e comecei a distribuir ingressos para as pessoas irem ver esses espetáculos. Devo ter visto umas 120 vezes Pequenos Burgueses. Aí veio o golpe, fecharam o teatro, e reabriram com um curso de interpretação do Eugenio Kusnet, um cara que conduziu duas gerações do teatro brasileiro, um cara fenomenal. Ele nos envolveu nesse mundo muito complexo que era a interpretação. Tive essa baita oportunidade que a vida me deu de fazer esse curso. A vida me deu, aliás, muitas chances, e, também, me quebrou as pernas em vários momentos. Estou sempre recomeçando. Com 71 anos, estou numa história completamente diferente que nunca havia vivido. Teve também outra coisa: nos últimos dias de março de 1964, estreou um filme brasileiro, numa sessão escondida no cine Windsor, chamado Deus e o Diabo na Terra do Sol [de Glauber Rocha]. Que impacto! Uma abertura de horizonte! Era um negócio novo, uma forma nova, com um protagonista que tinha minha idade e se parecia comigo, na forma de se posicionar diante da vida e da arte. Foi muito mais a vida do que pressupostos artísticos que me levaram à arte, pois achava que era através dela que conseguiria me expressar e permanentemente me transformar.

calasso-6AZ – Como você começou no cinema?

JC – Frequentava o Cineclube Dom Vital, acho que tinha passado Cinco Vezes Favela, e quem apresentava era o Maurice Capovilla. Dois dias depois, cruzei com ele na R. Direita. Caminhei vinte metros e pensei: “preciso falar com esse cara”. Falei com ele, me apresentei, disse que havia ficado muito empolgado, e que queria muito fazer cinema e não sabia por onde começar. Ele pensou um pouquinho e me perguntou: “Você carrega um tripé?” (risos). Foi assim que comecei em cinema, carregando tripé, em um filme maravilhoso, que era uma coisa nova em termos de atitude, que é a produção do Thomaz Farkas. Acho que estive muitas vezes nos lugares certos e nos momentos certos, não que tenha aproveitado tudo isso para mim – talvez até menos do que gostaria. Eles estavam fazendo Os Subterrâneos do Futebol [dirigido pelo Capovilla], no Pacaembu. Estava lá o Waldemar Lima, diretor de fotografia. Eles ficavam combinando onde seria cada tomada, um ficava lá em cima e o outro embaixo. Quando se acertavam: “Tripééé!” Lá ia eu carregando aquele tripé de câmera 16mm, super pesado. Chegava eu lá em cima, ele olhava e dizia: “não, acho que fica mais legal do tobogã”. Lá ia eu subir mais não sei quanto com aquele peso nas costas (risos). Fui lá receber o dinheiro na Fotóptica, que era do Farkas, e lá tinha um anúncio de vaga de datilógrafo (risos). Perguntei para quê era. Disseram que era um sujeito que ia fazer um filme que tinha muitas horas de material gravado e precisava de alguém que colocasse o fone no ouvido e transcrevesse todo o conteúdo. Me candidatei. O filme era Viramundo e o diretor o Geraldo Sarno. Não tenho culpa se foi assim que aconteceu. O teatro, o cinema, a TV, as artes cênicas, são as que me atraíram.

Z – Em Viramundo, você é creditado com assistente de direção. Como passou de datilógrafo a assistente?

JC – Porque não fui só datilógrafo, acabei fazendo o filme todinho. A bem da verdade, hoje seria quase um corroterista ou um colaborador de roteiro. Mas isso não quer dizer nada. Meu orgulho de ter feito é maior do que isso. Lá, generosamente, aprendi muito mais do que qualquer outra coisa. Mas quebrei muito pau com o Geraldo e tem duas sequencias do filme que eu coloquei. Porque o pessoal que ele pegava era gente tudo boazinha. Peguei dois caras: um traficante da favela do Vergueiro (que ele não usou) e um pastor evangélico gay.

Z – Como era trabalhar com Sarno?

JC – Bem, o Sarno é pisciano. Ele e o Hermano Penna são os piscianos com quem trabalhei. E pisciano me dá um trabalho. Sou de Áries, não tem compatibilidade. Os dois são maravilhosos, geniais. Mas o cinema dele é dolorido, pesado. È bonito. Ficava sempre pilhando. Tem um livro [Cineastas e Imagens do Povo] do [Jean-Claude] Bernardet – que, em minha opinião, é um nada que não gosta do Geraldo -, que teve uma edição ampliada há uns cinco anos atrás. O pessoal da editora [Cia. Das Letras] me ligou, pedindo autorização para colocar uma foto minha e tal. Só fui descobrir de quem era depois. O Jean-Claude não vai com minha cara. E na capa do livro estou eu, com uma claquete, olhando pra câmera. Ele ficou puto (risos).

Z – Depois você foi trabalhar na Excelsior, certo?

JC – Sim. Nesse meu começo de carreira, fui ator. Entrei como aluno do Kusnet, depois fiz dois espetáculos no teatro Oficina, fiz um no Arena, inclusive a primeira peça do Plínio Marcos, Reportagem de um tempo mau, e uma adaptação de O Processo, do Kafka, pelo Leo Lopes, um cara genial que morreu cedo e era assistente do Walter Avancini na TV. Naquela época, as equipes eram pequenas. Fiz a novela As Minas de Prata, que tinha 50 e tantos cenários fixos. O elenco dava três da novela da Globo hoje em dia. Vários estão aí até hoje: Glória Menezes, Tarcísio Meira, Paulo Goulart, etc. Mais uma caceteada de outros atores. Eu arredondava o texto da Ivani Ribeiro, porque ela vinha do rádio. Ela e a Janete Clair são as grandes teledramaturgas. Avancini era um gênio, inventou o padrão de qualidade da teledramaturgia. Fiquei na TV Excelsior um ano.

Parte 2

O Filho Adotivo

Especial Francisco Di Franco


O Filho Adotivo
Direção: Deni Cavalcanti
Brasil, 1984.

Por Adilson Marcelino

Muitos astros da música sertaneja também foram parar nas telas do cinema brasileiro: Tonico e Tinoco, Milionário e Zé Rico, Nhá Barbina e Almir Rogério são alguns exemplos. E não poderia faltar mesmo um de grande apelo popular como o cantor, compositor e ator Sérgio Reis.  Grande sucesso na primeira versão de O Menino da Porteira (1977), de Jeremias Moreira Filho, ele protagonizou mais dois filmes nos anos 1970 e 80: Mágoa de Boiadeiro (1978), também de Jeremias Moreira Filho, e esse O Filho Adotivo, de Deni Cavalcanti.

Em O Filho Adotivo ele volta a encarnar Diogo, peão que percorre o país com suas comitivas e sempre com o violão ao lado. Na trama, um jovem peão de rodeio de nome Dioguinho compra as terras vizinhas do Coronel Jatobá, e deixa o velho indignado, pois queria adquirir a fazenda. Para completar, desperta a paixão na filha do manda-chuva, a bela Marina (Tássia Camargo). E é com a ajuda de Sérgio Reis, o Diogão, que Dioguinho enfrentará a ira do coronel.

Ao contrário dos outros filmes, O Filho Adotivo foi fracasso comercial em seu lançamento. Talvez pela forma frouxa como Deni Cavalcanti regeu atrama, por si só, bastante frágil e com conflitos e resoluções simplificados. Mas há um certo charme na ingenuidade com que aquele universo nos é apresentado.

Sérgio Reis não só protagonizou o filme como também co-produziu junto com Deni Cavalcanti, e canta um de seus maiores sucesso: a maliciosa Panela Velha – acompanhado de Caçulinha. Destaques para a presença do cantor, compositor e humorista Zé Coqueiro, fiel escudeiro de Sérgio Reis no filme, uma aparição surpreendente da atriz Norma Bengell como uma mulher à beira da morte que selará o destino dos inimigos, e os atores Francisco Di Solange Teodoro. O argumento e roteiro são assinados pelo novelista Benedito Ruy Barbosa.

O Lamparina

Especial Francisco Di Franco


O Lamparina
Direção: Glauco Mirko Laurelli
Brasil, 1964.

Por Adilson Marcelino

O cinema brasileiro, em sua história, sempre promoveu encontros memoráveis: Os Trapalhões e J.B. Tanko; Walter Hugo Khouri e Rogério Duprat; David Cardoso e Jean Garrett; Carlos Reichenbach e Ênio Gonçalves; Rogério Sganzerla e Helena Ignez. São vários exemplos, mas nessa lista jamais poderia faltar o encontro dos talentos de Amácio Mazzaropi e Glauco Mirko Laurelli, que rendeu quatro filmes com o primeiro dirigindo e o segundo produzindo e protagonizando, e mais a montagem de mais cinco filmes do astro com outros diretores.

O Lamparina é um dos memoráveis frutos dessa parceria. Fotografado por Rudolph Iczey, tem história interessante e engraçada, ótimo elenco e direção. No filme, Mazzaropi e Geny Prado e mais os três filhos e um agregado estão à procura de emprego. Enganados e roubados por um falsário, eles acabam se envolvendo com cangaceiros ao vestirem, ingenuamente, as roupas deles e serem confundidos por todos como integrantes do temível bando. Tudo se complica mais ainda quando Mazzaropi resolve fingir que é cangaceiro de verdade, para depois entregar os cangaceiros reais para a volante.

Neste O Lamparina, Mazzaropi está inspirado em cena: canta, dança, ri, chora e tem diálogos engraçados, contando, mais uma vez, com a parceira perfeita em talento e estilo, Geny Prado. Como nas paródias das chanchadas aos filmes de Hollywood, aqui temos uma deliciosa visita escrachada ao gênero do cangaço. O Lamparina foi o primeiro filme rodado na sua fazenda em Taubaté e onde ele construiria seu estúdio, geografia de um dos mais iluminados capítulos do cinema popular brasileiro.

No elenco, que tem ainda Emiliano Queiróz e Zilda Cardoso, nosso homenageado Francisco Di Franco marca presença mais uma vez, nesta que é a quarta parceria com o cinema de Mazzaropi, que vai marcar suas primeiras experiências no cinema. Os outros filmes, ainda assinando como Francisco de Souza, são As Aventuras de Pedro Malazartes (1960), de Mazzaropi, Tristeza do Jeca (1961), de Mazzaropi, e O Vendedor de Linguiças (1962), de Glauco Mirko Laurelli.