Dossiê Júlio Calasso
Entrevista com Júlio Calasso
Parte 2: O Bandido da Luz Vermelha e o cinema marginal
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto
Zingu! – Como você foi parar em O Bandido da Luz Vermelha?
Júlio Calasso – Tinha um pessoal que foi ver alguns atores na Excelsior, o João Batista de Andrade e o Francisco Ramalho Jr. me convidaram pra ser assistente de produção do João Silvério Trevisan, em Anuska, Manequim e Mulher. Lá apareceu um cara que acompanhou o nosso trabalho e veio me perguntar se não queria ser assistente de produção dele em outro longa. Fui. Me falaram para aparecer num escritório da Rua do Triunfo. Estava lá o Rogério Sganzerla, que já conhecia de trombada. Era O Bandido da Luz Vermelha. Fui pra formatar a produção, já tinha tido dois fracassos, a grana era quase nada. Ele era diretor de produção e pisou na bola. Tinham feito uns testes e só podiam ver isso depois que revelava o negativo, cinco dias depois. E o cara, ao invés de fazer o filme, estava fazendo um comercial com aquele negativo. O Rogério era um cara multipolar, mudava a cada 30 segundos. Ficou puto. Perguntou se segurava o filme. Disse que sim. Fiz todo o filme. Ele era uma pessoa maravilhosa. Mandei ele pra puta que o pariu muitas vezes. Se você perguntar como ele era, vou dizer: era um escroto, como eu. Virou o que virou depois. Somos humanos, depois viramos entidade. A vitalidade daquilo era justamente isso, éramos jovens. E tínhamos um velho maravilhoso por cima disso, que era o Peter Overbeck.
Z – Se o orçamento d’O Bandido estava tão escasso, como você fez pra reverter a situação?
JC – Marcava, por exemplo, com o cara, às 13h, almoçado. (risos) O outro marcava das 6h às 12h, almoça em casa. (risos) Tínhamos uma Kombi, que era do dono do circuito exibidor que colocou a primeira grana no filme. A exibidora não queria mais emprestar a Kombi. O dono estava em Santos. Fomos até lá e afanamos a Kombi. A Helena Ignez chegou às 7h da manhã de ônibus, fomos até um hotel na Duque de Caxias – onde morava o Nelson Gonçalves -, compramos algumas roupas e fomos fazer a primeira sequência dela. Chegou e filmou, sensacional. O Bandido contou com uma generosidade absurda. Essa subjetividade e sintonia, capacidade de todos estarem envolvidos. O filme teve de quatro a cinco semanas de filmagem. No último dia, mandei o Rogério mais uma vez pra puta que o pariu, e fui embora. O último dia não fiz, porque ele me ofendeu. Entreguei todo o dinheiro, inclusive um monte de moeda. Aí ele me escreveu uma linda carta, que guardo até hoje, mas não mostro para ninguém, porque é meu e dele, mas é algo maravilhoso. São declarações de amor e de amizade, de coisas que fizemos juntos, e troços que transformamos. Ele veio me falar: “tinha certeza que você ia roubar todo o meu dinheiro e aí você vai lá e me devolve até as moedas?” (risos) Nos trombávamos muito, especialmente em mostras de cinema. Ele tinha esse costume, quando conversava com as pessoas: “olha o Calasso. Calasso! Calasso! O Calasso é um puta dum gênio, e isso e aquilo lá”. Meia hora depois encontrava ele de novo, e novamente ela ia me apresentar: “Você conhece o Calasso? O Calasso é o cara que fez aquela bixinha escrota no meu filme” (risos). A cena do cinema foi feita no teatro Oficina, e tínhamos conseguido aquela puta locação. O cara que ia fazer o bixinha, que era um desses viadinhos mineiros do Jornal da Tarde, disse que não faria o papel de jeito nenhum. O Rogério quis desistir. Mandei ele a merda e disse que faria então a cena. Para resolver um problema de produção. (risos)
Z – Você já frequentava a Boca do Lixo?
JC – Cheguei à Boca em 1968, não frequentava lá. Fomos todos chegando meio juntos. Quem já estava lá era o Carlão Reichenbach, o Candeias, o Mojica.
Z – Nessa época, começou a se formar o chamado Cinema Marginal. Como se deu isso?
JC – Na realidade, muito rapidamente uma geração se estabeleceu no poder, que era a geração do Cinema Novo. Rapidamente tomaram conta da Embrafilme, da qual participa [Arnaldo] Jabor e sua turma, ligada ao regime militar. Essa é a origem. Todos eram ligados, de alguma forma, ao partidão, e tinham aquele vício de ensinar às massas e aos pobres a revolução, liderada por eles. Tem uma série de filmes didáticos, algumas grandes porcarias, e coisas muitos boas também, inventivas. O Glauber [Rocha] era um grande malandro, soberbo, inclusive porque tudo que ele falava repercutia. Porque viramos marginal? Porque a grana era pouca e eles não queriam dividi-la com a gente. Grana! Nós chegamos cheio de merda de cachorro no salão deles. De repente, chega um bando de cara que com um bando de filme que questiona, que faz perguntas e que dá certo. É um lance político e de gerações, sob o patrocínio da pouca grana, além de outras circunstâncias que não estão no âmbito da arte, da estética e da ética. Marginal era isso. Se perguntar pra qualquer cara da minha época se gostava de ser chamado de marginal, ele vai te mandar à merda. É pejorativo. Embora a molecada ache que não, que marginal é legal. Mas não, significava que não filmávamos. Mas todos tivemos a sorte de termos um cara que conseguiu observar esses caos, essas coisas aparentemente sem nexo, essas contradições, dar uma ordem nesse caos, paralelamente criando outra história caótica. Esse cara se chama Jairo Ferreira. Fui muito amigo dele, nos amamos pra caralho, estivemos sempre juntos, nos momentos mais fudidos da vida dele. Não estava aqui quando ele se suicidou. Mas tem um monte de babaca que está aqui à custa dele. Não estou nesse time. Continuou morando no meu coração. Mas não me envolvo nessa pataquada que está acontecendo com o nome dele. Os caras estão enterrando o nome dele. Essa adjetivação que fazem em torno do Jairo enterra ele. Porque os caras que contam essa historinha deles com o Jairo querem na verdade falar sobre eles, e não sobre o Jairo. Podia ter caído nessa armadilha, mas não caí. Estou fazendo um filme sobre o Plínio Marcos, que tinha muito a ver com o Rogério. Meu filme é sobre ele como transgressor de linguagem. Há uma comunicação entre peças do Plínio e os filmes do Rogério; inclusive Paulo Villaça e Sérgio Mamberti faziam Navalha da Carne e O Bandido. Não era à toa. Essa ebulição estava acontecendo na genética do planeta, há uma contaminação de muitos fatores que interagem nesse momento. Talvez seja o primeiro grande momento de comunicação planetária. Havia as possibilidades mais variadas. Pelo bem e pelo mal, andei em várias frentes. Fui muito contagiado pela política. Participei de grupos fortíssimos, que tinham a ver com política operária – nada de guerrilha, porque isso era aventura de classe média. Nós nos envolvemos com greves fortíssimas em São Paulo, de fábricas, no mesmo tempo que fazia Bandido, estava sendo ator, casando… Não fiquei muito tempo naquela Boca. Mesmo porque – e não me levem a mal – não gosto de cerveja. Então aquele lugar regado à cerveja todo dia, às 6h da tarde, com aquele queijo amarelo passando, que tinha que colocar sal em cima, não gostava daquilo. Meu negócio era maconha. Queria correr outros riscos, porque não eram os meus.
Sou um especialista em generalidades. Fui dono de várias padarias, abri a primeira lavanderia self-service de São Paulo, tudo porque queria fazer cinema. É diferente de, por exemplo, o Carlão Reichenbach, que é um livrinho. Ele entrou lá com 17 anos e nunca mais saiu daquela porra, então ele vai poder te falar durante 300 horas daquele negócio lá. Eu não era isso aí. Inclusive o meu filme e os outros que queria fazer não tinha nada a ver com aquela estética. Eram outros riscos que estava disposto a correr. Claro, tudo aquilo contaminou. Não que tivesse tido qualquer problema com a Boca, mas não era meu único interesse. Fazia também teatro, estudava filosofia, tudo nessa época. Depois virei produtor musical, produzi mais de 150 shows, dos Novos Baianos, da fase solo do Moraes Moreira, do Joelho de Porco, fiz grandes eventos. Até hoje não trilho apenas um caminho. Hoje, por exemplo, estou produzindo aqui, com meu filho, música, um disco sensacional, no porão daqui de casa. Faz parte da minha tradição e do jeitão dele. O Pedro, meu filho, é meu editor. Ele também tem um pouco de ser generalista, como eu. Fica às vezes até difícil de explicar o currículo. E acontece que nem aconteceu. Um jornalista, que se diz crítico de cinema, um sub-Jairo Ferreira, há uns anos atrás, escreveu uma matéria sobre o Jairo e disse: “quem sumiu foi o Julio Calasso e o Zé Agrippino de Paula”. Oras, o Zé estava ali no Embu, continuando a fazer coisas loucas e maravilhosas, que esse babaca nunca tentou saber, e eu estava no Rio de Janeiro – e, em oito anos, produzi dezessete espetáculos e realizei cinco documentários. Segundo ele, estava sumido, porque não aparecia nas páginas da Folha de S. Paulo, que é a única merda que ele lê. Essa questão da relação com o trabalho, da maneira como entende a sociedade, é difícil. O Plínio Marcos dizia muitas vezes isso: a censura é da mídia, é da grana. Ele dizia: “estou tentando fazer com que apareça na mídia e eles não publicam.” Tenho um sobrinho que é um dos principais caras de um caderno cultural de um dos principais jornais do Brasil. Há dez anos, pedi, pela primeira vez, que fizesse uma matéria comigo, por ocasião do lançamento de quatro documentários na TV Cultura, feitos com uma mini-DV, que fiz tudo sozinho, 150 horas de material filmado. E sai a matéria sobre o diretor do espetáculo. Perguntei: “não era sobre eu?” Ele respondeu que eu não tava na mídia. O projeto era meu, o documentário que ia passar na TV Cultura era meu, e ele fala do outro, porque ele estava na mídia e eu não. E olha que é meu sobrinho. Já fiz várias mostras. Em 1975, o Oficina ia fechar e fiz uma mostra chamada Cinema Bandido. Quem apresentava as sessões era o Zé do Caixão, ocorriam todas as sextas-feiras à noite, e depois tinha um baile regado a vinho sangue-de-boi. Era Rogério, Bressane, Candeias… Depois fiz outra mostra. A segunda foi Cinema de Invenção, por conta do lançamento do livro do Jairo. Saímos eu, ele e o Candeias, num fusquinha cheio de latas de filme. O Candeias era um puta dum chato, ranzina pra cacete, ficava reclamando: “bota a terceira, tá demorando pra mudar a marcha”. (risos) Fiz um festival de cinema negro na Cinemateca, há uns sete, oito anos atrás, e agora tenho uma mostra que vai pra terceira edição, chamado Cine Teatro Brasil, com documentários sobre o processo de criação do teatro.