Dossiê Júlio Calasso
Entrevista com Júlio Calasso
Parte 3: O Longo Caminho da Morte
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto
Zingu! – Como nasceu a ideia para O Longo Caminho da Morte?
Julio Calasso – Na minha cabeça, Cinema Novo já estava me enchendo o saco. E sempre eram aqueles filmes rurais, com aqueles camponeses. Participei de muitos movimentos, sei da brutal desigualdade social. Mas do ponto de vista cinematográfico, o outro lado era bem interessante. Fui me envolvendo nesse tema com a necessidade de dizer outras coisas. Tinha um grande amigo, Cláudio Polopoli, corroteirista do filme do Ebert inclusive, nosso padrinho, que faleceu cedo. Nesse período, descobri Crônica da Casa Assassinada, do Lucio Cardoso, livro de linguagem mais sofisticada que me lembro – se bem que três meses atrás levei uma porrada com Pornopopéia, do Reinaldo Moraes. Estávamos empolgados com a linguagem, não com a história, os personagens. Era basicamente os delírios de um poderoso de uma história que não existe mais. O Orestes é o fim de uma história que não existe mais, a decadência, a derrocada de quem está em cima. Os camponeses inclusive passam ao largo, você só escuta o som. Depois esse cara que você não viu aparece operário em São Paulo.
Z – Por que a oligarquia cafeeira de São Paulo?
JC – Porque estava em decadência. Nunca pensei nisso, mas talvez porque meu primeiro emprego tenha sido na Cooperativa Central dos Lavradores de Café, que não era dos lavradores e sim dos donos das fazendas. Escrevia e editava o jornal deles, O Cafeicultor. Era também a decadência de um setor, o café já havia saído de São Paulo e não tinha entrado a cana ainda. Tinham ido pro norte do Paraná, porque estava fora do circuito do granizo. Fiz o filme entre dezembro e janeiro. O ator que veio fazer meu filme, o Othon Bastos, tinha chegado de um do Ruy Guerra, Os Deuses e os Mortos, e depois foi fazer um do Leon Hirszman, São Bernardo. Os três filmes, com o mesmo ator, tinham o mesmo tema: a decadência de um personagem ligado à oligarquia da cidade. E nós não sabíamos um do outro. Os dois me afundaram, foram para a Europa. Quando você me pergunta ‘por quê?’, sei lá porque três pessoas fizeram na mesma época filmes com a mesma temática, e sei lá quantos tentaram. Talvez o momento, era 1970. Já havia tido o AI-5, um monte de gente já havia sido presa. Dei uma baita sorte, sabe-se lá o que poderia ter acontecido. Estava no Rio, junto com o Ebert, fazendo o filme dele, República da Traição, que era mistério, sexo e aventura, que não daria nenhum problema, exceto pelo título. Não entenderam nada e mandaram prender o filme. Fomos pegar um carro que tinha fundido o motor, porque ninguém colocava óleo. Cinco minutos depois, o carro capota, sou jogado pra fora, o Ebert fica lá dentro. Fiquei um ano e meio de cama, passei por cinco operações, e os caras me procurando. Naquela época, não tínhamos telefone. Quem tinha, era minha sogra, na Mooca, íamos fazer produção lá. O Ebert ligou pra esse número e contou o que aconteceu. A minha primeira mulher, a Tânia, saiu de casa, às 5h. Às 6h, os caras chegaram. Destruíram meu apartamento, roubaram as joias dela – o pai dela era diretor da Pirelli, viajava muito e gostava de comprar pequenas joias e perfumes franceses pra ela -, comeram a comida da geladeira, cagaram em cima da minha cama e queimaram os meus livros. Antes de saírem, metralharam meu apartamento. Dei uma sorte, porque vários dos meus parceiros morreram. Outra parte sequestrou o embaixador. Fiquei andando numa maca, sendo escondido. Pra alugar um apartamento, naquela época, você tinha que levar uma ficha de aprovação em todas as delegacias, inclusive a de ordem política e social, o DOPS. Os zeladores eram parceiros da polícia e todo mês tinham que relatar as atividades no prédio pros caras. Pra arrumar um apartamento, teve que ser no nome do meu irmão, meu pai gastou uma puta grana com o zelador.
Z – Fazer O Longo Caminho da Morte foi uma forma de expurgar a questão da ditadura?
JC – Não. Fiz porque fiz. Claro, esses dados todos estavam me contaminando. Mas não fiz com essa finalidade. Era a dinâmica da vida. Estava envolvido com Lúcio Cardoso, com os concretos, não com os panacas. Estava mais interessado na linguagem do que no conteúdo. Hoje procuro brincar com os dois dados, um sem o outro não existe.
Z – Como o filme foi construído?
JC – Dando risada (risos). Estava contaminado por aquilo que me interessava, a linguagem. O ‘como’ me interessava mais do que o ‘quê’. O cinemão talvez estivesse mais interessado no ‘quê’ do que no ‘como’. O Longo Caminho da Morte era o filme que fiz com a grana e o tempo que tinha. Eram oito dias e dez latas de negativo. O tempo total do longa dá 8,1 latas, o que dá por claquete 1,03:1. Uma atriz do meu filme era a Cecília Thumin, esposa do Augusto Boal, que conhecia do Arena. Um dia o Boal apareceu lá, querendo negociar uma saída rápida da Cecília. Ficaríamos apenas dez dias em Serra Negra. No domingo, acabou o negativo. Teríamos de parar e arranjar dinheiro pro negativo no dia seguinte. O Boal chegou pra mim e perguntou quanto custava. Disse. Ele perguntou se não conhecia ninguém que talvez tivesse uma lata. Disse que conhecia. O Claudio Mamberti foi até São Paulo buscar e ainda capotou no caminho. Não adiantou nada, tiveram que ficar até terça. De lá, o Boal foi para a Argentina e de lá até Paris. Não sabia. Fizemos com 11 latas, porque ele deu essa. O filme tinha 68 planos no roteiro e tem 86 planos na tela. Era plano-sequência. Além de ser linguagem, era necessidade. Ensaiava três horas e rodava uma vez. Fazia três minutos de manhã, três minutos à tarde, estava com o dia feito. Tinha que inventar um troço pra dar conta do que tinha.
Z – Esse dinheiro era teu?
JC – Vinha de três fontes. Uma era minha. Uma era da minha sogra, que tinha me dado um milhão do dinheiro da época. E uma era de minha amiga, que me deu outro milhão. O que seria uns R$ 100 mil hoje, mais ou menos. Rodei numa fazenda onde tínhamos controle de tudo, alimentação, hospedagem. O pessoal da cidade trazia galinha, bezerro, arroz, feijão, o mercado dava. Automóvel, locação, tudo veio de uma forma bacana. O cachê era uma miséria. Quando comecei a fazer cinema, 70% era o custo de tecnologia, sistemas, métodos, e 30% de salário humano. Hoje em dia é o contrário. Estou fazendo um filme aqui. Claro, há filmes e filmes. Mas hoje você pode fazer um filme que vai às salas com R$ 30 mil. Naquele tempo não. Tinha uma equipe enxuta. O Rudá de Andrade me emprestou a câmera da ECA/USP com a condição de que levasse três alunos pra serem assistentes. A equipe era de cinco pessoas, mais três caras que vieram da ECA. Um veículo que era da prefeitura, a fazenda era de graça. Imagina hoje: quero filmar um plano de um túnel na Imigrantes e querem me cobrar R$ 23 mil. Conclusão: vou filmar o plano e estou me lixando pra eles. Tá escrito na frente do túnel: proibido filmar aqui? Queria colocar um cara naqueles carros-caçamba pra filmar. Não pode. Então vou com um carro fechado, uma câmera de um lado, uma do outro, e estou me lixando.
Z – O Longo Caminho da Morte chegou a estrear comercialmente?
JC – Sim, ficou duas semanas no Marachá. A primeira semana foi ótima. Aí o Álvaro Moya, que era diretor de programação, ficou super entusiasmado, e quis fazer uma segunda semana. Eu achava que não era pra tanto. Ele colocou. E foi um fracasso total. Ele fez São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. O cara que levou o filme pra Curitiba perdeu minha cópia. Meu filme também foi selecionado pro Festival de Locarno. Na semana que ia pra lá, não acharam a cópia, e mandaram o de um outro cara. Tinha 11 votos em 13. O cara teve 1 voto e foi. Porque era filho de embaixador, diplomata. No Brasil, na nossa área, não existe uma burguesia, mas a maior parte dos caras tem um pé no Estado e isso é ter acesso.
Z – Você escolheu o Othon Bastos por ter ficado encantado com ele em Deus e o Diabo na Terra do Sol?
JC – O Deus e o Diabo me fez amar o Othon Bastos. Mas quem ia fazer o papel do filme era o Raul Cortez. Primeiro era o Fernando Torres, junto com a Fernanda. Ela não pode, e aí virou Raul Cortez, com quem eu fazia Galileu Galilei, no Oficina. Íamos fazer depois do Galileu. Ele não pode. O Claudio Mamberti falou do Othon. Falei com ele, um cara divertido, que topou na hora. Não o conhecia. Estava morando em São Paulo fazia pouco tempo. O Mamberti era amigo da Martha Overbeck, esposa dele. Quebrei o pau com ele várias vezes, porque ele vinha de Deus e o Diabo e outros filmes épicos, da escola brechtiana. E o personagem era um cara da decadência. Ele não entendia nada. Teve uma hora que pedi o roteiro de volta e comecei a passar só as falas pra ele. E, além do mais, era mais velho que eu, estava afim de comer aquelas meninas, e as meninas não estavam a fim de dar pra ele, tava mal humorado pra cacete. Ele queria me encurralar e aí tirei o roteiro da mão dele. A gente se adora, até hoje. Depois que ele viu o filme… Foi uma guerra pra construir aquela história em tão pouco tempo. Gosto do filme pra cacete. Acho que hoje é um filme normal, que existe um repertório geral capaz de incorporar meu filme. Estou há mais de um ano batalhando com a Cinemateca. Tenho um contrato em que eles têm que cuidar do meu filme e eles não fizeram nada. Tento que, ao menos, me façam um telecine, porque aí eu pego a cópia, mexo aqui nessas máquinas que tenho e refaço som e imagem, e faço uma cópia digital pra exibir. Tenho certeza que vai funcionar melhor agora. É o primeiro filme ecológico, o mundo acaba no final.
Z – Depois de O Longo Caminho da Morte, você se afastou um pouco do cinema, trabalhou como produtor musical, foi ator no Oficina.
JC – Nos anos 70, fiz vários filmes, especialmente curtas-metragens, em que depois os caras não me chamaram pra fazer os longas (risos). Mas não fui eu que abandonei o cinema, o cinema que me abandonou. É muito difícil. Depois daquele acidente, fiquei três anos com uma situação muito complicada. E aí veio essa primeira lavandeira self-service do mercado, na Boca do Luxo, na r. Major Sertório, chamada Lav Secs Self-Service. Funcionava até às 22h. Entre 1974 e 1980. Travestis, bichas, putas, estudantes, bancários, eram quem frequentavam. Meu pai era sócio. E ele tratava os travestis de um jeito que nunca tinham sido tratados. Meu pai sabia o nome deles todos. Ali dirigi teatro, fiz filmes. Mas nunca consegui ganhar a grana que imaginava que ia ganhar pra fazer filmes. Ao contrário, comecei a fazer filhos. Fiz depois duas padarias, querendo isso. Cinema é algo que amo de paixão. Tem mais uma porrada de filme que quero fazer. O Manoel de Oliveira filma até hoje, com 102 anos. Meus pais morreram com 95, 98. E não tenho compromisso com ninguém, muito menos com a vida. Tenho 15 minutos. Meu horizonte é 15 minutos. Pode ser que isso vire 98. Se não for, tenho uma porrada de netos, meus filhos são uns puta caras, tudo bem então. Daqui pra frente sou eu, depois de muito tempo estou sozinho, construindo mais alguma coisa que não sei o que é. Ariano tem esse vício, de construir. Sinto falta de uma vivência que tive durante muitos anos com a política cinematográfica. Mas a grana é curta, meu pirão vem primeiro.