Entrevista: Júlio Calasso – Parte 1

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 1: Começando…

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como era sua infância? É daqui de São Paulo mesmo?

Julio Calasso – Sim, sou paulistano. Nascido e criado aqui. Nasci no Bom Retiro. Fiquei lá até 3, 4 anos. Aí chegou o asfalto. Meus pais acharam que estava meio sufocante, delicada a situação lá. Passava ônibus na rua, etc. Nos mudamos para a Vila Carrão. Naquela época, era o dobro da lonjura de onde tinha acabado São Paulo, tanto que havia a estrada do carrão pra chegar lá. Tinha lagoas, árvores, andávamos descalços, jogávamos bola na rua. Tinha um cheiro muito característico, tanto que minha memória olfativa daquela época é ainda muito forte; às vezes, lembro daquele passado pelo cheiro. Fiquei lá até 6 para 7 anos, e fiz o primeiro ano da escola. Mais uma vez meus pais se anteciparam e fomos para a Mooca. Meu crescimento e adolescência foram lá. Sou um cara da Mooca, daquele momento da história da cidade. Anos 50, fábricas que paravam às 16h, crises de energia elétrica. Meus pais não são operários, meu pai era funcionário público e minha mãe era das prendas domésticas, era calceira, ajudava em casa. Lá, acompanhei uma passagem importantíssima da vida da cidade. Uma coisa era essa prosopopeia da libertação das mulheres de classe média, outra coisa era aquelas mulheres pobres que trabalhavam para caralho, em fábricas, com crianças, às vezes em quatro teares ao mesmo tempo. Levava a marmita pra essas mulheres, com amigos meus. No próprio bairro da Mooca, também vi a chegada de imigrantes italianos e espanhóis, mão-de-obra especializada para as novas indústrias automobilísticas. Transformação que São Paulo viveu e sofreu. O futuro aqui às vezes é ontem, cresceu de uma forma imprevisível. Outro ponto importante em minha formação: só estudei em escola pública, tive esse privilégio de ter estudado em uma época em que o ensino público era da maior qualidade. Entrei na USP, em Filosofia. Cursei dois anos. Só parei porque sofri um acidente entre 1969/70, durante uma filmagem, e fiquei um ano e meio de cama. Quando voltei, já não era mais nada daquilo que havia me tornado um cara mais aberto.

Z – Qual filme era?

JC – República da Traição, do Carlos Alberto Ebert. Era meu parceiro, éramos moleques que se conheceram na aventura que foi O Bandido da Luz Vermelha. Todo jovem tem capacidade de viver aventuras e isso é muito verdadeiro, especialmente na arte. Embora fosse pretensamente um poeta – fui um dos primeiros caras a conhecer no Brasil o Fernando Pessoa, por uma razão muito simples: o Carlos Felipe Moisés, que é uma das maiores autoridades internacionais em Pessoa -, jamais imaginei que pudesse me transformar num profissional do cinema e do teatro. Trabalho desde os 13 anos de idade e me orgulho muito disso. Sou o que sou hoje por conta do trabalho. Fui office-boy, bancário, fui um monte de coisa. Quando era jovem, conheci pessoas que foram fatais para os caminhos que tomei. Uma delas era um ‘japa’, que tinha uma editora. No meu colégio tinha grandes colônias judaicas, italianas, negras e japonesas. Transitei por tudo isso desde menino. Tinha muito mais a política do que a arte no horizonte. Aprendi marketing, pensamento estratégico, feição de projeto, décadas antes que isso virasse pauta. Estava com 23 anos, jogava sinuca com meu amigo japa, de família rica e cabelo engordurado, cheio de brilhantina, e ele bolou uma rifa, mas não conseguia desenvolver o projeto. Fiz dar certa essa história. A ideia foi a de ir a dois teatros e conseguir que eles vendessem dois ingressos pelo preço de um, numa época em que não existia meia-entrada. Fui no TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] e o cara praticamente me expulsou de lá. Lá trabalhava o Manolo, uma bicha espanhola maravilhosa, amiga de todo mundo da classe teatral, que me disse pra procurar um teatro na Rua Jaceguai, um teatro novo que estava começando, o Oficina, e disse pra eu procurar um tal de Zé Celso [José Celso Martinez Corrêa]. Chego lá. A administradora parecia a dona Marta, do Glauco, e disse pra entrar e ficar quietinho, porque ele estava mexendo em algumas coisas e depois me atenderia. Entrei no Oficina e fiquei lá no escuro. Eles estavam fazendo a luz de Pequenos Burgueses [texto de Máximo Gorki]. Comecei a chorar de emoção. Essa poesia doida, era ali que queria continuar minha vida. Eles toparam a venda dos ingressos naquele esquema, o teatro Arena topou, e comecei a distribuir ingressos para as pessoas irem ver esses espetáculos. Devo ter visto umas 120 vezes Pequenos Burgueses. Aí veio o golpe, fecharam o teatro, e reabriram com um curso de interpretação do Eugenio Kusnet, um cara que conduziu duas gerações do teatro brasileiro, um cara fenomenal. Ele nos envolveu nesse mundo muito complexo que era a interpretação. Tive essa baita oportunidade que a vida me deu de fazer esse curso. A vida me deu, aliás, muitas chances, e, também, me quebrou as pernas em vários momentos. Estou sempre recomeçando. Com 71 anos, estou numa história completamente diferente que nunca havia vivido. Teve também outra coisa: nos últimos dias de março de 1964, estreou um filme brasileiro, numa sessão escondida no cine Windsor, chamado Deus e o Diabo na Terra do Sol [de Glauber Rocha]. Que impacto! Uma abertura de horizonte! Era um negócio novo, uma forma nova, com um protagonista que tinha minha idade e se parecia comigo, na forma de se posicionar diante da vida e da arte. Foi muito mais a vida do que pressupostos artísticos que me levaram à arte, pois achava que era através dela que conseguiria me expressar e permanentemente me transformar.

calasso-6AZ – Como você começou no cinema?

JC – Frequentava o Cineclube Dom Vital, acho que tinha passado Cinco Vezes Favela, e quem apresentava era o Maurice Capovilla. Dois dias depois, cruzei com ele na R. Direita. Caminhei vinte metros e pensei: “preciso falar com esse cara”. Falei com ele, me apresentei, disse que havia ficado muito empolgado, e que queria muito fazer cinema e não sabia por onde começar. Ele pensou um pouquinho e me perguntou: “Você carrega um tripé?” (risos). Foi assim que comecei em cinema, carregando tripé, em um filme maravilhoso, que era uma coisa nova em termos de atitude, que é a produção do Thomaz Farkas. Acho que estive muitas vezes nos lugares certos e nos momentos certos, não que tenha aproveitado tudo isso para mim – talvez até menos do que gostaria. Eles estavam fazendo Os Subterrâneos do Futebol [dirigido pelo Capovilla], no Pacaembu. Estava lá o Waldemar Lima, diretor de fotografia. Eles ficavam combinando onde seria cada tomada, um ficava lá em cima e o outro embaixo. Quando se acertavam: “Tripééé!” Lá ia eu carregando aquele tripé de câmera 16mm, super pesado. Chegava eu lá em cima, ele olhava e dizia: “não, acho que fica mais legal do tobogã”. Lá ia eu subir mais não sei quanto com aquele peso nas costas (risos). Fui lá receber o dinheiro na Fotóptica, que era do Farkas, e lá tinha um anúncio de vaga de datilógrafo (risos). Perguntei para quê era. Disseram que era um sujeito que ia fazer um filme que tinha muitas horas de material gravado e precisava de alguém que colocasse o fone no ouvido e transcrevesse todo o conteúdo. Me candidatei. O filme era Viramundo e o diretor o Geraldo Sarno. Não tenho culpa se foi assim que aconteceu. O teatro, o cinema, a TV, as artes cênicas, são as que me atraíram.

Z – Em Viramundo, você é creditado com assistente de direção. Como passou de datilógrafo a assistente?

JC – Porque não fui só datilógrafo, acabei fazendo o filme todinho. A bem da verdade, hoje seria quase um corroterista ou um colaborador de roteiro. Mas isso não quer dizer nada. Meu orgulho de ter feito é maior do que isso. Lá, generosamente, aprendi muito mais do que qualquer outra coisa. Mas quebrei muito pau com o Geraldo e tem duas sequencias do filme que eu coloquei. Porque o pessoal que ele pegava era gente tudo boazinha. Peguei dois caras: um traficante da favela do Vergueiro (que ele não usou) e um pastor evangélico gay.

Z – Como era trabalhar com Sarno?

JC – Bem, o Sarno é pisciano. Ele e o Hermano Penna são os piscianos com quem trabalhei. E pisciano me dá um trabalho. Sou de Áries, não tem compatibilidade. Os dois são maravilhosos, geniais. Mas o cinema dele é dolorido, pesado. È bonito. Ficava sempre pilhando. Tem um livro [Cineastas e Imagens do Povo] do [Jean-Claude] Bernardet – que, em minha opinião, é um nada que não gosta do Geraldo -, que teve uma edição ampliada há uns cinco anos atrás. O pessoal da editora [Cia. Das Letras] me ligou, pedindo autorização para colocar uma foto minha e tal. Só fui descobrir de quem era depois. O Jean-Claude não vai com minha cara. E na capa do livro estou eu, com uma claquete, olhando pra câmera. Ele ficou puto (risos).

Z – Depois você foi trabalhar na Excelsior, certo?

JC – Sim. Nesse meu começo de carreira, fui ator. Entrei como aluno do Kusnet, depois fiz dois espetáculos no teatro Oficina, fiz um no Arena, inclusive a primeira peça do Plínio Marcos, Reportagem de um tempo mau, e uma adaptação de O Processo, do Kafka, pelo Leo Lopes, um cara genial que morreu cedo e era assistente do Walter Avancini na TV. Naquela época, as equipes eram pequenas. Fiz a novela As Minas de Prata, que tinha 50 e tantos cenários fixos. O elenco dava três da novela da Globo hoje em dia. Vários estão aí até hoje: Glória Menezes, Tarcísio Meira, Paulo Goulart, etc. Mais uma caceteada de outros atores. Eu arredondava o texto da Ivani Ribeiro, porque ela vinha do rádio. Ela e a Janete Clair são as grandes teledramaturgas. Avancini era um gênio, inventou o padrão de qualidade da teledramaturgia. Fiquei na TV Excelsior um ano.

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