Prata Palomares

Dossiê Júlio Calasso


Prata Palomares
Direção: André Faria Junior
Brasil, 1971/84.

Por Sérgio Andrade

Dois guerrilheiros vão parar acidentalmente numa ilha e escondem-se numa igreja em ruínas. Enquanto decidem o que fazer, recebem a visita de uma santa que diz querer engravidar deles dois. Um dos guerrilheiros pretende construir um barco para sair da ilha e o outro se veste de padre fazendo amizade com as autoridades locais. O poder lhe sobe à cabeça e ele vai abandonando os ideais revolucionários para desespero do companheiro e da santa.

Produto típico de um período de nosso cinema, Prata Palomares abusa das metáforas, alegorias, associações de ideias, histerismo (os atores gritam a maior parte do tempo).

Boa parte de sua fama deve-se ao fato de ter sido interditado pela censura por mais de dez anos. Segundo Carlos M. Motta, o filme foi rodado em Florianópolis em 70 e 71, teve dois títulos experimentais, “Palomares, a História de um Padre Louco” e “Paraíso no Inferno”, foi liberado em 1980, só conseguindo lançamento comercial em São Paulo no dia 23/02/84, numa das salas do Belas Artes.

Verificando a ficha técnica, percebe-se que é mais um produto típico do Teatro Oficina: seu criador, Zé Celso, é roteirista ao lado do diretor André Faria Junior, que trabalhou numa das peças mais aclamadas da companhia, Galileu Galilei, ao lado dos atores Renato Borghi, Itala Nandi, Carlos Gregório, Otávio Augusto, Renato Dobal, Carlos Prieto, Elizabeth Kander. Ao que parece o filme, do qual alguns dos atores participaram como assistentes (Otávio de direção; Itala de montagem; Dobal de cenografia), foi responsável por uma crise interna do grupo, seguida do seu esfacelamento. Não é de se estranhar.

Um dos maiores críticos do filme é Jairo Ferreira, que diz que Prata Palomares é prova retumbante da inaptidão de Zé Celso para o cinema, tendo causado repúdio no Festival de Gramado de 1979.

Júlio Calasso Jr., no entanto, não pode ser responsabilizado pelo desastre: ele é creditado apenas como um dos cinco diretores de produção.

O Bandido da Luz Vermelha

Dossiê Julio Calasso


O Bandido da Luz Vermelha
Direção: Rogério Sganzerla
Brasil, 1968.

Por Vlademir Lazo

O Bandido da Luz Vermelha foi a fulgurante estréia de Rogério Sganzerla como diretor de longas-metragens (antes ele havia assinado um curta, Documentário, que integra a bela edição em DVD de O Bandido lançado pela Versátil), depois de ele ter passado a década de 60 inteirinha como cinéfilo e crítico vendo e revendo tudo de bom que aqueles anos produziram. Era a década mais revolucionária do cinema falado (assim como a de 20 o fora para o cinema mudo), quando a partir dos lançamentos de filmes emblemáticos como Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais e Acossado, de Jean-Luc Godard (ambos de 1959) os realizadores do toda parte passaram a renovar as formas de se contar uma história, para que tudo não ficasse restrito as soluções já desgastadas nas décadas anteriores, em uma grande ruptura estética do cinema, onde toda a linguagem, todos os elementos fílmicos foram desconstruidos.

O mundo inteiro acompanharia essa revolução, e no Brasil não foi muito diferente. Georges Sadoul encerraria a sua História do Cinema Mundial (1966) se referindo aos primeiros anos do Cinema Novo brasileiro como “o poderoso impulso de avanço de um novo cinema dominado pela critica social, que em 1966 era o mais audacioso e o mais novo cinema do mundo”. O saldo foi compensador pelo surgimento de alguns grandes filmes, mas infelizmente em pouco tempo o movimento deu sinais de esmorecimento. Os cinema-novistas se perderiam em suas propostas estéticas pretensiosas, hermetismo, a luta para driblar a censura após o Golpe de 64 e o conseqüente afastamento das platéias.

A obra mais emblemática dessa fase final do movimento é o mítico Terra em Transe (que o próprio Sganzerla assumia tê-lo influenciado na sua estreia), de Glauber Rocha, um filme brilhante, genial, mas tortuoso, complexo, de difícil entendimento para a maioria dos espectadores, o que fez com que se tornasse um grande fracasso de público. Atento a esse quadro geral, cheio de ideias e tendo visto de tudo em matérias de filmes pelo fato de nos quatro anos anteriores ter sido crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo, o jovem Rogério Sganzerla, com 22 anos de idade apronta um sacolejo que seria uma revolução no cinema nacional o seu O Bandido da Luz Vermelha.

Muitos dizem que Sganzerla odiava Glauber e o Cinema Novo. Mentira. Ele admirava e elogiou muitos filmes do movimento, incluindo os de Glauber, com quem continuaria amigo até a morte do diretor baiano (a qual chorou em um texto de sua autoria publicado na Folha de S. Paulo). Sganzerla não pôde deixar de perceber que o Cinema Novo não estava sendo mais eficiente com os filmes, compreendendo que os filmes tinham que ter uma aproximação com o público, dialogar com a platéia sem o risco de esnobá-la como vinha ameaçando fazer um cinema nacional da época que beirava o elitismo. A proposta do que hoje conhecemos como Cinema Marginal (o “udigrudi”, como também seria chamado), corrente na qual O Bandido da Luz Vermelha seria um dos pilares, era uma aproximação maior com as platéias, com um tom anárquico e debochado em vez do teor grave dos cinema-novistas, mas também indo mais fundo em um cinema de invenção, instigante, criativo, divertido, por vezes genial, sempre de acordo com a revolução cinematográfica mundial daquele período. Toda essa pretensão se consolidaria de maneira notável nesse primeiro e notável longa de Sganzerla.

Tomando como inspiração o criminoso que ficou famoso como o bandido da luz vermelha na São Paulo dos anos 60, o diretor pretendeu rodar um “faroeste do Terceiro Mundo”. Paulo Villaça interpreta genialmente o personagem Jorge, o bandido que desconcerta a policia paulistana ao utilizar técnicas peculiares de ação. Sempre usando uma lanterna vermelha, agia sempre sozinho e costumava invadir as casas da classe média alta para bater nos maridos e violentar as mulheres, tendo longos diálogos com suas vitimas e protagonizando fugas ousadas e espetaculares para depois circular livremente e gastar os frutos de seus roubos de maneira extravagante. Quando ele chegava, os valentes iam dormir mais cedo e as mulheres mais tarde. Esse argumento serve de pretexto para se realizar uma obra das mais anárquicas, efervescentes, com frases impagáveis como “Quem não pode nada tem mais é que se esculhambar“, que sintetiza muito bem o espírito do filme, ou ainda “Posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal” e “Quem está de sapato não sobra”.

Sedutor em sua linguagem fluente, ágil e moderna, devassa a Boca-do-Lixo e comunica demais o caos político e a desorganização social de nossa época com uma narrativa caótica e desconexa (como o próprio Brasil), fragmentada, mesclada com elementos da cultura pop (como a adição de material de procedências de diversas áreas como poesia, teatro, recortes de jornais, etc.), superposições de gêneros e elementos (o western, a chanchada, o policial, o mau-gosto, o bolero, o expressionismo, o deboche, o strip-tease), cortes brilhantes e uma edição frenética e dinâmica baseada em histórias em quadrinhos. A narração em off no estilo de um programa de rádio popularesco e sensacionalista (recheado de canções bregas da época, ritmos regionais e Jimmi Hendrix) é um show à parte com os locutores (Helio Aguiar e Mara Duval) descrevendo a trajetória do bandido “monstrrruoso”, “maconheiro” e “tarado”, com um tom debochado e parótico das dramatizações radiofônicas. O filme também faz alusões ao cinema trash, como na invasão dos OVNIs, apenas uma das tantas influências que toma de tantas obras díspares. Mas a maior referência dele parece ser mesmo o cinema de Jean-Luc Godard, de cujo estilo Sganzerla se apropriou para fazer uma obra bem brasileira, com identidade própria (antropofagia pura).

Numa época em que ser marginal era ser herói (bem diferente de hoje em dia, em que bandido é bandido e os heróis não existem), esse filme foi um protótipo de vida e de resistência, desde a maravilhosa abertura, que apresenta os créditos apresentados em um luminoso que faz desfilar os nomes do filme, equipe e elenco diante da câmera, enquanto surge uma voz em off, que é a voz do personagem-título, para um curto monólogo que inicia com: “Eu sei que fracassei”. Finda a apresentação do elenco, o monólogo do protagonista prossegue sobre a primeira seqüência: crianças miseráveis brincam num monte de lixo com armas, um plano geral da cidade de São Paulo, crianças assaltando uma favela enquanto a voz do bandido fornece informações biográficas a seu respeito. O elenco é um show à parte. Paulo Villaça faz uma espécie de Belmondo brasileiro, e atrai todas as atenções num tour-de-force surpreendente, incorporando o personagem de maneira assombrosa. Também não fica muito atrás a antológica atuação de Luis Linhares como o Delegado Cabeção, que ironicamente segue uma trilha de vida e morte semelhante a do Bandido, só que em lado oposto da lei. Pagano Sobrinho está impagável como uma caricatura dos lideres políticos. E a musa Helena Ignêz é a prostituta Janete Jane, que fará com que se revele aos olhos do espectador grande parte do íntimo do bandido.

Aos desavisados que ainda não assistiriram ao filme, deve-se dizer que por mais anárquico que seja (tanto no seu conteudo subversivo quanto na linguagem totalmente despojada), ele não possui nada de esdruxulo ou porra-louca. Por trás dessa loucura toda esconde-se um perfeito acabamento cinematográfico. Rodado nos primórdios da Boca do Lixo paulistana, O Bandido da Luz Vermelha explora de modo nada sisudo o lixo urbano gerado tanto pela miséria quanto pela sociedade de consumo para escancarar a realidade nacional, acentuando o lado cafona desse quadro geral, que realça ainda mais a degradação dos personagens. E dessa cultura de massa emerge esse clássico incontestável do cinema brasileiro, tão clássico que ofuscaria outros trabalhos (alguns ainda melhores) que o diretor realizou ao longo de sua carreira.

O Baiano Fantasma

Dossiê Júlio Calasso


O Baiano Fantasma
Direção: Denoy de Oliveira
Brasil, 1984.

Por Edu Jancz

Lambusca (José Dumont) é mais um paraibano que desembarca em São Paulo a procura de uma vida melhor. Afinal, como ele diz, é aqui que está o dinheiro.

Saindo da rodoviária, Lambusca tem o primeiro contato com São Paulo. Vai ajudar um cego a atravessar a rua e tem a sua carteira furtada. Era um falso cego. Como falsos sonhos e convicções Lambusca ainda vai encontrar pelo seu caminho.

Busca a casa do conterrâneo Antenor (Luiz Carlos Gomes). Não é difícil encontrá-lo. Bem como conseguir estadia e alimentação. Ali, ganha a alcunha de baiano, como é conhecido seu conterrâneo Antenor. Que alivia o preconceito: não liga, não, aqui todo nordestino é chamado de baiano.

Disposto a melhorar de vida, deixar de ser quebra galho para ser um profissional de verdade, Lambusca faz Carteira de Trabalho e sai em busca das oportunidades de carreira na cidade grande – que, a princípio, não lhe parece grande, mas cordata e mãe com as mãos abertas para receber novos filhos.

Em seu caminho cruza com Remela (Paulo Hesse), o típico malandro-sabonete. Aquele que descobriu que viver é sempre levar um pouco de vantagem em tudo. Não importa a moral ou o companheirismo. Importa sobreviver.

Remela é empregador de uma quadrilha que cobra proteção a comerciantes e populares em dificuldades. Arranja um emprego para Lambusca. Tudo parece muito fácil. E o ingênuo Lambusca pensa ser funcionário de uma financeira. Em princípio, o dinheiro chega fácil. O jovem paraibano – chamado por todos de “baiano” -, vê crescer os olhos, compra roupas novas e gasta sem muita cerimônia. Aparentemente, está num paraíso!

As coisas mudam.

Um dia, indo trabalhar, Lambusca vê um nordestino sendo espancado pelos capangas da quadrilha para qual trabalha. Em princípio, se mostra corajoso, Esbraveja contra a covardia cometida contra a quem chama de seu conterrâneo. Até que Remela lhe abre os olhos. É cada um por si. Contrariar a quadrilha seria perder os ganhos fáceis. E o conterrâneo – meio envergonhado, meio possuído pela cidade grande – abandona o outro conterrâneo ensanguentado, seguindo os mandamentos de sobreviver pontuados por Remela.

Um devedor, pressionado por Lambusca tem um infarto e morre. Polícia na parada. Surge um retrato falado. Nos jornais a notícia: “Baiano Fantasma é a Causa Mortis”.  Pra complicar, o ingênuo Lambusca resolve não devolver o dinheiro arrecadado no dia. Acredita que pode desaparecer: não é um fantasma?

A Quadrilha joga pesado e coloca capangas e informantes em busca dele. O mesmo faz a polícia! E o desesperado Lambusca, entre gastar o dinheiro fácil e lembrar dos objetivos que o trouxeram em São Paulo, entra em crise. Voltar para casa se apresenta como a melhor forma de fuga.

O Baiano Fantasma é crítica ácida à condição que muitos migrantes enfrentam no embate com a cidade grande do sul. Sonhos logo perdem o brilho e se mostram penitências de longa data. Sobreviver aqui equivale a uma frase dita no final do filme por Lambusca: “A gente vai perdendo pernas, braços e vira um bicho”.

O filme de Denoy de Oliveira, conduzido com maestria e rota ideológica traçada, não é uma ode ao pessimismo. Mas um alerta. Das dificuldades, preconceitos e perda de valores morais que norteiam o sobreviver do migrante numa cidade grande.

O Baiano Fantasma foi premiado como o melhor filme no 12º Festival de Gramado. Bem como o nosso homenageado, Júlio Calasso, na pele de um excêntrico delegado de polícia, que recebeu o prêmio de melhor ator coadjuvante concedido pelo Governo do Estado de São Paulo.

No final do filme, Denoy de Oliveira presta homenagem a dois homens do norte que amam a sua cultura. Ao seu pai, Francisco Xavier, que identifica como paraense, sapateiro e anarquista. Bem como ao veterano ator Rafael de Carvalho, último filme desse comediante, identificado como paraibano, contador/ator e “soldado do povo”.

Filme Demência

Dossiê Júlio Calasso


Filme Demência
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1985/87.

Por Ailton Monteiro

Ler o calvário que foi a preparação de Filme Demência, presente no livro Carlos Reichenbach – O Cinema como Razão de Viver, dá uma ideia do quanto foi difícil a gestação deste, que é considerado pelo próprio cineasta o seu filme favorito e pelo qual mais gostaria de ser lembrado. As dificuldades de sua produção começaram a partir do orçamento pequeno, o que dificultou a contratação de um ator para interpretar Mefisto (que acabou nas mãos de Emílio de Biasi). Depois, há todo o contexto socioeconômico da época, com a inflação comendo o dinheiro das pessoas a cada dia, a ponto de, tanto Carlão quanto o montador do filme, Éder Mazini, terem que sobreviver às custas de suas esposas em certo momento da realização. Havia uma obsessão, uma necessidade pela conclusão do filme, e isso custou muitas noites de sono de seu diretor. A produção foi interrompida por três vezes por atraso da verba da Embrafilme e, em uma dessas vezes, as filmagens pararam por quatro meses. Sorte que isso não é notado quando se assiste ao filme.

Filme Demência é o mais delirante dos trabalhos de Carlão, uma espécie de “Alice no País das Maravilhas” adulto e tenebroso; afinal, trata-se de uma versão bem pessoal da lenda de Fausto. Que é o nome do protagonista, vivido por Ênio Gonçalves. Ele está falido, perdeu a empresa de cigarros que possuía por causa da crise econômica, perdeu também a esposa para o sócio e anda feito um errante sem razão de viver pelo mundo. Aliás, sua única razão de viver é encontrar uma praia e uma garotinha que aparece em seus sonhos, sua filha.

No meio do caminho, ele encontra diversos tipos na noite paulistana e durante o percurso Carlão faz inúmeras homenagens a filmes e cineastas: há os cartazes de O Tigre de Bengala, de Fritz Lang, e Capacete de Aço, de Samuel Fuller; ou o nome de um palestrante, cujo nome é Dreyer, homenagem ao renomado cineasta dinamarquês Carl T. Dreyer; além de o filme ser um tributo a Luis Sérgio Person e também prestar homenagem ao poeta e teórico do surrealismo André Breton.

Com tantas citações eruditas, a comparação com o cinema de Jean-Luc Godard parece inevitável, até porque Carlão cresceu acompanhando os trabalhos do enfant terrible da Nouvelle Vague. Era, obviamente, um trabalho arriscado e bem pouco popular, até por se distanciar de outras obras de maior apelo que o cineasta havia dirigido, como A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979) e O Império do Desejo (1981), que tinham o erotismo e a nudez como chamarizes para a audiência da época, muito embora fossem trabalhos que se esquivaram de maneira inteligente da censura imposta pelo regime militar da época para falar de questões políticas. Já Filme Demência foi realizado em outras circunstâncias, quando o Brasil já tinha se livrado dos militares, mas que passou a ser assombrado pelo monstro da inflação.

O que não impede que o filme também não tenha alguns momentos atraentes, no sentido erótico mesmo, como a sequência inicial com Imara Reis, ou os momentos em que o personagem encontra as prostitutas da noite, ou quando é assediado por uma vizinha da fábrica de cigarros. Mas o que mais chama a atenção é a pequena, mas radiante presença de Vanessa Alves, essa moça linda que continua sendo uma espécie de amuleto para o cineasta, tendo trabalhado com ele em diversos outros filmes. Filme Demência pode até não ser o filme preferido de Carlos Reichenbach para muita gente, mas é com certeza indispensável para quem deseja saber mais sobre esse gigante de nossa cinematografia.

O filme ainda conta, no elenco, com Julio Calasso, Fernando Benini, Rosa Maria Pestana, Orlando Parolini, Alvamar Taddei, Benjamin Cattan, Renato Master, Roberto Miranda e o poeta Cláudio Willer.

Beijo 2348/72

Dossiê Júlio Calasso


Beijo 2348/72
Direção: Walter Rogério
Brasil, 1990.

Por Edu Jancz

O ponto de partida de Beijo 2348/72 é um fato verídico. Um operário é flagrado beijando colega de serviço, demitido por justa causa e, a partir daí, nasce toda uma discussão sobre o beijo, seu poder de sedução, pecado e os malefício que o ato podia trazer para a empresa em que trabalham: um tear.

2348/72 é o número que o processo ganhou na justiça. E o filme se divide em ver “o lado jurídico do caso” e o lado “dos paqueras”, autores de um simples e singelo beijo, talvez ponto de partida para uma traição.

Os personagens: Norival (o fantástico Chiquinho Brandão), Catarina (Maitê Proença), Claudete (Fernanda Torres) e Alvarino (Ary Fontoura).  Norival é um solteirão descomprometido, com a libido em alta e disposto arrumar uma namorada. Ou várias. Claudete trabalha no tear e gosta de Norival. Ele se apaixona por Catarina, funcionária exemplar e casada, que também é assediada pelo encarregado Alvarino.

O beijo entre Norival e Catarina trunca a vida de todos.  Não que a vida pare, nem as paqueras adquiram vida em outros ambientes que não o tear. A vida de Norival vira um inferno durante o tempo em que move um processo contra a empresa. O embate jurídico passeia por todos os campos: da visão mais preconceituosa por parte dos advogados da firma, até, com o passar dos anos – sim, o processo se “arrasta” – e com ele “arrasta” mudanças em pontos de vista enferrujados. Afinal, foi somente um beijo!

O diretor de Beijo 2348/72, Walter Rogério, estreia no longa com um filme nonsense. É como se ele assemelhasse a “piada do processo”, a “piada da argumentação pífia” e preconceituosa da empresa, com uma encenação “circense”, onde tudo pode acontecer. O comprometimento com o tempo real e realismo fica na linha “tênue” entre rápidas mudanças de ser ou não ser, como duas crianças brincando e, sempre mudando as regras do jogo.

A encenação é eminentemente “lúdica”. Os personagens, como donos de seus movimentos num ambiente “sério” e “empresarial”, brincam com atos e sentimentos. E tudo parece possível.  Chiquinho Brandão tem a elasticidade de um clown. Um clown que nem sempre atinge seus objetivos, mas nunca perde a pose.

Destaque para a excelente fotografia de Adrian Cooper. Sua câmara ágil e sempre presente, ajuda o filme a ganhar esse contorno de “ritmo frenético” e/ou “sonho” ou o “mambembe de um circo” e seu tempo próprio.

Como em processo contrário, o diretor leva o julgamento do beijo até o STF – entulhado de togados – que não perdem a pose nem no momento de finalizar um debate totalmente esvaziado.

Beijo 2348/72 tem elenco prodigioso, com a presença de Antonio Fagundes, Miguel Falabella, Gianfrancesco Guarnieri, Julio Calasso e a participação especial de Genival Lacerda, com suas músicas de duplo e triplo sentido.

A Dama do Cine Shangai

Dossiê Júlio Calasso



A dama do Cine Shangai
Direção: Guilherme de Almeida Prado
Brasil, 1990.

Por Filipe Chamy


A dama do Cine Shangai possui uma estilização muito denunciatória de suas ambições.

Que não se entenda com isso que o filme se resume a um pastiche do cinema policial, da narrativa noir. Em absoluto. Guilherme de Almeida Prado evidentemente referencia todos esses cânones, mas o faz de maneira consciente a não se prestar ao ridículo papel de paródia. Sim, o filme, as personagens e a trama e os conflitos são estilizados, mas isso não significa resumir-se ao mimetismo, brincar de imitar.

Há uma profunda verdade na honestidade de filmes como este A dama do Cine Shangai. Se é verdade que logo no título já vemos uma citação a Orson Welles, não é menos verdade que, dentro de seu universo e conceitos, este filme também é inventivo, à sua maneira. Peguemos Lucas (Antônio Fagundes) como exemplo: quem é ele? Um detetive durão, como Philip Marlowe? Um cínico de Dashiel Hammett? Um policial apaixonado pelas particularidades das pessoas, como Maigret e tantos outros heróis de Simenon? Não. Lucas é Lucas. Ele carrega um pouco de suas influências, mas resta particular a seu modo. Ele se movimenta com certas condições que o distinguem e simultaneamente lhe dão essa aura abstrata, poética e anacrônica de uma criatura do passado, de um pulp perdido num sebo e que Guilherme de Almeida Prado descobriu por acaso, leu, se apaixonou e filmou.

Do mesmo modo, Maitê Proença, lindíssima em sua arrogante juventude de femme fatale, também é um exemplar desse tipo peculiar de homenagem a um esquema de construção de mundo, que rejeita a cópia fútil e tenta dar sua própria contribuição à história dessa visão; portanto, mais que um trabalho baseado no cinema noir e na literatura clássica policial, A dama do Cine Shangai de fato é um filme policial de orientação clássica. É preciso ignorar rótulos reducionistas e entender que o Brasil quando faz cinema de gênero nem sempre quer mimetizar filmografias estrangeiras; e se aceitamos que Jean-Pierre Melville, sendo francês, fazia ótimos policiais “americanos”, por que a resistência a considerar este filme de Guilherme de Almeida Prado feliz em sua pretensão de desenvolver certo tipo de aventura? Aqui estão as sombras, os caracteres distorcidos, as obsessões, as traições e as surpresas essenciais a seu andamento perfeito.

Nosso homenageado Júlio Calasso Jr. faz apenas uma pequena participação neste belo relato de amor (pois todas as histórias policiais no fundo são histórias de amor), como um capanga de nome “Bira”. Ainda que apareça por, quando muito, trinta segundos, ele é, assim como todos os outros intérpretes do filme — de José Lewgoy a Miguel Falabella, passando por Paulo Villaça — uma peça da engrenagem que faz tudo funcionar. Neste pequeno mosaico, cada figura ou elemento tem sua importância para a harmonia final.

O Longo Caminho da Morte

Dossiê Júlio Calasso

O Longo Caminho da Morte

Direção: Julio Calasso Jr.
Brasil, 1971.

Por Gabriel Carneiro

Único longa de ficção para cinema dirigido por Julio Calasso Júnior, O Longo Caminho da Morte é costumeiramente associado ao chamado Cinema Marginal, muito por conta de seu experimentalismo narrativo e pela aproximação com o pessoal da marginalia. Curiosamente, ainda que o movimento tenha sido resgatado nos últimos anos e alçado ao status de cult, O Longo Caminho da Morte parece ter permanecido no limbo.

Dá para se entender, afinal. Calasso opta por falar de um período que ninguém se interessa em retratar no cinema brasileiro, ainda mais em tempos de irreverência e contracultura: a decadência da oligarquia rural paulista – e sem tanta irreverência, no sentido de buscar raízes na ironia, no deboche ou no excessivo. Fora que é um filme todo irregular, com momentos de muita força, e outros que acabam passando por batido. Mais: seu olhar para o rural não é para o marginalizado e sim para a nobreza, mostrada quase sem os reflexos no povo. Claro, é uma nobreza decadente, antiquada, que, aos poucos, é substituída pela indústria, pela urbe, etc., mas, ainda assim, são os afortunados.

Mas é talvez daí que resida a força da narrativa. O longa retrata gerações de Orestes, o coronel das terras, entre desesperos, lástimas, alucinações e devaneios, numa história um tanto intrincada. A questão é que Calasso opta por pintar essa oligarquia como fantasmas, pessoas que não estão lá (ou sequer estiveram), apenas passeiam pelos espaços cênicos, tal qual um A Invenção de Morel da decadência coronelista do sudeste brasileiro. Othon Bastos faz esse Orestes que nunca morre, ainda que apareça morto, velado e enterrado. É um personagem sempre a espreita, mas sem poder algum, como se fosse invisível. Sua tentativa de compra de votos, de subida ao poder, assim como as súplicas de suas três diferentes esposas (que alternam entre a libido e o moralismo religioso arquetípico), não é nem um pouco relevante nesse cenário em que as cidades grandes e as indústrias começam a aparecer. É como se a modernidade deixasse apenas fantasmas pra trás, justamente aqueles que se recusaram a se atualizarem.

A cena mais emblemática quanto a isso talvez seja o velório logo no início. Um longo plano panorâmico mostra pedaços de pessoas sentadas, vestidas de negro. Várias pessoas, todas pairando por ali, sem quase movimentos. Até que, após um tempo, vemos o morto. Ao fundo, o som de pá cavando a terra. Ali Calasso já parece instaurar sua quase tragédia: no velório, quem menos interessa é o morto, o fantasma, já que todos assumiram essa condição de almas penadas, provas vivas do antigo. Quem irão enterrar, mais do que o morto que não morre, é aquele passado – aquilo sim morreu, o resto é apenas assombração. Vale ainda destacar o uso da sonoplastia: o discurso sobre a morte sobrepondo imagens de um galpão escuro quase abandonado ganha tons de poesia, uma teatralidade fundamentada basicamente pela imagem do negro.

Real Desejo

Dossiê Júlio Calasso


Real Desejo
Direção: Augusto Sevá
Brasil, 1985.

Por Adilson Marcelino

Em Real Desejo, Ana Maria Magalhães é uma atriz de novela de sucesso em crise com seu amante, Paulo César Peréio, também astro na produção televisiva. Se no folhetim parece tudo correr a mil maravilhas e o público torce pelo casal, o oposto se dá na vida real. Esse descompasso lançara a diva em uma jornada de busca e mil interrogações sobre sua vida.

Real Desejo é mais um filme sobre relacionamentos em crise? Sim. Mas a diferença aqui se dá pelos talentos envolvidos. Magalhães e Peréio são atores cinematográficos de fato, e a direção segura de Augusto Sevá, tanto de atores como de cena, não nos deixa esquecer disso. Há também a fotografia de José Roberto Eliezer e a montagem de José Carone Jr, que nos apresenta uma São Paulo quase como uma personagem. Por fim, há ainda a presença de luxo de José Miguel Wisnik na trilha sonora.

Nem tudo funciona nesse Real Desejo e há momentos e desfechos de situações que jogam o filme para baixo. Mas há momentos elegantes e de charme nesse filme um tanto obscuro e o único longa de ficção de Sevá – ele dirigiu o documentário A Caminho das Índias (1982 – com Isa Castro) e desempenhou funções técnicas em outros filmes.

Real Desejo tem o mérito também de filmar o talento e a beleza madura de Ana Maria Magalhães, que depois vai privilegiar a carreira de cineasta. Ainda no elenco, que tem nosso homenageado Júlio Calasso, destaque também para a personalíssima Isa Kolpeman.

Filmografia

Dossiê Júlio Calasso

2011/2012 – concepção, produção e direção: “Nas Quebradas do Mundaréu”.
2012 – Plinio Marcos na Lapa: Dois Perdidos, Navalha na Carne, Abajur Lilás.
2005 – Electra no Municipal, documentário LM
2003 – Electra na Mangueira, documentário formato TV (56 minutos)
2001 – Incrível Encontro,  documentário formato TV (56 minutos)
1995    “A Última Noitada” Filme, ator

1994    “O Amor Está no Ar” Filme LM, produtor executivo
1993    “Pé de Pato”, ator
1992    “Nayara, a Mulher Gorila”, ator
1990    “Sua Excelência, O Candidato” Filme, produção
1987    “A Dama do Cine Shangai” Filme, ator
” Beijo 2348/72″ Filme, ator
“Real Desejo” Filme, ator
1986    “Fronteira das Almas” Filme, ator
1985    “Filme Demência” Filme, ator
1984    “O Baiano Fantasma” Filme, lançamento
1983    “Sargento Getúlio” Filme, lançamento
1980    “O Baiano Fantasma” Filme, ator
“Eh, Pagu, Eh!” Curta metragem, ator
“A Voz do Brasil” Curta metragem, ator
“O Homem Descasado”, média metragem, ator
1973    “Sítio do Pícapau Amarelo” Filme, produção
1970    “Prata Palomares” Filme, produção
“Longo Caminho da Morte” Filme, diretor, roteirista
1969    “República da Traição” Filme, produtor executivo
1968    “O Bandido da Luz Vermelha” Filme, produção e ator
“Viramundo” Documentário, assistência de direção.

Entrevista: Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Diretor de um única longa pra cinema – O Longo Caminho da Morte, vinculado, pela historiografia, ao Cinema Marginal -, Júlio Calasso Júnior, 71 anos, atualmente prepara um novo filme, o documentário Nas Quebradas do Mundaréu, sobre o dramaturgo Plínio Marcos. O filme nasce de um desejo de Calasso em retratar a linguagem e o processo teatral, coisa que começou a investigar depois que mudou para o Rio de Janeiro, no final dos anos 90, e a trabalhar no CETE, Centro Experimental Teatro Escola, registrando em sua câmera de fita mini-DV os processos e os espetáculos.

Calasso também tem longo passado no teatro, mas não documentando, e sim atuando. Já fez peças nos teatros Oficina e Arena, entre outros, além de ter atuado em dezenas de filmes, especialmente curtas, mas também em longas relevantes para a história do cinema paulista, como Sargento Getúlio, Filme Demência, A Dama do Cine Shanghai, entre outros.

Calasso é uma figura multifacetada. Já foi produtor de show, de eventos, dono de lavanderia, de padaria, etc e tal. No cinema, também foi o produtor de filmes emblemáticos do chamado Cinema Marginal, como O Bandido da Luz Vermelha, República da Traição e Prata Palomares.

Em entrevista exclusiva para a Zingu!, em sua casa no Butantã (São Paulo/SP), o diretor e ator contou de sua trajetória, sem deixar de falar, em boa dose, da vida. Novidade desta edição: você também poderá assistir trechos da entrevista, no nosso canal do Youtube.

 

Parte 1: Começando…

Parte 2: O Bandido da Luz Vermelha e o cinema marginal

Parte 3: O Longo Caminho da Morte

Parte 4: Anos 80, 90 e dias de hoje