Dossiê Julio Calasso

O Bandido da Luz Vermelha
Direção: Rogério Sganzerla
Brasil, 1968.
Por Vlademir Lazo
O Bandido da Luz Vermelha foi a fulgurante estréia de Rogério Sganzerla como diretor de longas-metragens (antes ele havia assinado um curta, Documentário, que integra a bela edição em DVD de O Bandido lançado pela Versátil), depois de ele ter passado a década de 60 inteirinha como cinéfilo e crítico vendo e revendo tudo de bom que aqueles anos produziram. Era a década mais revolucionária do cinema falado (assim como a de 20 o fora para o cinema mudo), quando a partir dos lançamentos de filmes emblemáticos como Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais e Acossado, de Jean-Luc Godard (ambos de 1959) os realizadores do toda parte passaram a renovar as formas de se contar uma história, para que tudo não ficasse restrito as soluções já desgastadas nas décadas anteriores, em uma grande ruptura estética do cinema, onde toda a linguagem, todos os elementos fílmicos foram desconstruidos.
O mundo inteiro acompanharia essa revolução, e no Brasil não foi muito diferente. Georges Sadoul encerraria a sua História do Cinema Mundial (1966) se referindo aos primeiros anos do Cinema Novo brasileiro como “o poderoso impulso de avanço de um novo cinema dominado pela critica social, que em 1966 era o mais audacioso e o mais novo cinema do mundo”. O saldo foi compensador pelo surgimento de alguns grandes filmes, mas infelizmente em pouco tempo o movimento deu sinais de esmorecimento. Os cinema-novistas se perderiam em suas propostas estéticas pretensiosas, hermetismo, a luta para driblar a censura após o Golpe de 64 e o conseqüente afastamento das platéias.
A obra mais emblemática dessa fase final do movimento é o mítico Terra em Transe (que o próprio Sganzerla assumia tê-lo influenciado na sua estreia), de Glauber Rocha, um filme brilhante, genial, mas tortuoso, complexo, de difícil entendimento para a maioria dos espectadores, o que fez com que se tornasse um grande fracasso de público. Atento a esse quadro geral, cheio de ideias e tendo visto de tudo em matérias de filmes pelo fato de nos quatro anos anteriores ter sido crítico de cinema do jornal O Estado de São Paulo, o jovem Rogério Sganzerla, com 22 anos de idade apronta um sacolejo que seria uma revolução no cinema nacional o seu O Bandido da Luz Vermelha.
Muitos dizem que Sganzerla odiava Glauber e o Cinema Novo. Mentira. Ele admirava e elogiou muitos filmes do movimento, incluindo os de Glauber, com quem continuaria amigo até a morte do diretor baiano (a qual chorou em um texto de sua autoria publicado na Folha de S. Paulo). Sganzerla não pôde deixar de perceber que o Cinema Novo não estava sendo mais eficiente com os filmes, compreendendo que os filmes tinham que ter uma aproximação com o público, dialogar com a platéia sem o risco de esnobá-la como vinha ameaçando fazer um cinema nacional da época que beirava o elitismo. A proposta do que hoje conhecemos como Cinema Marginal (o “udigrudi”, como também seria chamado), corrente na qual O Bandido da Luz Vermelha seria um dos pilares, era uma aproximação maior com as platéias, com um tom anárquico e debochado em vez do teor grave dos cinema-novistas, mas também indo mais fundo em um cinema de invenção, instigante, criativo, divertido, por vezes genial, sempre de acordo com a revolução cinematográfica mundial daquele período. Toda essa pretensão se consolidaria de maneira notável nesse primeiro e notável longa de Sganzerla.
Tomando como inspiração o criminoso que ficou famoso como o bandido da luz vermelha na São Paulo dos anos 60, o diretor pretendeu rodar um “faroeste do Terceiro Mundo”. Paulo Villaça interpreta genialmente o personagem Jorge, o bandido que desconcerta a policia paulistana ao utilizar técnicas peculiares de ação. Sempre usando uma lanterna vermelha, agia sempre sozinho e costumava invadir as casas da classe média alta para bater nos maridos e violentar as mulheres, tendo longos diálogos com suas vitimas e protagonizando fugas ousadas e espetaculares para depois circular livremente e gastar os frutos de seus roubos de maneira extravagante. Quando ele chegava, os valentes iam dormir mais cedo e as mulheres mais tarde. Esse argumento serve de pretexto para se realizar uma obra das mais anárquicas, efervescentes, com frases impagáveis como “Quem não pode nada tem mais é que se esculhambar“, que sintetiza muito bem o espírito do filme, ou ainda “Posso dizer de boca cheia: eu sou um boçal” e “Quem está de sapato não sobra”.
Sedutor em sua linguagem fluente, ágil e moderna, devassa a Boca-do-Lixo e comunica demais o caos político e a desorganização social de nossa época com uma narrativa caótica e desconexa (como o próprio Brasil), fragmentada, mesclada com elementos da cultura pop (como a adição de material de procedências de diversas áreas como poesia, teatro, recortes de jornais, etc.), superposições de gêneros e elementos (o western, a chanchada, o policial, o mau-gosto, o bolero, o expressionismo, o deboche, o strip-tease), cortes brilhantes e uma edição frenética e dinâmica baseada em histórias em quadrinhos. A narração em off no estilo de um programa de rádio popularesco e sensacionalista (recheado de canções bregas da época, ritmos regionais e Jimmi Hendrix) é um show à parte com os locutores (Helio Aguiar e Mara Duval) descrevendo a trajetória do bandido “monstrrruoso”, “maconheiro” e “tarado”, com um tom debochado e parótico das dramatizações radiofônicas. O filme também faz alusões ao cinema trash, como na invasão dos OVNIs, apenas uma das tantas influências que toma de tantas obras díspares. Mas a maior referência dele parece ser mesmo o cinema de Jean-Luc Godard, de cujo estilo Sganzerla se apropriou para fazer uma obra bem brasileira, com identidade própria (antropofagia pura).
Numa época em que ser marginal era ser herói (bem diferente de hoje em dia, em que bandido é bandido e os heróis não existem), esse filme foi um protótipo de vida e de resistência, desde a maravilhosa abertura, que apresenta os créditos apresentados em um luminoso que faz desfilar os nomes do filme, equipe e elenco diante da câmera, enquanto surge uma voz em off, que é a voz do personagem-título, para um curto monólogo que inicia com: “Eu sei que fracassei”. Finda a apresentação do elenco, o monólogo do protagonista prossegue sobre a primeira seqüência: crianças miseráveis brincam num monte de lixo com armas, um plano geral da cidade de São Paulo, crianças assaltando uma favela enquanto a voz do bandido fornece informações biográficas a seu respeito. O elenco é um show à parte. Paulo Villaça faz uma espécie de Belmondo brasileiro, e atrai todas as atenções num tour-de-force surpreendente, incorporando o personagem de maneira assombrosa. Também não fica muito atrás a antológica atuação de Luis Linhares como o Delegado Cabeção, que ironicamente segue uma trilha de vida e morte semelhante a do Bandido, só que em lado oposto da lei. Pagano Sobrinho está impagável como uma caricatura dos lideres políticos. E a musa Helena Ignêz é a prostituta Janete Jane, que fará com que se revele aos olhos do espectador grande parte do íntimo do bandido.
Aos desavisados que ainda não assistiriram ao filme, deve-se dizer que por mais anárquico que seja (tanto no seu conteudo subversivo quanto na linguagem totalmente despojada), ele não possui nada de esdruxulo ou porra-louca. Por trás dessa loucura toda esconde-se um perfeito acabamento cinematográfico. Rodado nos primórdios da Boca do Lixo paulistana, O Bandido da Luz Vermelha explora de modo nada sisudo o lixo urbano gerado tanto pela miséria quanto pela sociedade de consumo para escancarar a realidade nacional, acentuando o lado cafona desse quadro geral, que realça ainda mais a degradação dos personagens. E dessa cultura de massa emerge esse clássico incontestável do cinema brasileiro, tão clássico que ofuscaria outros trabalhos (alguns ainda melhores) que o diretor realizou ao longo de sua carreira.