Reflexos em Película

Por Filipe Chamy


Um “até logo”


Tudo tem um fim. O desta coluna é agora.

Há mais de dois anos Reflexos em película tem exposto um pouco da minha visão sobre cinema e pequenos incidentes cotidianos relacionados a essa arte. Neste pequeno espaço, relato pensamentos, desenvolvo teorias e — por que não? — reclamo de várias coisas que me desagradam e incomodam.

Mas chega um momento em que a coisa chega à exaustão. Paro por várias razões: total ausência de feedback de eventuais leitores, falta de ânimo e, claro, escassez de temas a comentar. Não sou uma máquina, e às vezes simplesmente não tenho o que falar. É o que vem ocorrendo cada vez com mais frequência. Nos meus demais textos para a Zingu! já há bastantes indagações e críticas minhas.

Não é um adeus definitivo (pois o que é definitivo na vida?). Um dia, a coluna pode voltar. Com outro nome, talvez, novas metas. Mas por ora ela se encerra; e se em seu primeiro número a dificuldade era o batismo, aqui temos problemas de outra ordem: o epitáfio. É difícil lidar com mortes. Ou mais propriamente, com a alteração de uma situação que imaginávamos perene.

Eu não tenho grande respeito ou estima por quem nunca muda de opinião, sempre tem julgamentos definitivos e nunca se arrepende. Para mim isso é a contramão da evolução das pessoas. É preciso haver dúvidas, questionar-se a todo instante, tentar melhorar. Como nosso assunto é cinema, termino os trabalhos nesta coluna com essa proposta de discussão: o que mudou na sua percepção de filmes ao longo do tempo?

Eu já passei por tantos conflitos de valoração que hoje entendo ser perfeitamente normal passar a ter critérios e apreciações diferentes dos que nos habituáramos. Eu adorava Martin Scorsese, por exemplo, e hoje é um cineasta que me deixa entediado no mais das vezes: entendo sua euforia cinéfila mas considero sua abordagem de exploração repetitiva de maneira bem pouco interessante; Ingmar Bergman era um de meus maiores amores, hoje, talvez pela “overdose” de seus filmes chegando aqui em DVD, desanimei ao ponto de achá-lo apenas “mais um bom diretor” (com um punhado de excelentes filmes em sua carreira, ressalte-se); não tolerava Manoel de Oliveira, cultor de um tipo de expressão que hoje me conquista pela profunda simplicidade das formas; etc. Há muita coisa para se reavaliar, para se conhecer em revisões, para constatar que, no fim das contas, você foi superficial, ingênuo ou simplesmente equivocado em seu juízo: aquilo que você detestou um dia pode ser algo que mais diretamente fala a você e comunica-se com sua sensibilidade; do mesmo modo, aquilo que você amou hoje pode nada mais te dizer e ser tão dispensável quanto a mais tola bobagem.

Também por isso esta coluna chega ao fim. De nada me adianta investir em uma coisa em que já não mais acredito. Este espaço foi meu amigo por meses e meses e meses, mas doravante apenas na memória ele deve ficar, não tenho mais nada a dizer. Não aponto o dedo a ninguém por quaisquer “faltas de apoio”; o caso é que, como acredito ter explicado, ao longo do tempo nossos valores vão se metamorfoseando — e chega este estágio de inércia, do “nada mais para falar ou fazer”, do compromisso sem entrega. É preciso haver qualidade aliada ao comprometimento, e esta Reflexos em película refugia-se atrás dos panos antes que o palco revele sua inescapável falta de atração. Assim como o ator que deseja apenas mostrar seu melhor, num certo sentido.

Então agradeço a atenção dada a esta coluna e cumprimento os leitores que de uma maneira ou de outra fizeram parte desta história.

Filme-Farol

Por Marcelo Miranda


“O Bandido da Luz Vermelha”: eterno, atemporal e gigante


Em 2012 chegou às telas brasileiras “Luz nas Trevas”, uma nova roupagem do filme iconoclasta e despirocado de Rogério Sganzerla. A memória sempre rediviva a partir do impacto de “O Bandido da Luz Vermelha” é ainda mais fortemente reforçada. Eis o clichê mais ideal de todos em se tratando de um filme-farol: falar de “O Bandido da Luz Vermelha”.

Sim, o cinema brasileiro tem “Limite”, tem “À Meia-Noite Levarei sua Alma”, tem “Rio 40 Graus”, tem “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, tem “Cabaret Mineiro”, tem diversos outros títulos que eu poderia escolher sem pestanejar para ilustrar esta seção da Zingu!. Porém, neste momento exato (sexta-feira, 11 de maio de 2012), quando estreia nos cinemas “Luz nas Trevas”, de Helena Ignez e Ícaro Martins, meu afeto cinéfilo está todo voltado (de novo) para “O Bandido da Luz Vermelha”. Fiquemos, portanto, com aquele que não respeita a propriedade privada (de ninguém).

Tão poderoso quanto “O Bandido…” é o estímulo causado por ele. Estímulo cinefílico, estético, narrativo, deliciosamente bagunçado e coerentemente implodido. Um filme que, à sua época (1968), já era o antifilme – termo que Sganzerla utilizaria para definir seu trabalho derradeiro décadas depois, “O Signo do Caos”.

Tudo o que não poderia estar num filme está em “O Bandido da Luz Vermelha”, e tudo que deveria estar num filme também está lá, dinamitado pela efervescente e infinita criatividade de seu realizador. A cada revisão “O Bandido…” é um novo, um outro filme. Abençoados são os espectadores que ainda não o assistiram, pois terão o privilégio de sofrerem aquele inesquecível primeiro choque que depois jamais será repetido – será, porém, sempre renovado.

Porque o choque de “O Bandido da Luz Vermelha” é tão contínuo e atemporal quanto a genialidade de Sganzerla. Voltemos a ele sempre, de tempos em tempos, com ou sem “Luz nas Trevas” nos cinemas. Porque aqui há o filme-farol definitivo – não o único, mas um dos mais gigantes.

Marcelo Miranda é crítico de cinema na revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br) e repórter do jornal O Tempo, em Belo Horizonte (MG), entre outras colaborações.

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Alfredo Sternheim


Uma primeira resposta, talvez vaga, é dizer que cinema brasileiro é aquele que reflete a nossa nação, o nosso modo de ser. Só que, sob esse prisma, pode-se incluir alguns longas estrangeiros como o francês Orfeu do Carnaval e a recente animação americana Rio. O primeiro tem elenco, argumento, músicas e cenários nossos e o segundo, além da música e do cenário, um diretor nascido aqui. Executados financeiramente por empresas do exterior, esses filmes são exceções. Porém, não é necessário enxergar aspectos típicos do país, como o carnaval, as favelas ou a cidade maravilhosa para a brasilidade de um filme ser considerada legítima. Por exemplo, muitas das realizações de um Walter Hugo Khouri, que costumam oferecer questões existenciais existentes em todos os cantos do planeta, são genuinamente nacionais. Esse ponto de vista foi defendido com veemência pelo próprio cineasta em um debate nos anos de 1960 em São Paulo, logo após o lançamento de Cinco Vezes Favela. Naquela época de esquerda festiva, lá estavam Bernardet e outros apontando como alienados os cineastas que não se preocupassem ostensivamente com os elementos de nossa realidade. Caso, na visão deles, de Khouri por causa de sua obra, em especial de Noite Vazia.

Felizmente, hoje em dia são raras essas posturas radicais. Assim, mesmo gostando ou não, deve-se considerar como autênticas produções nacionais tanto aquelas encenações tediosas e pretensiosas de um Julio Bressane, por exemplo, como o movimentado Tropa de Elite, que tem a violência similar a dos produtos americanos, ou a encenação biográfica de Os Filhos de Francisco, as comédias maliciosas na linha de Cilada. Com., os dramas eróticos do porte de Bruna Surfistinha, e documentários de clima cosmopolita como Dzi Croquettes.

Independente disso, o cinema brasileiro é também, desde o seu início, uma sucessão de lutas para se impor. Há anos, alguém disse em um dos muitos congressos cinematográficos, que estamos de carona em nossa própria nação. Muita coisa foi feita para mudar esse quadro e a mais importante foi a lei da reserva de mercado. O modelo, iniciado em São Paulo, garante o espaço aos nossos filmes, não a presença do público. Este compareceu de forma maciça e constante nas comédias da Atlântida, em alguns filmes da Vera Cruz, nos longas com Mazzaropi, com os Trapalhões, com Xuxa, nas criações da Boca do Lixo e em outros longas. Mas, ultimamente, está ausente na maioria dos lançamentos. De quase cem ocorridos em 2011, menos de dez foram vistos por mais de um milhão de pessoas. Fracasso comercial não é vergonha individualmente, mas preocupa quando se torna freqüente. Principalmente nessa fase de tanto dinheiro para as produções (algumas com orçamentos imensos e incompatíveis com as respostas do mercado), dinheiro esse obtido pelo mecanismo burocrático das leis do mecenato oficial no Brasil. Justamente, em uma época que se tornou mais fácil filmar graças a evolução da tecnologia do digital que aposentou o negativo virgem.

É verdade que o diálogo com o público é outra questão, assim como a administração racional dos recursos disponíveis na criação e no marketing dos filmes. Porém, são alguns dos problemas que cercam o cinema brasileiro, uma grande paixão, uma arte-indústria que ainda está perdida em várias frentes para se consolidar de vez em nossa nação. A esperança que isso ocorra de forma definitiva anima os envolvidos (realizadores, técnicos, críticos, estudiosos, etc), e os espectadores que apreciam, sem preconceitos, o nosso cinema.

Alfredo Sternheim é cineasta e crítico de cinema. Entre os filmes que dirigiu estão Anjo Loiro, Pureza Proibida,  Mulher Desejada, Corpo Devasso e Brisas do Amor.

Inventário Grandes Musas da Boca

Nádia Destro


Por Adilson Marcelino

As musas da Boca do Lixo são eternas, mas algumas delas são, injustamente, menos lembradas. Esse é o caso da paulista Nádia Destro.

Nascida em 1º de junho de 1958, Nádia destro começou a carreira artística como modelo fotográfico, mas logo foi atraída pelo cinema, onde vai desenvolver trajetória de 13 filmes e ser dirigida pelos bambas da Boca.

Nádia Destro estreia no cinema já no final dos anos 1970, década de ouro da produção cinematográfica da Boca do Lixo, que no início dos 80 cairia de boca, com o perdão do trocadilho infame, no sexo explícito. Talvez por isso, a atriz não tenha ficado tanto no imaginário popular como outras deusas do pedaço.

No entanto, isso não impediu Nádia Destro de atuar sob a batuta de cineastas como Antonio Meliande em Damas do Prazer (1978), que marca sua estreia, Ary Fernandes em Sexo Selvagem (1979) e José Mojica Marins em Estupro (1979).

É na década de 80 que se situa grande parte da filmografia da atriz, sobretudo nos dois primeiros anos, 1980 e 81, já que com a chegada do explícito Nádia Destro será mais uma a debandar do cinema.

A comédia safada de Fauzi Mansur, O Inseto do Amor (1980), reúne deusas da Boca quase que por fotograma: Helena Ramos, Angelina Muniz, Zélia Diniz, Rossana Ghessa, Ana Maria Kreisler, Claudette Joubert, Liza Vieira, Alvamar Taddei, Misaki Tanaka, Ariadne de Lima, e, claro, Nádia Destro.

Ainda em 80, atua também em Império das Taras, de José Adalto Cardoso, Bacanal, de Antonio Meliande, e no cult A Prisão, de Osvaldo de Oliveira.

E é essa década também que marcará o encontro entre a musa e o cineasta Alfredo Stenrheim, que vai reservar duas personagens importantes para a atriz, em Corpo Devasso (1980), e Violência na Carne (1981).

Corpo Devasso é o ousado filme de Sternheim produzido e protagonizado por David Cardoso, um trabalhador rural que foge do interior e acaba se prostituindo em São Paulo, onde é sustentado por mulheres e faz grana em transas gays. Nádia Destro é Silvia, a filha da possessiva advogada Ângela (Meire Vieira), sendo que ambas disputam o amor e o corpo do caseiro, emprego que Beto (Cardoso) se aventura para tentar largar a prostituição, masque acaba lançando-o novamente para a cama.

Violência da Carne focaliza um grupo de teatro que é feito refém por bandidos que estão fugindo da cadeia. Nádia Destro é uma das vítimas do sadismo de alguns integrantes do bando, tanto ela quanto sua namorada interpretada por outra musa, a talentosa Sonia Garcia – o elenco tem mais duas deusas, Helena Ramos e Neide Ribeiro.

Antes de abandonar o cinema, Nádia Destro será dirigida ainda por três dos mais importantes diretores da Boca: José Miziara em Como Faturar a Mulher do Próximo (1981); Carlos Reichenbach no GRANDE O Império do Desejo (1981), e John Doo no cult Ninfas Insaciáveis (1981).

Filmografia

Damas do Prazer, Antonio Meliande, 1978
Sexo Selvagem, Ary Fernandes, 1979
Estupro, José Mojica Marins, 1979
O Inseto do Amor, Fauzi Mansur, 1980
Império das Taras, José Adalto Cardoso, 1980
Bacanal, Antonio Meliande, 1980
A Prisão, Osvaldo de Oliveira, 1980
Corpo Devasso, Alfredo Sternheim, 1980
Violência na Carne, Alfredo Sternheim, 1981
Como Faturar a Mulher do Próximo, José Miziara, 1981
O Império do Desejo, Carlos Reichenbach, 1981
Ninfas Insaciáveis, John Doo, 1981.

Musas Eternas

Natalie Wood


Por Filipe Chamy

É difícil imaginar que com apenas quarenta e três anos de vida alguém pode ter conseguido incríveis trinta e sete de carreira. Também é de se espantar que uma existência tão repentinamente interrompida há trinta anos continua pulsando hoje em milhões de lugares mundo afora. O caso é que estamos falando da admirabilíssima Natalie Wood, morta em 1981 e no entanto mais viva do que nunca na televisão, nas mostras de cinema, nos produtos de home video. Sua celebridade continua tão firme quanto em sua época de maior notoriedade em vida.

O que poucos sabem é que a mocinha decididamente americana que encantou e encanta gerações décadas afora era, na realidade, de ascendência russa! Nem mesmo o macarthismo conseguiu se opor ao sucesso que era o destino e direito de Natalia Nikolaevna Zakharenko.

Começando ainda bem criança no cinema, a pequena Natalie conseguiu seu primeiro papel de destaque como a filha questionadora de Maureen O’Hara no clássico natalino De ilusão também se vive (ou, como hoje vem sendo mais fielmente traduzido, Milagre na rua 34). Sendo a verdadeira catalisadora da ação do longa, não é pouco para uma menininha salvar o Natal e um filme meio tendencioso na afirmação do American way of life.

Assim como Brigitte Bardot, Natalie Wood não foi nunca uma atriz imposta pela publicidade ou comcontatos facilitadores: durante anos e anos a jovem gastou seu talento em participações pequenas em seriados televisivos consideravelmente obscuros, filmes pouquíssimo ambiciosos e produções de luxo nas quais apenas era uma coadjuvante pouco importante — ou a leading lady quando moça. Dessa época, são os clássicos O fantasma apaixonado, Seu único desejo e O manto sagrado.

No meio da década de 1950 há a grande virada: seu decisivo encontro com Nicholas Ray, diretor-fetiche dos influentes críticos franceses que movimentariam o mundo do cinema pouco tempo depois, com a nouvelle vague. A obstinação de Natalie enfim é recompensada com um papel-chave em um filme que definiria certos rumos daquela geração: Juventude transviada. Na pele da rebelde Judy, demonstra que sua pouca idade (dezesseis anos) não era empecilho para seu desempenho dramático: o filme causa sensação, a crítica debruça-se sobre esse novo cinema que quebrava com os moldes clássicos do conservador star system hollywoodiano e Natalie consegue um impulso e tanto na carreira: é indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel.

Em 1956 dá-se o encontro com outro mestre das telas: John Ford. No seminal Rastros de ódio é Natalie quem faz a ligação entre o “civilizado homem branco” (John Wayne) e os “selvagens assassinos e amorais” (os índios). A jovem Debbie Edwards demonstra como essas convenções são estúpidas na real convivência dos povos, e como raças são totalmente inúteis para se definir caráter ou justiça. Ao final, é ela quem unirá de maneira um pouco esperançosa o conquistador e o conquistado.

Após mais um punhado de filmes, em que contracenava com figuras como Gene Kelly (Até o último alento), James Garner (Cash McCall), Tab Hunter (The girl he left behind), seu então marido Robert Wagner (All the fine young canibals), Tony Curtis e Frank Sinatra (Só ficou a saudade, drama romântico de guerra dirigido por Delmer Daves), Natalie Wood parte para a mais desafiadora, completa e autoral fase de sua filmografia, praticamente toda condensada nos anos sessenta.

Começando com o filme em que aparece mais linda, intensa e impressionante: Clamor do sexo,felicíssima parceria com Elia Kazan. Obra sobre decepções juvenis, ritos de iniciação na vida adulta, descompasso entre gerações, desabrochar sexual, chagas perenes e traumas profundos. No papel de Wilma Dean Loomis, Natalie provou definitivamente que era mais do que uma bela estrelinha de grandes olhos castanhos: era uma força incontrolável. Sua arrebatadora performance levou naturalmente à sua segunda indicação ao Oscar.

No mesmo 1961, outro grande sucesso: Amor, sublime amor. O musical dirigido por Robert Wise e Jerome Robbins, no entanto, hoje não é tão bom exemplo do “toque” mágico dessa garota baixinha de estatura (cerca de um metro e meio): como Maria, a porto-riquenha irmã do líder de uma gangue rival daquela em que está seu apaixonado, Natalie faz o que pode num musical meio engessado, arrastado, coreografado mecanicamente e com músicas pouco consistentes; seu sotaque algo deslocado é o maior charme do filme, e a maquiagem que a torna artificialmente morena não impede que sua figura destile graça e leveza a cada passo ou movimento. Sua Maria é, portanto, doce e verdadeira, num filme que a desperdiça de todas as formas, inclusive com Marni Nixon dublando sua voz em todos os números.

Em seu próximo filme, Em busca de um sonho, Natalie divide a cena com Rosalind Russell, fazendo a icônica Gypsy Rose Lee. Infelizmente o filme de Mervin LeRoy sofre de um academicismo tremendo, que torna o já longo filme uma estafante experiência. De positivo destacam-se duas coisas: Natalie canta com sua própria voz e despe-se com desenvoltura e sensualidade encarnando o tipo fatal da famosa stripper.

Nesta época consolida-se outra faceta pouco difundida de Natalie Wood: seu talento cômico. Atriz versátil, convencia em papéis trágicos e reais como em Clamor do sexo ou em delirantes screwballs como Médica, bonita e solteira (de Richard Quine), em que faz par com Tony Curtis e diverte-se como uma maluquinha inconsequente. Tipo que repetiria com certas mudanças em A corrida do século, de Blake Edwards, onde personaliza o protótipo da Penélope Charmosa dos posteriores desenhos animados da Corrida Maluca. É uma agradável surpresa vê-la tão descontraída, numa trama divertida em que prega o feminismo e ataca a dominação chauvinista da sociedade enquanto não traja nada mais que uma provocante lingerie — ilustrando um paradoxo que é meio o arquétipo da comédia: o choque entre duas realidades.

Ainda nesse produtivo decênio, Natalie fez dois filmes com o subestimado Robert Mulligan, autor de obras-primas como O sol é para todos e No mundo da lua. Pelo primeiro filme, O preço do prazer (ridícula tradução moralizante para Love with the proper stranger), foi indicada ao Oscar pela terceira (e última) vez antes mesmo de completar vinte e cinco anos (foi a mais jovem atriz a concorrer em cada uma de suas três indicações, aliás). Trata-se a princípio de uma dolorosíssima jornada empreendida por uma jovem confusa com a inesperada perspectiva da maternidade; ocorre que depois de mostrar o mais duro e real relato sobre o aborto e suas dificuldades e condicionantes, Mulligan não conseguiu resistir à imposição de amenizar o tom de um filme estrelado por Natalie Wood e Steve McQueen — resultado: o terço final do filme transforma-se sem explicação numa comédia romântica! O segundo filme que Natalie e Mulligan fizeram juntos foi À procura do destino, obra bastante irregular sobre uma garota adolescente marginalizada por uma vida rude e que de repente desponta para a fama (e depois não aguenta o baque). Novamente miss Wood é dublada nas canções. Curiosidade: o filme foi roteirizado por Gavin Lambert, que se tornaria amigo de Natalie e seu biógrafo.

Após filmar Os prazeres de Penélope, de Arthur Hiller, Natalie co-estrela com o ainda estreante Robert Redford (com quem havia já aparecido em À procura do destino) Esta mulher é proibida, hoje considerado um dos melhores filmes de Sydney Pollack. Com produção de luxo, Francis Ford Coppola sendo um dos roteiristas e Natalie belíssima num technicolor deslumbrante, o filme ainda hoje é forte em seu retrato de uma mentalidade conservadora no trato sexual, a hipocrisia interiorana que está bem longe de parecer simplesmente uma alegoria ou metáfora: nossos costumes não mudaram tanto. Mas o filme padece de uma evidente parecença com Clamor do sexo, e nesse embate certamente sai perdendo: Pollack fez um bom trabalho, mas com Kazan estamos diante de uma obra-prima.

O filme seguinte é o ainda controverso Bob & Carol & Ted & Alice, de Paul Mazurksy. A doce Natalie Wood dos draminhas açucarados dos anoscinquenta agora é uma mulher completa, que faz e pensa sexo, que existe em carne, que está disposta a esquecer convenções e se deitar com outro homem que não seu marido. Neste filme uma Natalie selvagem tira literalmente as roupas sociais e, de calcinha e sutiã, anuncia o que não deveria nunca ser chocante: cada um vive da maneira como bem entender, da vida privada ninguém deve prestar contas a outrem. Para demonstrar que não estava brincando, casa-se pela segunda vez, e com o marido Richard Gregson tem sua primeira filha, Natasha, hoje dedicada ao ofício da mãe, a atuação.

Após essa década, memorável em variedade e expressão, Natalie para. Desmotivada aparentemente pela fraca recepção a seus últimos esforços, praticamente se aposenta do cinema, e dali aos próximos doze anos (seus últimos com vida) aparece mais, com irregular frequência, em alguns projetos de televisão, como um episódio do seriado Casal 20 — estrelado por Robert Wagner, com quem volta a se casar e tem uma segunda filha, Courtney —, a minissérie A um passo da eternidade (revivendo o papel criado no cinema por Deborah Kerr) e Gata em teto de zinco quente, com ela e Wagner recriando os personagens de Tenessee Williams eternizados por Elizabeth Taylor e Paul Newman duas décadas antes. Para o cinema, sua filmografia se encerra com quatro fitas pouco elogiadas: Pepper (com Michael Caine), Meteoro (ficção científica de Ronald Neame, com Sean Connery), The last married couple in America (comédia com George Segal) e Projeto Brainstorm. Natalie morreu no meio da filmagem desse filme co-estrelado pelo amigo Christopher Walken, e apenas em 1983 (dois anos após seu falecimento) seus realizadores conseguiram lançá-lo, com grandes modificações.

Christopher Walken, por sinal, é um dos protagonistas do insólito drama que culminou na prematura morte de Natalie em 1981, aos quarenta etrêsanos. Até hoje ninguém sabe o que aconteceu no tal iate em que se deu o passeio e a fatalidade, quais as circunstâncias e as ações dos envolvidos; à boca miúda, corre o boato de que Natalie teria sido morta por Robert Wagner, enciumado das atenções dadas por sua esposa a Christopher Walken. A única coisa certa é justamente a pior possível: Natalie Wood morreu afogada. O horror é ainda maior quando se tem a certeza, em mil entrevistas e depoimentos, de que essa terrível morte sempre foi o maior medo de Natalie. Então por mais cruel e irônico que soe, Natalia Nikolaevna Zakharenko seguiu à risca o ditado: “quem nasceu para morrer afogado, não morrerá enforcado”.

Natalie Wood, por causa de sua horrenda morte, é em parte vítima da mesma maldição das pessoas célebres que morrem jovens: a perseguição à sua vida particular. Comenta-se seu caráter, suas decisões pessoais, seus namoros (com gente como Elvis Presley, Warren Beatty, Dennis Hopper e Nicholas Ray), seus casamentos, disseca-se sua intimidade e procuram com isso estabelecer conclusões. Nem as inúmeras biografias impressas ou filmadas (até Peter Bogdanovich entrou no filão e filmou A misteriosa morte de Natalie Wood) dão conta do óbvio: Natalie era Natalia, que era uma mulher como qualquer outra, com suas contradições e seus conflitos. Ocorreu apenas que o cinema e a televisão registraram momentos de brilho dessa vida, e eternizaram a imagem de uma jovem talentosíssima, linda e de grande carisma e presença. Mas apesar de ser simplesmente humana, Natalie Wood conseguiu concretizar um feito sobrenatural: trinta anos depois de se apagar, sua estrela nunca mais deixará de brilhar.