Cleo e Daniel

Especial John Herbert

 

Cleo e Daniel
Direção: Roberto Freire
Brasil, 1970.

Por Ailton Monteiro

Um dos trabalhos em que John Herbert mais se destaca, sendo seu, inclusive, o primeiro nome a aparecer nos créditos, Cleo  e Daniel é um filme dirigido pelo próprio autor do livro, o best-seller homônimo do psicanalista Roberto Freire. O livro foi lançado no país em 1966 e fez muito sucesso, especialmente entre o público jovem. A transposição para o cinema, porém, não foi assim tão bem sucedida. Há alguns bons momentos, especialmente no início, mas depois o filme parece não ter fim, mesmo não sendo de longa duração. Isso é atribuído à falta de dinheiro para finalizar a produção, que foi fechada às pressas.

Não deixa de ser curioso Freire pintando o psicanalista (Herbert) como um sujeito meio louco, irresponsável e cruel. Fica parecendo uma crítica aos próprios psicanalistas. O casal do título, vivido por Chico Aragão (Daniel) e Irene Stefânia (Cleo), também são figuras problemáticas. Daniel é viciado em comprimidos. Já Cléo também faz um papel de maluquinha, primeiro se apresentando no consultório do psiquiatra em crise que nem está muito a fim de clinicar. Ela acabara de sofrer um aborto, ajudada pela mãe, vivida por Beatriz Segall.

Em alguns momentos, o filme passa a impressão de tentar emular Khouri, até pela trilha sonora de Rogério Duprat. Mas as tentativas de parecer existencialista são frustradas pela pouca experiência na direção de Freire. Não à toa, Cleo e Daniel foi a única vez que o psicanalista e escritor se aventurou a dirigir um filme.

Alguns momentos são bonitos plasticamente, como a câmera acompanhando a luminária balançando como um pêndulo na cena de sexo entre um casal de jovens. Alguns travellings também são bonitos, bem como a fotografia em preto e branco. O que também ajuda a compor a beleza do filme é a figura de Irene Stefânia, vinda de Fome de Amor, de Nelson Pereira dos Santos. Lembrando que no filme de Nelson, Irene quase eclipsa Leila Diniz, mesmo com a apatia de sua personagem.  Uma atriz que aparece em Cleo e Daniel e que eu não reconheci é Sônia Braga, anos antes de se tornar um dos maiores símbolos sexuais que o país já conheceu.

Os Bons Tempos Voltaram: Vamos Gozar Outra Vez – episódio Primeiro de Abril

Especial John Herbert

Os Bons Tempos Voltaram: Vamos Gozar Outra Vez  – episódio Primeiro de Abril
Direção: John Herbert
Brasil, 1984.

Por Matheus Trunk

Cinema, teatro, televisão. O ator e diretor John Herbert (1929-2011) foi um profissional multimídia. Dentro da sétima arte, sua presença foi constante em todos os gêneros. Participou de chanchadas no Rio de Janeiro e de produções do cinema industrial paulista. Chegou a estar presente em filmes que flertavam com o Cinema Novo (Bebel, Garota Propaganda de Maurice Capovilla), Cinema Marginal (Capitão Bandeira Contra o Doutor Moura Brasil de Antônio Calmon), ciclo do cangaço e diversas pornochanchadas. Trabalhou ao mesmo tempo com estrelas populares como Mazzaropi e realizadores autorais como Walter Hugo Khouri.

Herbert tentou a direção em poucas oportunidades. Em 1984, aceitou o convite do amigo Aníbal Massaini Neto para realizar um episódio. As salas nacionais já estavam entupidas pelas películas de sexo explícito. Mesmo assim, a produtora Cinedistri resolveu bancar uma comédia erótica em dois episódios. O primeiro coube ao realizador carioca Ivan Cardoso. Já o segundo, Primeiro de Abril, ficou sob a direção de John Herbert.

A trama do episódio gira em torno do golpe militar ocorrido em 31 de março de 1964. Justamente nesse dia é o aniversário do playboy Edinho (Marcos Frota). O jovem arma a maior festa em sua mansão. O rapaz não resiste à beleza de sua prima revolucionária (Kátia Lopes) e da bela namorada (Vanessa Alves). Embora o argumento pareça sério, Herbert aborda os acontecimentos históricos de maneira jocosa. O episódio parece tirado das comédias de Mário Monicelli. O destaque fica por conta do gigante Dionísio Azevedo, que faz o avô de Edinho, Aldemiro, um senhor reacionário que demonstra seu apoio irrestrito ao golpe. Não admite a pouca vergonha da mocidade.

Esta seria a última investida de Herbert na direção cinematográfica. Seu talento estaria presente em mais alguns longas-metragens (somente como ator), peças teatrais e novelas. Com típico físico de galã conservado graças à natação, John Herbert foi um dos maiores nomes da TV brasileira. Autêntico bon vivant, casou inúmeras vezes e era palmeirense convicto. Sua morte encerrou uma trajetória brilhante de um homem dedicado às artes brasileiras.

A Grande Vedete

Especial John Herbert

 

A Grande Vedete
Direção: Watson Macedo
Brasil, 1958.
 

Por Sérgio Andrade
 

Janete (Dercy Gonçalves) é a veterana estrela de uma companhia teatral que se recusa a admitir que já passou da idade para representar certos papéis. Os aplausos e pedidos de autógrafo e flores que recebe em seu camarim são de responsabilidade de seu fiel secretário Ambrósio (Catalano), que tem pena que ela descubra que não é mais admirada como antes.

Dirigido pelo mestre das chanchadas Watson Macedo, tendo Oswaldo Massaini, da Cinedistri, como produtor associado, o filme tem ecos de Crepúsculo dos Deuses, ao mostrar como é difícil para certas pessoas do meio artístico, depois de alcançarem grande sucesso na carreira, reconhecerem que está na hora de passar o bastão para os mais jovens.

Apesar dos nomes envolvidos, que poderia sugerir uma chanchada tradicional (tem também a impagável Zezé Macedo como a eterna noiva de Ambrósio), trata-se de uma “dramédia”, drama com toques cômicos proporcionados pelo talento histriônico de Dercy, que também demonstra insuspeitas qualidades dramáticas.

John Herbert, já um veterano com 10 filmes no currículo, interpreta Paulo, autor teatral apaixonado pela bailarina Wilma (a argentina Marina Marcel, emprestada por Carlos Machado, o rei da noite carioca), para quem está escrevendo uma peça. Mas Janete lê a peça pensando ter sido escrito para ela, apaixonando-se por Paulo. Não é um papel fácil, pois Paulo fica dividido entre o amor por Wilma e o carinho que passa a sentir por Janete, resistindo em revelar a verdade para não machucá-la. O grande ator, com sua fina estampa, dá conta do recado.

Mas claro que o filme foi realizado para o brilho de Dercy, que canta algumas músicas (Saias Curtas, Tome Polca). Dá vontade de aplaudir de pé!

Filme-Farol

Por Aílton Monteiro

 

Eros, O Deus do Amor
Direção: Walter Hugo Khouri
Brasil, 1981.

Ao ser questionado sobre um filme brasileiro do coração, o nome de Walter Hugo Khouri foi o que logo me veio à mente. Conheci seus filmes antes mesmo de me autodenominar cinéfilo. Via-os na televisão pelo apelo erótico, pelas mulheres lindas e nuas e porque eu era um adolescente com os hormônios em ebulição. Mas não só por isso, como depois fui perceber. O existencialismo, tão presente na obra khouriana, de certa forma já me atraía. Com o tempo, a atmosfera, a música misteriosa de Rogério Duprat, o jazz, a busca desesperada por sexo dos personagens, todos esses ingredientes já me eram elementos agradavelmente familiares.


Eros, o Deus do Amor
(1981) é provavelmente o mais querido por mim, dentre os vários trabalhos do genial cineasta. Talvez nem seja o seu filme mais próximo da perfeição – pelo menos a cópia que pude ver em VHS é cheia de saltos -, mas é um filme que ficou guardado na memória com muito afeto. É um filme de forte poder imagético, mas a imagem que ficou mais forte em minha mente durante todos esses anos foi a de Denise Dumont nua, de bruços numa cama, enquanto o olhar de Marcelo, em câmera subjetiva, se aproxima de seu corpo. Depois, quando ela acorda – Denise, personificando Ana, a mulher mais desejada por Marcelo no filme -, vemos o quanto ela é encantadora e apaixonante. E um dos grandes motivos de o filme ser tão especial, mesmo com o grande elenco de estrelas femininas.

Poucos filmes mostram tantas mulheres quanto Eros. Além de Denise Dumont, há Dina Sfat, como a mãe de Marcelo, Lillian Lemmertz, como a esposa, e mais Renée de Vielmond, Kate Lyra, Nicole Puzzi, Selma Egrei, Monique Lafond, Patricia Scalvi, Kate Hansen, Lara Deheinzelein, Maria Cláudia, Christiane Torloni, Alvamar Taddei, Sueli Aoki, Dorothée-Marie Bouvier e Norma Bengell. Vários desses nomes já eram bem familiares da cinematografia de Khouri.

E quem pensa que a primeira vez que o cineasta mostrou o pequeno Marcelo fazendo sexo com uma mulher adulta foi em Amor, Estranho Amor (1982) não sabe que, um ano antes, em Eros, Kate Lyra, no papel da professora de inglês, já desempenhara esse papel. A cena só não ficou tão famosa quanto a do filme de 82 por razões que nem é preciso explicar. Em Eros, também é explorado o desejo de Marcelo por sua filha Berenice, já mostrado em O Prisioneiro do Sexo (1979) e levado às últimas consequências em Eu (1987).

O filme começa com um monólogo de identificação com a cidade de São Paulo, que já conquista o espectador que tem algum elo de amor pela cidade. Sobre São Paulo, Marcelo diz: “quase ninguém gosta dela, o país não gosta, os turistas não gostam, os próprios habitantes parecem não gostar, a angústia aqui parece ser maior, tudo aqui parece ser maior (…) dizem que é um lugar descaracterizado, não é o trópico, nem o frio, não é civilizado nem primitivo, não pertence a nada, não tem charme especial, não tem lógica, não é antiga, nem moderna (…) é indiferente, distante, imprecisa, quase sem tradição, egoísta, individualista, cruel e devoradora.” E é a partir dessas características que o personagem se liga à cidade.

Outra característica de destaque do filme está no fato de o rosto de Marcelo nunca ser mostrado. Só ouvimos a voz de Roberto Maya. O uso da câmera subjetiva não é usado em todo o filme, já que em alguns poucos momentos vemos o seu vulto. Mas o fato de Marcelo não ter rosto e de isso ser mencionado pelo menos duas vezes durante o filme pelas mulheres não deixa de ser interessante, levando em consideração o fato de o personagem ter sido interpretado por tantos atores.

A presença de Ana (Denise Dumont) durante boa parte do filme, ainda que apenas em close, entrecortando as memórias de Marcelo e suas aventuras com várias mulheres do passado e do presente, simboliza uma falsa esperança de que o personagem possa finalmente mudar, encontrar o amor nos braços de uma única mulher e largar a busca desenfreada do prazer pelo sexo, que sempre resulta no vazio da alma. No entanto, ao mesmo tempo, o sexo pode ser visto também como ponto de partida para uma espécie de amadurecimento espiritual, como é questionado na citação de Norman Mailer que abre o filme: “Será que o sexo é onde começa a filosofia?”. Sendo uma pergunta, a citação está presente mais para gerar reflexão.

Musas Eternas

Neide Ribeiro

 

Por Matheus Trunk

 

Janeiro, 19

A vida não é fácil. Falta de emprego, falta de mulher, time sem conquistar títulos. Reergo-me toda vez que bebo a cachaça Tatuzinho. Sei que isso não é coisa de pessoas responsáveis. Mas não admito que me chamem de vagabundo. Em hipótese alguma. Isso é xingamento, humilhação. Prefiro ser chamado de desocupado. Aí sim.

De vez em quando, vou no orelhão perto da pensão e ligo pros meus pais. Invento que estou me dando mal na cidade grande. “Mãezinha amada, como anda? O quê? Faculdade… ainda estou pensando. Emprego tá difícil também. Não tem como vocês me ajudarem?”. A tática às vezes funciona. O problema é quando meu pai atende o telefone. Quando é mãe tudo fica mais fácil, e tem que falar: “Mãezinha querida e amada”. Da última vez falei somente “querida” e ela não me ajudou. Pra almoçar os sete dias da semana, tive que vender toda minha coleção de Ping Pong Cards. Tudo agora está nas mãos do filho do dono da pensão. Moleque fedorento, cheio de pintinhas. Parece figurante de fita do Zé do Caixão. Vocês acham que ganhei muito dinheiro? Se fosse assim eu já estava no La Licorne curtindo a noite toda, jogando cédulas do Oswaldo Cruz pra mulherada. Já imaginou eu tomando champagne com a amada Laura Garcia? E a tia Tânia? Quanto tempo não vejo ela. Se estivesse em mares melhores, eu nem me lembraria que existe a maldita Tatuzinho.

Com o capital recém adquirido, posso tentar uma vaga em algum lugar. Compro alguns jornais: A Gazeta Esportiva, Notícias Populares, Popular da Tarde. Mas quem quer emprego? Só de ouvir isso me dá um tremendo calafrio. Sobre o futebol não vou nem comentar. Andamos com uma má sorte dos diabos. Mas mantenho fé no Jorginho Putinatti. O cara é palmeirense mesmo. Pela situação do clube, de noite, irei tomar outra dose cavalar de Tatuzinho. A minha avó sempre dizia: “A vida não é fácil”. Em São Paulo, parece que nunca foi.

Uma capa de jornal me chama a atenção na banca. É uma belezoca que mais parece saída de Hollywood. É pequena, rosto chamativo, impõe respeito. Na realidade, ela bem que poderia estar no outdoor da Biotônica Fontoura. Realmente, a moça está cheia de saúde. Leio que o nome da cocotinha é Neide Ribeiro, está estrelando um novo filme que está em cartaz no Cine Marabá e circuito chamado Palácio de Vênus. Poxa, no elenco ainda tem Helena Ramos, Matilde Mastrangi, Elizabeth Hartmann. Só filé mignon. Irei na sessão o quanto antes. Eu já tinha visto alguns filmes com a Neide, só não me lembrava dela. Realmente trata-se de uma rapariga das melhores qualidades.

Janeiro, 21

Manhã sombria. Na hora do almoço, pego o primeiro CMTC pro centro. Realmente, minha agenda anda meio cheia. Cheia de nada pra fazer. No radinho que eu trouxe do interior, vou escutando o programa de esportes da Panamericana com o Cândido Garcia e Orlando Duarte. Mas as notícias sobre a equipe são negativas. Que merda! Logo hoje num jogo importante. Chego na avenida São João e entro no primeiro boteco vagabundo.

– Amigo, me vê uma Crush…

– Mas você não é aquele camarada que fica tomando Tatuzinho?

– Poxa meu velho, estou tentando evitar a fadiga. Depois, eu acabo tomando essas cachaças vagabundas e vocês são os responsáveis- digo apontando o dedo para ele. Sou baixo e magricelo. Mas o cara ficou com medo. Me trouxe logo uma Crush.

Vejo uma loira deslumbrante passar pela rua. Me lembro que estou cada dia mais pobre. O que adiantaria ter uma garota daquelas se não teria onde levá-la? A vida não é fácil. Passei no Cine Marabá e me impressionei positivamente com os lobby cards do Palácio de Vênus. Compro a entrada e vejo a película. Realmente, era muito gozado e a Neide Ribeiro está um arraso. No final do filme, ela termina andando de patins e se jogando. Me deixou completamente louco. Ela é uma atriz acima da média. Quando ela fala algo, percebemos que ela tem um carisma e é dona de uma sensibilidade exacerbada. É uma espécie de rainha do nosso cinema. Se eu tivesse uma graninha, eu ia localizá-la, falar da minha paixão por ela. Só que minhas reservas financeiras não conseguem comprar nem uma revista em que ela tenha saído. De noite, eu poderia tomar uns tragos com o Noite Ilustrada no Clube de Paris ou dar uma esticada no La Vie em Rose. Mas estou quebrado. Guardei minhas últimas notas pra ir ver o jogo do Palmeiras. Não esquecerei do radinho pra escutar o garotinho Osmar Santos. Se estiver pegando mal a Globo, fico mesmo na Bandeirantes ouvindo o Fiori Gigliotti.

Janeiro, 22

Não comento mais futebol neste diário. Assunto encerrado. A única notícia boa é que não tomei ontem a maldita Tatuzinho. Sonhei com a Neide Ribeiro a noite inteira. Lembrei que ela tinha sido agente secreta num outro filme. Foi tudo rodado numa praia do litoral paulista. Mas diziam que era na tal Ilha dos Prazeres Proibidos. Li na coluna do Jota Santana no Notícias Populares que ela vai estrelar um outro longa-metragem do mesmo realizador de Palácio de Vênus. Trata-se de um filme chamado A Fêmea do Mar e a maravilhosa Aldine Müller vai fazer a filha dela. Poxa, mas aí começa uma nova confusão. Esse povo que faz pornochanchada é gozado. As duas tem quase a mesma idade! Como uma vai ser a mãe da outra? Só nesses filmes mesmo. Mas dane-se. Quando estrear, eu vou acabar vendo num a sessão no Marabá ou no Windsor com os meus últimos centavos.

Janeiro, 23

Vocês se lembram daquele dinheiro que ganhei vendendo toda a minha coleção de Ping Pong Cards? Então, acabou. Não é que o dinheiro sumiu. Foi muito pior. Eu andava sem ter o que fazer nessa cidade. E fui jogar sinuca num estabelecimento de segunda linha na Lapa. E não é que um camarada quis apostar uma grana comigo nisso? Dizer que me fudi foi pouco. Lá no interior eu era o Carne Frita da sinuca, João Antônio das coloridas. Aqui não sirvo nem pra limpar os sapatos dos caras. Perdi quase tudo. Paguei e quase não sobra grana pro CMTC da volta. Que droga. Tomei várias doses de Tatuzinho. Mas acredito que conseguirei dormir.

Janeiro, 24

Acordei decidido a mudar a minha situação na capital bandeirante. Mas hoje é sábado. Logo no dia em que se é impossível arrumar emprego. Vou deixar isso pra outro momento. Um cinema de subúrbio está passando um filme com a Neide que saiu de cartaz. A película se chama Corpo Devasso, produção do David Cardoso. Sim, aquele mesmo que apareceu outro dia na Hebe dizendo: “Só faço longas-metragens pro público que só tem moedas no bolso”. Parece que sou um desses. Preciso pegar duas conduções pra chegar na sala. Quer saber? Não tenho nada pra fazer. Irei lá.

Janeiro, 25

Estou precisando de novos horizontes, seguir outros rumos e caminhos. Minha paixão pela Neide Ribeiro está se tornando uma obsessão doentia. A vida não é fácil. Quando a Neide aparece inteira na tela, eu fico obcecado. Estou começando a colecionar recortes de jornais, revistas e algumas propagandas em que ela aparece. Como será o nosso encontro? Como será o nosso enxoval? Neide, você prefere lua de mel nas Ilhas Gregas ou em Paris? Com os meus fundos atuais, não dá pra ir nem pra Santos. Quem sabe dar um passeio no Jardim Zoológico ou na Casa do Bandeirante, no Butantã. Não é somente a beleza, ela se impõe nos filmes. Parece que ela possui uma espécie de força interna. Entendo que ela é uma leoa, uma estrela com um brilho próprio. Não estou dizendo que eu não admire Patrícia Scalvi, Zilda Mayo e outras deusas da Boca paulistana. Mas ela parece que tem uma luz especial. Algo difícil de descrever.

Sei que pior que não encontrá-la, é permanecer falido e sem emprego. Mas essa situação muda. Minhas andanças sem rumo na capital paulista terão fim em breve. Amanhã é segunda-feira e irei arrumar uma maldita ocupação.

Janeiro, 26

Acordei com uma ressaca braba. Foi mais Tatuzinho. Vou tentar não ficar alcoólatra. Como minha agenda anda lotada, passei pelo centro e encontrei minha musa numa dessas publicações masculinas. Tá na cara que eu comprei. Vi seu rosto… sua face adorada e fiquei doente. Olha, Neide Ribeiro vicia mais que Tatuzinho. Pena que a revista seja de papel e não seja a própria deusa em carne e osso. Se eu tivesse uma chance de conhecê-la, só de olhá-la de longe ficaria satisfeito. Até emprego eu ia arrumar. Mas precisava de uns trocados pra correr atrás disso. Gastei a grana comprando a revista da Neide. Mas só fiz isso porque ela era capa da publicação.

Janeiro, 28

Novo sonho com a rainha da Boca paulistana. Parecia realidade. O resultado foi tão forte que estou pensando em ir lá qualquer hora, quem sabe falar com ela. Afinal, a moça não deve ter tantos fãs. Nem escuto mais o horário esportivo no rádio. Deixei de tomar cachaça vagabunda. Estou me tornando um compulsivo pela Neide. Daqui a alguns meses, vai estrear um outro filme com a moça. Se chama Violência na Carne do diretor Alfredo Sternheim. Ela é atriz e está numa casa que é seqüestrada por ex-marginais. Poxa, fiquei realmente curioso para ver essa película. Soube que a Neide está presente porque deu nos jornais que a Censura liberou o longa. Tenho que esperar mais uns quatro meses pra conseguir ver essa produção. Realmente, a vida não é fácil.

Janeiro, 30

Que fase! Num emprego querem que você tenha língua estrangeira. No outro, diploma de datilografia. Vocês acham que eu estudei filosofia? Poxa, o máximo que eu lia era aqueles romances tipo Sharon Scott, Charlie Chan. Estão falando que o Enéas vai vir da Itália jogar no Palmeiras. Poxa, na Portuguesa ele jogava o maior bolão. Pelo menos isso me animou o dia. Não suporto mais o cheiro de cachaça sem vergonha. Estou numa fase triste e aguda. Por isso, resolvi adotar a cerveja preta. Faz uma linha de bebida proletária (afinal, é cerveja), mas se diz um pouco sofisticada. Vou pegar um dinheiro emprestado pra ir fazer minhas refeições diárias em algum local de segunda linha. Vida ordinária. Vou ter que esperar mais alguns meses para rever Neide Ribeiro na telona em filme inédito. Já revi Palácio de Vê nus dezenas vezes. Minha esperança é que apareça alguma cópia com algo diferente. Estou decorando as falas do filme.

Fevereiro, 3

Estou quebrado. Agora é verdade. Desse jeito, vou voltar pro interior. Essa cidade é predatória e vai te destruindo aos poucos. Minhas ambições são fáceis de serem alcançadas: emprego decente, namoro com Neide Ribeiro e Palmeiras campeão. Alguma coisa de outro mundo? Penso que não. Ontem fiz uma das piores coisas que poderia ter feito. Tomei doses crepusculares de Tatuzinho e conheci uma moça muito feia num desses bares fedorentos. Mas como eu estou numa pior, topei a parada. Não me lembro o nome dela, só sei que a chamei de Neide. Depois, ela falou: “Essa Neide é sua irmã? Sua mãe? Por quê você fala tanto nela?”.

Fevereiro, 5

Falta grana até pra pagar o fim de mês da pensão. Agora vou vender o quê? O rádio? O meu relógio? Minhas roupas? Tá foda. Sento num bar de um português conhecido que fica perto da pensão.

– Manda o de sempre.

– Mas tu vais começar logo cedo gajo?

– Lógico. Melhor. É pra evitar a fadiga- respondo, numa tentativa de ser um talento na comunicação Brasil-Portugal.

– Aqui estás- diz ele me trazendo mais uma dose da Tatuzinho.

Todo dono de bar é uma espécie de psicólogo. Peço um conselho pro gajo.

– O senhor sabe, estou sem emprego, sem remuneração. Devendo todo mundo. Fico tomando Tatuzinho toda hora. E toda noite sonho com uma atriz maravilhosa da pornochanchada que nem sabe que eu existo.

– Olha meu filho, posso te falar uma única coisa. A vida não é fácil.

 

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Marcelo Miranda

 

Cinema brasileiro… 

… é a cachoeira de Humberto Mauro.
… são os grilhões de Mário Peixoto.
… é o barco dos irmãos Segretto.
… é o esculhambo de Sganzerla.
… é o Corisco de Glauber.}
… é a presença física de Helena Ignez.
… são as putas humanizadas e sofridas de Ody Fraga.
… são as unhas e a cartola do Zé do Caixão.
… é a grandiloquência da Vera Cruz.
… é a cruz de Zé do Burro.
… é o facão de Augusto Matraga.
… é a música de Sérgio Ricardo.
… é o bacalhau de Adriano Stuart.
… é o corpo de Helena Ramos.
… é a virilidade de David Cardoso.
… é a provocação de Sônia Braga.
… é o destrambelho de Mazzaropi.
… é a ingenuidade aventuresca dos Trapalhões.
… é a beleza de Anselmo Duarte.
… são os delírios de Carlos Prates Correia.
… é a cafajestagem de Jece Valadão.
… é a curra de Lucélia Santos.
… é o grito interminável de Hugo Carvana.
… são os marginais cineastas de Fernando Coni Campos.
… são os fantasmas e assassinos de Jean Garrett.
… é a cinefilia obsessiva e fascinante de Carlão.
… é a dor de seu próprio fim perpetrado por Collor.
… é a possibilidade de seu renascimento representada por Carla Camurati.
… é a subversão de seus próprios caminhos.
… é tudo e nada.
… é o que temos e é o que não temos.
… é o que se renova e o que permanece igual.
… é o que amamos, infinitas coisas mais. 

E quem não ama o cinema brasileiro ou não sabe dizer por que o ama…
… não sabe em que mundo vive.

Marcelo Miranda é crítico na revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br) e repórter no jornal O Tempo em Belo Horizonte (MG).

Reflexos em Película

Por Filipe Chamy

 


Sejamos gratos a quem faz coisas boas, apenas
 

           

Filmes, como a maior parte das artes, podem e devem ser preservados. Então é relativa e consideravelmente fácil termos acesso a coisas antigas, de décadas atrás. 

Essas coisas ficaram, estão eternizadas. Elas são daquele jeito, por inúmeros fatores. Estão necessariamente atreladas ao momento histórico de sua produção, o que não significa que as coisas não pudessem ser diferentes. 

Como assim, diferentes? Explico: se obras artísticas refletem um período específico (aquele em que viveu o artista), os fatores externos à criação são passíveis de mudança, sempre. 

Vou tentar esclarecer mais um pouco. Todos conhecem O grande ditador, uma de tantas obras-primas de Charles Chaplin. Ocorre que poucos percebem o erro que é “ser grato” ao nazi-fascismo por ter gerado trabalhos incríveis assim. As aspas são evidentes: poucos reconheceriam esse sentimento, mas no fundo é o que se considera. Não adentrarei doutrinações morais ou sentimentaloides, meu objetivo (se tenho um) é simplesmente fazer essa ressalva: os males do mundo são ruins ao mundo; a arte não serve para justificá-los, em absoluto. 

Não é preciso ficar penalizado ao se aclamar O grande ditador, longe disso; mas é preciso entender que aquela foi a crítica que Chaplin pôde e se sentiu compelido a fazer em 1940, daquele jeito, com aquela expressão. Caso não tivesse havido esse sistema político (?) e essa violência que Chaplin retrata em seu filme, ora, ele simplesmente faria um filme sobre… outra coisa qualquer. O nazismo não ajudou a Chaplin, não é pertinente considerar genocídios como positivos à arte porque possibilitam o surgimento dessas comunicações de veemente repulsa, por exemplo. Caso não fosse essa uma das tragédias a preocupar o mundo na época (como de resto, parece não ter deixado de preocupar), Chaplin traria outro assunto à luz, com igual ou maior brilhantismo. 

Noite e neblina. Possivelmente uma das mais pungentes ilustrações da “poesia” no cinema, o filme documentário de Alain Resnais retrata vivamente a desgraça da deportação e dos campos de concentração e extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. A quem interessa creditar a beleza e inteligência do filme ao caos geopolítico em que o planeta estava imerso? É subestimar a humanidade de um autor como Resnais acreditar que a desgraça lhe vale de alimento, como a um urubu serve de repasto uma carcaça. A arte denuncia aí uma presente forma de opressão, e, portanto, é contra ela e a deseja inexistente ou derrotada. Absurdo imputar-lhe subliminar pecha de aproveitamento “disfarçado” da essência das coisas que combate. 

Estamos acostumados a ver as coisas com essa lógica meio preguiçosa do “resultado”. As coisas são assim porque estão aqui e eu as estou vendo, o produto bruto diante dos meus olhos. Pensar que O grande ditador foi um desafio a Hitler, Noite e neblina, o retrato de uma era negra. Mas e sem esses eventos, onde estariam Chaplin e Resnais em seus ofícios criativos? Parariam de inovar? Não: olhariam para outro lado, teriam outros interesses e trabalhariam outros temas. Assim é o artesanato do cinema, e como a História (e a vida) é instável, não deixa de ser algo previsível (o que pode parecer paradoxal), e então os artistas dos fatos de hoje pensarão nos problemas contemporâneos e os de amanhã terão outras coisas na cabeça. 

Disso tudo fica o mais que óbvio: O grande ditador e Noite e neblina são filmes interessantes porque seus diretores tocam o projeto com a segurança da autoralidade sem imposições, não porque retratam horrores reais e por isso um pouco “louváveis”.

Entrevista: Ewerton de Castro

Dossiê Ewerton de Castro

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Entrevista com Ewerton de Castro

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Adriana Câmara e Pedro Ribaneto

Famoso ator de novelas (A Viagem, Roque Santeiro, Pantanal), Ewerton de Castro fez muito cinema, especialmente nos anos 70, na Boca do Lixo. Com carreira intensa (muito teatro e muita televisão também), Ewerton atuou em mais de 25 longas, entre eles, O Quarto, O Jeca e a Freira, Anjo Loiro, A Noite do Desejo, O Último Êxtase, O Estripador de Mulheres, Os Rapazes da Difícil Vida Fácil, Kuarup e O Príncipe. Ainda encontrou tempo para dirigir um, Viúvas Precisam de Consolo, que acabou sendo um fracasso comercial, e o média semi-amador Em Última Análise.

Em entrevista para a Zingu!, que pretende ser uma complementação ao livro de Reni Cardoso, Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética, além de fazer um retrospecto na carreira cinematográfica, Ewerton permeia suas respostas com suas crenças em termo de atuação, de seus papéis e do futuro na arte. Sua reflexão sobre a profissão o levou a manter, por vários anos, a Escola de Teatro Ewerton de Castro – tema deixado de fora da entrevista, mas muito comentado no livro -, empreendimento que formou muitos atores competentes.

 

Parte 1: Infância e começo no cinema

Parte 2: Anos 70, Boca do Lixo – ator e diretor

Parte 3: Anos 80 – cinema cada vez menos

Entrevista: Ewerton de Castro – Parte 1

Dossiê Ewerton de Castro
Parte 1: Infância e começo no cinema 

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 Por Gabriel Carneiro
Fotos: Adriana Câmara e Pedro Ribaneto

Zingu! – Como era sua infância?

Ewerton de Castro – O que marcou profundamente a minha infância foram as férias que passava no interior de São Paulo, na cidade de minha mãe, Santa Rita do Passa Quatro. Morava num casarão na rua Frederico Abranches. Na época, passava um cara com cabras na rua. Olha como sou antigo. Imagina isso hoje (risos). Me lembro que tinha quintal, brincávamos bastante, mas o portão estava sempre fechado. Era eu e meu irmão mais velho, com quem nunca tive muita afinidade. Então era muito solitário. Ali perto de casa, havia o cine Santa Cecília, onde hoje é o Teatro São Pedro, e adorava ir ao cinema, adorava. Nunca me esqueço quando meus pais me levaram pra assistir, no cine Metro, na São João, O Cisne, com Grace Kelly, história de uma princesa. O Cine Metro era suntuosíssimo. Tinha uns 10 anos. O programa dos meus pais era ir, uma vez por semana, ao cinema. Se não me engano, tinha muito programa duplo. Íamos à noite, caminhando até a Barra Funda.

DSC04635-300x225Z – Você começou a se interessar por atuação bem cedo, né?

EC – Sim, porque fazia teatro na Igreja. Aquele mundo era fantástico. Emocionava a platéia, aquela coisa toda. Recebi uma resposta muito boa desse meu encaminhamento. E a partir disso, só queria fazer teatro. Não consegui terminar a faculdade, não consegui fazer nada. Era só teatro, teatro. Meu avô me levava ao teatro. Me lembro vivamente de me levarem para ver O Filho do Sapateiro, no Teatro Colombo, no Brás. Era com Nino Nello. Me lembro até hoje: sentamos na parte de cima, acho que era camarote, e a produção e o cenário eram muito pobres. Era uma coisa dramática, muito emocionante. Meu avô amava ópera. Essa paixão toda que tenho por teatro e ópera vêm toda do meu avô italiano. Meu interesse em fazer peças foi concomitante ao assistir peças. Comecei a fazer teatro com 5 anos. No começo, era uma vez por ano, no Natal, produções grandes até, produzidas por Moacir Costa, da TV Tupi, com muitos profissionais. Isso em São Paulo, na Primeira Igreja Presbiteriana, na rua Nestor Pestana.

Z – Quando começou a fazer teatro, pensava em fazer isso profissionalmente e pensava em fazer cinema?

EC – Profissionalmente não. Quando era moleque, queria ser médico. Acho que sofro daquela síndrome de que sinto a dor do paciente, então não poderia ser médico nunca (risos).

Z – Quando viver profissionalmente do trabalho de ator passou a ser um desejo e realidade?

EC – Foi em São José do Rio Preto, no teatro amador. Lá fazia pra valer. Eu que promovia. Quando fui pra lá, não tinha teatro na igreja e que queria continuar a fazer. Ninguém fazia, então fiz. Coloquei um monte de gente pra trabalhar comigo. O [cenógrafo José Caros] Serroni começou assim. Amauri Jr era da nossa turma (risos), mas não fazia teatro, era colunista social. A partir daí me vem a vontade de fazer isso pela vida afora. Sempre tive problemas quanto a essa escolha com meus pais, que eram muito religiosos, mas acabei conseguindo.

Z – Você teve convite para fazer televisão na época, mas o pastor aconselhou seu pai a não deixar. Como ficou sua relação com a Igreja, depois disso?

EC – Acabei me afastando da Igreja a partir daí, porque achei uma sacanagem o que fizeram comigo. Com 18 anos, me afastei completamente. UmaDSC04614-300x225 criança ser proibida de fazer algo que tanto deseja por motivos injustos – até pra mim, na época, era injusto – é muito traumático. Queria saber o porquê, mas nunca me deram uma boa razão. Na época, por exemplo, era proibido dançar qualquer tipo de música. Eu ia pra todos os bailes, adorava. Por que não pode? Os dogmas estragam as religiões. Religião é algo tão bom, especialmente os ensinamentos de Cristo, mas dogmas? Isso não existe. Teatro na igreja podia, fora, não podia. Por quê? Qual a diferença? “Lá é um mundo de perdição…” Só consegui ter outra oportunidade similar quando saí de casa e fui ser dono do meu nariz. Teve uma história engraçada nesse meu começo de carreira. No meio dos anos 60, fui fazer um filme com o Raffaelle Rossi, em Piracicaba. Foi para fazer uma ficção, e vendeu para a cidade que faria um documentário. Dizia que mostraria a loja por uma determinada quantia. Aí filmava a loja, só que não tinha um metro de película. Todo o elenco estava lá. Não tinha ator de nome, tudo jovem. Aí ele comprava película, voltava na loja para filmar. Pegou dinheiro da cidade inteira e fugiu. Nós ficamos lá, sem filme, sem comida e sem dinheiro. Tive depois que ligar para o meu pai: “pode me pegar em Piracicaba?” (risos) Isso foi antes de O Quarto, se não me engano, para o qual atendi a testes. O filme do Mazzaropi, o segundo que rodei e primeiro exibido, também, fui até a PAM Filmes, porque soube que precisavam de gente. Comecei a fazer teatro, televisão e cinema tudo na mesma época, lá por volta de 1968. Com exceção de A Cozinha, cujos testes começaram em 1967. Dois meses de testes. O Antunes [Filho, diretor teatral] é doido. Eram 500 pessoas fazendo teste, sendo que só havia 30 papéis – e vários deles ocupados por veteranos que não precisavam fazer teste, como o Juca de Oliveira. Mas estavam começando a Irene Ravache, Beth Mendes, Ivete Bonfá, Paulo Hesse, Silveirinha.

Z – Como era a experiência de trabalhar com o Biáfora?

EC – Como diretor, era muito preciso no que queria. Gostou muito do que fiz. Era a coisa mais estranha do mundo porque, quando ia falar contigo, chegava a um palmo de distância de você para te olhar (risos). Era praticamente cego, não sei se queria ver a textura da pele. E como é difícil fazer cinema no Brasil! Era tudo improvisado, não tinha dinheiro pra nada. O Biáfora era planejado, mas as condições econômicas eram muito complicadas, então ficava tudo muito à mercê. “Será que o cara vai emprestar o escritório hoje para a gente filmar?”

Z – Era um diretor que dava mais direcionamento para o papel?

EC – Ele explicava, o que era muito mais do que se fazia. Quem preparava o ator mesmo era o [Francisco] Ramalho, que me levou na Cinemateca para ver filmes, discutimos, quando fui fazer Joãozinho. Isso é legal. É tão bom você ir com base para o set de filmagem; o cinema brasileiro, me geral, é todo na base da improvisação, no acerto e erro.

DSC04606-300x225Z – Depois você fez O Jeca e a Freira, do Mazzaropi. Como era trabalhar com ele?

EC – Ele falava assim: “Ei, Ewerton, que vergonha, né? Você vem lá do filme de arte pra trabalhar aqui comigo” (risos). Ele era um gozador. Na realidade, tirava um sarro dessa postura da crítica em relação a ele. Ele não tava nem aí, porque ele tinha público e isso é o que interessa. Dava dinheiro e ele adorava fazer cinema. Se tirasse isso dele, acho que morria. Aquele mundozinho dele, aqueles estúdios em Taubaté, tinha tudo o que queria. Tinha um acervo de roupa, de cenário, à prova de som, alojamento para os atores. As produções duravam mais tempo. O Mazzaropi era muito ciumento, gostava que o ator fizesse o filme dele, fosse e ficasse no alojamento. Tinha um ator negro, Henricão, inclusive, que era ótimo, autor do samba [Só Vendo que Beleza (Marambaia)] “eu tinha uma casinha lá em marambaia”. Ele ficava lá o tempo todo. Não tinha muita preparação, exceto tirar medidas, etc. O problema é que não tinha um roteiro. As cenas vinham na cabeça dele. Depois ele tinha problema de montagem.

Z – No filme, você acabou com diversas funções, não?

EC – Tudo começou porque fui experimentar uma calça e notei algo estranho. Fui falar com ele, meio acanhado, que calças naquela época não tinham zíper. Ele disse: “É mesmo, quando fiz Casinha Pequenina, não havia zíper. A partir de agora, você tá encarregado do figurino”. Topei. Claro que não recebia nada a mais por isso (risos). Isso tudo era experiência do teatro amador, era uma baita escola. Aprendi a fazer cenário, figurino, luz. Desenhava e comandava o alfaiate e a costureira, que faziam as roupas. E ele queria veludo francês, casimira inglesa, não poupava, queria que na tela ficasse bonito. Ele tinha um pouco do circo-teatro, aquelas famílias com vasto repertório de peças. E é fascinante. Eram pobres e não compravam roupas pra eles, mas para os personagens, compravam. Não usavam se não fosse para esse fim. É uma coisa de paixão, superando a própria individualidade. Não é ele que importa, é o circo-teatro. O Mazzaropi era assim. Falava pra ele: “Compra um veludo nacional mesmo”. Ele retrucava: “Não, amarrota e vai aparecer na tela”. Esse espírito acho maravilhoso.

Z –Como era ele alternando direção e atuação?

EC – Ele dirigia todos os filmes.

Z – Sim, mas esse ele assina.

EC – Ele assina? Mas tinha um rapaz lá, Abílio [Marques Filho, que assina como assistente de direção], que trabalhou na Abril Cultural. O Mazzaropi ia fazendo o roteiro, posicionava a câmera. Tinha dia que ele chegava no set e dizia: “quem mandou colocar a câmera aqui? Pode tirar. Câmera ali.” E acabou. Quando comecei a mexer no roteiro, aí ficou uma loucura só. Chegava no dia e Elizabeth Hartmann, que vinha de São Paulo todos os dias, estava atrasada. Ele me falava: “tira a Elisabeth da cena”. Falava que não dava, porque ela precisava ouvir a conversa. “Alguém conta pra ela depois”. Ela eventualmente chegava, para o meu alívio. Depois comecei a fazer as folhas de continuidade. Eu tinha 23, com cara de 15.

Z – Depois você trabalhou em outro roteiro do Mazza, não?

EC – Sim. Ele me ligou, dizendo não saber o que fazer com O Paraíso das Solteironas. Fui segunda de manhã, num ônibus, e voltei terça à noite. Fiquei tentando dar uma montagem a partir das folhas de continuidade, e acrescentando cenas, para dar um raccord de roteiro.

Parte 2

Entrevista: Ewerton de Castro – Parte 2

Dossiê Ewerton de Castro
Parte 2: Anos 70, Boca do Lixo – ator e diretor 

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Adriana Câmara e Pedro Ribaneto

Zingu! – Em 1969, você fez dois filmes com o Astolfo Araujo, As Armas e As Gatinhas. Você o conheceu em O Quarto?

Ewerton de Castro – Sim. Foi exatamente por isso que ele me chamou pra fazer esses dois filmes. Ele acompanhou as filmagens do longa todo. Achei ótimo, porque é difícil, quando você está começando, engrenar um trabalho atrás do outro. Mas, graças a Deus, não posso reclamar, nunca tive problema.

Z – Essas produções dele tinham o requinte da produção do Biáfora?

EC – Ele era bem novo, e acho que se saiu bem, sabia o que estava fazendo. Já trabalhei com diretores que não sabiam nem posicionar a câmera. Mas produção brasileira sempre foi mambembe. De todos os filmes que fiz, Kuarup não foi mambembe, mas, em compensação, estávamos no meio da selva e conseguir as coisas era muito difícil. Galante, por exemplo, era difícil. Produções pobres.

DSC04637-224x300Z – Isso desde o começo, nas produções do Alfredinho Sternheim e do Khouri?

EC – Sim. No Khouri, tinha caviar durante a filmagem, mas a produção era precária. Aquelas coisas do Khouri, gostava de se exibir para as meninas (risos). Tem até uma famosa história de Paixão na Praia, que era produzido pelo Galante. No final, disse que não dava mais um metro de filme. O Alfredinho Sternheim, com quem gostei muito de trabalhar, reuniu o elenco e disse que não tinha mais um metro de filme. Ia fazer um plano-seqüência e pediu: “ninguém erra, pelamor de deus, ninguém erra, por favor, porque não tem como fazer de novo”. Na praia, em São Conrado, quando ainda era deserta, ensaiamos várias vezes. Eu rolava na areia, matava a Lola Brah, etc. Tinha uma camisinha cheia de sangue para estourar no meu peito. Como era improvisado! A cena estava sendo rodada e daqui a pouco ouço o Alfredinho: “puta que pariu”. E fico lá eu pensando: ‘será que é comigo?’ (risos) E via a Norma Bengell e o Adriano Reys, atrás da câmera, rolando de rir. Eu continuava, rolando, fazendo a cena. Até que percebi que tinha parado. O Alfredinho grita “Lola!”. Aí percebi: ela morreu com a bolsinha na mão e a cabeça, ao invés de encostar no chão, deixou suspensa no ar. O Alfredinho foi lá perguntar o motivo, ao que ela respondeu: “para não sujar a peruca”. Tivemos que fazer de novo, e fazendo-se as contas, teríamos que fazer a cena mais rápida. Dá vontade de tirar o dinheiro do bolso e falar: vai comprar mais um filme ali na esquina, porque, pelamor de Deus, você não pode estragar todo um filme por conta de alguns metros de celulóide. Tirei a camisa ensangüentada, me lavei no mar, coloquei a camisa gola role ao contrário, com paletó por cima. Botei outra camisinha. O que aconteceu: no Guarujá, onde ganhei inclusive o prêmio de ator, na última cena, todo mundo riu, porque o filme tem um ritmo e de repente acaba. 

Z – O Galante chegava a aparecer no set de filmagem?

EC – No Rio, não. Você acha que ele ia gastar dinheiro? O Galante era muito mão-de-vaca. Colocou todo mundo num hotel espelunca na Lapa. 

Z – O Alfredinho conta que te chamou para o papel porque ficou deslumbrado com sua atuação em A Cozinha. Você se lembra de como surgiu o convite?

EC – Não me lembro. Mas não sabia disso não.

Z – Como era ele como diretor?

EC – Tranqüilo, bem tranqüilo. Não dava muitas diretrizes para a atuação. Prezava a qualidade, mas não lembro dele falando ou discutindo o personagem. Gostava sempre do que fazíamos, mas também o elenco era muito bom. A Norma está muito bem no filme. Ficávamos numa casa muito bonita em São Conrado. Lembro que tinha uma cena em que estava nadando na piscina e chegava o Adriano e jogava um jornal para eu ler. A água estava tão gelada! Muita fria, foi duro. Até me deram um conhaque.

Z – Você fez mais um filme com o Alfredinho, o Anjo Loiro.

EC – Primeiro filme da Vera Fischer, super novinha, tinha ganho o Miss Brasil fazia pouquíssimo tempo. Deslumbrante. Ela era bem inexperiente, mas muito esperta, tinha noção das coisas. Conversávamos muito. Cinema é a arte da espera. Ela dizia: “tenho certeza que estão me chamando agora porque ganhei Miss Brasil, sou bonita e eles querem me ver nua. Ok, vou fazer tudo isso. Mas vou aprender e um dia vou ser uma grande atriz.” Ela tinha uma consciência impressionante de como estava sendo usada e qual era o objetivo de vida.

Z – Vocês chegaram a ver O Anjo Azul, do Josef von Sternberg?

EC – Não vimos não. Nem lemos o livro que deu origem. Era tipo assim: ‘amanhã você está filmando, o roteiro é esse’.

Z – Você costumava frequentar a Boca do Lixo ou só ia lá para as filmagens? DSC046381

EC – Só para as filmagens. Trabalhava o tempo todo, fazia teatro, televisão, uma loucura. Os caras me chamavam para fazer um filme e eu perguntava que horas. “Final de semana”. “Então ok”.

Z – Mas ia ao Soberano?

EC – O Soberano era como o barzinho da Tupi, lugar pra pedir emprego. Graças ao bom Deus, nunca tive que fazer isso, se não morria de fome. Tenho a maior vergonha de pedir emprego. Na nossa profissão, isso é a coisa mais esquisita. Se sou engenheiro, vou lá, apresento meu currículo, e, se não tem vaga, ele diz que não tem, muito obrigado, e é isso. Na nossa profissão, se chegar numa emissora e perguntar se tem trabalho pra mim, o cara me dispensa às gargalhadas. Por quê? É pejorativo o cara precisar trabalhar. Imagina? É um absurdo. Graças a Deus, nunca passei por isso. Mas já vi gente sofrendo humilhações inacreditáveis. O cara só tava pedindo emprego. Sei que na Boca do Lixo, muita gente ia lá pra ver se conseguia trabalho, fazia a parte social, mas nunca freqüentei. Mas conhecia muita gente de lá: Galante, Palácios, Massaini. Alguns diretores com quem trabalhei só fui conhecer no set de filmagem, como o Roberto Mauro e o José Miziara.

Z – A partir do começo dos anos 70, a Boca começou a ser tomada pelo erotismo. Isso te incomodava? Chegou a recusar papéis por conta disso?

EC – Teve uma hora que deu. Falei: “Cansei de ficar pelado”. É constrangedor, uma coisa horrorosa. Sou muito mais pela coisa insinuada do que pela escancarada, acho que perde o erotismo. Me incomodava muito fazer esses filmes, não tinha nada de artístico, não levava a nada. No filme que dirigi, não teve jeito, tive que colocar nudez. Era uma exigência da época, se não colocasse uma mulher nua, uma trepada, o filme não saía da prateleira. O valor dele estava no grau de sacanagem. Isso acabou com a Boca. No início, essas pornochanchadas, você morre de rir, televisão faz coisa muito mais explícita. Mas foi ficando pior. O Alfredinho, por exemplo, acabou fazendo filme de sexo explícito. Não tem seqüência isso.

Z – Em 1972, você também fez seu primeiro filme como diretor, Em Última Análise, rodado em Super8. Como surgiu esse filme? Já pensava em dirigir?

C – Pois é (risos). Tinha 45 minutos, em Super8. Cinema sempre me interessou. Adoro cinema. Se pudesse, se ganhasse na Sena, só produzia e dirigia filmes. É uma arte total, tem tudo lá, música, uma coisa pictórica, literatura, a questão da interpretação. Estávamos todos fazendo uma peça do Antunes chamada Peer Gynt, do Ibsen. Um dia o pessoal se reuniu e disse: vamos fazer um filme? Logo me interessei. O Clemente Viscaíno, que era um dos nossos colegas, filmaria, tínhamos todo elenco e eu dirigiria. Escrevi um roteiro que era uma loucura, falando só sobre a vida, o amor e a morte. Um assunto bem sucinto. (risos) O filme era um doideira. O Antunes emprestou o figurino todo, porque tinha cenas de época. Tinha uma cena que era o amor morrendo. Filmamos em Paranapiacaba. Lá tem uma nuvem que vem e cobre a cidade e depois ela some. Essa nuvem entrou e era a coisa mais fantástica. Foi uma experiência ótima. Tinha uma cena no futuro, um cara com roupas de banho prateadas. Você não faz ideia. Sabe como montei esse filme? Com durex. Super artesanal. Com o tempo, essa cópia acabou tendo as emendas quebradas. Mandei telecinar e o cara colocou numa velocidade diferente. O que sobrou do filme tenho em DVD. Foi uma experiência que adorei ter. Íamos fazer um segundo, também com um roteiro doido. Tinha muitas seqüências fotográficas no meio. Virava fotografia, como se fosse fotonovela, depois virava filme de novo. É gostoso porque você dá asas à imaginação.

Z – Como conseguiu bancar o filme?

EC – De maneira coletiva, cada um dava um pouco. Escalava os atores que iam gravar em Paranapiacaba, conseguia os lugares pra ficar num amigo, os alimentos eram levados. Era tudo cotizado. Sozinho jamais conseguiria bancar. O filme não tinha nenhuma fala, só tinha música colocada depois. Como diz a Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses: “porque palavras se posso dizer tudo com meus olhos?” O filme foi exibido no Festival do Cineclube Paiol, de onde saiu premiado. A Isa Kopelman ganhou melhor atriz, o Clemente ganhou melhor fotografia, e segundo lugar em melhor filme.

Z – Você diz que o Khouri, com quem fez O Último Êxtase, gostava muito de paparicar as moças, com os atores era assim também?

EC – Não. (risos) O Khouri era um galanteador, um Casanova. Não sei se estava, mas a impressão que dava era a de que estava comendo todas as atrizes. Era muito engraçado. Era único, nunca conheci alguém como ele. Era um lorde inglês fazendo cinema no Brasil (risos).

Z – Ele tinha maior preocupação em dar um direcionamento aos atores?

EC – Pra você ter ideia, houve problemas, a Adriana Prieto saiu do filme. Na hora de escalar o elenco, o Khouri vendeu pra todo mundo o protagonista, e esse papel cabia ao filho dele. Em determinado momento, caiu a ficha: se você vai fazer um filme em que o filho do diretor está no elenco, você certamente não é o protagonista. Mas tudo bem, gostava do meu personagem. Tinha todo um envolvimento com a Lilian – e ela já era o máximo. Começamos a rodar o filme e não tinha a Lilian e nem o Luigi Picchi. Uma semana depois, caiu a ficha para a Adriana, e ela pulou fora. Veio então a Dorothée Marie Bouvyer, que era parecida com ela. Inclusive, em algumas cenas do filme, era Adriana, para não refilmar. Não poderia haver muita preparação se ele já começava te enganando pelo roteiro. O que existia nos filmes dele era imobilidade. E eu sou muito elétrico. Sou acometido por uma energia elétrica, que não consigo ficar relaxado. Os closes eram longos, engessados. Meia hora ajeitando o cabelo, a sobrancelha, pra então rodar. Acho que ele devia me odiar, porque destoava muito. Todos eram meio Bergman e tinha o Ewerton ali no meio (risos). Mas meu personagem não era Bergman. Os personagens deles em geral eram existenciais, o meu era mais ação, mais movimento. Tenho uma cena de trepada com a Lilian, na árvore, que é muito forte. Não aparecemos pelados e é de um erotismo! A Lilian ficou toda vermelha, com hematomas, de tanto que batia com a cabeça na região do peito. O Khouri falava que gostava da minha mão, porque tinha pegada. E lá ia eu mostrar (risos). E pra dublar então? Eu e a Lilian quase morremos de tanto fazer “ãhn, ãhn, ãhn” (risos). A cena é de uma força muito grande.

DSC04622-300x225Z – Como você trabalhou essa relação com a Lilian?

EC – A Lilian era um barato, uma atriz muito generosa. Tivemos uma cumplicidade artística muito grande. Fui muito amigo dela. Sua morte foi trágica. Tínhamos uma sintonia que era impressionante. Fiz Moliére, no teatro, com ela. Era impressionante. A Lilian era intensa no corpo e no rosto era Khouri, sempre foi. Eu não, sou intenso em tudo, por igual (risos). A gente casava bem em cena.

Z – Pouco depois você fez o que seria sua primeira comédia erótica genuína, que é O Poderoso Machão, do Roberto Mauro.

EC – O Poderoso Machão era um roteiro genial. Era. Do Cláudio Cunha. O roteiro era um primor, sabe essas comédias italianas fantásticas? Era sobre um cara com priapismo, que estava sempre excitado, e a cidade ficava excitada também. Tinha uma coisa sensacional, um requinte que faz a comédia, que era um ônibus com velhinhas de binóculos que acompanham meu personagem pra onde ia. Foi a primeira coisa a ser cortada: não fala nada, corta. Caiu tudo. Ficou só a sacanagem. Uma pena. O roteiro era muito bom. Tem uma cena antológica, da Vic Militello, em que ela fazia a prostituta que pedia pra ver. Ele fica com priapismo porque fica sabendo que ganhou na loteria esportiva vendo uma trepada e nunca mais desce. (risos) A Vic pedia pra ver e eu abria o roupão. A cara dela é inacreditável, é muito boa. O Roberto Mauro foi fazer esse filme sem saber fazer cinema. Foi difícil. Não tinha dinheiro pra nada, eu pagava minha passagem pra ir para Capivari filmar. Era uma loucura (risos).

Z – No mesmo ano, você fez A Noite do Desejo, do Fauzi Mansur, contracenando com a Selma Egrei.

EC – A Selma Egrei é maravilhosa, adoro trabalhar com ela. Super generosa. Tem atriz que é muita chata, ela não, ela é um doce, linda. A filmagem foi rapidíssima. Íamos pra o set e rodávamos. Ele me chamou, disse que o filme tinha sido muito cortado na censura, precisava fazer alguma coisa com a história, e o enxerto meu e da Selma era pra suprir um buraco. Topei. Gozado. Nunca perguntei quanto é que vou ganhar. Burro, né? Para mim: “poxa, quero sim. Trabalhar com a Selma? Claro!” Aí os caras falavam: não precisa nem oferecer muito, ele já topou.

Z – Era tranqüilo trabalhar com o Fauzi?

EC – Era muito bom, super tranqüilo, foi ótimo. Só tenho boas lembranças.

Z – Ele dava mais direcionamento para o ator, ensaiava?

EC – O grande problema meu é que, como minha formação é teatral e a gente ensaia muito, sempre acho que no cinema ensaiamos pouco. Aqui no Brasil deveríamos fazer um pouco como se faz lá fora: ficar ensaiando dois meses. Aqui não. Imagina fazer Quem tem Medo de Virginia Wolf? sem ensaio nenhum. É temerário. Você não tem noção da evolução, da curva evolutiva do personagem. Como você vai saber o tom daquele ponto da filmagem, se você não fez o que vem antes e nem o que vem depois? É muito complicado isso. É meio intuitivo. No Brasil, se faz cinema intuitivamente, não de forma técnica, como deveria ser. E é uma loucura. Quando fui fazer meu filme, Viúvas Precisam de Consolo, disse: “vai ser diferente”. E foi a mesma coisa. Não podia reunir elenco. Mas se tivesse o mesmo tempo de filmagem para ensaio, as coisas seriam até mais rápidas. No meu caso, se levasse o elenco para a mansão do Ipiranga, onde filmamos, na hora de gravar, estava pronto. Mas não. Chamávamos o ator para fazer determinado plano. Aquilo ia ligar com outro momento do filme. E daí? Tinha ligação mesmo? Íamos nos pedaços, nem fazíamos a cena inteira. É o único jeito que tem. Tem um filme que fiz dele chamado Ensaio Geral – A Noite das Fêmeas. Esse filme tem um elenco estelar: Antonio Fagundes, Kate Hansen, Dionísio Azevedo, impressionante. Ele só conseguia filmar de madrugada, porque tinha gente que fazia televisão, gente que fazia teatro. Olha que loucura, é coisa de Kafka. Passava uma Kombi pegando a gente nos teatros e íamos para Santo André. Chegava lá, cada um botava a roupa, maquiava e ia dormir nos camarins. Daí alguém chamava: “Ewerton, é sua vez”. Aí você levantava, dava uma ajeitada, ele te posicionava, pedia para olhar para aquela coluna e dizer “Você aqui?” Ok. Rodando. “Você aqui?” “Ok, pode dormir”. Aí você ia dormir. Não sabia onde estava, não sabia o que estava fazendo. (risos) Montar isso foi a maior dificuldade. Outra coisa, se você assistir ao filme, não vai entender. Uma história complicadíssima para você no final descobrir que era, na verdade, uma peça de teatro encenada num teatro. Assisti ao filme e falei “não entendi” (risos). É um daqueles filmes tão encucados que até hoje se reúnem pra discutir (risos). Tinha muito disso. É complicado.

Z – As produções do Fauzi eram, pelo menos, mais requintadas?

EC – A Noite do Desejo não. Fizemos pra terminar o filme, acho que não tinha mais dinheiro. As locações eram todas exteriores, noturnas. FizemosDSC04631-225x300 rapidamente, acho que foram três dias de filmagens. Já A Noite das Fêmeas, você não faz ideia dos cenários construídos no teatro municipal de Santo André especialmente para o filme. O teatro lá é enorme, são três palcos, na verdade, é um só em forma de U. Ele tem cortinas de todos os lados. Você pode montar espetáculo em toda volta. Ele usou tudo cheio de cenários. Trabalhávamos nesses cenários especialmente construídos, o que era raro em cinema, por ser muito mais caro. Tinha um requinte, o que não deu certo foi a montagem.

Z – Em 1975, você fez dois filmes de episódios, Cada um Dá o que Tem, episódio Uma Grande Vocação, do Silvio de Abreu, e Sabendo Usar Não Vai Faltar, episódio Joãozinho, do Francisco Ramalho Jr. Havia diferença no modelo de produção?

EC – O gostoso, em Joãozinho, foi toda uma pesquisa que fizemos para o personagem. Tinha referências, um estudo. É coisa da minha formação teatral, satisfaz minha verve. Adorei fazer. O do Silvio é legal porque o Silvio é um cara ótimo, bom diretor.

Z – Como foi fazer esse seminarista cheio de gags do Uma Grande Vocação?

EC – Acho que foi saindo. Como é tudo muito intuitivo no cinema, não tem esse preparo, você tem a impressão que o papel te dá, você vai para um caminho e vê no que dá. O ator brasileiro trabalha muito assim. Lembrei da minha juventude, da repressão religiosa, e fiz. Sou um ator que trabalha muito fisicamente, é uma das minhas características, gosto de trabalhar com o corpo inteiro, não só algo interiorizado. Acho que é coisa do teatro. O Homem Elefante, que fiz, é muito físico. O Belchior, do Escrava Isaura, também. Isso ajuda muito. Claro que a postura do Homem Elefante ajuda a interiorizá-lo. O próprio Stanislavski chegou a essa conclusão no final da carreira, de que fisicamente você pode construir um personagem. Gosto quando as duas coisas podem ser trabalhadas paralelamente. Nesse filme, trabalho com um baita elenco feminino, e sempre mantive uma relação de trabalho com elas. Sou muito respeitador, talvez pelo lado religioso. Já fui pra cama com tanta mulher. Para você ter idéia da minha postura, vou te citar um exemplo. Em um filme com a Selma Egrei, o diretor disse pra mim e para a Selma: ‘tirem a roupa, deitem na cama, você vai por cima dele, de sapinho.’ Pedi um momento, peguei minha cueca, dobrei, coloquei em cima e consenti com a vinda dela. Você tá entendendo? Não é porque estou fazendo um filme com a mulher que ela tem que encostar a genital aberta de encontro com a minha. Se quisermos fazer isso depois, a gente vai para um motel e faz, mas não durante a filmagem. Todas as atrizes com quem trabalhei tem o maior respeito comigo por conta disso. Não há sentido em se aproveitar da situação. Quem faz isso é uma pessoa tacanha. Não é fácil para a mulher, por mais liberal que seja, é complicado. Você deveria ao menos poder escolher seu parceiro de cama. A relação é essa. Já fui pra cama com um montão de mulheres.

Z – Depois você fez com o Ramalho o longa À Flor da Pele. Esse trabalho foi no modelo de Joãozinho quanto à pesquisa? Leu a peça original?

EC – A peça eu li, mas meu personagem era muito simples. Ele deve ter feito todo esse trabalho com a Denise Bandeira e com o Juca de Oliveira, que eram os protagonistas absolutos. Eu fazia par com minha ex-mulher (com quem tive quatro filhos), Mayara de Castro, que era atriz. A Denise era também um barato, virou roteirista agora também. Tinha uma força. 

DSC04632-224x300Z – Você também fez um filme de horror/thriller, de um diretor estreante, que é O Estripador de Mulheres, do Juan Bajon.

EC – O filme é muito pobrezinho, mas acabei gostando do resultado do meu estripador, que é muito louco, mas muito comedido, sutil, a não ser nos momentos de estripar, quando ficava possuído. Pra ser sincero contigo, o Juan Bajon teve muita dificuldade em fazer o filme. Ele não tinha muita experiência, então foi difícil, dei uma boa mão pra ele. Ele era muito inteligente, conhecia tudo de história de cinema.

Z – Você chegou a fazer outro filme com ele, A Noite das Depravadas.

EC – Sim, mas é só uma participação, em que faço um cachorro. Um louco preso dentro de uma jaula que acha que é um cachorro. “Você faz?” “Faço”. Fazia tudo.

Z – Depois você fez dois filmes com o Geraldo Vietri: Adultério por Amor e Sexo, sua única arma.

EC – Os dois com a Selma Egrei. O Sexo, sua única arma era originalmente Parabéns Marta. Esse título horrível que colocaram depois é porque transei com a Selma, eu de padre, ela de ceguinha, atrás do altar de uma igreja santificada.

Z – Como era trabalhar com o Vietri?

EC – Ele era mais requintado. Era um obstinado. Sofreu muito na vida, porque tudo somatiza. Era perfeccionista e todos tinham que ser assim também. Fui fazer um especial de TV com ele, O Homem que Sabia Javanês. De 100 páginas, em 5 capítulos, eu falava 99. Era uma loucura, decorar tudo quilo. Se você mudasse uma palavra, lá vinha ele: “é coautoria? Você mudou a palavra.” De 99 páginas, você muda uma palavra e é coautoria?! Isso era o Vietri. Depois ele se penalizava de ter falado isso pra você, porque você é maravilhoso e não devia escutar essas coisas. Vinha chorando. Logo depois, te dava mais duas patadas. Era muito difícil. Mas me dei bem com ele, porque adorava o que eu fazia. Ele me botou de Castro Alves num especial. Fiz um discurso numa varanda de igreja, e ele chegou depois pra mim: “lamento você não estar na Europa, pois seria o maior ator do mundo. Mas aqui nesta merda de país, você não vai ser nada nunca.” Aí destilava todo seu veneno. Era muito amargurado. Gostava muito desse negócio dele de querer acertar. Tanto que era muito centralizador. Em novela, escrevia, dirigia e editava, sozinho, tudo. Hoje em dia são oito escritores, cinco diretores e uma equipe de edição. Grande artista, mas que errou na pegada.

Z – Foi nessa mesma época que você fez Viúvas Precisam de Consolo.

EC – Minha primeira mulher trabalha no filme como uma noviça e no final só podia fotografá-la da cintura pra cima, porque estava grávida. Já estava quando começou, mas a cada dia crescia mais a barriga. Eram gêmeos, Daniel e Rafael, meus filhos. Na época desse filme, parei tudo: teatro, televisão, outros filmes. Trabalhava 24 horas/dia para fazer Viúvas. Como dá trabalho dirigir um longa! Pra você ter uma idéia, não ensaiei com os atores, mas peguei o Carlão Reichenbach, fui para a locação e fiz toda a decupagem com ele no cenário. E aí ele me disse exatamente de tudo que precisava. Só dessa forma conseguimos fazer em tão pouco tempo, foi tudo muito planejado nos mínimos detalhes. O figurino do filme é requintadíssimo.

Z – Como surgiu o longa?

EC – Tive a idéia pra fazer o filme, escrevi o roteiro e acho que até cheguei a levar para o Galante, mas ele me disse que tinha muita pouca cena de sexo, que a produção era muito cara e que até produziria, mas teria que ser dentro das normas dele. O John Doo entrou como sócio no filme porque tinha câmeras e material de iluminação. O que não tinha, ele alugou. A parte dele era essa. Algumas outras pessoas também se associaram a mim, e foi assim que bancamos tudo. O Carlão foi ótimo, a iluminação ficou linda, a fotografia fantástica. O título original era O Homem que Morreu de Rir ou O Homem que Morreu de… É a história de um cara que, começa o longa, morre e vai pegando a filha com um homem, a amante arrancando a roupa na boate. O Marcos Caruso fazia o agente funerário. Começava o filme com ele colocando o caixão num calhambeque, um fordinho que desmontava. Tudo sem som e em preto-e-branco. Aí entrava as cartelas da ficha técnica e começava o som. O Caruso acabava carregando o caixão nas costas. O velório todo ele não morreu, só queria desmascarar o sócio dele e a mulher. Era uma comédia italiana, não tinha intenção de ser nada erótico. Rodei em 18 dias. Tinha uma mansão, guerra com jipe, explosões, você não faz ideia do que era. Parece que tem um rolo do filme na Cinemateca, e um está azulado. Tenho vontade de um dia investir um dinheiro na recuperação do filme, pra ter. Amigos queridíssimos que já não estão mais aqui. O John Doo conseguiu um distribuidor e exigiu um título erótico. Aí inventei Viúvas Precisam de Consolo, porque aí pelo menos é dúbio. Mas você precisava ver o cartaz: é o Hélio Souto pelado no meio, com todas as atrizes peladas em volta, incluindo a Riva Nimitz. Fiz uma sessão especial para a classe teatral no teatro Anchieta. Caíam da cadeira de tanto rir. Achei que estava feito. Foi para os cinemas: quem queria ver uma comédia bacana, não foi por causa da sacanagem que se vendia; quem foi ver sacanagem, se decepcionou. Foi mal lançado. Se o filme tivesse vivo ainda, se pudesse ter uma cópia dele, gostaria muito de colocar num Canal Brasil, para ser reavaliado.

Z – Você pensou em voltar a dirigir filmes?

EC – Só pensei. Mas aí que tá: você dirigir um filme para ser comandado pelos distribuidores, para ver seu trabalho deformado e depois não conseguir distribuição, é muito complicado. Para fazer um filme, não dá pra fazer nas horas vagas. Quem sabe quando me aposentar e tiver horas vagas, volte a pensa nisso. Mas tenho escrito muitos roteiros, é meu lazer. Essas câmeras digitais têm mudado tudo. Tenho feito uns curtas-metragens só para matar a saudade, de um ex-aluno meu, o Renato Siqueira. Fiz um com ele sobre um seqüestro (Laços Violados), e agora um sobre exorcismo (Diário de um Exorcista). Fizemos uma cena só com uma vela acesa e uma baita fotografia. Só colocou um bafinho de azul em cima e a vela. Incrível.

Z – Depois você fez Os Rapazes da Difícil Vida Fácil, do Miziara. DSC04641-300x225

EC – É esse que não ia ter cena de sexo nenhuma e depois ele veio pedir pelo amor de Deus para eu fazer uma ceninhas no hotel, porque era o único personagem que poderia fazer isso. Caso contrário, o filme ficaria na prateleira e nunca seria exibido. Exigir que o filme precise colocar sacanagem ou nunca será exibido é demais, não? O filme não tem uma cena de sexo. Não tem nada. Só o bordel. Guilherme Correia fazia o prostituto velho que dava conselhos: a gemada. (Risos) “Caracu e Ovo” (Risos).

Z – Como era o Miziara dirigindo?

EC – Normal. Sabe o que quer, não fica em dúvida. Para dirigir, você tem que pelo menos saber posicionar a câmera. Trabalhei com gente assim.

Z – O Ênio Gonçalves conta que quando foi fazer um filme com o Miziara, sua primeira cena era um transa. Ele nem conhecia a atriz e já teve que fazer a cena. Disse que era algo esquisitíssimo. Foi assim também com você?

EC – Com todos os diretores. Comigo também. “Essa aqui vai fazer a mulher que você come agora. Tirem a roupa e vão fazer a cena”. Eu faço: “Muito prazer”. Olha, que horror, era um coisa. (Risos) É dureza.

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