Dossiê Ewerton de Castro
Parte 2: Anos 70, Boca do Lixo – ator e diretor
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Adriana Câmara e Pedro Ribaneto
Zingu! – Em 1969, você fez dois filmes com o Astolfo Araujo, As Armas e As Gatinhas. Você o conheceu em O Quarto?
Ewerton de Castro – Sim. Foi exatamente por isso que ele me chamou pra fazer esses dois filmes. Ele acompanhou as filmagens do longa todo. Achei ótimo, porque é difícil, quando você está começando, engrenar um trabalho atrás do outro. Mas, graças a Deus, não posso reclamar, nunca tive problema.
Z – Essas produções dele tinham o requinte da produção do Biáfora?
EC – Ele era bem novo, e acho que se saiu bem, sabia o que estava fazendo. Já trabalhei com diretores que não sabiam nem posicionar a câmera. Mas produção brasileira sempre foi mambembe. De todos os filmes que fiz, Kuarup não foi mambembe, mas, em compensação, estávamos no meio da selva e conseguir as coisas era muito difícil. Galante, por exemplo, era difícil. Produções pobres.
Z – Isso desde o começo, nas produções do Alfredinho Sternheim e do Khouri?
EC – Sim. No Khouri, tinha caviar durante a filmagem, mas a produção era precária. Aquelas coisas do Khouri, gostava de se exibir para as meninas (risos). Tem até uma famosa história de Paixão na Praia, que era produzido pelo Galante. No final, disse que não dava mais um metro de filme. O Alfredinho Sternheim, com quem gostei muito de trabalhar, reuniu o elenco e disse que não tinha mais um metro de filme. Ia fazer um plano-seqüência e pediu: “ninguém erra, pelamor de deus, ninguém erra, por favor, porque não tem como fazer de novo”. Na praia, em São Conrado, quando ainda era deserta, ensaiamos várias vezes. Eu rolava na areia, matava a Lola Brah, etc. Tinha uma camisinha cheia de sangue para estourar no meu peito. Como era improvisado! A cena estava sendo rodada e daqui a pouco ouço o Alfredinho: “puta que pariu”. E fico lá eu pensando: ‘será que é comigo?’ (risos) E via a Norma Bengell e o Adriano Reys, atrás da câmera, rolando de rir. Eu continuava, rolando, fazendo a cena. Até que percebi que tinha parado. O Alfredinho grita “Lola!”. Aí percebi: ela morreu com a bolsinha na mão e a cabeça, ao invés de encostar no chão, deixou suspensa no ar. O Alfredinho foi lá perguntar o motivo, ao que ela respondeu: “para não sujar a peruca”. Tivemos que fazer de novo, e fazendo-se as contas, teríamos que fazer a cena mais rápida. Dá vontade de tirar o dinheiro do bolso e falar: vai comprar mais um filme ali na esquina, porque, pelamor de Deus, você não pode estragar todo um filme por conta de alguns metros de celulóide. Tirei a camisa ensangüentada, me lavei no mar, coloquei a camisa gola role ao contrário, com paletó por cima. Botei outra camisinha. O que aconteceu: no Guarujá, onde ganhei inclusive o prêmio de ator, na última cena, todo mundo riu, porque o filme tem um ritmo e de repente acaba.
Z – O Galante chegava a aparecer no set de filmagem?
EC – No Rio, não. Você acha que ele ia gastar dinheiro? O Galante era muito mão-de-vaca. Colocou todo mundo num hotel espelunca na Lapa.
Z – O Alfredinho conta que te chamou para o papel porque ficou deslumbrado com sua atuação em A Cozinha. Você se lembra de como surgiu o convite?
EC – Não me lembro. Mas não sabia disso não.
Z – Como era ele como diretor?
EC – Tranqüilo, bem tranqüilo. Não dava muitas diretrizes para a atuação. Prezava a qualidade, mas não lembro dele falando ou discutindo o personagem. Gostava sempre do que fazíamos, mas também o elenco era muito bom. A Norma está muito bem no filme. Ficávamos numa casa muito bonita em São Conrado. Lembro que tinha uma cena em que estava nadando na piscina e chegava o Adriano e jogava um jornal para eu ler. A água estava tão gelada! Muita fria, foi duro. Até me deram um conhaque.
Z – Você fez mais um filme com o Alfredinho, o Anjo Loiro.
EC – Primeiro filme da Vera Fischer, super novinha, tinha ganho o Miss Brasil fazia pouquíssimo tempo. Deslumbrante. Ela era bem inexperiente, mas muito esperta, tinha noção das coisas. Conversávamos muito. Cinema é a arte da espera. Ela dizia: “tenho certeza que estão me chamando agora porque ganhei Miss Brasil, sou bonita e eles querem me ver nua. Ok, vou fazer tudo isso. Mas vou aprender e um dia vou ser uma grande atriz.” Ela tinha uma consciência impressionante de como estava sendo usada e qual era o objetivo de vida.
Z – Vocês chegaram a ver O Anjo Azul, do Josef von Sternberg?
EC – Não vimos não. Nem lemos o livro que deu origem. Era tipo assim: ‘amanhã você está filmando, o roteiro é esse’.
Z – Você costumava frequentar a Boca do Lixo ou só ia lá para as filmagens?
EC – Só para as filmagens. Trabalhava o tempo todo, fazia teatro, televisão, uma loucura. Os caras me chamavam para fazer um filme e eu perguntava que horas. “Final de semana”. “Então ok”.
Z – Mas ia ao Soberano?
EC – O Soberano era como o barzinho da Tupi, lugar pra pedir emprego. Graças ao bom Deus, nunca tive que fazer isso, se não morria de fome. Tenho a maior vergonha de pedir emprego. Na nossa profissão, isso é a coisa mais esquisita. Se sou engenheiro, vou lá, apresento meu currículo, e, se não tem vaga, ele diz que não tem, muito obrigado, e é isso. Na nossa profissão, se chegar numa emissora e perguntar se tem trabalho pra mim, o cara me dispensa às gargalhadas. Por quê? É pejorativo o cara precisar trabalhar. Imagina? É um absurdo. Graças a Deus, nunca passei por isso. Mas já vi gente sofrendo humilhações inacreditáveis. O cara só tava pedindo emprego. Sei que na Boca do Lixo, muita gente ia lá pra ver se conseguia trabalho, fazia a parte social, mas nunca freqüentei. Mas conhecia muita gente de lá: Galante, Palácios, Massaini. Alguns diretores com quem trabalhei só fui conhecer no set de filmagem, como o Roberto Mauro e o José Miziara.
Z – A partir do começo dos anos 70, a Boca começou a ser tomada pelo erotismo. Isso te incomodava? Chegou a recusar papéis por conta disso?
EC – Teve uma hora que deu. Falei: “Cansei de ficar pelado”. É constrangedor, uma coisa horrorosa. Sou muito mais pela coisa insinuada do que pela escancarada, acho que perde o erotismo. Me incomodava muito fazer esses filmes, não tinha nada de artístico, não levava a nada. No filme que dirigi, não teve jeito, tive que colocar nudez. Era uma exigência da época, se não colocasse uma mulher nua, uma trepada, o filme não saía da prateleira. O valor dele estava no grau de sacanagem. Isso acabou com a Boca. No início, essas pornochanchadas, você morre de rir, televisão faz coisa muito mais explícita. Mas foi ficando pior. O Alfredinho, por exemplo, acabou fazendo filme de sexo explícito. Não tem seqüência isso.
Z – Em 1972, você também fez seu primeiro filme como diretor, Em Última Análise, rodado em Super8. Como surgiu esse filme? Já pensava em dirigir?
C – Pois é (risos). Tinha 45 minutos, em Super8. Cinema sempre me interessou. Adoro cinema. Se pudesse, se ganhasse na Sena, só produzia e dirigia filmes. É uma arte total, tem tudo lá, música, uma coisa pictórica, literatura, a questão da interpretação. Estávamos todos fazendo uma peça do Antunes chamada Peer Gynt, do Ibsen. Um dia o pessoal se reuniu e disse: vamos fazer um filme? Logo me interessei. O Clemente Viscaíno, que era um dos nossos colegas, filmaria, tínhamos todo elenco e eu dirigiria. Escrevi um roteiro que era uma loucura, falando só sobre a vida, o amor e a morte. Um assunto bem sucinto. (risos) O filme era um doideira. O Antunes emprestou o figurino todo, porque tinha cenas de época. Tinha uma cena que era o amor morrendo. Filmamos em Paranapiacaba. Lá tem uma nuvem que vem e cobre a cidade e depois ela some. Essa nuvem entrou e era a coisa mais fantástica. Foi uma experiência ótima. Tinha uma cena no futuro, um cara com roupas de banho prateadas. Você não faz ideia. Sabe como montei esse filme? Com durex. Super artesanal. Com o tempo, essa cópia acabou tendo as emendas quebradas. Mandei telecinar e o cara colocou numa velocidade diferente. O que sobrou do filme tenho em DVD. Foi uma experiência que adorei ter. Íamos fazer um segundo, também com um roteiro doido. Tinha muitas seqüências fotográficas no meio. Virava fotografia, como se fosse fotonovela, depois virava filme de novo. É gostoso porque você dá asas à imaginação.
Z – Como conseguiu bancar o filme?
EC – De maneira coletiva, cada um dava um pouco. Escalava os atores que iam gravar em Paranapiacaba, conseguia os lugares pra ficar num amigo, os alimentos eram levados. Era tudo cotizado. Sozinho jamais conseguiria bancar. O filme não tinha nenhuma fala, só tinha música colocada depois. Como diz a Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses: “porque palavras se posso dizer tudo com meus olhos?” O filme foi exibido no Festival do Cineclube Paiol, de onde saiu premiado. A Isa Kopelman ganhou melhor atriz, o Clemente ganhou melhor fotografia, e segundo lugar em melhor filme.
Z – Você diz que o Khouri, com quem fez O Último Êxtase, gostava muito de paparicar as moças, com os atores era assim também?
EC – Não. (risos) O Khouri era um galanteador, um Casanova. Não sei se estava, mas a impressão que dava era a de que estava comendo todas as atrizes. Era muito engraçado. Era único, nunca conheci alguém como ele. Era um lorde inglês fazendo cinema no Brasil (risos).
Z – Ele tinha maior preocupação em dar um direcionamento aos atores?
EC – Pra você ter ideia, houve problemas, a Adriana Prieto saiu do filme. Na hora de escalar o elenco, o Khouri vendeu pra todo mundo o protagonista, e esse papel cabia ao filho dele. Em determinado momento, caiu a ficha: se você vai fazer um filme em que o filho do diretor está no elenco, você certamente não é o protagonista. Mas tudo bem, gostava do meu personagem. Tinha todo um envolvimento com a Lilian – e ela já era o máximo. Começamos a rodar o filme e não tinha a Lilian e nem o Luigi Picchi. Uma semana depois, caiu a ficha para a Adriana, e ela pulou fora. Veio então a Dorothée Marie Bouvyer, que era parecida com ela. Inclusive, em algumas cenas do filme, era Adriana, para não refilmar. Não poderia haver muita preparação se ele já começava te enganando pelo roteiro. O que existia nos filmes dele era imobilidade. E eu sou muito elétrico. Sou acometido por uma energia elétrica, que não consigo ficar relaxado. Os closes eram longos, engessados. Meia hora ajeitando o cabelo, a sobrancelha, pra então rodar. Acho que ele devia me odiar, porque destoava muito. Todos eram meio Bergman e tinha o Ewerton ali no meio (risos). Mas meu personagem não era Bergman. Os personagens deles em geral eram existenciais, o meu era mais ação, mais movimento. Tenho uma cena de trepada com a Lilian, na árvore, que é muito forte. Não aparecemos pelados e é de um erotismo! A Lilian ficou toda vermelha, com hematomas, de tanto que batia com a cabeça na região do peito. O Khouri falava que gostava da minha mão, porque tinha pegada. E lá ia eu mostrar (risos). E pra dublar então? Eu e a Lilian quase morremos de tanto fazer “ãhn, ãhn, ãhn” (risos). A cena é de uma força muito grande.
Z – Como você trabalhou essa relação com a Lilian?
EC – A Lilian era um barato, uma atriz muito generosa. Tivemos uma cumplicidade artística muito grande. Fui muito amigo dela. Sua morte foi trágica. Tínhamos uma sintonia que era impressionante. Fiz Moliére, no teatro, com ela. Era impressionante. A Lilian era intensa no corpo e no rosto era Khouri, sempre foi. Eu não, sou intenso em tudo, por igual (risos). A gente casava bem em cena.
Z – Pouco depois você fez o que seria sua primeira comédia erótica genuína, que é O Poderoso Machão, do Roberto Mauro.
EC – O Poderoso Machão era um roteiro genial. Era. Do Cláudio Cunha. O roteiro era um primor, sabe essas comédias italianas fantásticas? Era sobre um cara com priapismo, que estava sempre excitado, e a cidade ficava excitada também. Tinha uma coisa sensacional, um requinte que faz a comédia, que era um ônibus com velhinhas de binóculos que acompanham meu personagem pra onde ia. Foi a primeira coisa a ser cortada: não fala nada, corta. Caiu tudo. Ficou só a sacanagem. Uma pena. O roteiro era muito bom. Tem uma cena antológica, da Vic Militello, em que ela fazia a prostituta que pedia pra ver. Ele fica com priapismo porque fica sabendo que ganhou na loteria esportiva vendo uma trepada e nunca mais desce. (risos) A Vic pedia pra ver e eu abria o roupão. A cara dela é inacreditável, é muito boa. O Roberto Mauro foi fazer esse filme sem saber fazer cinema. Foi difícil. Não tinha dinheiro pra nada, eu pagava minha passagem pra ir para Capivari filmar. Era uma loucura (risos).
Z – No mesmo ano, você fez A Noite do Desejo, do Fauzi Mansur, contracenando com a Selma Egrei.
EC – A Selma Egrei é maravilhosa, adoro trabalhar com ela. Super generosa. Tem atriz que é muita chata, ela não, ela é um doce, linda. A filmagem foi rapidíssima. Íamos pra o set e rodávamos. Ele me chamou, disse que o filme tinha sido muito cortado na censura, precisava fazer alguma coisa com a história, e o enxerto meu e da Selma era pra suprir um buraco. Topei. Gozado. Nunca perguntei quanto é que vou ganhar. Burro, né? Para mim: “poxa, quero sim. Trabalhar com a Selma? Claro!” Aí os caras falavam: não precisa nem oferecer muito, ele já topou.
Z – Era tranqüilo trabalhar com o Fauzi?
EC – Era muito bom, super tranqüilo, foi ótimo. Só tenho boas lembranças.
Z – Ele dava mais direcionamento para o ator, ensaiava?
EC – O grande problema meu é que, como minha formação é teatral e a gente ensaia muito, sempre acho que no cinema ensaiamos pouco. Aqui no Brasil deveríamos fazer um pouco como se faz lá fora: ficar ensaiando dois meses. Aqui não. Imagina fazer Quem tem Medo de Virginia Wolf? sem ensaio nenhum. É temerário. Você não tem noção da evolução, da curva evolutiva do personagem. Como você vai saber o tom daquele ponto da filmagem, se você não fez o que vem antes e nem o que vem depois? É muito complicado isso. É meio intuitivo. No Brasil, se faz cinema intuitivamente, não de forma técnica, como deveria ser. E é uma loucura. Quando fui fazer meu filme, Viúvas Precisam de Consolo, disse: “vai ser diferente”. E foi a mesma coisa. Não podia reunir elenco. Mas se tivesse o mesmo tempo de filmagem para ensaio, as coisas seriam até mais rápidas. No meu caso, se levasse o elenco para a mansão do Ipiranga, onde filmamos, na hora de gravar, estava pronto. Mas não. Chamávamos o ator para fazer determinado plano. Aquilo ia ligar com outro momento do filme. E daí? Tinha ligação mesmo? Íamos nos pedaços, nem fazíamos a cena inteira. É o único jeito que tem. Tem um filme que fiz dele chamado Ensaio Geral – A Noite das Fêmeas. Esse filme tem um elenco estelar: Antonio Fagundes, Kate Hansen, Dionísio Azevedo, impressionante. Ele só conseguia filmar de madrugada, porque tinha gente que fazia televisão, gente que fazia teatro. Olha que loucura, é coisa de Kafka. Passava uma Kombi pegando a gente nos teatros e íamos para Santo André. Chegava lá, cada um botava a roupa, maquiava e ia dormir nos camarins. Daí alguém chamava: “Ewerton, é sua vez”. Aí você levantava, dava uma ajeitada, ele te posicionava, pedia para olhar para aquela coluna e dizer “Você aqui?” Ok. Rodando. “Você aqui?” “Ok, pode dormir”. Aí você ia dormir. Não sabia onde estava, não sabia o que estava fazendo. (risos) Montar isso foi a maior dificuldade. Outra coisa, se você assistir ao filme, não vai entender. Uma história complicadíssima para você no final descobrir que era, na verdade, uma peça de teatro encenada num teatro. Assisti ao filme e falei “não entendi” (risos). É um daqueles filmes tão encucados que até hoje se reúnem pra discutir (risos). Tinha muito disso. É complicado.
Z – As produções do Fauzi eram, pelo menos, mais requintadas?
EC – A Noite do Desejo não. Fizemos pra terminar o filme, acho que não tinha mais dinheiro. As locações eram todas exteriores, noturnas. Fizemos rapidamente, acho que foram três dias de filmagens. Já A Noite das Fêmeas, você não faz ideia dos cenários construídos no teatro municipal de Santo André especialmente para o filme. O teatro lá é enorme, são três palcos, na verdade, é um só em forma de U. Ele tem cortinas de todos os lados. Você pode montar espetáculo em toda volta. Ele usou tudo cheio de cenários. Trabalhávamos nesses cenários especialmente construídos, o que era raro em cinema, por ser muito mais caro. Tinha um requinte, o que não deu certo foi a montagem.
Z – Em 1975, você fez dois filmes de episódios, Cada um Dá o que Tem, episódio Uma Grande Vocação, do Silvio de Abreu, e Sabendo Usar Não Vai Faltar, episódio Joãozinho, do Francisco Ramalho Jr. Havia diferença no modelo de produção?
EC – O gostoso, em Joãozinho, foi toda uma pesquisa que fizemos para o personagem. Tinha referências, um estudo. É coisa da minha formação teatral, satisfaz minha verve. Adorei fazer. O do Silvio é legal porque o Silvio é um cara ótimo, bom diretor.
Z – Como foi fazer esse seminarista cheio de gags do Uma Grande Vocação?
EC – Acho que foi saindo. Como é tudo muito intuitivo no cinema, não tem esse preparo, você tem a impressão que o papel te dá, você vai para um caminho e vê no que dá. O ator brasileiro trabalha muito assim. Lembrei da minha juventude, da repressão religiosa, e fiz. Sou um ator que trabalha muito fisicamente, é uma das minhas características, gosto de trabalhar com o corpo inteiro, não só algo interiorizado. Acho que é coisa do teatro. O Homem Elefante, que fiz, é muito físico. O Belchior, do Escrava Isaura, também. Isso ajuda muito. Claro que a postura do Homem Elefante ajuda a interiorizá-lo. O próprio Stanislavski chegou a essa conclusão no final da carreira, de que fisicamente você pode construir um personagem. Gosto quando as duas coisas podem ser trabalhadas paralelamente. Nesse filme, trabalho com um baita elenco feminino, e sempre mantive uma relação de trabalho com elas. Sou muito respeitador, talvez pelo lado religioso. Já fui pra cama com tanta mulher. Para você ter idéia da minha postura, vou te citar um exemplo. Em um filme com a Selma Egrei, o diretor disse pra mim e para a Selma: ‘tirem a roupa, deitem na cama, você vai por cima dele, de sapinho.’ Pedi um momento, peguei minha cueca, dobrei, coloquei em cima e consenti com a vinda dela. Você tá entendendo? Não é porque estou fazendo um filme com a mulher que ela tem que encostar a genital aberta de encontro com a minha. Se quisermos fazer isso depois, a gente vai para um motel e faz, mas não durante a filmagem. Todas as atrizes com quem trabalhei tem o maior respeito comigo por conta disso. Não há sentido em se aproveitar da situação. Quem faz isso é uma pessoa tacanha. Não é fácil para a mulher, por mais liberal que seja, é complicado. Você deveria ao menos poder escolher seu parceiro de cama. A relação é essa. Já fui pra cama com um montão de mulheres.
Z – Depois você fez com o Ramalho o longa À Flor da Pele. Esse trabalho foi no modelo de Joãozinho quanto à pesquisa? Leu a peça original?
EC – A peça eu li, mas meu personagem era muito simples. Ele deve ter feito todo esse trabalho com a Denise Bandeira e com o Juca de Oliveira, que eram os protagonistas absolutos. Eu fazia par com minha ex-mulher (com quem tive quatro filhos), Mayara de Castro, que era atriz. A Denise era também um barato, virou roteirista agora também. Tinha uma força.
Z – Você também fez um filme de horror/thriller, de um diretor estreante, que é O Estripador de Mulheres, do Juan Bajon.
EC – O filme é muito pobrezinho, mas acabei gostando do resultado do meu estripador, que é muito louco, mas muito comedido, sutil, a não ser nos momentos de estripar, quando ficava possuído. Pra ser sincero contigo, o Juan Bajon teve muita dificuldade em fazer o filme. Ele não tinha muita experiência, então foi difícil, dei uma boa mão pra ele. Ele era muito inteligente, conhecia tudo de história de cinema.
Z – Você chegou a fazer outro filme com ele, A Noite das Depravadas.
EC – Sim, mas é só uma participação, em que faço um cachorro. Um louco preso dentro de uma jaula que acha que é um cachorro. “Você faz?” “Faço”. Fazia tudo.
Z – Depois você fez dois filmes com o Geraldo Vietri: Adultério por Amor e Sexo, sua única arma.
EC – Os dois com a Selma Egrei. O Sexo, sua única arma era originalmente Parabéns Marta. Esse título horrível que colocaram depois é porque transei com a Selma, eu de padre, ela de ceguinha, atrás do altar de uma igreja santificada.
Z – Como era trabalhar com o Vietri?
EC – Ele era mais requintado. Era um obstinado. Sofreu muito na vida, porque tudo somatiza. Era perfeccionista e todos tinham que ser assim também. Fui fazer um especial de TV com ele, O Homem que Sabia Javanês. De 100 páginas, em 5 capítulos, eu falava 99. Era uma loucura, decorar tudo quilo. Se você mudasse uma palavra, lá vinha ele: “é coautoria? Você mudou a palavra.” De 99 páginas, você muda uma palavra e é coautoria?! Isso era o Vietri. Depois ele se penalizava de ter falado isso pra você, porque você é maravilhoso e não devia escutar essas coisas. Vinha chorando. Logo depois, te dava mais duas patadas. Era muito difícil. Mas me dei bem com ele, porque adorava o que eu fazia. Ele me botou de Castro Alves num especial. Fiz um discurso numa varanda de igreja, e ele chegou depois pra mim: “lamento você não estar na Europa, pois seria o maior ator do mundo. Mas aqui nesta merda de país, você não vai ser nada nunca.” Aí destilava todo seu veneno. Era muito amargurado. Gostava muito desse negócio dele de querer acertar. Tanto que era muito centralizador. Em novela, escrevia, dirigia e editava, sozinho, tudo. Hoje em dia são oito escritores, cinco diretores e uma equipe de edição. Grande artista, mas que errou na pegada.
Z – Foi nessa mesma época que você fez Viúvas Precisam de Consolo.
EC – Minha primeira mulher trabalha no filme como uma noviça e no final só podia fotografá-la da cintura pra cima, porque estava grávida. Já estava quando começou, mas a cada dia crescia mais a barriga. Eram gêmeos, Daniel e Rafael, meus filhos. Na época desse filme, parei tudo: teatro, televisão, outros filmes. Trabalhava 24 horas/dia para fazer Viúvas. Como dá trabalho dirigir um longa! Pra você ter uma idéia, não ensaiei com os atores, mas peguei o Carlão Reichenbach, fui para a locação e fiz toda a decupagem com ele no cenário. E aí ele me disse exatamente de tudo que precisava. Só dessa forma conseguimos fazer em tão pouco tempo, foi tudo muito planejado nos mínimos detalhes. O figurino do filme é requintadíssimo.
Z – Como surgiu o longa?
EC – Tive a idéia pra fazer o filme, escrevi o roteiro e acho que até cheguei a levar para o Galante, mas ele me disse que tinha muita pouca cena de sexo, que a produção era muito cara e que até produziria, mas teria que ser dentro das normas dele. O John Doo entrou como sócio no filme porque tinha câmeras e material de iluminação. O que não tinha, ele alugou. A parte dele era essa. Algumas outras pessoas também se associaram a mim, e foi assim que bancamos tudo. O Carlão foi ótimo, a iluminação ficou linda, a fotografia fantástica. O título original era O Homem que Morreu de Rir ou O Homem que Morreu de… É a história de um cara que, começa o longa, morre e vai pegando a filha com um homem, a amante arrancando a roupa na boate. O Marcos Caruso fazia o agente funerário. Começava o filme com ele colocando o caixão num calhambeque, um fordinho que desmontava. Tudo sem som e em preto-e-branco. Aí entrava as cartelas da ficha técnica e começava o som. O Caruso acabava carregando o caixão nas costas. O velório todo ele não morreu, só queria desmascarar o sócio dele e a mulher. Era uma comédia italiana, não tinha intenção de ser nada erótico. Rodei em 18 dias. Tinha uma mansão, guerra com jipe, explosões, você não faz ideia do que era. Parece que tem um rolo do filme na Cinemateca, e um está azulado. Tenho vontade de um dia investir um dinheiro na recuperação do filme, pra ter. Amigos queridíssimos que já não estão mais aqui. O John Doo conseguiu um distribuidor e exigiu um título erótico. Aí inventei Viúvas Precisam de Consolo, porque aí pelo menos é dúbio. Mas você precisava ver o cartaz: é o Hélio Souto pelado no meio, com todas as atrizes peladas em volta, incluindo a Riva Nimitz. Fiz uma sessão especial para a classe teatral no teatro Anchieta. Caíam da cadeira de tanto rir. Achei que estava feito. Foi para os cinemas: quem queria ver uma comédia bacana, não foi por causa da sacanagem que se vendia; quem foi ver sacanagem, se decepcionou. Foi mal lançado. Se o filme tivesse vivo ainda, se pudesse ter uma cópia dele, gostaria muito de colocar num Canal Brasil, para ser reavaliado.
Z – Você pensou em voltar a dirigir filmes?
EC – Só pensei. Mas aí que tá: você dirigir um filme para ser comandado pelos distribuidores, para ver seu trabalho deformado e depois não conseguir distribuição, é muito complicado. Para fazer um filme, não dá pra fazer nas horas vagas. Quem sabe quando me aposentar e tiver horas vagas, volte a pensa nisso. Mas tenho escrito muitos roteiros, é meu lazer. Essas câmeras digitais têm mudado tudo. Tenho feito uns curtas-metragens só para matar a saudade, de um ex-aluno meu, o Renato Siqueira. Fiz um com ele sobre um seqüestro (Laços Violados), e agora um sobre exorcismo (Diário de um Exorcista). Fizemos uma cena só com uma vela acesa e uma baita fotografia. Só colocou um bafinho de azul em cima e a vela. Incrível.
Z – Depois você fez Os Rapazes da Difícil Vida Fácil, do Miziara.
EC – É esse que não ia ter cena de sexo nenhuma e depois ele veio pedir pelo amor de Deus para eu fazer uma ceninhas no hotel, porque era o único personagem que poderia fazer isso. Caso contrário, o filme ficaria na prateleira e nunca seria exibido. Exigir que o filme precise colocar sacanagem ou nunca será exibido é demais, não? O filme não tem uma cena de sexo. Não tem nada. Só o bordel. Guilherme Correia fazia o prostituto velho que dava conselhos: a gemada. (Risos) “Caracu e Ovo” (Risos).
Z – Como era o Miziara dirigindo?
EC – Normal. Sabe o que quer, não fica em dúvida. Para dirigir, você tem que pelo menos saber posicionar a câmera. Trabalhei com gente assim.
Z – O Ênio Gonçalves conta que quando foi fazer um filme com o Miziara, sua primeira cena era um transa. Ele nem conhecia a atriz e já teve que fazer a cena. Disse que era algo esquisitíssimo. Foi assim também com você?
EC – Com todos os diretores. Comigo também. “Essa aqui vai fazer a mulher que você come agora. Tirem a roupa e vão fazer a cena”. Eu faço: “Muito prazer”. Olha, que horror, era um coisa. (Risos) É dureza.