Reflexos em Película

Por Filipe Chamy

 


Sejamos gratos a quem faz coisas boas, apenas
 

           

Filmes, como a maior parte das artes, podem e devem ser preservados. Então é relativa e consideravelmente fácil termos acesso a coisas antigas, de décadas atrás. 

Essas coisas ficaram, estão eternizadas. Elas são daquele jeito, por inúmeros fatores. Estão necessariamente atreladas ao momento histórico de sua produção, o que não significa que as coisas não pudessem ser diferentes. 

Como assim, diferentes? Explico: se obras artísticas refletem um período específico (aquele em que viveu o artista), os fatores externos à criação são passíveis de mudança, sempre. 

Vou tentar esclarecer mais um pouco. Todos conhecem O grande ditador, uma de tantas obras-primas de Charles Chaplin. Ocorre que poucos percebem o erro que é “ser grato” ao nazi-fascismo por ter gerado trabalhos incríveis assim. As aspas são evidentes: poucos reconheceriam esse sentimento, mas no fundo é o que se considera. Não adentrarei doutrinações morais ou sentimentaloides, meu objetivo (se tenho um) é simplesmente fazer essa ressalva: os males do mundo são ruins ao mundo; a arte não serve para justificá-los, em absoluto. 

Não é preciso ficar penalizado ao se aclamar O grande ditador, longe disso; mas é preciso entender que aquela foi a crítica que Chaplin pôde e se sentiu compelido a fazer em 1940, daquele jeito, com aquela expressão. Caso não tivesse havido esse sistema político (?) e essa violência que Chaplin retrata em seu filme, ora, ele simplesmente faria um filme sobre… outra coisa qualquer. O nazismo não ajudou a Chaplin, não é pertinente considerar genocídios como positivos à arte porque possibilitam o surgimento dessas comunicações de veemente repulsa, por exemplo. Caso não fosse essa uma das tragédias a preocupar o mundo na época (como de resto, parece não ter deixado de preocupar), Chaplin traria outro assunto à luz, com igual ou maior brilhantismo. 

Noite e neblina. Possivelmente uma das mais pungentes ilustrações da “poesia” no cinema, o filme documentário de Alain Resnais retrata vivamente a desgraça da deportação e dos campos de concentração e extermínio durante a Segunda Guerra Mundial. A quem interessa creditar a beleza e inteligência do filme ao caos geopolítico em que o planeta estava imerso? É subestimar a humanidade de um autor como Resnais acreditar que a desgraça lhe vale de alimento, como a um urubu serve de repasto uma carcaça. A arte denuncia aí uma presente forma de opressão, e, portanto, é contra ela e a deseja inexistente ou derrotada. Absurdo imputar-lhe subliminar pecha de aproveitamento “disfarçado” da essência das coisas que combate. 

Estamos acostumados a ver as coisas com essa lógica meio preguiçosa do “resultado”. As coisas são assim porque estão aqui e eu as estou vendo, o produto bruto diante dos meus olhos. Pensar que O grande ditador foi um desafio a Hitler, Noite e neblina, o retrato de uma era negra. Mas e sem esses eventos, onde estariam Chaplin e Resnais em seus ofícios criativos? Parariam de inovar? Não: olhariam para outro lado, teriam outros interesses e trabalhariam outros temas. Assim é o artesanato do cinema, e como a História (e a vida) é instável, não deixa de ser algo previsível (o que pode parecer paradoxal), e então os artistas dos fatos de hoje pensarão nos problemas contemporâneos e os de amanhã terão outras coisas na cabeça. 

Disso tudo fica o mais que óbvio: O grande ditador e Noite e neblina são filmes interessantes porque seus diretores tocam o projeto com a segurança da autoralidade sem imposições, não porque retratam horrores reais e por isso um pouco “louváveis”.