À Flor da Pele

Dossiê Ewerton de Castro

 

À Flor da Pele          
Direção: Francisco Ramalho Jr.
Brasil, 1976. 

Por Filipe Chamy

 

À flor da pele é um filme incômodo. 

Ser “incômodo” não é necessariamente defeito. No caso deste filme, tal qualidade é inclusive positiva: é um filme que incomoda porque acerta o dedo em muitas feridas. 

Não compartilho de certa corrente da crítica que associa a qualidade dos filmes a processos de “identificação” espectador-personagem-temática-etc. Acho que é possível gostar de um filme que discorde de seu posicionamento, de seus credos e até mesmo de suas opções estéticas. É possível, sim, aprovar um filme que você refaria de modo completamente diferente. 

Essa tergiversação serve apenas para o comentário básico: À flor da pele talvez nada diga “imediatamente” ao espectador; a realidade parece outra, situações bem específicas da vida das personagens e conflitos que dizem respeito apenas a um determinado meio, nicho. Mas isso não enfraquece o filme, pois na verdade ele é meio um exemplo, um caso pinçado de um contexto bem mais abrangente. A dissolução moral da média burguesia, o esmorecimento de valores afetivos e a alienação do sistema educacional não foram criados nesta obra e não são próprios apenas das figuras contidas aqui. É um choque quando se constata o quanto somos próximos disso; talvez não eu, talvez não você: mas toda a nossa sociedade, a nossa cultura, aquilo é próximo da gente e entendemos o drama da coisa, percebemos que no fundo (ou talvez nem tão fundo assim) essa é a história da nossa geração, do nosso tempo. É no mínimo meritoso um filme de quase quarenta anos ainda ser tão atual à nossa gente: pois uma das razões do fascínio de Don Quijote não é justamente sua extrema pertinência contemporânea? Não que o filme de Francisco Ramalho Jr. seja tão incrivelmente potente e visionário quanto o magnífico romance de Cervantes, mas será absurdo considerá-los de alguma forma próximos? Pois o caso é que À flor da pele é, como o Quijote, facilmente identificável como “de uma época”, seja pelas roupas das personagens, seja pelos vocábulos empregados por elas (as gírias, as expressões e bordões, a maneira de externar verbalmente seus sentimentos) — e, assim como o Quijote, isso nada significa “mediatamente” (perdemos o imediatismo acima referido), pois os conflitos humanos em essência são os mesmos sempre. 

É engraçado falar de “conflitos humanos” no caso deste filme, pois Shakespeare (e não Cervantes) é uma das chaves — explícitas, aliás — para a compreensão das tragédias cotidianas vividas pelo professor (Juca de Oliveira) e sua aluna (Denise Bandeira). Nosso homenageado Ewerton de Castro é uma das “âncoras de normalidade”, colega da garota, e também é um lembrete de que as coisas funcionam em dois planos: o da nossa cabeça e o do nosso corpo — há os dramas metafísicos e os grandes embates do dia a dia. Por isso ficamos incomodados: À flor da pele é um retrato de nós mesmos.

Adultério por Amor

Dossiê Ewerton de Casto

 

Adultério por Amor
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1978.

Por Ronald Perrone

Ah, o amor… O que uma mulher apaixonada não é capaz? No caso de Natália, cujo marido, Guido, ela ama acima de qualquer coisa, foi preciso tomar atitudes drásticas para conseguir segurá-lo e salvar o casamento. O fato é que Guido é obcecado pela ideia de ter um filho. Após três anos de casamento, tentando realizar seu grande sonho sem obter resultados, o sujeito acaba frustrado, distante, e perde qualquer tipo de sentimento por sua mulher, enquanto os seus melhores amigos, o casal Flora e Paulo, possuem três crianças, para aumentar o desespero de Guido.   

Cada vez mais preocupada com o destino de seu casamento, Natália recorre a exames médicos para obter algumas respostas, já que Guido coloca a culpa nela, e descobre que o problema, na verdade, está em seu marido. A medida drástica acontece numa viagem, acompanhada de Flora, em uma pequena cidade do interior. Decidida a dar um filho a Guido a qualquer custo, Natália seduz um jovem estudante e o leva para a cama. 

E o rapaz foi certeiro! Natália fica grávida e Guido se torna outra pessoa, o homem mais feliz do mundo. O caldo engrossa quando o estudante descobre o paradeiro de Natália, agora grávida de sete meses, e passa a perturbá-la, chantageá-la, até chegar a um ponto em que ela decide tomar uma medida ainda mais extrema. 

O filme fechando com o aniversário de um ano do mais novo membro da família, a imagem da família feliz e perfeita, demonstra como o cinema do veterano Geraldo Vietri frequentemente toca nessa tônica das ambientações familiares para logo em seguida dilacerá-la em procura de maiores esclarecimentos até revelar o podre que se esconde por trás das aparências em segredos inconfessáveis. 

Adultério por Amor é muito simples, que se faz complexo justamente por conta de uma condução crua e elegante, com excelentes diálogos e hipnotizante direção de atores, encabeçados por Luiz Carlos de Moraes (Guido) e, especialmente, Selma Egrei (Natália), carregando o filme sob o seu olhar expressivo, que comunica com precisão o estado de espírito de sua personagem. Mas um dos grandes destaques surge na presença de Ewerton de Castro, que, aos 35 anos, encarna perfeitamente o jovem estudante, construindo um “vilão” real, ambíguo e assustador, aparentemente tímido e inofensivo que se transforma num pesadelo para Natália. 

Egrei e Castro haviam trabalhado juntos em A Noite do Desejo, de Fauzi Mansur, e protagonizam em Adultério por Amor alguns belos momentos, como as cenas em que se desenvolve o relacionamento dos dois, culminando numa sequência de sexo que provoca embrulhos no espectador, embalado pelos enquadramentos diretos – e nunca vulgares – das câmeras do diretor de fotografia Antônio B. Thomé, além da música tema de Caion Gadia. É de arrepiar.

Nessa mesma sintonia, Geraldo Vietri voltaria a se reunir com Egrei e Castro em seu filme derradeiro, Sexo, sua Única Arma, colocando novamente à prova as estruturas de uma instituição familiar e que daria uma bela sessão dupla com Adultério por Amor

 

Ronald Perrone é pesquisador de cinema classe B, colabora com o blog O Dia de Fúria (http://diadafuria.wordpress.com/) e edita o blog Dementia 13 (http://demmentia13.blogspot.com/).

 

Anjo Loiro

Dossiê Ewerton de Castro

Anjo Loiro
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1973. 

Por Vlademir Lazo

 

Anjo Loiro será eternamente identificado como um dos primeiros e provavelmente o grande momento de Vera Fischer no cinema. As gerações mais recentes a conhecem de pouco tempo como a caricatura grotesca na qual se transformou, porém um filme como Anjo Loiro permanece a prova viva do fascínio que a musa provocou por pelo menos duas décadas. O próprio título terminou por se mostrar perfeito com a presença de sua estrela em ascensão, ainda que ele tenha surgido por necessidade: o diretor Alfredo Sternheim pretendia chamá-lo de Anjo Devasso, mais direto e penetrante, mas foi obrigado pela censura a alterá-lo para algo mais ameno, Anjo Loiro, que se mostrou mais apropriado pela ambiguidade que o envolve.   

A intenção era homenagear o título de O Anjo Azul, o clássico de Josef von Sternberg, de quem o diretor brasileiro adapta o romance que o inspirou, escrito por Heinrich Mann no começo do século passado, e que teve pelo mundo várias versões pro cinema. Que ninguém espere um remake nacional do filme alemão; o que Sternheim faz é utilizar o argumento tão universal do livro que o originou como base para transportá-lo ao contexto de sua época e criar um filme diferente dentro dessa realidade. 

Por mais que o núcleo de Anjo Loiro seja a presença vital de Fischer, o argumento existe na condição de dar corpo ao encontro da fêmea fatal e sedutora com o personagem do professor que representa o seu contraponto. Em idade, com uma juventude que sobra na garota, mas falta ao professor, que não a aproveitou enquanto a teve, e que depois de determinado momento tenta resgatá-la, vestindo-se diferente, mudando cara e cabelo na medida do possível e cercando-se da companhia dos amigos da amante mais jovem, com os quais no íntimo jamais se entenderá. Em condição social, com ambos os personagens vindos de habitats diferentes um do outro: o mestre-escola do colégio respeitado onde leciona durante o dia para descansar a noite; e a mulher de hábitos e divertimentos noturnos que não leva vida nenhuma a não ser os flertes e namoros no bar em que freqüenta ou fora dele. 

Mas também representam o extremo oposto um do outro em mentalidade e no conflito de gerações do conservadorismo do mais velho com a juventude da aluna de desejos irrefreáveis. Foi um acerto feliz Anjo Loiro ter sido realizado no começo dos anos 70, quando o mundo ainda vivia as transformações das liberdades de costumes. As consequências emocionalmente violentas que terminam por arruinar Armando (Mário Benvenutti), o professor, mocionalmente violentas que terminam por arruinar Armando, o professor  quando o mundo ainda vivia as transformaç diante da presença diabólica de Laura (Fischer),o anjo loiro cuja dimensão sempre lhe escapa, são apenas questão de tempo. Muitos desses confrontos entre gerações, juventude e velhice, beleza e ruína, ocupavam o centro de alguns dos filmes finais do italiano Luchino Visconti naquela mesma época: Morte em Veneza (1971) e Violência e Paixão (1974), ambos de cunho mais homossexual (ao contrário do de Sternheim). Morte em Veneza, por sinal, também era adaptado de outro romance, publicado cinco anos depois pelo irmão de Heinrich, o ainda mais célebre Thomas Mann. Não seria exagerar considerar a história concebida por Thomas Mann como uma releitura ainda mais alegórica da paixão e queda do professor diante do encontro com uma beleza inacessível e juvenil. 

De completamente seguro de si, fechado em seus hábitos inscritos nos limites de uma vidinha medíocre e confortável, Armando caminha rumo à completa dissolução. Logo ele quem no começo de Anjo Loiro correra ao encontro de Laura para salvar um de seus alunos mais diletos, Mário (Ewerton de Castro), da obsessão pela moça. Curiosa inversão nos papéis: o professor liberta o aluno das garras do anjo belo e sedutor, para terminar ele próprio por cavar a própria perdição. As presenças de cabeludos, malandros e cafajestes (entre os quais um bem jovem Nuno Leal Maia) no circulo de amizade de Laura atestam que a sua história com Armando era uma relação impossível. O professor em sua essência prezava pela humildade, pelo espírito, o intelecto; já a fulgurância de Laura e seus amigos é a do corpo, a da matéria, a da luxúria. “É mais corpo que outra coisa”, justifica a garota, no ápice das visões conflitantes do casal quando do ensaio de Antígona, no qual ela é flagrada nua junto a outros atores pelo professor que se deixara convencer a financiar parte da montagem da peça levando ao fim suas economias pessoais. 

Anjo Loiro não é um drama pesado e cheio de elucubrações, mas trata-se de um trabalho dotado de um senso trágico e fatalista. O professor só será feliz enquanto ainda servir ou não cansar Laura, mas no meio do caminho terá perdido a maioria dos alicerces de sustentação que possuía para levar a vida. A transformação física de Mário Benvenutti é impressionante, ele praticamente incorpora o personagem. O filme de Sternheim só encontra paralelo no cinema brasileiro em relação à histórias de degradação de um homem regrado e ordeiro diante de uma aventura infeliz na obra-prima O Quarto (1968), dirigido por Rubem Biáfora, um dos mestres de Sternheim. Pena a censura ter cortado cerca de quinze minutos da metragem original de Anjo Loiro, crime comparável ao do esquecimento em que o filme caiu anos depois de sua realização, e que dificulta que ele possa ser lançado em DVD numa versão com qualidade de imagem melhor do que as cópias que nos chegam em mãos.

A Noite do Desejo

Dossiê Ewerton de Castro

 

A Noite do Desejo
Direção: Fauzi Mansur
Brasil, 1973.
 

Por Sérgio Andrade 

O histórico de A Noite do Desejo é tão acidentado que daria um outro filme. Inicialmente interditado pela censura, sofreu tantos cortes para ser liberado que o diretor se viu obrigado a criar uma trama paralela à principal. Lançado no final de 1973, ficou três semanas em cartaz até ser novamente interditado, só voltando a ser exibido em agosto de 1981, com o afrouxamento da censura. 

A falta de concessões, o relato duro da realidade do proletariado e das profissionais da noite deve ter ardido demais nos olhos dos censores. 

Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant) são amigos na periferia e trabalham na mesma empresa. Depois de mais de um mês sem comerem ninguém, fazem hora extra no sábado de manhã para juntarem o dinheiro ao mirrado salário afim de tirarem o atraso com alguma puta barata da Boca do Lixo, à noite. 

Na trama paralela criada por Fauzi Mansur, acompanhamos Pedrinho (Ewerton de Castro), rapaz vindo da cidade de Laranjeiras à procura de sua ex-noiva Selma (Selma Egrei), na mesma Boca. A ligação entre as duas histórias se dá numa cena em que os dois amigos encontram a garota num bar e acertam um programa, mas quando ela levanta para chamar uma amiga e eles percebem a barriga de grávida, dão um jeito de cair fora. 

Durante essa noite, Toninho e Giba farão todo possível para satisfazerem seus desejos carnais, enquanto Pedrinho tentará realizar seu desejo mais casto de levar Selma de volta com ele. 

Depois de muito percorrerem os inferninhos da Boca, muitas vezes sendo expulsos por não consumirem nada, os amigos encontram duas garotas dispostas a ficarem com eles, Marcela (Marlene França) e Ivete (Betina Viany), mas levarão horas para conseguirem um hotel, até encontrar um de quinta categoria, de quartos sujos e roupas de cama encardidas. 

Nesse ambiente degradante, os quatro, mais do que sexo, encontrarão motivos para por pra fora seus ressentimentos, recalques, revoltas e decepções, num embate verbal dos mais agressivos, sem rebuços, virulento. 

Pedrinho, por outro lado, terá que enfrentar o cafetão da amada (Pedro Stepanenko), antes que ela decida que rumo tomará na vida. 

A essas duas histórias somam-se mais duas: a do gay (Francisco Curcio) que se interessa por Giba e passa a segui-lo, e da polícia que persegue um ladrão (Caçador Guerreiro), todas convertendo para o gran finale no hotel. 

Dito assim tudo pode parecer caótico demais, confuso, mas surpreendentemente não é o que acontece já que a montagem (a cargo de Inácio Araújo) consegue unir todas as pontas de modo bem claro e relacionando uma trama com a outra (como no caso dos dois violentos enfrentamentos do final). 

Aliás, como observou muito bem o colega de redação Vlademir Lazo em sua crítica na edição dedicada ao Inácio, um dos fatores que tornam o resultado final desse filme tão interessante é a união entre nomes vindos do Cinema Marginal (o citado Inácio, Jairo Ferreira na seleção musical, Ozualdo Candeias na fotografia) com outros da própria Boca (roteiro do Fauzi com Luiz Castellini, outra parte da fotografia de Antonio Meliande). 

Além disso, Fauzi reuniu um elenco soberbo, com todos muito bem em seus papéis – além dos já citados temos também Carlos Bucka (como o seboso porteiro do hotel), Gracinda Fernandes, Walter Portella, José Julio Spiewack e Ary Fernandes. 

Ewerton de Castro, como o ingênuo Pedrinho, na maior parte do tempo só precisa parecer apaixonado por Selma, tendo sua tarefa bastante facilitada por sua colega de cena. Mesmo o maior dos canastrões não teria dificuldade de demonstrar paixão diante da beleza assombrosa de Selma Egrei. 

Muitos comparam A Noite do Desejo com Noite Vazia, do Walter Hugo Khouri, porém talvez se pareça mais com um filme inglês dos anos 60, durante o Free Cinema, dirigido por Karel Reisz, Saturday Night and Sunday Morning (no Brasil, Tudo Começou no Sábado), mas não sabemos se Fauzi o assistiu. 

Seja como for, está mais do que na hora deste filme, que passou por tantos problemas, ser reconhecido como um dos melhores já realizados por aqui.

As Delícias da Vida

Dossiê Ewerton de Castro

As Delícias da Vida
Direção: Maurício Rittner
Brasil, 1973.

Por Edu Jancz

As Delícias da Vida, filme dirigido pelo escritor, jornalista, crítico e professor de cinema,  Maurício Rittner, pega uma carona na pornochanchada, mas tem em seu DNA elementos que  o tornam único de sua espécie.

É um filme dentro do filme. Um filme que focaliza o universo das novelas, mostrando seus bastidores. É importante perceber que em 1973, ano de sua realização, temos uma pequena percepção do poder dessa dramaturgia que lentamente invadia – e invade – lares brasileiros e as vidas de todos nós.

Em seu filme, Maurício Rittner se mostra um analista “sem papas na língua”, vaticinando situações e relações que atualmente – em 2012 – determinam os padrões globais e as relações entre publicidade, dramaturgia e tirania dos donos de emissoras ou seus representantes, como foi o senhor Boni, José Bonifácio de Oliveira – curiosamente badalado pela mídia e jornalistas – como vi em 19/12/2011, no programa Roda Viva, da TV Cultura.

Em As Delícias da Vida, um jovem autor de novelas (Enio Carvalho) sofre observando seu texto ser modificado por um “Cidadão Kane” (Silvio Zilber) influenciado pelo seu patrocinador, o dono da cera Regina. Sua namorada, Eva, a então deliciosa Bete Mendes, faz novelas sonhando com outros palcos. O pai de Eva, interpretado por John Herbert – excelente como um canastrão preocupado somente com a grana e nem aí para a felicidade de sua filha – prepara um casamento encomendado com um nobre alemão, Adolf (Ewerton de Castro).

Numa época em que televisão era feita ao vivo, curtimos deliciosos comerciais interpretados pela jovem Selma Egrei linda e muito “caliente” – mesclado com o comercial muito curioso para a época, e, inclusive, para os dias de hoje, 2012. O comercial, em suas primeiras tomadas, mostra a cidade de São Paulo. O locutor, com voz empostadíssima, diz: “Fuja da poluição da cidade grande”.  Mude-se para o condomínio “x”, a apenas 2.200 quilômetros de São Paulo. Sem dívida, visionário e profético.

Em outro seguimento, As Delícias da Vida abandona a cor e mostra a cidade de São Paulo em 1973, no Viaduto do Chá, com depoimentos do público sobre a televisão.  Não são muito diferentes de entrevistas que vemos em 2012.

Ver As Delícias da Vida é curtir pequenas sequências em que aparecem figuras extremamente emblemáticas do cinema e da televisão. No início de carreira, Eva dança no programa do Chacrinha. Matamos a saudade do Velho Guerreiro e suas meninas. Walter D’Avila faz uma ponta como um pinguço que se comunica por mímica.

Vera Fischer e Perry Sales completam o elenco principal. Ela, belíssima e gostosa, como uma atriz sem caráter que faz de tudo para subir na vida. E Perry, sempre exagerando em seus maneirismos e trejeitos, interpreta um jornalista honesto, mas nem tanto.

A impressão que fica vendo As Delícias da Vida e que seu realizador, Maurício Rittner, tinha muitas ideias críticas e as misturou num mesmo caldeirão.  O prato ficou confuso, sem gosto definido, principalmente para o público-alvo do filme. Resultou num produto híbrido, como outros filhos híbridos que pegaram carona na pornochanchada para poder existir.

Kuarup

Dossiê Ewerton de Castro

 

Kuarup
Direção Ruy Guerra
Brasil, 1989.

Por Ailton Monteiro

Durante os últimos anos da Embrafilme, antes de Fernando Collor extingui-la e levar a produção cinematográfica nacional a zero, os filmes brasileiros do período muitas vezes apelavam para um enorme elenco de globais, de preferência belas mulheres nuas que serviam como um atrativo para a audiência, uma maneira quase desesperada de conseguir repetir o sucesso comercial de anos atrás. Kuarup, de Ruy Guerra, baseado na obra de Antonio Callado, se insere perfeitamente nesse período. Difícil não ver o filme e não se deliciar com a nudez exuberante de Cláudia Raia, Maitê Proença, Fernanda Torres e Cláudia Ohana, em cenas de nudez e sexo com o protagonista vivido por Taumaturgo Ferreira, ou com um índio, caso de Cláudia Raia.

Porém, ainda que esses elementos continuem sendo bastante atraentes, é possível ver Kuarup como uma obra que tem um encanto que vai além da sexualidade. O filme é representativo de um momento especial da democracia brasileira. Ao se passar entre os anos de 1954 e 1964, alternando os dois momentos e mostrando as mudanças passadas pelo Padre Nando (Taumaturgo Ferreira) e pelo próprio país ao longo da narrativa, o filme é também uma espécie de grito de libertação, explicitado no final, quando letreiros falam do período do regime militar e de que só naquele ano, 1989, eleições diretas para Presidente da República estariam ocorrendo.

No início do filme, vemos o padre Nando em crise existencial. A nudez o perturbava, fazia-o se autoflagelar. E que beleza que é a cena em que a personagem de Maitê Proença, uma inglesinha passando por Recife, flagra-o no ato, e, descobrindo o motivo, ri, tira a roupa e faz sexo com o padre. Que naquele momento deve ter finalmente encontrado a graça. A vida de Nando mudaria a partir de então, embora ele demorasse um pouco para se livrar da batina. Mas pelo menos, ele pôde partir para o Xingu sem ter medo da nudez das índias.

 

E por mais que o lugar não seja nada confortável para o homem branco, no momento em que o grupo chega, o Xingu vai se transformando numa espécie de festa, embora essa festa não dure para sempre. E ainda que Nando seja o foco do filme, é Cláudia Raia que, com sua personagem que resolve se despir não só das roupas, mas também dos valores da civilização branca, rouba o filme até mesmo quando está ausente.  

Ewerton de Castro, no papel de Lauro, também marca presença, mas com um elenco daquele porte e com uma galeria de personagens tão rica, o seu, embora muito bem interpretado, se torna muitas vezes esquecido.

O Estripador de Mulheres

Dossiê Ewerton de Castro

O Estripador de Mulheres
Direção Juan Bajon
Brasil, 1978.

Por Edu Jancz

Meu primeiro encontro com o diretor Juan Bajon data de 1984. Eu fazia a coluna Nosso Cinema para a revista Big Man Internacional, e Bajon estava lançando Penetrações Profundas, seu primeiro filme com cenas de sexo explícito.

Não era o primeiro filme de sua longa carreira, iniciada em 1978, exatamente com O Estripador de Mulheres, filme aqui focalizado.  Conforme conta o meu mestre e amigo, Alfredo Sternheim, em seu indispensável Dicionário de Diretores – Cinema da Boca, Bajon ganhou com O Estripador o premio de melhor roteiro do ano, outorgado pela APCA.  Alfredo completa sua informação esclarecendo que Bajon roteirizou e dirigiu mais seis filmes convencionais e passou a filmar obras com sexo explícito, de acordo com a demanda do mercado.

Educadérrimo, gentil, falando com voz baixa, Bajon tinha um press release de sua fita e cartaz que seria afixado nas portas dos cinemas.  Com o qual me presenteou. Em poucos minutos me atendeu e, quando eu estava quase saindo de sua sala, na rua do Triunfo, a conversa resvalou para o cinema em geral. Eu que sempre me considerei um cinéfilo bem informado, pensei: agora estou na minha praia. Surpresa: ficamos mais de quatro horas conversando sobre cinema internacional.  Conversando, dialogando, praticamente não. Bajon passou as quatro horas demonstrando todo o seu conhecimento da sétima arte. Eu, escutando, aprendendo.

Em outras conversas que tivemos, Bajon deixou claro que a sua intenção na Boca era fazer cinema. O explícito – que ele fazia muito bem – veio de uma vontade do mercado. Não era o cinema de sua preferência, nem dos seus sonhos. Era o cinema possível. E Bajon sempre foi, é e será um apaixonado por cinema.

Um apaixonado que no Brasil – era nascido em Shangai, China – teve seu batismo de fogo como assistente de ninguém menos que o crítico dos críticos, Rubem Biáfora, em 1975, no longa A Casa das Tentações.

O Estripador de Mulheres é um suspense com influência do cinema produzido pelo americano Val Lewton. Numa São Paulo com cara de Londres, sem o fog característico, em plena madrugada, uma figura obscura – o excelente Ewerton de Castro – persegue, mata e tira órgãos vitais de várias mulheres.

O caso é investigado por Renato Master, galã popular da época por suas aparições em novelas da antiga e poderosa TV Excelsior.

Juan Bajon e seu roteiro não se preocupam somente com a investigação dos crimes. Quer mostrar o circo eletrônico midiático que se forma em torno de casos tão violentos.  É parte dos moradores do bairro arriscando seu palpite (fazendo suas apostas) sobre quem é o assassino.  A mídia, com tendência sensacionalista – realidade que vivemos ainda hoje, 2012, em alguns casos – quer a qualquer custo ter o “seu estripador” na primeira página.  Bem como os superiores do inspetor que “exigem” apuração “rápida”. Mesmo que o preso não seja o verdadeiro culpado.

Ewerton de Castro tem em O Estripador de Mulheres uma interpretação irretocável. Durante o filme inteiro ele diz apenas uma frase – que em nada define o seu personagem. Sua tara, seus crimes, seu método e motivos ele expressa com o olhar, gestos calculados e uma expressão facial que muda de anjo para demônio em segundos.  O tímido rapaz, gentil atendente de uma farmácia, vira monstro, imobiliza suas vítimas e as mata covardemente.

Na Violência do Sexo

Dossiê Ewerton de Castro

 

Na Violência do Sexo
Direção: Antônio Bonacin Thomé
Brasil, 1978. 

Por Leopoldo Tauffenbach 

Ao longo da minha vida fui testemunha de diversas discussões sobre a suposta falta de qualidade de nossa filmografia verde amarela. Um dos argumentos mais utilizados era o que acusava o cinema brasileiro de explorar, além dos limites do tolerável, a nudez e a violência, fosse ela física ou verbal, e não apresentar mais nada, além disso, ao espectador. Claro que até o cinéfilo mais amador irá concordar que a afirmação acima é rasa e equivocada, mas o mesmo cidadão que insiste em recitar esse credo encheria a boca e arregalaria olhos acusadores diante de um filme como Na Violência do Sexo. E talvez não sem razão. 

A obra dirigida por Antonio Bonacin Thomé começa com um casal de recém-casados chegando ao lar. Antes que o ansioso noivo pudesse livrar-se das calças, uma gangue invade a casa em busca de dinheiro e da oportunidade de inaugurar a noiva antes de seu marido. Mas Bené (Ewerton de Castro), um dos bandidos, recusa-se a participar do estupro e abandona a cena do crime. Vendo que essa vida não o levaria a lugar algum, Bené comunica Carlos, o líder da gangue – interpretado com maestria cafajestica por Clayton Silva –, que não mais participaria de seus golpes para poder viver uma vida correta com sua bela namorada. Vingativo, Carlos não aceita a desfeita e resolve violentar e espancar a parceira de Bené como forma de ensinar-lhe uma lição. Tomado de fúria, Bené, outrora bandido de bom coração, irá agora despejar sua ira impiedosa sobre os ex-comparsas.

Tudo vai muito bem até este momento da narrativa, e o cinéfilo mais atento pode encontrar semelhanças no filme de Thomé com duas outras gemas fundamentais do cinema exploitation mundial: Aniversário Macabro, dirigido por Wes Craven e A Vingança de Jennifer, de Meir Zarchi. Lançado no mesmo ano que Na Violência do Sexo, A Vingança de Jenniferk é talvez o melhor exemplar de rape-revenge já produzido. Impossível dizer quem teria copiado quem, se é que tal especulação cabe aqui, mas a verdade é que tanto “Jennifer” como o filme de Thomé apresentam cenas quase idênticas de violência contra uma mulher, seguidos de um plano de vingança contra os perpetradores. Já o filme de Craven só irá pipocar recordações nas mentes iniciadas nos primeiros minutos de Na Vingança do Sexo principalmente por causa da semelhança física e de papéis entre Clayton Silva e o ator estadunidense David Hess, que interpretou o vilão Krug em Aniversário Macabro. Na verdade, Clayton está muito mais para o papel que Hess interpretaria dois anos depois no filme La Casa Sperduta nel Parco, de Ruggero Deodato.

Entretanto, o problema mais evidente do filme é justamente o roteiro, que acaba se perdendo em sua própria trama e acaba comprometendo o bom andamento do filme. O casal do início do filme vai perdendo espaço para o drama de Bené e passa a aparecer esporadicamente, em cenas que parecem não ter mais conexão com a trama principal. Os policiais que surgem para investigar o paradeiro dos “curradores” – como eles mesmos nomeiam – aparentam estar ali mais para acalmar os ânimos da censura da época do que realmente contribuir com a história. Em um determinado momento, um dos policiais lembra o espectador da eficiência e seriedade da corporação, declarando que eles não desistem nunca se for para solucionar um crime. Mas há de se considerar que no contexto do Brasil de 1978, tal frase pode ter uma conotação muito mais sinistra do que nobre. E por sorte, o filme acaba desenrolando os próprios nós no final, deixando ainda uma mensagem de fundo moralista como era comum em muitas obras da época.

Na Violência do Sexo estaria à altura de inúmeras produções estrangeiras de exploitation, se não fosse pelos deslizes de roteiro que vão se tornando mais evidentes conforme o filme avança. Ewerton de Castro, tímido no início, acaba se mostrando o verdadeiro herói (?) do filme, equilibrando memoravelmente sua personagem com o vilão de Clayton Silva, deixando o espectador com uma estranha sensação de “quero mais”. E o nosso crítico inexperiente, mencionado no início do texto, fica agora mais sem razão ainda. Nosso cinema não explorou sexo e violência mais do que qualquer outro cinema do mundo. Ao contrário, sempre mostrou que é capaz de competir com os grandes. O problema dos críticos do nosso cinema é a falta de referências, até mesmo do cinema estrangeiro que eles parecem jurar defender. E ao menos entre obras de exploitation, Na Violência do Sexo mostra-se digna, e não fica devendo absolutamente nada para ninguém.

 

Leopoldo Tauffenbach é doutorando em Artes e pesquisador de cinema de gênero. Curador e jurado de mostras cinematográficas, atualmente assiste o cineasta Carlos Reichenbach no projeto Sessão do Comodoro, colabora com o blog O Dia da Fúria e vez ou outra edita o blog Cine Demência.

O Jeca e a Freira

Dossiê Ewerton de Castro

O Jeca e a Freira
Direção: Amácio Mazzaropi
Brasil, 1968.
 

Por Daniel Salomão Roque
 

Há algo de mágico no trabalho de Mazzaropi, um encanto que não se explica em termos racionais e que transcende algumas das críticas mais recorrentes à sua obra – muitas delas razoavelmente pertinentes, diga-se de passagem. É verdade que seus filmes são repetitivos e muitas vezes dirigidos com evidente desleixo, mas nada disso parece nos incomodar diante da assombrosa espontaneidade de sua presença nas telas. Mazzaropi nunca foi aquilo que se costuma chamar de “grande ator”, mas suas inquestionáveis limitações jamais constituíram empecilho para que ele se imortalizasse como o arquétipo do caipira ingênuo e representasse tal papel com uma verossimilhança de fazer inveja aos seus colegas mais prestigiados. 

O termo “representação”, aliás, nos soa de certa forma inadequado, pois a impressão que se tem é a de que Mazzaropi simplesmente se deixava filmar da maneira como de fato era na intimidade, e talvez seja essa a força motriz de seu cinema – um cinema que, por detrás de uma aparência tosca, mambembe e descartável, esconde um monstruoso potencial criativo, perceptível no teor peculiar e atemporal de suas fitas. 

Aqui, tais atributos se cristalizam na figura de Sigismundo, agricultor submetido a uma rotina de misérias e privado do convívio com sua caçula Celeste, tomada ainda pequena pelo Coronel Pedro e por ele criada como filha. Jamais tendo cumprido com a promessa de devolvê-la aos pais e tampouco revelado a ela suas verdadeiras origens, o Coronel passa a ter seus planos dificultados quando a garota retorna do colégio interno na companhia de uma freira, que se sensibiliza com o sofrimento do Jeca e se esforça para reconstituir sua família, contando, para tanto, com a preciosa ajuda de Cláudio (Ewerton de Castro), jovem pertencente a uma família rica e abertamente apaixonado por Celeste. 

O Jeca e a Freira se passa em meados do século XIX, mas, exceto pelas roupas dos fazendeiros e a presença de escravos africanos, poderia muito bem transcorrer em 1950, em 1968 ou 2011: Mazzaropi é Mazzaropi em qualquer época, embora seja uma personalidade impensável em qualquer outro lugar que não o Brasil.

O Príncipe

Dossiê Ewerton de Castro

 

O Príncipe
Direção: Ugo Giorgetti
Brasil, 2002.
 

Por Vlademir Lazo

 

O Príncipe é um título que automaticamente remete ao livro clássico de Maquiavel, porém o filme de Ugo Giorgetti poderia muito bem ser chamado de O Estrangeiro. O Príncipe é um filme de retorno. De retorno e memória. Um auto-exilado (Eduardo Tornaghi) que de regresso ao Brasil após mais de vinte anos se desloca por São Paulo e se sente estranho no próprio lugar de onde saiu para o mundo. Tem diversos encontros com personagens de sua juventude, porém mal reconhece a realidade que encara em oposição às suas lembranças do passado. 

Se alguns dos filmes anteriores mais famosos de Giorgetti (Festa, Sábado) ficaram conhecidos como comédias amargas em torno do desajuste de relações humanas e sociais, O Príncipe representou não uma virada completa, mas certa inversão no cinema do realizador: um filme amargo e desencantado com passagens cômicas. No fundo, o cinema dele não mudou, somente avançou em seu retrato de transformação do tempo. Giorgetti só quer filmar o século XXI em seu começo do ponto de vista dos representantes de sua geração, dos que se adaptaram e dos que ficaram para trás, mutilados pelos golpes da vida (o jornalista alcoólatra de cadeira de rodas encarnado por Otávio Augusto), ou o literato que renunciou a tudo para ajudar os pobres (Elias Andreato). Ou então o sobrinho professor (Ricardo Blat) tomado louco que propõe que a História do país deve ser reescrita e reinventada. 

O protagonista, Gustavo (Tornaghi) permanece quase sempre como um fantasma, uma presença rarefeita. Giorgetti mal o desenvolve, parecendo tê-lo concebido, sobretudo, como ponto de partida para a criação dos demais personagens com que vai entrando em contato, alguns dos quais bem melhor esboçados. Certas figuras propiciam atuações bem performáticas de seus intérpretes, como os citados jornalista e professor, ou o “escroque cultural” (como é chamado por outro personagem) Marino Esteves (Ewerton de Castro), que coloca Gustavo a par de muitas das mudanças de um país que intelectualmente viu seus suplementos de cultura substituídos pelas colunas sociais. O Príncipe concebe um comentário ácido pela boca do personagem de Ewerton de Castro das transformações dos espaços e veículos culturais e da própria cultura em si como um nicho comercial a ser largamente explorado hoje em dia, proporcionando e rendendo grandes valores econômicos tendo como fim somente amalhear capital. Não é um discurso crítico e provocador do personagem ou do próprio Giorgetti, somente algumas observações sobre como cultura e erudição costumam ser tratadas atualmente na “renascença” (como o personagem de Ewerton define) cultural que a era da informação em massa e mega-espaços proporcionam. 

Um dos problemas de O Príncipe é que muitas das questões levantadas são feitas mais pela boca dos personagens do que propriamente aplicadas na narrativa sem que os personagens vivenciem de fato situações que nos fizessem ver as tais questões. O filme adquire também uma estrutura quase episódica, com o reencontro do protagonista com cada amigo representando um segmento diferente (raramente os amigos antigos de Gustavo são vistos juntos, como a sugerir que cada um seguiu um rumo separado dos demais). Depois de um certo tempo, a motivação de Gustavo parece ser reencontrar a mulher que amou e deixou de lado para seguir à Europa, mas também ela teve sua trajetória fatalmente reconstruída pelo tempo: de belas pernas socialistas e poeta frustrada, passou pelo esoterismo para depois se tornar uma arrivista de um grupo multinacional (Bruna Lombardi). Ao final, nos fica claro que o protagonista voltara tão somente para testemunhar um funeral em torno das idéias de seu tempo, do projeto de uma geração que mudou, da constatação de um fracasso total e necessidade de adaptação aos novos tempos. Nesse sentido, o grande personagem depois de Gustavo é o de seu sobrinho internado, cuja presença permanece estranhamente incômoda durante todo o filme. Sem ele e sem a mulher por quem fora apaixonado, não resta a Gustavo outro sentimento se não o de que já não pertence mais ao tempo e nem ao lugar para onde regressa.