Dossiê Ewerton de Castro
À Flor da Pele
Direção: Francisco Ramalho Jr.
Brasil, 1976.
Por Filipe Chamy
À flor da pele é um filme incômodo.
Ser “incômodo” não é necessariamente defeito. No caso deste filme, tal qualidade é inclusive positiva: é um filme que incomoda porque acerta o dedo em muitas feridas.
Não compartilho de certa corrente da crítica que associa a qualidade dos filmes a processos de “identificação” espectador-personagem-temática-etc. Acho que é possível gostar de um filme que discorde de seu posicionamento, de seus credos e até mesmo de suas opções estéticas. É possível, sim, aprovar um filme que você refaria de modo completamente diferente.
Essa tergiversação serve apenas para o comentário básico: À flor da pele talvez nada diga “imediatamente” ao espectador; a realidade parece outra, situações bem específicas da vida das personagens e conflitos que dizem respeito apenas a um determinado meio, nicho. Mas isso não enfraquece o filme, pois na verdade ele é meio um exemplo, um caso pinçado de um contexto bem mais abrangente. A dissolução moral da média burguesia, o esmorecimento de valores afetivos e a alienação do sistema educacional não foram criados nesta obra e não são próprios apenas das figuras contidas aqui. É um choque quando se constata o quanto somos próximos disso; talvez não eu, talvez não você: mas toda a nossa sociedade, a nossa cultura, aquilo é próximo da gente e entendemos o drama da coisa, percebemos que no fundo (ou talvez nem tão fundo assim) essa é a história da nossa geração, do nosso tempo. É no mínimo meritoso um filme de quase quarenta anos ainda ser tão atual à nossa gente: pois uma das razões do fascínio de Don Quijote não é justamente sua extrema pertinência contemporânea? Não que o filme de Francisco Ramalho Jr. seja tão incrivelmente potente e visionário quanto o magnífico romance de Cervantes, mas será absurdo considerá-los de alguma forma próximos? Pois o caso é que À flor da pele é, como o Quijote, facilmente identificável como “de uma época”, seja pelas roupas das personagens, seja pelos vocábulos empregados por elas (as gírias, as expressões e bordões, a maneira de externar verbalmente seus sentimentos) — e, assim como o Quijote, isso nada significa “mediatamente” (perdemos o imediatismo acima referido), pois os conflitos humanos em essência são os mesmos sempre.
É engraçado falar de “conflitos humanos” no caso deste filme, pois Shakespeare (e não Cervantes) é uma das chaves — explícitas, aliás — para a compreensão das tragédias cotidianas vividas pelo professor (Juca de Oliveira) e sua aluna (Denise Bandeira). Nosso homenageado Ewerton de Castro é uma das “âncoras de normalidade”, colega da garota, e também é um lembrete de que as coisas funcionam em dois planos: o da nossa cabeça e o do nosso corpo — há os dramas metafísicos e os grandes embates do dia a dia. Por isso ficamos incomodados: À flor da pele é um retrato de nós mesmos.