Ô Abre Alas

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

Por Adilson Marcelino

Se o Brasil no imaginário popular, inclusive para além-fronteiras, sempre foi o país do samba, do futebol, do carnaval e da bunda da mulher brasileira, não é de se surpreender que esses cartões de visitas fossem abordados por diferentes áreas artísticas. E como aqui o assunto é cinema, é necessário dizer, antes de entrar no objeto do nosso especial, que o futebol, por exemplo, não encontrou nas telas a mesma paixão que cerca o esporte nos estádios, nas peladas dos campinhos, nas torcidas, na TV e no radinho de pilha. Isso, claro, a não ser o Canal 100, que enchia as telas dos cinemas de rua e sobreviveu na retina e na memória dos amantes do cinema. Ainda assim a associação cinema e futebol rendeu muitos frutos, e o livro Fome de Bola (2006), de Luiz Zanin Oricchio, pela Coleção Aplauso, está aí para não nos deixar mentir. Mas daí dizer que ela tenha rendido uma produção contínua e imediatamente radiografada pelo valor afetivo, pode não ser muito verdade.

Já com o samba e o carnaval são outros quinhentos. Afora alguns momentos sazonais, como no auge da época da discoteque de meados dos anos 1970, por exemplo, a música brasileira quase sempre teve valor fincado in loco para as diferentes gerações, principalmente se pensarmos da Era do Rádio para cá. Não importa o gênero, o ritmo ou estilo, pode ser samba-canção, bossa nova, iê iê iê, tropicalismo, canção popular, BRock, pagode, axé, rap ou funk. Cada qual encontra seu nicho de público com muito mais facilidade que o cinema brasileiro no geral. Porém, quando se dá a associação entre um e outro, a coisa pode funcionar. Foi assim nos anos 30, 40 e 50. E tem sido assim na atual redescoberta do cinema pela nossa música.

E nessa história de cinema e carnaval então, aí que a história rende. Ainda que tenha havido momentos antes, foi na Cinédia, estúdio que Adhemar Gonzaga fundou nos anos 30, que o carnaval encontrou geografia inicial perfeita. Não à toa estava localizado no Rio de Janeiro, até hoje palco clássico do carnaval tradicional – ainda que, atualmente, travestido de pirotecnias técnicas e estéticas; e não é toa que foi lá que Carmen Miranda, nossa estrela internacional, estreou nas telas no clássico A Voz do Carnaval (1933), de Gonzaga e Humberto Mauro. Outros títulos clássicos do estúdio nessa seara são Alô, Alô Brasil (1935), de Wallace Downey, João de Barro e Alberto Ribeiro, e Alô, Alô Carnaval (1936), de Adhemar Gonzaga.

Se a Cinédia fez história, e dali cunhou-se, inclusive, o gênero “musicarnavalesco”, o carnaval vai encontrar guarida ainda mais generosa, claro que novamente em solo carioca, mas dessa vez nas chanchadas da Atlântida, nos anos 40 e 50. Inúmeros cantores e compositores apresentavam suas marchinhas e sucessos de carnaval em filmes dirigidos por mestres como José Carlos Burle, Watson Macedo, J.B. Tanko e Eurídes Ramos. Para ficarmos só em um exemplo, Carnaval Atlântida (1952), de José Carlos Burle, é filme emblemático do gênero e clássico absoluto da história do cinema brasileiro.

O carnaval continuou despertando interesse em diferentes momentos do nosso cinema, e em cineastas de diferentes linhagens. Nomes ligados tanto ao Cinema Novo quanto o Cinema Marginal beberam nessa fonte, como também o cinema popular do anos 70 e diretores de outros países – como o francês Marcel Camus com Orfeu Negro (1959), conhecido também como Orfeu do Carnaval.

Aqui, nesse especial O Carnaval no Cinema, elencamos oito títulos marcantes que tem a festa popular como mote central ou funcionando mesmo como cama para que a trama se desenrole. Dai há desde o citado Carnaval Atlântida (1952) até uma leitura conjunta de duas faces do Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, pelas lentes do francês Marcel Camus e do brasileiro Carlos Diegues – Orfeu Negro (1959) e Orfeu (1999). Há também dos anos 50, Aviso Aos Navegantes (1950), e dos 60, Carnaval Barra Limpa (1967), dirigidos, respectivamente, pelos mestres Watson Macedo e J. B. Tanko.

Cacá Diegues aparece mais uma vez com Quando o Carnaval Chegar (1972), e também dos anos 70, Reginaldo Faria fala de machismo e independência da mulher com O Flagrante (1975). E por fim temos um dos momentos mais luminosos dessa junção cinema e carnaval, pela lente libertária de Walter Lima Jr, no fascinante A Lira do Delírio (1973/8 – foto).

A Lira do Delírio

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

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A Lira do Delírio
Direção: Walter Lima Jr.
Brasil, 1978.

Por Gabriel Carneiro

A Lira do Delírio é muito possivelmente o filme mais emblemático do cineasta Walter Lima Jr., que nunca se prendeu a gêneros ou estilos, mas tem seu lugar reservado na história do cinema nacional por saber acompanhar as tendências vanguardistas de nossa produção – ainda que a qualidade dos longas seja um tanto irregular, vide o seu fraquíssimo último filme, Os Desafinados. Em A Lira do Delírio, Lima Jr. busca uma espécie de cinema-colagem, muito autêntico, embebido pelo clima do carnaval fluminense.

ALira3-300x227No longa, parte-se do carnaval, do bloco ‘A lira do delírio’, de Niterói, para uma estranha aventura que envolve um homem ciumento tentando controlar sua amante, financiando, entre outros, o envolvimento dela no tráfico e o sequestro de seu bebê. Influenciado muito mais pelo chamado Cinema Marginal, do que pelo Cinema Novo, ao qual é geralmente vinculado pelo seus dois primeiros filmes – Menino do Engenho e Brasil Ano 2000 -, A Lira do Delírio é uma ode ao deboche em suas diversas instâncias – os próprios personagens se referem um ao outro pelo nome do ator, por exemplo -, e ao sonho delirante, das múltiplas possibilidades de leitura de um acontecimento. Pereio, sempre desconcertante, dá corpo a um repórter policial apaixonado pela ‘taxi girl’ Ness Eliott (Anecy Rocha). Seu habitual fazer a si mesmo nos filmes, cai como uma luva nesse longa de Walter Lima, ao unir o deboche ao lunático equivocado.

O título do longa não podia ser mais apropriado: se o conteúdo varia entre o delírio do sonho e o delírio da realidade – trabalhando essas duas vertentes muito habilmente, a ponto de não sabermos se o filme é uma fábula ou uma história verista -, a forma é puramente poética, lírica, em que Lima se permite o tão almejado respiro da câmera, em cenas sem funcionalidade narrativa, mas de beleza extrema – como quando Pereio começa a datilografar e a câmera dele se afasta -, ou associações muito explanativas no desenrolar da história – às vezes mesmo da História, a tal com ‘h’ maiúscula. Nesse último caso, o mais preemente é a questão da tortura. Em tempo de ditadura militar, a tortura é meramente sugerida no campo visual, mesmo que o personagem preso – um criminoso comum – apanhe um bocado. A conotação mais forte vem pelo uso sábio do áudio: Lima opta por deixar o áudio da tortura enquanto vemos a cena do crime ao qual é acusado – sem que esteja envolvido. É uma cena muito mais forte e eloquente, do que se tivéssemos visto a tortura (sabendo antes ou depois o que realmente ocorreu).

O carnaval, ponto de partida para o longa, não podia ser mais acertado: festa pagã, sinômino de alegria e comemoração, é também ponto do ilusionismo, da fantasia, do se pensar aALira1 partir de outro, de se libertar de amarras. Se serve para Walter Lima Jr. se soltar do Cinema Novo enquanto estética e discurso – A Lira do Delírio foge completamente da temática social do miserável e do trabalhador -, e abarcar a marginalidade, o decadente, o Rio de Janeiro da noite – em especial o Rio da Lapa -, serve também para que seus personagens passeiem livremente para fazerem de conta, em tom de farsa e absurdo. A escolha de uma colagem de gêneros, que flutuam entre a comédia, o drama e o policial, permitem maior liberdade à película, lançada após a trágica morte de Anecy Rocha, mulher de Walter Lima, irmã caçula de Glauber, que caíra, em 1977, aos 34 anos, no fosso do elevador do prédio onde morava. O filme não deixou (a) de ser, portanto, um belíssimo tributo a essa promissora intérprete, refletindo tão bem as escolhas dela enquanto atriz.

Carnaval Atlântida

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

 

Carnaval Atlântida
Direção: José Carlos Burle
Brasil, 1952

Por Matheus Trunk

A companhia cinematográfica Atlântida iniciou suas atividades em 1941. A ideia original dos fundadores da empresa era produzir longas-metragens com pretensões artísticas, tendo como principal influência o Neo-Realismo italiano. Mas essa ideia acabou não vingando. Com o tempo, ficou provado que somente os filmes carnavalescos tinham um público cativo.

Médico de formação, o pernambucano José Carlos Burle foi um dos grandes diretores do período. Buscou diversas vezes o filme social (Moleque Tião) e mesmo os dramalhões nos moldes da Vera Cruz (Maior Que o Ódio). Mas fez escola com as chanchadas, que eram perseguidas pela crítica da época.

Paródia a Hollywood, Carnaval Atlântida é um dos mais divertidos longas-metragens de todos os tempos. O produtor Cecílio B. de Milho (Renato Restier) quer realizar uma fita sobre Helena de Tróia no Rio de Janeiro. Para isso, ele contrata o professor Xenofontes (Oscarito), um profundo conhecedor da mitologia grega. Ao mesmo tempo, dois empregados do estúdio (Grande Othelo e Colé Santana) querem transformar tudo numa chanchada.

Com o tempo, todos os personagens da trama veem a impossibilidade de realizar um trabalho igual aos americanos. Por isso, o antes sisudo professor de assuntos da Grécia Antiga e o produtor americanófilo acabam caindo no samba.

Um aspecto que precisa ser destacado neste longa-metragem são os números musicais. Nomes sagrados da nossa música popular como Blecaute, Caco Velho, Nora Ney e Dick Farney cantam seus respectivos sucessos. Esse desfile de artistas não afeta o ritmo do filme.

Trabalho bastante autoral de Burle, este filme não é uma chanchada comum. Isso pode ser visto de várias maneiras. O nome do produtor Cecílio B. de Milho é claramente uma gozação com Cecil B. de Mille, realizador norte-americano reconhecido por trabalhos marcantes como Os Dez Mandamentos e Sansão e Dalila.

Passados quase 60 anos da realização desta fita, podemos dizer que Carnaval Atlântida é sem dúvida uma paródia atemporal. Resistiu muito bem ao tempo e seu recado continua valendo. Muitos produtores e cineastas brasileiros continuam sendo grandes Cecílios B. de Milho. Não pensam numa estética popular e brasileira. Querem somente imitar modelos estrangeiros.

Aviso aos Navegantes

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

Aviso aos Navegantes
Direção: Watson Macedo
Brasil, 1950

Por Heitor Augusto

Não faço parte do grupo que adjetiva de cult uma produção capenga que hoje é defendida porque o verniz do tempo deu um trato nas aparências. Fora os filmes de Carlos Manga, encontrar chanchadas cinematograficamente destacáveis continua sendo a exceção, não a regra, missão que exige esforço de quem não participou, in loco, da comoção de ver o imponente logo da Atlântida surgir, dentro de uma sala de cinema dos anos 40, nos créditos iniciais de um filme.

Aviso aos Navegantes, por exemplo, é de um diretor que consolidou uma das formas da chanchada, a carnavalesca, recheada de números musicais com os artistas populares à época. O que o tempo diz desse filme de Watson Macedo? Como enxergar uma produção que não se importa de maquiar a clara intenção de ser mais uma peça na engrenagem que movia os sucessos radiofônicos?

Os mais velhos provavelmente vão encontrar uma ponta de saudade com o gênero, o rol de hits do carnaval e um desfile interminável de estrelas, especialmente a deslumbrante Eliana e o charmoso Ivon Cury. Dirão também, suponho, que Aviso aos Navegantes é descompromissado, só queria fazer rir, “que mal há nisso?”.

É pouca pretensão para um filme. Aliás, a defesa do “só quer fazer rir” persiste até hoje. Parece até que estamos falando de Muita Calma Nessa Hora que levou quase 1,5 milhão de pessoas ao cinema em 2010, ano de Tropa de Elite. Mas, voltando à chanchada, o filme de Watson satisfaz a curiosidade de saber como se faziam sucessos de bilheteria no Brasil. Qual é a linha de evolução (ou involução) do “cinema popular brasileiro”? Como saíamos de Nhô Anastácio Chegou de Viagem e chegamos a De Pernas Pro Ar?

Carnaval nordestino

Aviso aos Navegantes começa tirando o fôlego e jogando o público para cima: já nos créditos, o frevo/baião Tomara que Chova, de Paquito e Romeu Gentil. Pronto, terreno estabelecido e, sem dar um respiro, desce Eliana, a maior estrela da chanchada, descoberta pelo tio Watson, metida numa fantasia à Carmem Miranda, entoando mais um baião, Bate o Bumbo, Sinfrônio, de Humberto Teixeira.

Registro histórico: é curioso observar que uma chanchada carnavalesca de 1950 se rendia não mais ao samba, mas à invasão do baião promovida pelos parceiros Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, eminentes cantor e compositor, respectivamente, do gênero que povoou as rádios na década de 1940 e comecinho dos anos 50. Como um filme que seguia o que o rádio tocava, Aviso aos Navegantes põe o samba em segundo plano.

Acaba o número musical de Eliana. Anselmo Duarte bate palmas e conversa com Sergio de Oliveira sobre o quão bom é o baião que acabamos de assistir. A prosa dura 20 segundos e corta, vamos para o próximo número musical, agora com Oscarito vestido de bebê na marcha Neném, de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas.

Watson repete a estrutura o filme inteiro: canções amarradas por um fiapo de enredo. O mocinho Anselmo Duarte deve salvar a mocinha Eliana do malvado vilão José Lewgoy, Oscarito fica responsável pelas traquinagens, usando de escada seu grande parceiro de comédia, Grande Othelo. Elenco estrelar a justificar a presença de rainhas e reis do rádio, como Emilinha Borba, Ivon Cury, Cuquita Carballo e o conjunto 4 Ases e 1 Curinga.

Watson x Manga

Assim como assistir a De Pernas Pro Ar é sentir saudades de Se Eu Fosse Você, rever Aviso aos Navegantes praticamente dá o status de obra-prima da comédia a Nem Sansão, Nem Dalila (1955).

Watson Macedo e Carlos Manga eram realizadores versáteis que entraram no cinema pelas portas do fundo. A diferença entre os filmes do primeiro em relação ao seu sucessor dentro da Atlântida é que Manga tinha mais respeito pelo cinema e sensibilidade para inserir críticas sociais no humor. Com ele, a chanchada chega ao seu melhor momento cinematográfico e assume a condição terceiro mundista e satiriza nossa posição cultural colonizada.

Ambos comandaram produções que, colocadas em perspectiva histórica, permitem matutar sobre os filmes de hoje que almejam serem populares. Temos realizadores mais próximos do estilo vale-tudo pelos números musicais de Watson ou da comédia bem cuidada e elaborada de Manga. A chave, hoje, não é implodir os dois, mas proporcionar a sobrevivência de quem está à margem disso. Faz-se cinema, faz-se dinheiro e, sempre que possível, derruba-se essa dicotomia. Porque se a nossa cinematografia dependesse só de filmes como Aviso aos Navegantes – ou, fazendo a ponte histórica com as devidas ressalvas, de Muita Calma Nessa Hora –, estaríamos mergulhados num vergonhoso limbo.

Às vezes, o tempo e o culto das novas gerações a filmes deficientes, como os de Ed Wood, conseguem reposicioná-los, criando outras portas de diálogo – por exemplo, as sessões/evento de The Rocky Horror Picture Show. No caso de Aviso aos Navegantes, o tempo não foi um bom amigo.

 

Heitor Augusto é repórter e crítico de cinema. Atualmente, colabora com o Cineclick, no qual faz cobertura dos principais festivais no Brasil, escreve sobre os lançamentos do circuito e mantém a coluna mensal Clássico do DVD. Mantém, desde 2008, o blog Urso de Lata. Colaborou para a Agência Carta Maior e Revista de CINEMA.”

Carnaval Barra Limpa

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

Carnaval Barra Limpa
Direção: J.B. Tanko
Brasil, 1967.

Por Sérgio Andrade

Que o iugoslavo Josip Brogoslaw Tanko foi um grande diretor ninguém mais duvida hoje em dia. Seja nas chanchadas que fez para a Herbert Richers nos anos 50, nas adaptações de Nelson Rodrigues (Asfalto Selvagem, 1964, e Engraçadinha Depois dos 30, 1966), nos filmes dos Trapalhões e no drama erótico As Borboletas Também Amam (1979), ele sempre demonstrou um talento mais que especial.

Mas isso não significa que nunca tenha errado.

Não foi boa idéia, por exemplo, retornar à chanchada carnavalesca em 1967, quando o Cinema Novo ainda dava as cartas, uma nova geração (Candeias, Sganzerla, Bressane, etc.) começava a expressar suas inquietações em película e outras eram as preocupações mundiais.

Na trama, a chegada da Princesa Iraya (brincadeira com a Princesa Soraya do Irã), figura proeminente do jet set internacional, ao Rio de Janeiro para passar o carnaval, trazendo no pescoço o maior diamante já encontrado, provoca a cobiça do Sindicato Nacional dos Ladrões, que se reúne para discutir como roubar a jóia. Mas eles terão a concorrência do Sindicato Internacional dos Ladrões. Há uma tentativa, das mais frouxas, de sátira ao produto brasileiro contra o estrangeiro. Um detalhe: a princesa (interpretada por Geórgia Quental) e alguns dos ladrões estrangeiros falam um português sem o menor sinal de sotaque.

O trabalho dos dois sindicatos, porém, não será fácil, pois terão pela frente o detetive do hotel (Costinha, abusando dos trejeitos e caretas).

Entremeando tudo isso, gente ótima como Ângela Maria, Emilinha, Marlene, Dircinha Baptista, Clara Nunes, Altemar Dutra e até Chacrinha em números musicais pouco memoráveis.

Não vou dizer que tudo é descartável, da para se aproveitar algumas coisas, como a beleza refrescante da jovem Rossana Ghessa, a música de Remo Usai, a fotografia e câmera do craque Dib Lutfi, a participação de dois atores que até hoje nos encantam, Ary Fontoura e Emiliano Queiroz, e alguns criativos lances da direção de J. B. Tanko.

Mas é a repetição de uma fórmula que, na época em que foi feito, já estava mais do que desgastada.

O Flagrante

Dossiê Carnaval no Cinema Brasileiro

O Flagrante
Direção: Reginaldo Faria
Brasil, 1975

Por William Alves

Luís Sérgio, Tavico, Paulão, Marquinhos e Leopoldo são cinco amigos quase quarentões, que saem para o Carnaval carioca com o único intento de chutar o balde o mais longe possível. São todos casados, alguns com filhos, mas isso nunca foi problema. Os cinco incorporam aquele tipo de comportamento voluntariamente alienado que, casualmente, traz más notícias posteriormente. Afinal, como diz Tavico logo no começo: “Agora eu vou aproveitar o Carnavaaaaaaaaaal”.

O Carnaval é um sucesso. Porém, uma caixa de fósforos personalizada de motel, encontrada na bolsa da esposa de Paulão pelo próprio, acaba por tornar ainda mais insuportável a ressaca de todos os cinco aventureiros. Paulão tira logo a conclusão de que está sendo impiedosamente chifrado, e seus amigos armam um esquema intrincado para flagrar a esposa do amigo em pleno adultério.

Como a ação transcorre entre homens, a conclusão óbvia – de que eles são os adúlteros em primeiro lugar e que não deveriam estar muito surpresos quando uma das mulheres resolve também freqüentar outra cama – fica meio obscurecida.

A vinheta de um sambinha acelerado permeia todo o filme, mesmo depois dos festejos de Carnaval, o que prova intenção do diretor (Reginaldo Faria, que também interpreta Paulão) de correlacionar o adultério como uma extensão dos feitos estúpidos que os indivíduos cometem nos feriados prolongados. Não importa muito que a tal caixa de fósforos tenha sido encontrada antes das festas: pela televisão, Marlene vê Paulão se esbaldando nos braços de mulatas mais desinibidas.

Grande Otelo faz uma aparição, como o funcionário que revela para os amigos de Paulão que a sua esposa é uma “grande piranha”. A cena de Tavico (interpretado por Antonio Pedro) e Otelo se embebedando no metrô é o ápice desse O Flagrante, que se sustenta num híbrido confuso de comédia festeira com um drama piegas que pretende discussões mais “adultas”, como o perdão conjugal. É sintomático, pois, que as cenas de bebedeira e niilismo sejam as melhores do longa.

Quando o Carnaval Chegar

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

Quando o Carnaval Chegar
Direção: Carlos Diegues
Brasil, 1972

Por Vlademir Lazo

Quarto longa-metragem de Carlos Diegues, Quando o Carnaval Chegar sofre o contexto de sua época, ao mesmo tempo em que é nítido o esforço do realizador em não torná-lo restrito e datado ao período em que foi concebido. Impossível não contextualizá-lo nos tempos difíceis do governo Médici, os anos de chumbo pós-AI5, dos muitos exílios e repressões, além de um oba-oba proveniente de um falso milagre econômico. O filme de Diegues é resultado de todo esse panorama, percebe-se na tela tanto uma euforia por bons tempos que podem estar por chegar ou que os personagens já vivenciam (ou tudo não será nostalgia por um tempo anterior que não volta mais?) quanto as desilusões e a dureza de uma fase difícil. É a tradução de sua época, um momento específico e historicamente importante (ainda que ingrato, mas não desprovido de sua beleza) expresso na narrativa do começo ao fim.

Era também a primeira tentativa de Carlos Diegues em se aproximar de um público verdadeiramente maior. Consagrado por parte da crítica nacional e tendo merecido analises e entrevistas na Cahiers du Cinèma, os primeiros longas do diretor nos anos sessenta eram por vezes demasiados herméticos e alegóricos (e verdade seja dita, são os que mais envelheceram com o tempo dentre os representantes do Cinema Novo brasileiro). O próprio Diegues no final daquela década havia dito em entrevista na Cahiers que o Cinema Novo morrera. Quando o Carnaval Chegar é então o seu filme seguinte, o de retorno do exílio europeu e reencontro com a pátria naquelas condições em que agora a encontrara.

Foi também uma das primeiras oportunidades em que um diretor de sua geração experimentara o filme musical, esse gênero hollywoodiano por excelência, mas tão universal. No auge do Cinema Novo houve Garota de Ipanema (1967), de Leon Hirszman e com a nata da música brasileira da época, mas de resultados inexpressivos e logo esquecido. E, antes, houve a chanchada, é claro, que não propriamente pertencia ao gênero, mas onde se inseriam números musicais com os artistas da época, uma oportunidade do grande público em conhecer de perto os cantores que faziam sucesso na era do rádio. Não seria absurdo pensar em Quando o Carnaval Chegar como um encontro entre duas filiações cinematográficas tão distintas como o Cinema Novo e a Chanchada, sem que nenhum lado pese tanto na balança. Há uma graça e leveza que remonta às produções da Atlântida (embora sem o humor tão característico) e é possível enxergar conotações políticas no filme de Diegues, embora estas não sejam tão acentuadas, e passado tanto tempo, já não interessem mais.

Quando o Carnaval Chegar é igualmente um encontro com alguns dos grandes cantores de sua época e um presente de Diegues para sua mulher, Nara Leão, que o acompanhara no exílio. Mas o filme será eternamente identificado a Chico Buarque de Hollanda, que compôs as canções da trilha sonora, incluindo a célebre faixa-título, que se sobrepõe à própria película no imaginário do público (também se encontram no filme grandes composições de Lamartine Babo, Braguinha, Joubert de Carvalho, Assis Valente, Nássara, Tom e Vinícius, etc.). Nara, Chico e Maria Bethânia são Mimi, Paulo e Rosa, um trio com todos com menos de trinta anos, que fazem parte de uma trupe de cantores de rádio que se apresentam pelo Brasil afora num ônibus multicolorido e fazendo a festa onde quer que estejam.

Mas há paixões, intrigas, dúvidas, discussões, incertezas, e ciúmes. Os personagens refletem os artistas que os interpretam. Paulo é o ídolo popular e estrela do grupo, a principal referência pela qual a trupe é conhecida. Rosa é a mais brincalhona e a que se diverte com tudo e todos. Mimi representa o contraponto à alegria expressa pelo filme, que joga toda sensação de desamparo para cima da personagem de Nara Leão. Completam o grupo o empresário Lourival (Hugo Carvana), e o motorista Cuíca (Antonio Pitanga), tocador do instrumento nas rodas de samba no morro de origem, sempre a espera de uma oportunidade no show. Destaque ainda para a parte do elenco que compõem o que seria os vilões de Quando o Carnaval Chegar: Elke Maravilha, como uma espectadora francesa que se envolve e ilude o personagem de Antonio Pitanga, além de José Lewgoy, de grande poder no mundo dos espetáculos, e seu capanga interpretado por Wilson Grey ─ os dois últimos citados, monstros sagrados da chanchada, o que remete ainda mais aos áureos tempos das produções da Atlântida.

Trata-se de uma turma que batalha e sonha, sofre e se decepciona, sempre no aguardo de alguma grande chance (tanto no trabalho quanto no dia-a-dia e no amor), em meio as suas alegrias e canções, e à expectativa de quando o carnaval chegar. Ainda que conte com certa ingenuidade eternamente ligada a quase todas as tentativas do cinema brasileiro em ser mais comercial, o filme de Carlos Diegues consegue um belo resultado ao utilizar a metáfora simples e nada nova (mas aqui tratada com grande competência) da vida associada ao carnaval. O próprio cineasta buscava se encontrar e achar novos rumos em sua carreira. Após o fracasso do seu filme seguinte, o infeliz e ambicioso Joanna Francesa (1973) ─ estrelado por Jeanne Moreau ─ adotou de vez as leis mercadológicas do cinema brasileiro, sempre tentando se firmar como indústria. Entre acertos e erros ao longo de toda sua filmografia, chegaria ao final daquela década com seu trabalho mais aclamado, Bye Bye Brasil (1979), novamente com trilha de Chico Buarque, e no qual é impossível não lembrar de Quando o Carnaval Chegar, novamente com os personagens como uma grande trupe reunida num ônibus pelo país afora, num argumento melhor desenvolvido e com resultados mais bem-sucedidos.

Orfeu Negro – Orfeu

Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro

 

Orfeu Negro
Direção: Marcel Camus
Brasil/França, 1959

Orfeu
Direção: Carlos Diegues
Brasil, 1999

Por Nísio Teixeira

Duas fantasias para uma mesma cidade e personagem: Orfeu, de Camus e de Cacá.

(Aviso aos leitores: este texto conta algumas coisinhas do final dos filmes…)

40 anos separam duas produções cinematográficas inspiradas na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, trabalho que inaugura a parceria do Poetinha com Antônio Carlos Jobim. A primeira é Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus. A outra é Orfeu (1999), de Cacá Diegues. O que as duas têm em comum é a fantasia cinematográfica com a qual revestem o período do carnaval no Rio de Janeiro, mas cada uma representa uma escola diferente.

Camus não quer nem saber: Carnaval no Rio é samba no pé geral. Todo mundo samba, as pessoas nas ruas, na balsa que chega à cidade, na feira, os funcionários da repartição pública (com direito inclusive a um rápido amasso de Cartola e Dona Zica). O filme atende rapidamente a todo um imaginário exótico já, àquela altura, consolidado cinematograficamente ao Rio de Janeiro. Alô Amigos, de Walt Disney, por exemplo, já abria alas para que passasse o carro alegórico do exótico Brazil for gringo. E ele enfim, passa mesmo, literalmente, com o bonde conduzido por Orfeu, que reforça uma cidade em que os rituais momescos pulam e pululam sem perdão. É um Rio mais fantasioso (afinal, é Carnaval). É um Rio feliz.

Diegues agrega outras preocupações mais contemporâneas: tem uma ala (ou uma aula?) pra incluir a discussão da violência do morro, outra pra falar da influência da televisão, da religiosidade, outra pra falar do tráfico e, enfim, tem até a história de Orfeu. Assistir ao Orfeu de 1999 nos dias de hoje, pós-Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007-2010), é sentir um rascunho, uma espécie de laboratório do que viria a ser a abordagem do cinema sobre o tema da favela e do morro cariocas dali pra frente – inclusive porque alguns dos profissionais envolvidos nos filmes posteriores estavam envolvidos na produção de Cacá. É uma fantasia sobre um Rio tenso, dividido.

Talvez por isso mesmo, o filme se resolva melhor na sequência do desfile (o que, ironicamente, o reaproxima da televisão que, aliás, apesar da crítica do filme é quem faz a redenção dos personagens) e no momento em que o Orfeu de Diegues (Toni Garrido) desce ao precipício infernal (de novo ironicamente, pois ele desce no mesmo ponto do alto do morro em que cai o Orfeu de Camus, Breno Mello). Esses dois momentos se destacam porque aí a miscelânea que se tornou a história (Cacá e mais quatro roteiristas assinam o longa) encontra pontos de convergência interessantes na música conjugada às belas plásticas visuais de Afonso Beato. São oásis em meio à imbricada rede de historietas que compõem a trama, fragmentadas ainda mais pelas escancaradas inserções de marketing habituais: a empresa aérea, Caetano Veloso, a empresa telefônica, a empresa petrolífera etc e tal.

Assim, entre a fantasia “realista” de Cacá para Orfeu e o exótico de Camus, este último é, sem dúvida, mais divertido. A fantasia lhe cabe melhor, exatamente, talvez, pelo estereótipo excessivo, mas que revela um Carnaval mais risonho e franco, e também porque deixa a música de Tom & Vinicius fluir e refluir com mais generosidade. Há contornos nitidamente não naturalistas nos diálogos de Camus, mas que se chocam com as cenas pululantes do samba e do Carnaval carioca, gerando um paradoxo estranho, mas que agrada com o passar do tempo. Vale dizer também que Camus não aposta na redenção de Orfeu e Eurídice e não a espera voltar do vale dos mortos para colocar os dois juntos sambando na avenida (como faz Cacá) apesar da vigilância dos amigos mirins, mas também da Morte fantasiada de misterioso homem-esqueleto. A morte sempre mirou Eurídice e quis fazê-lo bem de perto, ao contrário da morte na versão de Cacá, que fantasiada de Super-Homem não sabe (e não sabe mesmo) se pega Orfeu, se pega Eurídice… fica diluída como a própria versão de 1999.

Eu diria até que o filme de Camus ganha tons kafkanianos em pleno Carnaval depois que Orfeu passa por um inferno travestido no terminal dos bondes. Afinal, Orfeu carrega a culpa pela morte de Eurídice e, gradativamente, deixa o Carnaval pra trás, para galgar por escadas e edifícios soturnos em busca de sua musa. Uma das sequências, outro ingrediente típico que não poderia deixar de faltar no prato exótico de Camus, a macumba, é, de novo incorporada ao pacote, mas é, de longe, uma saída bem mais fiel para a última aparição de Eurídice que no confuso jogo de espelhos do filme de Cacá. Em Camus, Orfeu perde Eurídice no candomblé. Em Cacá, Eurídice encontra-se num culto evangélico antes de descer ao inferno por conta de uma bala que ricocheteia, mas tudo é testemunhado por He-Man que por isso tem a língua cortada pelo tráfico e aí a polícia sobe o morro pra vingar o traficante, afilhado do capitão, morto por Orfeu…

Ou seja, entre dois sambas do crioulo, ops, Orfeu, doido que são os filmes retratados pelos diretores, o nativo de Cacá, engolido pelos excessos, fica mais perdido no inferno carnavalesco carioca do que o estereótipo excessivo e exótico de Camus.

 

 Nísio Teixeira é jornalista, professor da UFMG e intregante do revista Filmes Polvo

Adultério Por Amor

Dossiê Geraldo Vietri

Adultério Por Amor
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1978.

Por Adilson Marcelino

Selma Egrei é, sem dúvida, uma das musas mais importantes do cinema popular brasileiro. E das mais lindas. O cinema dos anos 1970 foi fenomenal para a carreira dessa atriz nascida em São Paulo, em 1949. Se a graduação foi na consagrada Escola de Arte Dramática da USP, parece que foi nas telas do cinema que a atriz se diplomou de fato – ainda sem esquecer seus trabalhos no teatro e na televisão.

Nesses mesmos anos 70, ela foi dirigida por um verdadeiro quem é quem do cinema brasileiro, e brilhou nas telas sob a batuta de feras como Fauzi Mansur, Rubem Biáfora, Walter Hugo Khouri, Cláudio Cunha, Sylvio Back, Antonio Calmon, José Miziara e John Doo.

E é dessa época seu encontro com o cineasta e novelista Geraldo Vietri, que renderia dois filmes: Adultério por Amor(1978); e o segundo na década seguinte, Sexo, Sua Única Arma (1981). Mas foi esse primeiro encontro dos dois nas telas, Adultério por Amor, o melhor momento da parceria.

Em Adultério por Amor, Selma Egrei é mais uma vez a protagonista. No filme ela é Natália, a jovem esposa de Guido, vivido por Luiz Carlos de Morais. O casal tinha tudo para ser feliz, mas o casamento está naufragando porque há três anos que espera um filho que nunca vem. A angústia fica ainda maior com a convivência com o casal de amigos formado por Jorge, Paulo Figueiredo, e Flora, Jussara Freire, que vive cercado de seus ruidosos filhos.

Guido coloca a culpa em Natália, e cada dia fica mais distante e sem paciência com a rotina do casal. Receosa de que o casamento acabe, ela faz um exame e descobre que o marido é estéril. Sem coragem de contar para ele, Natália toma o caminho mais arriscado ao conhecer um jovem em uma cidade do interior mineiro, para onde vai em companhia da amiga Flora para passar uns dias de descanso.

O jovem estudante é Gustavo, interpretado por Ewerton de Castro. Aparentemente tímido e indefeso, ele se deixa seduzir por ela, que abandona a cidade no dia seguinte. Natália consegue finalmente ficar grávida, e sua vida com Guido vira um mar de rosas. Até que, inesperadamente, Gustavo aparece, declara sua paternidade do menino que estar para nascer, e passa a chantagear Natália sem parar.

Adultério por Amor reúne mais uma vez Selma Egrei e Ewerton de Castro, que já estiveram juntos em A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur, e que voltariam a se encontrar sob a direção de Geraldo Vietri em Sexo, Sua Única Arma (1981).

Como em Sexo, Sua Única Arma, que realizaria depois, aqui Vietri mira seu foco para o quanto as famílias, sobretudo de classe média, podem esconder debaixo do tapete. O que importa é a ordem, mas um olhar mais minucioso percebe que ela é só aparente, pois por trás de tudo se alojam segredos inconfessáveis.

Vietri acerta ao mirar seu foco aí, no que está à mostra socialmente, e nas forças ocultas que regem os subterrãneos do mostrado. Esse tema está no centro da ação tanto aqui como em Sexo, Sua Única Arma, e também ainda de forma mais direta no admirável Os Imorais, em que o estado cínico e de hipocrisia da estrutura clássica familiar é colocado em cena de forma avassaladora.

Filme de interesse sempre crescente, Adultério por Amor é prova cabal do quanto Geraldo Vietri dirigia bem seus atores – não a toa sempre gostava de trabalhar com um elenco fixo. Vietri demonstra elegância na direção, nesse filme produzido por Cassiano Esteves. Para isso contou com a boa presença do elenco e também com a montagem do mestre Sylvio Renoldi e a fotografia de Antonio B. Thomé.

Como sempre fez em suas novelas na televisão, aqui Vietri também tem presença total na feitura do filme, assinando além da direção, o argumento, o roteiro e a cenografia. Destaque também para a música de Caion Gadia.

Os Imorais

Dossiê Geraldo Vietri

Os Imorais
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1979

Por Andrea Ormond

Há quem defenda que a boa crítica de cinema deve levar em consideração o tempo e as condições em que são feitos os filmes, muito mais do que sua técnica e virtuosismo. Por este olhar, uma obra como Os Imorais (1979), de Geraldo Vietri, parece grande, ambiciosa, embora nada guarde de esteticamente interessante, ficando muito próxima a um teledrama em 35 mm.

Mas Vietri, homem identificado com a TV, não queria de fato alcançar nenhuma originalidade como diretor, senão a de contar uma bela história. Condiciona o espectador de tal forma que quase acreditamos em sua armadilha, para no fim sucumbirmos a um êxtase surpreendente.

Isto porque, à primeira vista, Os Imorais ilustra chavões e moralismos correntes. O pobre cabeleireiro gay, Gustavo (Paulo Castelli), é imagem de solidão, desamparo, de uma desgraça frágil em que se mete por conta de um amor platônico. O rico Mário (João Francisco Garcia), por sua vez, é o retrato do mimo e da segurança, adequado a um esquema social hipócrita em que mãe e pai vivem casamento de fachada, dividindo um palacete.

Que o pai seja bissexual e a mãe consolo do motorista, pouco importa. Ricos, ganham sempre. E Mário ainda se apaixona pela dondoca Glória (Sandra Bréa), socialite em quem pode dar o golpe do baú e multiplicar fortuna e conforto. No meio disso, Gustavo é a ponte entre o flerte do casal, já que Glória freqüenta o mesmo cabeleireiro da mãe de Mário.

Tudo daria certo, Gustavo ganharia algumas gorjetas, não fosse sua paixão discreta e avassaladora pelo playboy. Atrai Mário para sua casa com a promessa de um encontro com Glória, mas ela não está lá. É aniversário de Gustavo e não há nenhum convidado, só o inquieto Mário, à espera de alguém que nem sabe que foi convidada.

Se o leitor quiser passar mal de vergonha alheia, se quiser entender o que é um adágio constrangedor, não precisa sentir na própria pele a experiência: ela está ali, na seqüência infernal de Os Imorais, encenada no apartamento de Gustavo durante a celebração sem convidados, através dos olhares impacientes do constrangido Mário, que termina por ir embora, deixando o outro sozinho, cantando parabéns rodeado por bichos de pelúcia e uma falsa alegria que parece prenúncio de suicídio.

Da janela do apartamento de Gustavo descortina-se a São Paulo dos anos 70, personagem incidental e massacrante, o verdadeiro leitmotiv da trama. E não se enganem buscando nisso qualquer lirismo ou nobreza: a metrópole setentista surge má, dura e perversa aos olhos do diretor-roteirista, notoriamente um apaixonado por seu torrão natal.

Ninguém naquele microcosmo se gosta. Ninguém se ajuda. A “imoralidade”, antes de qualquer coisa, é um hedonismo impune, e os urbanóides de trinta anos atrás assemelham-se bastante aos do pós-apocalipse de 2010, nesta escalada de egoísmo histérico que vivemos.

Para piorar, há o Minhocão. Sim, o Elevado Costa e Silva, que passa pela janela de Gustavo dia e noite, mortificando de gás carbônico o que por si só já parece desolador. A intervenção urbana desastrada, a sexualidade cindida e a sociopatia coletiva não estão ali à toa. Formam um mosaico da análise sociológica de um hospício sem esperanças.

Toda a farsa, todo o panorama de anedota tragicômica, porém sucumbe em uma redenção: Gustavo e Mário se aproximam, trocam confidências, marcam programas. Em uma dessas saídas, Gustavo conhece Rosa (Aldine Müller) e se apaixona por ela. Fazem planos e vendem quadros na Praça da República. Pretendem casar e mudar, de preferência para longe do Minhocão. Gustavo não é mais ele mesmo. É outro que desconhecia.

E Mário, enciumado do amigo, ignorante e confuso sobre si, trai tudo aquilo que havia dito antes e mergulha na infelicidade, no desespero. As certezas e o preconceito homofóbico desabam e oferece o mundo para que Gustavo fique com ele. Assim, consolida-se um enredo mirabolante, que prometia comédia cafajeste e termina em sinistro drama de costumes, como já apontei no texto escrito em fevereiro de 2006.

Dissolvida a falsa certeza, o falso catecismo, até o título ganha sentido oculto. É irônico, antes de simplista. Afinal, quem são “os imorais”? Onde termina a convicção e começa a hipocrisia, o recalque, o arranjo? Quando a homossexualidade ainda era praticada na calada da noite e o Brasil julgava-a sobre aparato de estereótipos, “Os Imorais” não quis carnaval nem bichas pintosas. Amor expiado, gritado e debatido sem medos é seu grande mérito. Um espetáculo, até hoje, corajoso e impressionante.