História: Senhora em Close-Up

Dossiê Geraldo Vietri

 
Por Adilson Marcelino
 

Editada pelo notável Minami Keizi, a Cinema em Close-Up, que circulou em meados dos anos 1970 (75/77), foi, e é, verdadeira bíblia do cinema popular, sobretudo da Boca do Lixo. Atualmente disputadíssima por pesquisadores, a publicação faz radiografia generosa do cinema brasileiro feito na época, abrindo espaço para todo tipo de produção, seja dos nomes ligados ao Cinema Novo e ao Cinema Marginal, mas reservando lugar especial para os personagens do cinema popular em matérias, reportagens, perfis, fotos e coberturas de filmagens.

Abaixo, uma matéria sobre Senhora, oitavo filme dirigido por Geraldo Vietri. Superprodução para a época bancada por Cassiano Esteves – veterano e importante produtor de filmes fundamentais como A Mulher que Inventou o Amor (1980), de Jean Garret, e parceiro de Vietri em vários filmes – e pelo próprio cineasta, Senhora tem no elenco Elaine Cistina, Paulo Figueiredo, Annamaria Dias, Flávio Galvão, Elisabeth Hartmann, Etty Fraser, e grande elenco – o filme está resenhado nesta edição.

Por erro de diagramação da revista, a segunda parte da matéria tem como pano de fundo bela foto de cena do filme com os protagonistas Elaine Cristina e Paulo Figueiredo, mas que impossibilita a leitura – veja foto que ilustra esta página. Mas dá para ver pela brechas que, na matéria, seria citado Shakespeare e seu Othelo, e outras questões sobre a realização da produção.

Com vocês então parte dessa matéria histórica:

SENHORA

José de Alencar

Filmou-se Senhora, de José de Alencar. Filmou-se porque é preciso fixar no cinema (a exemplo da televisão) uma tradição da Literatura Brasileira. E nada melhor do que José de Alencar, um grande poeta da língua pátria, para termos um ponto de partida na escalada às grandes realizações. A História da Ficção em nossa terra muito deve ao romancista cearense, não só pelo retrato que nos apresenta de tantos ângulos do chão nacional, de seu povo, suas idéias, mas também pela imposição de uma língua brasileira, de um estilo brasileiro, intransferível, personalizado.

Tratou-se o empreendimento (Senhora no Cinema) de arrojo muito grande, considerando a super-produção que o romance exigia. Desenrola-se a história numa época de muitos requintes (1870), em que tudo teve de ser reconstituído, desde cenários até pequenos objetos de cena, para se retratar fielmente aqueles dias do império brasileiro.

Para ter-se idéia do trabalho e valor desta produção, foram confeccionados especialmente para o filme cento e dois trajes femininos e oitenta e sete masculinos. No que se refere a cenografia, o trabalho foi ainda mais insano; desde a pesquisa até a reconstrução de salas, trechos de ruas, carruagens, etc., aconteceram meses e muitos milhões rodando. Orçado inicialmente em oitocentos mil cruzeiros, Cassiano Esteves e Geraldo Vietri acabaram dispendendo quase um milhão, dos novos. Mas valeu a pena, pois o resultado obtido nivela-se perfeitamente e em alguns casos supera o gabarito de um Independência ou Morte, de um São Bernardo, A Moreninha, A Mestiça, etc.

Apenas seguidores e não precursores, a intenção de Vietri e de Cassiano é a de “engrossar a corrente” de fitas com possibilidade de serem exibidas (e respeitadas quando vistas) em outros países. O Histórico é, constatado artisticamente, um dos poucos gêneros do Cinema Brasileiro com público certo lá fora. O estrangeiro sabe que o Brasil existe, quer conhecê-lo, à sua gente. Sabe também o estrangeiro que para se conhecer um núcleo social é necessário antes de tudo o conhecimento de suas raízes. Não é diferente com o brasileiro. Conhecendo-lhe o cerne, é fácil entendê-lo. E nada melhor do que José de Alencar para iniciar (ou prosseguir) tal trajetória até o auto-conhecimento. Foi quase obrigação escolhê-lo para o projeto, ele e o seu mais apaixonante trabalho: Senhora.

É a história da môça pobre que perde o namorado para outra um pouco melhor situada financeiramente. A primeira recebe uma herança e enriquece, depois comprando o homem que a abandonou. Não sabe quem é sua compradora, mas vende-se assim mesmo. Encontram-se apenas na cerimônia de casamento. Casam-se. Ela não aceita a consumação carnal, imposta pela união. Já premeditara isso também. E daí em diante vivem tempos negros, de frustrações e dissentimentos, sem que haja meios de se desligarem legalmente.

Como vêm, nada de sexo, sujo ou limpo. Apenas uma análise de um aspecto da psicologia humana, a ambição. Como Sha…

(a matéria prossegue, mas ilegível, na segunda página, que é essa que ilustra acima).

Depoimento: Paulo Figueiredo

Dossiê Geraldo Vietri


Por Paulo Figueiredo

Vejo com muita simpatia essa iniciativa.

Poucos profissionais do nosso meio artístico são tão merecedores de uma homenagem quanto Geraldo Vietri.

Evidente que a geração atual desconhece esse homem. Mas qualquer ator que tenha feito televisão no período compreendido entre o final dos anos 1950 e final dos 70 sabe de quem estamos falando.

Entre as principais telenovelas daquela época, as que ajudaram a definir a cara da televisão brasileira, as obras que efetivamente consolidaram o sucesso do talento brasileiro, também no exterior, constam, por exemplo, Antonio Maria, Nino, o italianinho, A Fabrica, Vitoria Bonelli, para mencionar só algumas.

São legítimas obras de autor, uma vez que eram escritas e dirigidas por ele, Vietri. O que brotava de sua mente genial ia para o papel e daí para o vídeo sem sofrer distorções, interferências alheias, sem se afetar por palpites. O acerto ou o erro tinham sua grife. E rarissimamente havia erro.

De aparência enganosamente frágil, ele comandava atores e técnicos com voz forte e coração aberto à todas as emoções. Nunca mais conheci alguém com o talento e a coragem desse homem magro, de olhar penetrante, critico ácido da mediocridade onde quer que ela se apresentasse.

Derramava lágrimas sobre o teclado da velha Remington, enquanto escrevia a cena; derramava mais lágrimas na suíte, enquanto dirigia a cena, e despejava ainda mais lágrimas quando assistia a cena pronta.

Sua matéria-prima era gente. Gente boa, gente ruim, gente burra, inteligente, capaz de grandezas e de safadezas. Entre dezoito e vinte horas diárias de trabalho, divididas para pensar, escrever, dirigir e usufruir como o mais simples dos espectadores. Um dos mais completos contadores de historias que conheci. Foi o tipo de sujeito que, se tivesse tido poder para isso, mudaria o mundo com sua máquina de escrever.

Pessoas assim não morrem; ficam encantadas, como diria Guimarães Rosa.

Paulo Figueiredo é um dos atores da “família Vietri”. Atuou em várias novelas, como Nino, O Italianinho, A Fábrica, Vitória Bonelli, Meu Rico Português, e nos filmes Diabólicos Herdeiros, Senhora, Que Estranha Forma de Amar, Tiradentes – O Mártir da Independência e Adultério Por Amor.

Adultério Por Amor

Dossiê Geraldo Vietri

Adultério Por Amor
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1978.

Por Adilson Marcelino

Selma Egrei é, sem dúvida, uma das musas mais importantes do cinema popular brasileiro. E das mais lindas. O cinema dos anos 1970 foi fenomenal para a carreira dessa atriz nascida em São Paulo, em 1949. Se a graduação foi na consagrada Escola de Arte Dramática da USP, parece que foi nas telas do cinema que a atriz se diplomou de fato – ainda sem esquecer seus trabalhos no teatro e na televisão.

Nesses mesmos anos 70, ela foi dirigida por um verdadeiro quem é quem do cinema brasileiro, e brilhou nas telas sob a batuta de feras como Fauzi Mansur, Rubem Biáfora, Walter Hugo Khouri, Cláudio Cunha, Sylvio Back, Antonio Calmon, José Miziara e John Doo.

E é dessa época seu encontro com o cineasta e novelista Geraldo Vietri, que renderia dois filmes: Adultério por Amor(1978); e o segundo na década seguinte, Sexo, Sua Única Arma (1981). Mas foi esse primeiro encontro dos dois nas telas, Adultério por Amor, o melhor momento da parceria.

Em Adultério por Amor, Selma Egrei é mais uma vez a protagonista. No filme ela é Natália, a jovem esposa de Guido, vivido por Luiz Carlos de Morais. O casal tinha tudo para ser feliz, mas o casamento está naufragando porque há três anos que espera um filho que nunca vem. A angústia fica ainda maior com a convivência com o casal de amigos formado por Jorge, Paulo Figueiredo, e Flora, Jussara Freire, que vive cercado de seus ruidosos filhos.

Guido coloca a culpa em Natália, e cada dia fica mais distante e sem paciência com a rotina do casal. Receosa de que o casamento acabe, ela faz um exame e descobre que o marido é estéril. Sem coragem de contar para ele, Natália toma o caminho mais arriscado ao conhecer um jovem em uma cidade do interior mineiro, para onde vai em companhia da amiga Flora para passar uns dias de descanso.

O jovem estudante é Gustavo, interpretado por Ewerton de Castro. Aparentemente tímido e indefeso, ele se deixa seduzir por ela, que abandona a cidade no dia seguinte. Natália consegue finalmente ficar grávida, e sua vida com Guido vira um mar de rosas. Até que, inesperadamente, Gustavo aparece, declara sua paternidade do menino que estar para nascer, e passa a chantagear Natália sem parar.

Adultério por Amor reúne mais uma vez Selma Egrei e Ewerton de Castro, que já estiveram juntos em A Noite do Desejo (1973), de Fauzi Mansur, e que voltariam a se encontrar sob a direção de Geraldo Vietri em Sexo, Sua Única Arma (1981).

Como em Sexo, Sua Única Arma, que realizaria depois, aqui Vietri mira seu foco para o quanto as famílias, sobretudo de classe média, podem esconder debaixo do tapete. O que importa é a ordem, mas um olhar mais minucioso percebe que ela é só aparente, pois por trás de tudo se alojam segredos inconfessáveis.

Vietri acerta ao mirar seu foco aí, no que está à mostra socialmente, e nas forças ocultas que regem os subterrãneos do mostrado. Esse tema está no centro da ação tanto aqui como em Sexo, Sua Única Arma, e também ainda de forma mais direta no admirável Os Imorais, em que o estado cínico e de hipocrisia da estrutura clássica familiar é colocado em cena de forma avassaladora.

Filme de interesse sempre crescente, Adultério por Amor é prova cabal do quanto Geraldo Vietri dirigia bem seus atores – não a toa sempre gostava de trabalhar com um elenco fixo. Vietri demonstra elegância na direção, nesse filme produzido por Cassiano Esteves. Para isso contou com a boa presença do elenco e também com a montagem do mestre Sylvio Renoldi e a fotografia de Antonio B. Thomé.

Como sempre fez em suas novelas na televisão, aqui Vietri também tem presença total na feitura do filme, assinando além da direção, o argumento, o roteiro e a cenografia. Destaque também para a música de Caion Gadia.

Os Imorais

Dossiê Geraldo Vietri

Os Imorais
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1979

Por Andrea Ormond

Há quem defenda que a boa crítica de cinema deve levar em consideração o tempo e as condições em que são feitos os filmes, muito mais do que sua técnica e virtuosismo. Por este olhar, uma obra como Os Imorais (1979), de Geraldo Vietri, parece grande, ambiciosa, embora nada guarde de esteticamente interessante, ficando muito próxima a um teledrama em 35 mm.

Mas Vietri, homem identificado com a TV, não queria de fato alcançar nenhuma originalidade como diretor, senão a de contar uma bela história. Condiciona o espectador de tal forma que quase acreditamos em sua armadilha, para no fim sucumbirmos a um êxtase surpreendente.

Isto porque, à primeira vista, Os Imorais ilustra chavões e moralismos correntes. O pobre cabeleireiro gay, Gustavo (Paulo Castelli), é imagem de solidão, desamparo, de uma desgraça frágil em que se mete por conta de um amor platônico. O rico Mário (João Francisco Garcia), por sua vez, é o retrato do mimo e da segurança, adequado a um esquema social hipócrita em que mãe e pai vivem casamento de fachada, dividindo um palacete.

Que o pai seja bissexual e a mãe consolo do motorista, pouco importa. Ricos, ganham sempre. E Mário ainda se apaixona pela dondoca Glória (Sandra Bréa), socialite em quem pode dar o golpe do baú e multiplicar fortuna e conforto. No meio disso, Gustavo é a ponte entre o flerte do casal, já que Glória freqüenta o mesmo cabeleireiro da mãe de Mário.

Tudo daria certo, Gustavo ganharia algumas gorjetas, não fosse sua paixão discreta e avassaladora pelo playboy. Atrai Mário para sua casa com a promessa de um encontro com Glória, mas ela não está lá. É aniversário de Gustavo e não há nenhum convidado, só o inquieto Mário, à espera de alguém que nem sabe que foi convidada.

Se o leitor quiser passar mal de vergonha alheia, se quiser entender o que é um adágio constrangedor, não precisa sentir na própria pele a experiência: ela está ali, na seqüência infernal de Os Imorais, encenada no apartamento de Gustavo durante a celebração sem convidados, através dos olhares impacientes do constrangido Mário, que termina por ir embora, deixando o outro sozinho, cantando parabéns rodeado por bichos de pelúcia e uma falsa alegria que parece prenúncio de suicídio.

Da janela do apartamento de Gustavo descortina-se a São Paulo dos anos 70, personagem incidental e massacrante, o verdadeiro leitmotiv da trama. E não se enganem buscando nisso qualquer lirismo ou nobreza: a metrópole setentista surge má, dura e perversa aos olhos do diretor-roteirista, notoriamente um apaixonado por seu torrão natal.

Ninguém naquele microcosmo se gosta. Ninguém se ajuda. A “imoralidade”, antes de qualquer coisa, é um hedonismo impune, e os urbanóides de trinta anos atrás assemelham-se bastante aos do pós-apocalipse de 2010, nesta escalada de egoísmo histérico que vivemos.

Para piorar, há o Minhocão. Sim, o Elevado Costa e Silva, que passa pela janela de Gustavo dia e noite, mortificando de gás carbônico o que por si só já parece desolador. A intervenção urbana desastrada, a sexualidade cindida e a sociopatia coletiva não estão ali à toa. Formam um mosaico da análise sociológica de um hospício sem esperanças.

Toda a farsa, todo o panorama de anedota tragicômica, porém sucumbe em uma redenção: Gustavo e Mário se aproximam, trocam confidências, marcam programas. Em uma dessas saídas, Gustavo conhece Rosa (Aldine Müller) e se apaixona por ela. Fazem planos e vendem quadros na Praça da República. Pretendem casar e mudar, de preferência para longe do Minhocão. Gustavo não é mais ele mesmo. É outro que desconhecia.

E Mário, enciumado do amigo, ignorante e confuso sobre si, trai tudo aquilo que havia dito antes e mergulha na infelicidade, no desespero. As certezas e o preconceito homofóbico desabam e oferece o mundo para que Gustavo fique com ele. Assim, consolida-se um enredo mirabolante, que prometia comédia cafajeste e termina em sinistro drama de costumes, como já apontei no texto escrito em fevereiro de 2006.

Dissolvida a falsa certeza, o falso catecismo, até o título ganha sentido oculto. É irônico, antes de simplista. Afinal, quem são “os imorais”? Onde termina a convicção e começa a hipocrisia, o recalque, o arranjo? Quando a homossexualidade ainda era praticada na calada da noite e o Brasil julgava-a sobre aparato de estereótipos, “Os Imorais” não quis carnaval nem bichas pintosas. Amor expiado, gritado e debatido sem medos é seu grande mérito. Um espetáculo, até hoje, corajoso e impressionante.

Sexo, Sua Única Arma

Dossiê Geraldo Vietri

Sexo, Sua Única Arma
Direção: Geraldo Vietri
Brasil, 1981

Por Adilson Marcelino

Em Sexo, Sua Única Arma, Selma Egrei protagoniza seu segundo filme com o cineasta e novelista Geraldo Vietri – é o último filme dele.

Na trama, ela é Marta, uma mulher que chega como hóspede um tanto indesejada na casa de uma família e bota a vida de todos de perna para o ar.

O filme começa com Marta em viagem de trem, em bela abertura ao som de canção-fetiche de Vietri. Ela é esperada na estação por Humberto, Serafim Gonzales, e aí ficamos sabendo que ela é cega. As informações são colocadas aos poucos, pois durante um bom tempo da narrativa não se sabe porque ela chegou àquela casa.

A família de Humberto é formada ainda por sua esposa Angelina – Leonor Lambertini, que desde o início demonstra claramente seu desgosto com a chegada da hóspede. Angelina comanda a família com mão de ferro e gosta de humilhar a nora Judite – Geórgia Gomide e seu neto, por ambos serem judeus. Há ainda outra nora, Anita – Arlete Montenegro, que vive com o marido e o filho adolescente Bruno – Douglas Mazolla. Tem também Tiago – Ewerton de Castro, filho do casal que se tornou padre.

Já no primeiro instante, Marta começa a seduzir todos os homens da casa, que ficam impactados com sua beleza e seu ar de mistério. Nem mesmo padre Tiago consegue fugir dos assédios de Marta, e é com o desenrolar da trama que vamos descobrindo a verdadeira identidade dela e seus reais motivos em estar na casa daquela família.

Em Sexo, Sua Única Arma, Geraldo Vietri une mais uma vez Selma Egrei e Ewerton de Castro, mas aqui sem atingir o ótimo resultado do filme anterior em que estiveram sob a batura do diretor, Adultério por Amor (1978).

A personagem de Selma Egrei é um misto do Terence Stamp de Teorema (1968), do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, que como um anjo chega em meio a uma família burguesa e seduz a todos, desestruturando cada um de uma maneira diferente.

Aqui, em Sexo, Sua Única Arma, os motivos são bem diferentes, mas é impossível não se lembrar da trama de Pasolini, nesse argumento e roteiro assinado por Geraldo Vietri – novamente, Vietri desempenha inúmeras funções, como sempre foi sua marca nas novelas da Tupi que dirigiu. Em Sexo, Sua Única Arma, ele está a frente do argumento, roteiro, direção, montagem e direção musical.

No filme, mais uma vez o cineasta conta com seus parceiros habituais: a produção é de Cassiando Esteves, e a fotografia é de Anthonio B. Thomé.

Selma Egrei, Ewerton de Castro, Serafim Gonzales e Leonor Lambertini estão, como sempre, muito bem dirigidos por Vietri. Mas o grande destaque do elenco é sem dúvida Arlete Montenegro, que tem aqui uma de suas melhores interpretações no cinema, como a magoada e rejeitada Anita.

Se a direção de atores é ótima, o mesmo não pode ser dito do roteiro, um tanto apressado na condução da trama, e também uma mão um tanto pesada de Vietri na condução do filme como um todo. Talento extraordinário que ele possuía, como pode ser visto nos dois filmes imediatamente anteriores, o maravilhoso e surpreendente Os Imorais (1979), e Adultério Por Amor (1978).

Tiradentes – O Mártir da Independência

Dossiê Geraldo Vietri

Tiradentes, O Mártir da Independência
Direção: Geraldo Vietri
Brazil, 1977.

Por William Alves

Ao menos três vezes durante o filme, o jovem Joaquim José da Silva Xavier interrompe imediatamente o que está fazendo para libertar pássaros enjaulados. Na mais triunfal dessas ocorrências, o diretor Geraldo Vietri enquadra um céu esplendorosamente azul, que abriga toda a liberdade recém-conquistada pelas aves, enquanto o menino Tiradentes, sem qualquer mostra de constrangimento, brada “Viva a Liberdade!”. Em todos os cento e cinco minutos do longa de 1977, o condutor da inconfidência mineira não possui uma mácula sequer no caráter.

Seja por expressar a admiração do diretor pela lenda, seja para respeitar a identidade bibliográfica que serviu de base ao filme, o Tiradentes de Vietri rivalizaria com o próprio São Francisco de Assis no ofício de ser gente boa. Toda a sua bem aventurança é inteiramente contraposta pela índole vil dos outros personagens principais, que, com esperanças de se salvarem da forca, não tardam em se voltar, em grupo, contra Tiradentes. A vida do inconfidente é explorada de forma lacônica: o garoto que tem como hobby libertar aves se transmuta direto no alferes austero com aspirações anarquistas.

O filme ainda encontra algumas saídas cômicas, como os escravos que fogem dos equipamentos odontológicos assustadores empunhados por Joaquim José (o verdadeiro nome de Tiradentes) e seu tio, mesmo que isso signifique conviver com dores lancinantes de longo prazo. Joaquim José nutre especial apreço pelos escravos, e Vietri se empolga justamente nessas generosidades, como na cena em que o revolucionário recusa sexualmente uma escrava que quer lhe retribuir um favor.

Logo, Tiradentes, O Mártir da Independência parece ter, como único motivo de existência, a canonização de Joaquim José. Mesmo com toda essa adoração, um dos méritos do filme é ainda encontrar espaço para incluir o contexto histórico. Dedica especial atenção ao desprezo português em relação aos latino-americanos, explicitado sem subterfúgios pelos europeus. Ainda sim, a abordagem essencialmente chapa-branca incomoda, remetendo a “clássicos” bíblicos modorrentos, como Rei dos Reis, de Nicholas Ray. Lançado no auge da repressão militar, Tiradentes pode ter sido uma tentativa de contribuição de Vietri para impingir fé aos combalidos brasileiros.

Filmografia

Dossiê Geraldo Vietri

 

FILMOGRAFIA


Custa Pouco a Felicidade, 1952
Dorinha na Soçaite, 1957
Imitando o Sol, 1964
Quatro Brasileiros em Paris, 1965
O Pequeno Mundo de Marcos, 1968
Diabólicos Herdeiros, 1971
A Primeira Viagem, 1972
Senhora, 1976
Tiradentes – O Mártir da Independência, 1977
Que Estranha Forma de Amar, 1978
Adultério Por Amor, 1978
Os Imorais, 1979
Sexo, Sua Única Arma, 1979

Depoimento: Nilson Xavier

Dossiê Geraldo Vietri

 

Por  Nilson Xavier

Geraldo Vietri tem uma grande importância para a história da teledramaturgia brasileira.

Em plenos anos 60, quando estava em voga um formato latino e melodramático de teledramaturgia, que nada tinha a ver com a realidade brasileira, Vietri foi um dos primeiros a se preocupar em trazer o cotidiano e a nossa realidade para a telenovela. Concebeu, escreveu e dirigiu sucessos e novelas memoráveis na Tupi.

Tinha uma linha de trabalho própria e formou e foi mestre de artistas hoje consagrados como Aracy Balabanian, Juca de Oliveira, Tony Ramos, Denis Carvalho, Paulo Figueiredo e outros.

Grande homem de televisão!

Grande mestre!

Nilson Xavier é autor do Almanaque da Telenovela Brasileira e criador do site www.teledramaturgia.com.br

Um Mestre do Cotidiano

Dossiê Geraldo Vietri

 

Por Adilson Marcelino

Quando fez Dancin´ Days (1978/79), Gilberto Braga fez sucesso estrondoso de ponta a ponta no país ao estrear no nobre e disputadíssimo horário da novela das oito. Mas ficou esgotado e ao ser escalado para um novo trabalho solicitou ao Boni, então o manda-chuva da Globo, um colaborador para dividir a novela. Boni concordou e disse que não tinha oferecido antes porque ninguém solicitava, mas que achava que era realmente uma tarefa hercúlea para se fazer sozinho. Quem não gostou nada da história foi Janete Clair, a rainha do horário na Globo da época, que reclamou com Gilberto, “Como assim, dividir sua novela com outra pessoa?”. Bom, o resultado é que Água Viva, a novela seguinte, teve a colaboração de Manoel Carlos, e foi outro grande sucesso. Quem conta essa história é o próprio Braga em entrevistas.

Janete Clair não aceitava essa história de dividir parceria, que achava absurda, e só fez isso ao final da vida, em Eu Prometo (1983/84), com a iniciante Glória Perez. Agora, se pensarmos nessas duas formas de trabalhar, sozinho ou em parceria, o espanto fica maior ainda quando se pensa em Geraldo Vietri. Sim, porque o veterano autor não só escrevia suas novelas, como também dirigia e editava. Pode uma coisa dessa? Pode, pois esteve à frente de dezenas de novelas, algumas delas revolucionárias.

Quais? Antonio Maria (1968/69) e Nino, O Italianinho (1969/70), que co-escreveu com Walter Negrão e também dirigiu na Tupi. A partir daí, Vietri tornou-se, para muitos, quem melhor escrevia sobre o cotidiano e criava tipos que se encontrava facilmente nas ruas. Aqui mesmo nas entrevistas para a Zingu!, as atrizes Arlete Montenegro, Elisabeth Hartmann e Márcia Maria ressaltam esse domínio do autor. Geraldo Vietri assinou também outros momentos luminosos na Tupi, como A Fábrica (1971/72) e Vitória Bonelli (1972/73), que escreveu e dirigiu sozinho – essa última é destacada como obra-prima pelo fabuloso site Teledramaturgia, de Nilson Xavier. E para quem assistiu Berta Zemmel lutando para manter sua família unida, com filhos que tinham nomes bíblicos – Tiago –Tony Ramos, Mateus – Carlos Alberto Ricelli, Lucas – Flamíneo Fávero. E Verônica – Anamaria Dias – não resta nenhuma dúvida de que esse foi realmente um momento especial na nossa teledramaturgia.

Fiel a seu elenco, foi em grande parte graças ao talento de Geraldo Vietri que muitos atores e atrizes se destacaram na telinha. E eles são muitos: Sérgio Cardoso, Juca de Oliveira, Aracy Balabanian, Dina Lisboa, Laura Cardoso, Geórgia Gomide, Arlete Montenegro, Márcia Maria, Jonas Mello, Etty Fraser, Chico de Assis, Tony Ramos, Paulo Figueiredo, Anamaria Dias, Marcos Plonka, Flamínio Fávero.

Em sua carreira cinematográfica, também foi fiel ao seu elenco da televisão. Daí reservou protagonistas ou personagens destacados para atores e atrizes como Adriano Reys e Elaine Cristina, e grande parte de nomes aqui já elencados.

Infelizmente, boa parte da sua obra no cinema está indisponível há tempos, e cada vez que o Canal Brasil resgata um título dá quase vontade de acender uma vela em agradecimento. Cinco desses filmes, que foram lançados em VHS ou que estão sendo exibidos no Canal Brasil, fazem parte desse dossiê de resgate e homenagem a Geraldo Vietri: Senhora (1976); Tiradentes – O Mártir da Independência (1977); Adultério Por Amor (1978); Os Imorais (1979); e Sexo, Sua Única Arma (1979).

Rezamos de pés juntos para que seus outros oitos títulos sejam resgatados, para que sua obra na telona seja conhecida em sua totalidade. Pois se no cinema, Geraldo Vietri tivesse realizado apenas Os Imorais, seu nome já estaria garantido em caixa alta na história do cinema brasileiro. Poucas vezes, naqueles anos 1970, a temática homossexual recebeu tratamento tão interessante e respeitoso como nesse filme. E vamos combinar que para a época, e mesmo para os dias de hoje, não é pouco.

Geraldo Vietri nasceu em São Paulo, em 1930. É um dos mais importantes autores de telenovelas, sendo responsável por boa parte de popularidade que o gênero alcançou no país.

Começou a carreira no cinema, escrevendo e dirigindo Custa Pouco a Felicidade, em 1952. Para as telas esteve à frente de 13 títulos, mas foi na televisão que alcançou sucesso extraordinário e se tornou sinônimo de novelas com forte acento de gente como a gente, retratando o cotidiano como poucos, e um dos destaques da TV Tupi.

Geraldo Vietri faleceu em 1º de agosto de 1996.

Salve PARA SEMPRE Geraldo Vietri!

Estrelas de Vietri – Márcia Maria

Dossiê Geraldo Vietri

Entrevista:  Márcia Maria

Por Adilson Marcelino

Nesta entrevista à Zingu!, Márcia Maria já vai logo dizendo sobre Geraldo Vietri: “foi o homem da minha vida”. Realmente, Vietri reservou para a estrela pelo menos duas grandes protagonistas de suas novelas que fizeram muito sucesso na TV Tupi: Meu Rico Português e João Brasileiro, o Bom Baiano. Em ambas, fez par romântico com Jonas Mello. Nos dicionários de cinema consta também que a atriz atuou em um dos filmes que ele dirigiu, Que Estranha Forma de Amar, mas ela não se lembra. Márcia Maria fez questão de registrar sua indignação pelo descaso e esquecimento da memória de Geraldo Vietri pelas emissoras. Tudo isso aqui, nesta entrevista exclusiva para a Zingu!

Zingu!: O Vietri foi muito importante para sua carreira, não é?

Márcia Maria: Ele foi o homem da minha vida! Porque sei lá, ele me curtiu muito. Ele foi o diretor da minha vida

Z: Como era trabalhar com o Vietri? Porque uma característica forte é que ele cuidava de tudo, escrevia, dirigia…

MM: Ele fazia tudo.

Z: E como era o dia-a-dia no trabalho?

MM: Olha, as outras pessoas achavam que ele era irritante, que ele era nervoso. Ele xingava mesmo, falava o que tinha vontade, não respeitava ator, não queria nem saber. Tudo para fazer aquele trabalho bonito. Agora, ele não me xingava. Uma vez o Fulvio Stefanini disse assim “ah Vietri, você briga com todo mundo, xinga todo mundo, mas com a Márcia Maria não”. E ele disse “E eu sou louco! De repente ela se manda, porque essa mulher, sabe-se lá” rsrs.

Então ele era assim. Eu fiquei doente uma vez e toda noite, após a gravação, ele vinha ao meu apartamento atormentar minha cozinheira “Margarida, quero ver o macarrão que a senhora fez para ela” rsrs. Daí ela dizia “hoje ela não quis macarrão não”, e ele “ela não tem que querer, só macarrão para curar essa moçar” rsrs.

O Vietri era muito inteligente, ele fazia coisas maravilhosas . Foi uma pena a Tupi não ter feito um grande prêmio com o nome de Geraldo Vietri, porque as novelas dele, se passarem hoje, todo mundo assiste. Que coisa né?

Z: Levando-se em conta que há tanta falta de bons autores hoje…

MM: Tão carente… Tem o Lauro Cezar Muniz… Mas também não é todo que mundo que aguenta escrever vinte horas por dia o tempo todo, né? Tem bons escritores, mas poucos.

Agora, o Vietri faz uma falta louca, louca, louca. E ele tinha um estilo, sabe? Ele me fazia trabalhar no dia de natal, passando mal, eu trabalhava e pronto. Rsrs

Ele era um amor de pessoa, era engraçado, era cômico. Quando ele queria atormentar alguém, ele fazia através da comicidade. Ele era o máximo.

Foi um absurdo a Tupi não ter feito, ou mesmo a Globo não ter feito uma homenagem imensa ao Geraldo Vietri.

Z: Ele gostava de juntar você e o Jonas Mello como par romântico nas novelas dele, não é?

MM: Sim, ele gostava do Jonas, ele gostava de mim. Quando eu cheguei na Tupi, eu tinha vindo da Record, eu acho, e aí achava que eu ia comer o pão que o diabo amassou. Quando ele mandou me escalar, no primeiro dia da reunião da novela dele, eu fiquei bem muda, rezando, porque eu pensei “esse homem vai acabar comigo” rsrs.

Aí ele disse “vamos começar pela primeira cena porque eu quero ver como você se comporta”. A gente decorava na hora, né? Là pelas sete horas da noite a gente começou a gravar. Eu fiquei pensando como faria aquela personagem. Ele ficava lá falando, falando, falando, e eu fiquei pensando. Daí resolvi fazê-la bem triste, muito humilhada. Fiz a cena chorando, mas sem dramaticidade, só com as lágrimas rolando, um tanto fria. Porque a personagem estava humilhada, tinha sido tirada da família dela, da mãe, dos irmãos. Eu achei que ninguém estava prestando a mínima atenção, mas ele estava. Daí ele mandou rasgar o resto das minhas cenas, porque ele ia escrever diretamente para mim. Ele escreveu para mim. Só depois de dois meses é que eu fui me tocar que ele escrevia para mim.

Z: A gente percebia isso porque você foi estrela das novelas dele.

MM. Sim. Uma vez foi muito engraçado, era a cena final da novela e ela terminava com um grande beijo entre mim e o Jonas Melo. Ele me beijava e eu dava um tapa na cara dele. O povo era muito gozador, então ficou o elenco inteiro no estúdio assistindo. Eu fiquei tão nervosa que assim que o Jonas me beijou eu dei três tapas na cara dele. Dei o primeiro, dei o segundo e dei o terceiro.

Aí eu disse “Ai Jonas, me desculpe, eu estava com medo de errar”. E aí ele respondeu “Só vou te dizer uma coisa, eu tenho um pivô aqui, e se você fazer esse pivô cair, o pau come” rsrs. E o Vietri lá “vamos fazer de novo…” Porque ele adorava isso. Aí dessa vez eu bati de levinho. E o Vietri “bateu levinho demais… o povo não acredita” rsrs. Quando acabou eu estava aos prantos de nervosa.

Z: E no cinema, como era?

MM: No cinema? Não me lembro não.

Z: Mas você não fez o Que Estranha Forma de Amar? Eu não conheço o filme, mas consta seu nome na ficha técnica.

MM: Não me lembro não. Olha, mas eu fiz tanta coisa. E que engraçado, eu não gostava de fazer cinema.

Z: Mesmo? Mas você fez filmes que eu gosto muito. Fez As Intimidades de Analu e Fernanda (1980) e As Amantes de Um Homem Proibido (1982), ambos do José Miziara. Fez o Cio – Uma Verdadeira História de Amor (1971), do Fauzi Mansur.

MM: Sim, me lembro. Mas é porque eu trabalhava muito e minha vida particular estava muito confusa na época, porque durante esse tempo morreu toda a minha família e eu fiquei meio confusa.

Z: Muito obrigado pela entrevista.

MM: Por nada. Só preciso dizer mais uma vez que eu acho um absurdo as TVs não fazerem uma grande homenagem ao Vietri.