Especial O Carnaval no Cinema Brasileiro
A Lira do Delírio
Direção: Walter Lima Jr.
Brasil, 1978.
Por Gabriel Carneiro
A Lira do Delírio é muito possivelmente o filme mais emblemático do cineasta Walter Lima Jr., que nunca se prendeu a gêneros ou estilos, mas tem seu lugar reservado na história do cinema nacional por saber acompanhar as tendências vanguardistas de nossa produção – ainda que a qualidade dos longas seja um tanto irregular, vide o seu fraquíssimo último filme, Os Desafinados. Em A Lira do Delírio, Lima Jr. busca uma espécie de cinema-colagem, muito autêntico, embebido pelo clima do carnaval fluminense.
No longa, parte-se do carnaval, do bloco ‘A lira do delírio’, de Niterói, para uma estranha aventura que envolve um homem ciumento tentando controlar sua amante, financiando, entre outros, o envolvimento dela no tráfico e o sequestro de seu bebê. Influenciado muito mais pelo chamado Cinema Marginal, do que pelo Cinema Novo, ao qual é geralmente vinculado pelo seus dois primeiros filmes – Menino do Engenho e Brasil Ano 2000 -, A Lira do Delírio é uma ode ao deboche em suas diversas instâncias – os próprios personagens se referem um ao outro pelo nome do ator, por exemplo -, e ao sonho delirante, das múltiplas possibilidades de leitura de um acontecimento. Pereio, sempre desconcertante, dá corpo a um repórter policial apaixonado pela ‘taxi girl’ Ness Eliott (Anecy Rocha). Seu habitual fazer a si mesmo nos filmes, cai como uma luva nesse longa de Walter Lima, ao unir o deboche ao lunático equivocado.
O título do longa não podia ser mais apropriado: se o conteúdo varia entre o delírio do sonho e o delírio da realidade – trabalhando essas duas vertentes muito habilmente, a ponto de não sabermos se o filme é uma fábula ou uma história verista -, a forma é puramente poética, lírica, em que Lima se permite o tão almejado respiro da câmera, em cenas sem funcionalidade narrativa, mas de beleza extrema – como quando Pereio começa a datilografar e a câmera dele se afasta -, ou associações muito explanativas no desenrolar da história – às vezes mesmo da História, a tal com ‘h’ maiúscula. Nesse último caso, o mais preemente é a questão da tortura. Em tempo de ditadura militar, a tortura é meramente sugerida no campo visual, mesmo que o personagem preso – um criminoso comum – apanhe um bocado. A conotação mais forte vem pelo uso sábio do áudio: Lima opta por deixar o áudio da tortura enquanto vemos a cena do crime ao qual é acusado – sem que esteja envolvido. É uma cena muito mais forte e eloquente, do que se tivéssemos visto a tortura (sabendo antes ou depois o que realmente ocorreu).
O carnaval, ponto de partida para o longa, não podia ser mais acertado: festa pagã, sinômino de alegria e comemoração, é também ponto do ilusionismo, da fantasia, do se pensar a partir de outro, de se libertar de amarras. Se serve para Walter Lima Jr. se soltar do Cinema Novo enquanto estética e discurso – A Lira do Delírio foge completamente da temática social do miserável e do trabalhador -, e abarcar a marginalidade, o decadente, o Rio de Janeiro da noite – em especial o Rio da Lapa -, serve também para que seus personagens passeiem livremente para fazerem de conta, em tom de farsa e absurdo. A escolha de uma colagem de gêneros, que flutuam entre a comédia, o drama e o policial, permitem maior liberdade à película, lançada após a trágica morte de Anecy Rocha, mulher de Walter Lima, irmã caçula de Glauber, que caíra, em 1977, aos 34 anos, no fosso do elevador do prédio onde morava. O filme não deixou (a) de ser, portanto, um belíssimo tributo a essa promissora intérprete, refletindo tão bem as escolhas dela enquanto atriz.