Especial Carlos Coimbra
Iracema, a virgem dos lábios de mel
Direção: Carlos Coimbra
Brasil, 1979.
Por Filipe Chamy
A justificativa mais óbvia para esta adaptação do clássico romance Iracema é mostrar a nudez de Helena Ramos (que faz a personagem-título) e das outras atrizes “indigenizadas”. Há uma passagem em que isso se faz mais que evidente: um branco cativo numa oca é guardado “pelas mais belas mulheres da tribo”, e evidentemente lançar-se-á mão do recurso da câmera subjetiva para fazer o olhar do europeu, como mãos desesperadas, percorrer os corpos de suas vigias.
É claro que ninguém reclamará da “exatidão histórica” que apresenta os índios em sua quase total nudez corporal, pois todos sabemos que as roupas que enfiam em Pocahontas, nos filmes americanos, são puras concessões a uma questionável moral e um mais questionável ainda pudor dos espectadores em potencial. Mas isso não faz deste Iracema uma peça de correção étnica: simplesmente é o “unir o útil ao agradável” que facilitou a aquisição de uma exuberância e um sensualismo pretendidos e, assim, comodamente praticados.
Toda a estrutura do filme repousa nesse fascínio pelo corpo feminino, observado com adoração e volúpia, e se os cabelos negros como a asa da graúna comparecem mais na narração inicial que nas imagens que se seguem pela projeção da fita, Iracema possui outros encantos que podem agradar não só a Martim (Tony Correia), mas ao público festejador das pornochanchadas que lotava os cinemas na época: nossa brava índia é um misto de furacão selvagem de formas estonteantes com a cândida inocência cínica da mulher que não sabe o quanto enlouquece os homens. É, portanto, um mito (literário e “de formação” da nossa identidade) que Carlos Coimbra aproxima de nossa realidade, traz a nós como um drama do nosso dia a dia, sem a roupa (literalmente, inclusive) do exotismo, do relato histórico, da lenda anacrônica.
Então apesar de a narrativa ser um pouco convencionada nesse desejo de servir a uma contemporaneidade meio forçada, fica patente o esmero com que Coimbra dirige a encenação épica, e aí já não faz tanta diferença se a virgem dos lábios de mel é Helena Ramos ou uma nativa mais assemelhada ao que José de Alencar descreveu. Porque o capital aqui é fazer valer uma estética que não se esgota na imitação, no mimetismo, mas que tenta alcançar sua expressão com esse deslocamento mesmo, essa índia que não é índia, esse Brasil colonial que parece com qualquer zona de interior ou litoral moderna, esse herói dividido entre a ternura e a carnalidade — mais uma aproximação da pornochanchada.
Daí constatarmos que o Iracema de Carlos Coimbra não é sobre o que fomos ou como nos formamos, mas como somos e como ainda nos vemos. Os grandes dramas são eternos, e não deixa de ser um mérito do filme essa visão de que tanto faz a época dos conflitos ou acontecimentos, o tempo das histórias é indefinido e irrelevante.