Especial Wilza Carla
Os Herdeiros
Direção: Carlos Diegues
Brasil, 1969.
Por Vlademir Lazo
Muitas das críticas mais exageradas (e algumas injustas) que se faz ao Cinema Novo brasileiro são perfeitamente aplicáveis a Os Herdeiros. Difícil demarcar quando, de fato, termina o movimento, mas existe quase um consenso de que ele não sobrevive muito tempo depois do AI-5, em dezembro de 1968. Depois ainda surgiriam alguns belos rebentos com O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro e Macunaíma (concebidos nesse período), mas a pá de cal foi com o desastre artístico de Os Herdeiros. Com o AI-5 tornava-se impossível falar do país mais abertamente e com liberdade, e o resultado foi uma alegoria que não vai pra direção alguma como Os Herdeiros.
Por outro lado, todos que acompanham cinema brasileiro há certo tempo sabem que Carlos Diegues nunca foi bem-sucedido numa veia mais autoral. Seus melhores filmes foram realizados na segunda metade da década de setenta, quando soube lidar melhor com suas experiências e visão de cinema, de resto ele foi um dos tantos realizadores nacionais e estrangeiros que primeiro começam no cinema de arte e depois caem no pior comercialismo. Não seria exagero dizer que os seus filmes no Cinema Novo na década de 1960 foram os que dentre o movimento pior envelheceram com o tempo.
Em Os Herdeiros, ele tenta dar conta de uma tarefa impossível àquela altura: falar do Brasil num passado recente e contemporâneo, compondo um painél da nação no século XX, adotando primeiro, por cerca de uma hora, uma estrutura bastante rígida, com capítulos curtos que sintetizam a nossa História dos anos 30 aos 50. O filme abre na fazenda de São Martinho, às vésperas da Revolução de 1930, em torno das oligarquias prestes a perderem alguns dos seus privilégios, e pula décadas e quinquênios passando pelo Estado Novo e suas torturas, o final da Segunda Guerra e a deposição de Getúlio Vargas, o retorno ao poder e posterior suicidio do presidente, etc. O núcleo dramático é uma família arruinada de plantadores de café, os Almeida, com a qual se alia Jorge Ramos (Sergio Cardoso), um jornalista ambicioso que se casa por interesse com a herdeira do clã, e após a redemocratização do país em 1945, instala-se na metrópole e se torna um político poderoso passando a perna em amigos e correligionários.
Durante quase toda essa primeira hora (o filme inteiro tem 95 minutos), Os Herdeiros beira a historiografia pura enquanto mostra a ascenção de Jorge Ramos. Não há cena ou diálogo que não esteja ali para ilustrar o seu respectivo momento histórico. Não fosse a suntuosidade da produção (a cenografia e o figurinos foram premiados), muitos de seus momentos poderiam passar como uma aula do Telecurso. Um épico didático-histórico com grande elenco: além de Cardoso, Mario Lago (como o patriarca dos Almeida), Odete Lara (com direito a um número musical, ela que gravou um disco excepcional com Vinicius de Moraes), Paulo Porto, Isabel Ribeiro, Luiz Linhares, Grande Otelo (como o lider de uma manifestação pela renúncia de Vargas e anos depois chora por sua morte), Hugo Carvana, Anecy Rocha, entre outros. Até estrelas internacionais surgem em cena: Jeanne Moreau aparece numa ponta (quatro anos depois ela protagonizaria um dos piores filmes de Diegues, o infeliz Joanna Francesa) e até Jean-Pierre Léaud (o ator fetiche da Nouvelle Vague), o qual suas aparições em Os Herdeiros causam constrangimentos. A homenageada do especial desta edição da Zingu!, Wilza Carla, aparece num breve momento, ao lado de um jovem Daniel Filho como hóspedes gringos numa refeição no Copacabana Palace nos anos 40.
Carlos Diegues talvez houvesse realizado um trabalho mais memorável se tivesse o amparo de um romance de qualidade como base para Os Herdeiros. Ao invés disso, preferiu ele próprio conceber um roteiro original para o seu filme, perdendo em substância e profundidade. Pode-se não ter paciência ou reclamar de alegorias como Terra em Transe ou A Idade da Terra, mas estes são puro cinema de invenção e radicais experiências de linguagem, enquanto que Os Herdeirose, em grande parte do tempo, ressente-se de ser quadradinho demais (e sem um inconformismo político de outros filmes brasileiros da época, como o próprio Terra em Transe e O Desafio). Em determinadas sequências o filme mais parece uma minissérie de TV bem-cuidada com pano de fundo histórico.
Nos últimos trinta e cinco minutos, o filme se passa na década de 60 (a partir da fundação de Brasília), quando ao ter que falar de um período tão próximo da época de sua realização, Os Herdeiros se assume como alegoria pura, difusa e tropicalista, entre retornos a Fazenda de São Martinho e as lutas pelo poder em Brasília e no Rio de Janeiro, em meio ao advento da televisão. O conflito dramático dessa vez é entre Jorge Ramos e seu filho, o qual espera tornar o seu herdeiro, mas que se volta contra ele como vingança por suas vítimas, aliando-se aos militares e traindo o pai. Grande parte do filme é musicado por Villa-Lobos e canções populares, o que inclui a participação em cena de intérpretes como Dalva Oliveira, Nara Leão, Bob Nelson e um jovem Caetano Veloso.
Exibido na Quinzena de Realizadores em Cannes e no Festival de Veneza, Os Herdeiros pode ser considerado um elefante branco do cinema brasileiro. Na época, Carlos Diegues, em entrevista para a Cahiers Du Cinèma, decretaria que o Cinema Novo morrera. Seu filme então seria o atestado de óbito.