Entrevista: Tony de Souza

Dossiê Tony de Souza

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Entrevista com Tony de Sousa

Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto

Nascido Antonio Ferreira de Sousa Filho, Tony de Sousa é um nome que pouca gente conhece, mesmo entre aqueles que se debruçam sobre a história do cinema nacional e da Boca do Lixo. Talvez por um motivo em particular: seus filmes são quase todos inéditos, nunca passaram no circuito comercial, não estão nas televisões – o máximo que aconteceu foi serem exibidos em alguns festivais. Pois bem, talvez seja o momento de tomar conhecimento de Tony de Sousa, hoje escritor (tem lançado um livro por ano) e professor de Rádio e TV, na Anhembi-Morumbi, com o recente lançamento de sua obra (quase) completa em DVD, de forma completamente independente, e só encontrada em seu site pessoal (http://www.tonydesousa.com.br/) – faltam Magia das Tintas (1980) e Estações (1981), cujos originas estão desaparecidos.

Tony começou na Boca do Lixo, sendo assistente de direção de nomes como Eduardo Freund, Waldir Kopesky, John Doo, Jair Correia e Fauzi Mansur, entre outros, além de ter trabalhado também como ator e continuísta. Como mentor, teve Roberto Santos e Ozualdo Candeias – com quem chegou a fazer um curta documental, A Boca do Cinema Paulista (1985), um interessante e didático produto sobre o cinema da Boca. Nos anos 1980, Tony fez uma pequena pérola, a ser descoberta, o média-metragem O Avesso do Avesso (1986). Intercalando com outras atividades, Tony chegou a fazer outros três filmes: os curtas O Fazedor de Fitas Inacabadas (1992) e Mary Jane (1997) e o longa Expresso para Aanhangaba (2002). Em longa entrevista exclusiva, Tony conta sua trajetória de vida e sobre as dificuldades de se fazer cinema, mesmo nos tempos de Boca.

Parte 1: Infância, juventude e a descoberta do cinema brasileiro

Parte 2: Indo para o cinema, na Boca do Lixo

Parte 3: O Avesso do Avesso

Parte 4: Pós-Boca

Entrevista: Tony de Souza – Parte 1

Dossiê Tony de Souza
Parte 1: Infância, juventude e a descoberta do cinema brasileiro

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Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto

Zingu! – Como foi sua infância?

Tony de Sousa – Nasci em 1952, numa vila chamada São Sebastião, que era parte do município de Mossoró. Depois virou município e teve nome alterado para Governador Dix-Sept Rosado. A cidade ganhou o nome em homenagem a um dos governadores do Rio Grande do Norte. É um vilarejo, um lugar muito pequeno. Na época, nem tinha energia elétrica, parecia filme de faroeste. Vivi lá até os 14 anos. Era muito simples, não tinha nada. O ensino ia até o primário. Fiz lá. Tinha muita diversão de criança, como tomar banho no rio – que hoje está totalmente poluído -, jogar bola. Meu pai tinha uma padaria, era a primeira da cidade. Trabalhava com meu pai desde pequeno. Ele me levava para lá para aprender o ofício, queria que me interessasse pela padaria como negócio. Gostava de pão, mas não da atividade. Mudamos para Natal, em 1965, estava com quase 15 anos, e só ficamos um ano lá. Meu pai sempre trabalhou com padaria e era uma pessoa muito simples. Não sabia ler, nem escrever, só assinava o nome. Mas era um padeiro de mão cheia. Ele não sabia administrar o negócio, fazer contas direito, estava sempre correndo atrás do prejuízo. Ele fazia tudo na padaria, desde a padaria mesmo, até a administração. As coisas começavam a dar certo e ele logo contraía uma dívida e ficava desesperado, não conseguindo pagar as contas. Isso me desestimulou muito. ‘Não quero fazer uma coisa que a pessoa fica desesperada para pagar as contas’, pensava. E sempre que lembro do meu pai, lembro do desespero para pagar as contas. Ele era muito honesto. Naquela época, as crianças eram tratadas com rigor absurdo. A gente apanhava muito. Quando ele ficava nervoso, batia em todo mundo. Quando fomos para Natal, meu pai fez uma trapalhada: trocou uma casa por uma padaria em Natal, e foi um mau negócio. Ficamos só um ano lá e depois voltamos para Mossoró.

Tony5A-300x225Z – Ir para Natal foi uma mudança grande para você?

TS – Foi, muito grande. Em São Sebastião, todas as ruas eram de terra, sem asfalto, tinha uma estação de trem, e parecia muito uma cidade de faroeste, meio deserta – quando estava muito quente, a poeira começava a subir do chão. Em Natal, tivemos que fazer novas amizades, conhecer novas pessoas. Meu irmão, Paulo, sempre foi mais atirado do que eu e fez várias amizades quando se mudou. Eu era mais calado, não conseguia fazer amizade facilmente. Outra coisa, que foi muito pesado para a gente, era que em São Sebastião, meu pai tinha funcionários, e em Natal, nós, a família, viramos empregados na padaria. Em função disso, paramos de estudar. A padaria lá tinha outro ritmo. Para ele conseguir freguesia, a gente tinha fazer pão de madrugada para chegar antes nos restaurantes e oferecer o pão. 5 horas da manhã tínhamos que ter o pão quente para entregar. Meia-noite, uma hora da manhã, já estávamos trabalhando. Minha mãe reclamava dessa situação. Paramos de estudar e de brincar, vivíamos para trabalhar. Nas folgas, começou o interesse meu e do meu irmão por revistas em quadrinho e por cinema, ainda que fosse menor. Tinha o Batman, o Super-Hormem, os super-heróis. Gostava do Fantasma. Nossa diversão era comprar as revistas em quadrinhos e ler. Tinha uma coisa de trocar revistas na porta do cinema. Ficávamos na frente do cinema com uma pilha de revistas trocando, como se fossem figurinhas. Foi aí que comecei a me interessar por cinema. Ficava vendo os cartazes dos filmes, mas não sabia direito como era um filme. Minha mãe uma vez assistiu a um filme e contou como era. Mas até os 15 anos, não tinha a menor ideia de como era um filme. Quando chegamos em Mossoró, em 1967, 1968, voltamos a estudar e continuou o negócio de revistas em quadrinhos. Aí comecei a ir ao cinema. Tinha um cinema em Mossoró, o Cine Pax, cujo porteiro deixava a gente entrar, quando a sessão estava vazia. O primeiro filme que vi foi nesse esquema. Lembro que foi um estranhamento, por causa dos closes e dos planos mais fechados. Achava que era a pessoa de corpo inteiro o tempo todo. Depois comecei a assistir mesmo só faroestes. Foi com eles que me apaixonei pelo cinema. Esses e os filmes de heróis mitológicos, como Hércules, aquelas coisas bem maniqueístas. Mas era o cinema como divertimento. Faroeste-spaghetti, como Django, Ringo. Via para caramba.

Z – Depois você foi servir a aeronáutica, certo?

TS – Isso. Em 1971, fui, com 18 anos, cumprir serviço obrigatório. Mas em 1968, 69, comecei a me interessar por música e tinha um programa de calouro na cidade e quis ser cantor. Foi na época da Jovem Guarda, queria imitar esses caras. Ia em programas de calouro ao vivo. Tinha um amigo que queria ser cantor também e fizemos um plano de juntar dinheiro na aeronáutica para vir para São Paulo, tentar a vida artística. O meu amigo teve a ideia de servir o exército em Natal. Quando chegamos lá, ficamos um ano como soldado raso, ganhando meio salário mínimo, não dava para nada, não dava para juntar. Meu amigo fez tanta bagunça que não tinha mais condição de engajar – ficar mais tempo lá. Veio para São Paulo de carona, passando fome, a história dele foi muita mais complicada que a minha. Quando fui servir a aeronáutica, descobri que existia ensino de cinema. Mexer com isso nunca tinha passado pela minha cabeça. Durante o serviço, vi um anúncio numa revista de curso de cinema por correspondência e resolvi fazer. Foi o primeiro contato e achei interessante. O exemplo de cinema para mim era estrangeiro. Não chegava nada de filme nacional lá. Em 1971, fiz o curso e achei que poderia ser interessante me envolver com isso. Depois de um ano de serviço militar obrigatório, fiquei mais uns dois anos juntando dinheiro na aeronáutic, para vir a São Paulo. Conheci um cara, lá na base aérea, que era ator de teatro de São Paulo, lá nos portões, onde eu trabalhava. Acho que ele tinha um parente lá. No documento dizia que era ator. Fui falar com ele, perguntei como era. Fiquei gostando da ideia de ser ator, que seria algo que gostaria de fazer. Contei para ele que queria vir a São Paulo e ele me disse para procurá-lo, deixou endereço e tudo. Mas nunca o procurei. (risos) Aprendi a tocar violão de ouvido, mas a música já não era a coisa mais importante para mim quando vim. Queria fazer cinema, e teatro passou a ser um caminho. Comecei a ler sobre cinema e falavam que o diretor deveria conhecer todas as áreas, do roteiro à fotografia, à atuação. A maioria dos jovens hoje tem uma ansiedade para chegar logo lá no topo e não tem muita paciência para aprender. Na época, não me importava em ficar um ano, dois anos, a aprender como se interpreta, como se arranca uma baita interpretação de alguém. Foi quando fiz teatro amador, com o Sérgio Bambace. Vim para São Paulo em 1974 e comecei a trabalhar num banco. Mas já tinha toda uma estratégia, de aprender a atuar, para depois procurar emprego na área.

Z – Você também pensou em estudar nos EUA, não?Tony7A2-225x300

TS – Sim. Descobri o Museu Lasar Segall, onde tinha muitos livros de cinema – coisa rara na época, em português. Cismei que queria aprender a técnica, como fazia fotografia, captação de som, e só tinha livros em inglês. Comecei a aprender inglês para ler esses livros. Nisso, fiz amizade com um grupo de americanos e quando disse a eles que queria fazer cinema, eles recomendaram que eu fosse para os EUA estudar. Tinha um deles que era amigo de um diretor de uma faculdade no Alabama que tinha curso de teatro e que estava disposto a me conceder uma bolsa para ir estudar lá. Era um curso de dois anos. Lá aprenderia o idioma e o ofício e, em seguida, iria estudar cinema. Já estava tudo pronto, ia trabalhar na lanchonete da universidade, tinha uma bolsa. Quando fui pegar o visto, foi uma confusão. Me pediram muitas coisas e começaram a me pressionar e me atrapalhei nas respostas. Haviam me orientado dizer que minha família ia mandar dinheiro para me sustentar lá, porque não podia falar que iria trabalhar. Me atrapalhei e pediram o comprovante de imposto de renda do meu pai. Meu pai não paga imposto de renda (risos), ele não tem grana, vive falido. Perguntei se podia ser parente. Falei com uma prima minha que até se comprometeu a assinar um termo. Mas achei que estava complicado demais e fiquei com receio de eles ficarem enchendo a minha prima. Era muito humilhante. Desisti. Foi quando o cinema brasileiro começou a entrar em minha vida, pois, até então, minha referência era o cinema estrangeiro. Nessa época, havia visto dois ou três filmes brasileiros que reforçavam a ideia de que brasileiro não sabia fazer cinema. Era Coração de Luto, com o Teixeirinha, porque ouvia essa música quando pequeno e chorava muito. O filme é interessante, mas muito tosco. Também tinha visto Quelé do Pajeú, do Anselmo Duarte, que achei bem feito, mas não tinha a estrutura maniqueísta que gostava e as brigas não convenciam. Nos faroestes, pareciam que brigavam de verdade e as brigas aqui pareciam que ninguém sabia brigar. Havia formado uma opinião preconceituosa. Aí assisti A Hora e Vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos, que mudou completamente a minha opinião. Pensei: tem alguém no Brasil que sabe fazer filme. Achava que só os americanos sabiam fazer. E conheci Roberto Santos, uma pessoa que foi muito generosa comigo. Era moleque e ele senhor, muito assediado, muita gente querendo trabalhar com ele. Conversamos e ele começou a me dar atenção. Ele gostava de tomar umas e descobri um bar na Bela Vista onde ele ia beber whisky – na R. Fortaleza com a Rui Barbosa. Ele trabalhava na Lynx Filmes, que era perto. Aí ia lá no bar e ficava conversando com ele. O Roberto desmistificava o fazer cinema. Ele dizia que você tinha que criar as condições para fazer o seu filme e não ficar na cola dos outros. Qualquer um pode se meter a fazer cinema. Com ele, desisti de vez de ir aos EUA, porque me estimulou a ficar e tentar fazer cinema aqui. Também era muito alienado e comecei com o Bambace a me inteirar quanto às questões culturais e políticas. Nessa época, apareceu uma seleção para a peça de teatro O Último Carro – fui fazer e fui selecionado. Foi a primeira peça profissional que fiz. O diretor, João das Neves, acabou me ensinando muito, ele abriu minha cabeça, sobre a realidade e a cultura brasileira.

Parte 2

Entrevista: Tony de Souza – Parte 2

Dossiê Tony de Souza
Parte 2: Indo para o cinema, na Boca do Lixo

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Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto

Zingu! – Foi nessa época que começou a fazer algumas pontas como ator na Boca?

Tony de Sousa – Foi um pouco depois. Quando estava fazendo teatro, uma menina descobriu um cara que tinha um escritório no Largo do Paissandú e ia adaptar para cinema Mustang Cor de Sangue, o conto de Marcos Rey. Fui lá, querendo trabalhar de ator. O cara gostou de mim, mas disse que não tinha papel para mim. Fizemos amizade e pedi para assistir as filmagens. Ele eventualmente me chamou para ser assistente dele. Era o Luiz Gonzaga dos Santos, foi ele quem me levou para a Boca. Disse que não sabia fazer nada, mas ele falou que só precisava fazer o que ele mandava. Disse também que eu precisaria pedir as contas no teatro, porque não conseguiria fazer os dois. Pedi as contas, mas as filmagens foram interrompidas uma semana depois, porque o produtor caiu fora. Fiquei sem nada, num mato sem cachorro, porque não tinha sustento. O filme era a estreia do Gonzaga em longas. Depois virou Patty, a Mulher Proibida. Ele conseguiu outro esquema para fazer o filme, mas aí teve que mudar toda a equipe, porque acharam as imagens fimadas muito ruins e a equipe amadora.

Tony5A1-225x300Z – Você lembra em quais filmes atuou?

TS – Fiz um do Denoy de Oliveira, Sete Dias de Agonia, em que meu nome aparece como se eu fosse importante (risos), mas não tenho falas, apesar de aparecer o tempo todo. Era baseado num conto chamado O Encalhe dos 300, em que vários carros encalham numa estrada de terra. Deveria ser uma super produção, só que fez sem dinheiro, pegou uma estrada sem movimento, e levou uns caminhões. Assinei como Antonio de Sousa. Ainda não tinha assumido o Tony. No filme O Milagre – O Poder da Fé, que é a história do Roberto Leal, com o Joffre Soares, faço o irmão do Roberto. Também fiz muito filme com o Eduardo Freund: No Tempo dos Trogloditas, como ator, e aí assumi a posição de assistente. Nunca quis ser ator profissional. Durante um período, descobri, no Museu Lasar Segall, uns livros de origem russa, Pudovkin, Eisenstein, Kulechov, que mudaram completamente minha maneira de ver o cinema. Foi com eles que passei a ver o cinema como arte.

Z – Foi difícil começar na Boca ou depois que o Gonzaga te apresentou ficou mais fácil?

TS – Foi muito difícil, porque quando você começa – e acho que é assim em todo o lugar -, você começa fazendo bicos, pequenas coisas, e isso não te rende. Você tem que estar numa condição de vida, jovem iniciante, em que você sobrevive de qualquer jeito, porque se é casado, com filhos, não tem jeito. Como era iniciante, me virava. Conto isso num livro que vai sair que chama O Mundo do Cinema. Depois do filme que não deu certo, fui ser fiscal de cinema, conferir bilhete. Ganhava uma mixaria, mas dava para levar. Depois fui ajudando na produção, mas não era membro da equipe mesmo. Participei de vários filmes em que fiquei assim, fazendo qualquer coisa. Aí quis aprender a fazer continuidade, para me fixar em algo. Achava que, para chegar a assistente, precisava fazer continuidade. Isso foi nos anos 80. A primeira assistência que fiz foi para o Freund. Fiz dois filmes dele: Diário de uma Prostituta e acho que No Tempo dos Trogloditas. Depois o Fauzi [Mansur] me contratou como assistente, em Sexo às Avessas. Fiz O Motorista do Fuscão Preto, do José Adauto Cardoso, Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor, do Jair Correia e Hélio Porto, com o John Doo e com [Waldir] Kopesky Delírios Eróticos.

Z – Na virada dos anos 70 para os anos 80, você fez dois curtas: Magia das Tintas e Estações. Você já frequentava aTony1A2-300x225 Boca na época?

TS – Cheguei na Boca em 1977 e fiquei até, mais ou menos, em 1985. O Magia das Tintas fiz fora do esquema da Boca. Um cara que conheci, numa loja de equipamentos na Barão de Itapetininga, tinha uma câmera super8 e queria vendê-la para fazer um curta. Vendeu e fizemos esse curta documental. Era o João Manuel. Conseguimos com o dono da loja uma parceria para pegar equipamentos. Já o Estações foi feito no esquema da Boca. Em 1980, já conhecia várias pessoas. Pedi pontas de negativos que sobravam para fazer um curta. Depois juntei uns amigos, peguei uma câmera emprestada e quis fazer um curta só com imagens, sem sons, para colocar uma música do Vivaldi no fundo.

Z – Por que não tem cópia dos dois filmes?

TS – Na época, havia a lei do curta, em que um curta brasileiro era obrigado a ser exibido com o filme estrangeiro, e uma parte da bilheteria viria para o curta. A Embrafilme distribuía e fazia direito. Porém, havia um furo na lei, e os exibidores passaram a fazer qualquer porcaria e colocava esses acompanhando os longas que poderiam render muito. E aí o retorno pingava, uma mixaria. Ficamos meio desesperados e vendemos para a Hawaí, uma empresa de exibição. Entreguei os negativos e nunca tive de volta. Ninguém localizou até hoje. Os filmes que ficaram comigo – todos os demais que dirigi – estão na Cinemateca.

Z – Como era fazer filme na Boca? Variava muito para cada diretor?

TS – Era muito diferente, porque tinha diretor que trabalhava com mais condições e aqueles que trabalhavam com mais precariedade. Nunca trabalhei com Jean Garret, Cláudio Cunha ou David Cardoso. O produtor do Jean Garret e o próprio Galante dava condições para o diretor trabalhar. O Fauzi também, mas ele é um caso meio à parte, porque era uma pessoa meio difícil. A maioria dos diretores com quem trabalhei filmava na correria, no sufoco, na precariedade, como o Eduardo Freund, o Kopesky e o John Doo. Tinha umas duas ou três produtoras, a do Galante (por um período), a do Augusto Sobrado, que geralmente faziam com mais dinheiro. Na maioria, as condições eram ruins, negativo 2 [takes filmados] para 1 [válido].

Tony4A1-225x300Z – Mesmo em Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor?

TS – Esse foi uma exceção da regra. E era diferente: foi feito com pessoas da Boca, mas quem produziu era de fora – mexiam com transportes. Teve condições muito boas para padrão da Boca. Foi a primeira vez que vi um filme ser bem fotografado, pelo Tony Rabatoni, que fez filme para Glauber Rocha e teve escola inglesa. Já havia visto ele trabalhar em outros filmes e sempre reclamava que não tinha condições mínimas para um fotógrafo, como luz e equipamento. Nesse filme, foram dadas as condições a ele.

Z – Como era o ambiente da Boca?

TS – A gente tinha um ambiente muito curioso, porque havia uma mistura muito grande de pessoas de um nível intelectual, pessoas bem simples, e uma minoria de intelectuais que tinham uma certa pretensão de fazer um outro tipo de cinema, que não era de qualquer jeito e de apelação. Essas pessoas, o Ozualdo Candeias e o Carlos Reichenbach faziam questão de ter outro tipo de produção. E tinham outros tipos de intelectuais que não conseguiam impor um modelo e acabavam absorvendo a ideia do produtor, como o próprio Kopesky, o Ody Fraga. Tinham que fazer o que o produtor mandava e faziam filmes medíocres, muito ruins. Só salvava mesmo o Candeias e o Reichenbach e eram minhas referências de pretensão enquanto cineasta.

Z – Você conheceu o Candeias na Boca mesmo, no Soberano?

TS – Foi. Conheci o Candeias quando estava fazendo o Magia das Tintas. Quando estávamos juntando dinheiro para filmar, resolvemos fazer uma mostra dos filmes do Candeias na PUC, onde o João Manuel, meu parceiro no filme, estudava. Já havia conhecido o Candeias e levei o Manuel na Boca para apresentá-los. O Candeias ficou super feliz com a mostra e emprestou todos os filmes, mas acabou não dando dinheiro nenhum. Ficamos amigos e nessa época que comecei a frequentar o Lasar Segall é que comecei a ver os filmes do Candeias e a ver como ele era diferenciado da Boca e do cinema brasileiro. Ele absorveu a teoria dos russos. Era um cara que tinha pouca instrução intelectual, mas um sentido das coisas muito apurado, um autodidata impressionante, era um artista. Era grossão no trato com as pessoas, era difícil lidar com ele, aí você via os filmes dele e ficava bobo. Fiquei fã do cara e éramos amigos. Ele e o Eliseu Fernandes que tinham a história do ‘perseguidor de fantasmas’, que eram todas as pessoas que iam para a Boca para aprender a fazer cinema. O Candeias me chamava de ‘perseguidor’. Nessa época, ele nunca tinha pego dinheiro da Embrafilme e só falava mal dela. Perguntei: ‘mas você já mandou algum projeto seu para lá?’ “Eu não, não vou me dar ao trabalho para fazer isso”. Tinha um edital aberto e um dia me chamou e perguntou se achava que o filme dele tinha chance de ganhar. Disse que sim e que faria o projeto para ele. Arranjou um cara que tinha um a produtora, porque ele não tinha uma e precisava. Peguei dois projetos: Aopção ou as Rosas da Estrada, que ele tinha filmado e parado, porque havia acabado a grana, e o outro era o Manelão, o caçador de orelhas, que queria filmar. Para fazer o roteiro e orçamento foi uma história, porque não fazia nada disso e ficava reclamando, me levava uns papéis rascunhados e eu ficava datilografando. Fui montando um roteiro a partir daquilo. Saiu grana para os dois, ele ficou bobo: “mas saiu mesmo?” Aí o cara que emprestou a produtora quis virar produtor. Houve uma briga entre os dois e teve que mudar de produtora. Eu dancei nessa história. Quando o projeto estivesse funcionando, a produtora, que era do Virgílio Roveda, o Gaúcho, ia me pagar. Quando saiu o dinheiro, o Candeias brigou com o Gaúcho dizendo que ele estava achando que era produtor e queria mandar nele. Foi complicado, porque o contrato já tinha sido feito, teve que desfazer o acordo, o Candeias teve que abrir sua própria produtora e demorou anos. Nisso, fui me virar na vida e não recebi nada. Mas o Candeias sempre reconheceu que fui eu quem o levou a ganhar dinheiro público.

Z – Mas você então nunca chegou a trabalhar com ele?Tony6A-225x300

TS – É curioso, porque nunca cheguei a trabalhar com os diretores que mais me influenciaram: o Candeias e o Roberto Santos. Descobri que aprendia mais conversando com eles e assistindo o processo do que trabalhando com eles. O Roberto nem tanto, mas era muito assediado, tinha uma fila de gente querendo trabalhar com ele. Já com o Candeias era muito difícil, porque as coisas só ficavam na cabeça dele. Ele dirigia assim: “Levanta a cabeça. Mais. Para esquerda, porra. Mais para a esquerda, porra”. Não explicava nada. Era difícil a equipe acompanhar. Ele ficava nervoso, xingava quando as coisas não davam certo. Preferia ficar acompanhando depois o que ele filmou. Eu ia falar com ele sobre algum plano que tinha um erro e ele dizia: “aquele filho da puta olhou para lá e disse que era para cá”. (risos) Assistente de direção, para o Candeias, não existia, só no nome, porque ficava tudo na cabeça dele. Ele chegou até fazer um contrato comigo de assistente do Manelão, tenho até hoje, mas nunca pagou. Ele disse que me pagaria mesmo se nós brigássemos e eu não fosse assistente mesmo.

Z – Mas o Candeias chegou a fazer o roteiro do seu curta A Boca do Cinema Paulista e boa parte das imagens são deles, não?

TS – Sim. Tem uma polêmica envolvendo esse assunto, de quando o Jairo Ferreira era vivo. Ele era muito complicado. Vivia na Boca e inventou que havia um movimento chamado Cinema da Boca, que era meio anárquico. Ele chegou a escrever um livro, Cinema de Invenção, que era com as pessoas que julgava criativas. Mas só entrava amigo dele, se brigasse ele tirava. Foi o meu caso, apareço na primeira edição, com o Estações, e não na segunda. Já o Candeias negava essa teoria, para ele, cada um fazia seu cinema, não tinha movimento. Entrei no edital de curtas da Secretaria da Cultura – o Jairo também. Masfui selecionado e ele não, e alegava que várias pessoas na comissão não gostavam dele. Pediu para fazer algo no filme e o coloquei na produção. Paguei direitinho. O prêmio não pagava quase nada, mal dava para comprar o negativo e o Candeias disse que só daria para fazer o filme de um jeito e cedeu suas fotografias. Não podia mudar o roteiro. Fiz um acordo com o Jairo, além de ele fazer produção – coisa que não fez –, daria um depoimento, em que diria o que quisesse. Só que ele achou que havia som direto, mas não tínhamos verba. Quando foi dar o depoimento, o Candeias o cortou, porque ele tinha que falar um texto e não podia falar meia-hora. Se falasse o que lhe viesse à cabeça, não ia dar para montar. Aí o Jairo falou que quem estava fazendo o filme era o Candeias, e não eu. Ele deu uma entrevista: “O Tony não apitou nada, ele ficava lá servindo sanduíche.” (risos)

Parte 3

Entrevista: Tony de Souza – Parte 3

Dossiê Tony de Souza
Parte 3: O Avesso do Avesso

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Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto

Zingu! – Como surgiu O Avesso do Avesso?

Tony de Sousa – O Avesso do Avesso foi feito com muita influência do Ozualdo Candeias, porque admirava muito o estilo dele, não só a estética – que sabia que nunca ia alcançá-lo nesses termos. Ele enquadrava de um jeito muito particular. O Godard falava que o sonho dele era enquadrar como o Eisenstein enquadrava. Tenho a mesma coisa em relação ao Candeias. Ficava pensando em seguir um pouco o estilo dele, que era realmente marginal, anticomercial. Tinha as ideias, levava as pessoas ao lugar e filmava. Olhava na moviola. Depois seguia assim em todos os dias. Esse modelo de construir uma história me atraiu muito. Você passa num lugar e vê uma locação interessante, vai lá e bola uma cena. Imaginei para ser feito assim esse filme. Pegava um final de semana e fazia um pouco. O Jean-Claude Bernadet assistiu ao filme e me disse que era a reinvenção do Zézero, do Candeias. “Você é um filho do Candeias”. O Candeias tinha uma maneira muito crua de mostrar a miséria, eu sou mais poeta, suavizo. Mas vou beber na mesma fonte, que é o submundo das pessoas oprimidas. Bolei a historinha de um operário, que tem vida massacrante, e trabalha numa fábrica. Só faz isso, passa o dia trabalhando e no trem. A única diversão dele é ver pornochanchada. O único escape é ver programas duplos de filmes eróticos. Se passa em São Paulo, queria mostrar a arquitetura, como é opressora.

Tony3A1-225x300Z – E o filme foi feito com recursos da Boca?

TS – Pouco antes havia entrado na vida sindical. Nunca havia me passado pela cabeça ser militante sindical, só queria fazer cinema. Quando comecei a trabalhar em cinema, nas primeiras investidas que fiz, vi que tinha que me envolver na política audiovisual, porque é tão massacrante o processo de ocupação do cinema brasileiro pelo estrangeiro que você tem que lutar contra isso. É muito absurdo. Lembro que tinha uma época em que entrava numa locadora de vídeo, procurava filme brasileiro e não achava. Pensava: faço parte de uma atividade que não existe. Em todo lugar, é filme estrangeiro. Aonde estava o que eu fazia? Quando me dei conta disso, comecei a me interessar pela atividade política, para mudar essas coisas. Quando fiz O Avesso do Avesso, já estava envolvido em sindicato. Lutamos para conseguir fazer valer a lei brasileira perante uma grande produção estrangeira no Brasil, em que dizia que precisava ter uma quantidade ‘x’ de brasileiros nessa produção para ser rodada aqui. Veio um filme estrangeiro que tinha 60 técnicos, e diziam que não precisavam de brasileiros. Ok, mas que paguem. Nos EUA é assim. Se você tem 20 câmeras, vai ter que contratar 20 câmeras locais. Se quiser usar o cara e trabalhar, que usem. Caso contrário ele fica parado e recebendo. Era A Floresta das Esmeraldas, do John Boorman. E o Concine cujo presidente na época era ponta firme. Não era cara que se vendia, que quer cargo para subir na vida ou ter poder e ganhar dinheiro, como hoje. Eles contrataram. Poucos foram trabalhar. Essa produção rendeu um dinheiro para pagar os técnicos brasileiros e eu estava incluído nessa equipe, como contrapartida de mão-de-obra brasileira. Foi uma puta grana para mim, na época. Quando acabou essa produção, peguei essa grana e falei: vou começar um filme. Não era muita coisa, mas dava para comprar os negativos. Tinha um amigo que tinha uma câmera 16mm e fiz com ela. Rodava uma semana, parava, rodava outra. Banquei todo o filme. Quando tinha 35, 40 minutos de filme, levei um pedido de finalização na Embrafilme. Foi quando ela já estava meio mal das pernas, mas incluiu o filme para receber recursos. Consegui finalizar o filme com esses recursos.

Z – O filme me parece bastante ligado a um metacinema feito em São Paulo na época, como a Trilogia da Noite e os filmes do Guilherme de Almeida Prado.

TS – Eu e o Guilherme começamos na mesma época e tivemos quase a mesma formação na Boca, tínhamos gostos parecidos. O Guilherme é uma pessoa que admiro muito. O Carlão também usava esse metacinema, coisa que não era praia do Candeias, por exemplo. Nessa época, o tema estava em voga, o pessoal da Vila Madalena também fazia isso. Descobri ao longo dos anos que é mais interessante o que acontece atrás das câmeras do que o que acontece na frente. A metalinguagem tem um pouco disso para mim, desmistificar o que acontece por trás das câmeras. Os livros que estou escrevendo versam muito sobre isso: o que é essa atividade no dia-a-dia, em sua essência. O que acontece com a vida das pessoas que se metem a fazer cinema é muito interessante: um bando de malucos que tentam criar condições, coisa totalmente utópica.

Z – Como você chegou à Daliléya Ayala, que depois de O Avesso do Avesso faria todos os seus filmes?Tony2A3-300x225

TS – A Daliléya foi um achado. Ela é uma pessoa bonita de rosto e muito sensual. E não era estrela. Por muito tempo, evitou entrar na onda do filme erótico, mas acabou aderindo e segurou até onde pode para não entrar na apelação. Na época, ela já não sabia para onde ia – tinha medo de ser considerada uma atriz de filme erótico. Ela é bonita, inteligente e bom caráter, coisa difícil de se juntar no meio do cinema. Tem um tipo de beleza que admiro, esteticamente falando. Foi isso. Em O Avesso do Avesso ela topou fazer sem grana, porque gostou do projeto. O Mary Jane foi em outra fase, ela já estava mais madura. Ela me retorna muito mais do que espero e dá conta do recado para o que faço. Em O Avesso do Avesso, ela está muito bem.

Z – Em O Avesso do Avesso, a Vanessa Alves faz uma ponta.

TS – Conhecia a Vanessa dos filmes do Carlão e ela também tinha um pouco disso que falo. E a Vanessa tinha um corpo lindo. Outro dia estava vendo um filme do [José] Agrippino [de Paula], Céu sobre a Água, e é engraçado que bolei uma cena de uma mulher saindo da água, e pensei, quando vi, que tivemos uma ideia parecida. A Vanessa tinha um corpo belíssimo. Tinha essa cena e ela topou, sem frescura. O curioso desse filme é que ele ficou pronto quando a Embrafilme estava nas últimas e havia uma pressão da classe cinematográfica, porque não vinha produzindo mais nada. E para mostrar que ainda havia filmes sendo produzidos, meu filme entrou na estatística de longa, apesar de ter apenas 52 minutos.

Parte 4

Entrevista: Tony de Souza – Parte 4

Dossiê Tony de Souza
Parte 4: Pós-Boca

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Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto
Zingu! – Que atividade você seguiu com o desmoronamento da Boca?

Tony de Sousa – Primeiro vivi um pouco da atividade sindical. Em 1986 e na virada de década, nós tínhamos uma ligação com o sindicato dos artistas [SATED] e chegamos à conclusão que precisava do sindicato de técnicos. A publicidade ainda estava no auge em São Paulo. Formamos um grupo ligado à publicidade e a longas, o Sindicine, e fiquei à frente disso. Tentei fazer publicidade também, dirigindo. Nessa época, apareceu um edital de curtas da Secretaria de Cultural e com ele fiz O Fazedor de Fitas Inacabadas e alguns anos depois fiz o Mary Jane, no mesmo esquema.

Tony6A1-300x225Z – E quando começou a lecionar?

TS – Quando comecei a me dedicar mais ao sindicato, no final dos anos 1980, voltei a estudar, porque não havia sequer concluído o 2º grau. Quando a atividade começou a balançar no início do governo Collor, tive que tomar um rumo na vida, e fui estudar. Terminei o 2º grau e comecei a fazer graduação, no começo dos anos 1990. Fiz quatro anos de um curso de Letras. Depois comecei o mestrado e resolvi encarar uma atividade docente. Dei, por três anos, aula na UFSCar e faz dez anos que dou aula na graduação de Rádio e TV da Anhembi-Morumbi.

Z – Expresso para o Aanhangaba é um projeto dos anos 80 que só foi feito em 2002. Por que essa demora toda?

TS – Esse projeto era o meu projeto de estreia em longa-metragem. Tenho-o desde os anos 1980, época em que várias pessoas da minha geração estavam fazendo seus primeiros longas: o André Klotzel, o Wilson Barros, o Chico Botelho… A gente tinha uma turma de assistentes que queriam ser diretores que esperavam financiamento da Embrafilme. Tinha o Amílcar Monteiro Claro. Faço parte dessa geração. O meu projeto era esse. Só depois do fim da Embrafilme que retomei, quando houve esse edital do Ministério da Cultura. A temática nunca mudou: é um cara que sonha em seguir carreira de diretor, mas se envolve em publicidade e acaba protelando para fazer o filme até que rompe com tudo para filmar. Peguei o Jorge Duran para ajudar e fazer a versão definitiva do roteiro. Várias pessoas ajudaram, inclusive o Francisco Ramalho Jr.

Z – Em 1997, você tentou captar via Lei Rouanet e não conseguiu, e foi então tentar o edital de telefilmes.

TS – Tentei na Lei, com um longa que custava R$ 3 milhões e não consegui nada. Entrei então no edital de Telefilmes, que pagava R$ 290 mil.

Z – Como foi isso? Fazer com 10% do orçamento?Tony7A3-225x300

TS – Me atrapalhou muito. Com a idade, complica muito. Não tinha tanto cabelo branco quanto tenho agora, nesse filme que os ganhei. Já estava em outra fase da vida. Minha mulher me questionou muito: vale a pena passar por tanta coisa para fazer um filme? É muito barra pesada. Foi muito dificultoso, muito trabalhoso. Me desestimulou para caramba. Minha mulher até falou: “se você quiser continuar fazendo cinema desse jeito, sofrendo, caio fora”. Porque ela sofria para caramba também, para conseguir cumprir tudo. Tive que reduzir os prazos. Não mudei nada no roteiro, mas foi muito sacrificado. Filmei em digital.

Z – Porque chamou tanta gente da Boca para fazer pontas no filme, como o Máximo Barro e o Adriano Stuart?

TS – Aquele universo da Boca me marcou muito, todo aquele cenário, aquelas figuras que circulavam na época. Vivo tentando me livrar daquilo, mas não consigo. Em todos os filmes que faço, aparece a Boca. Ou visualmente, ou é citada. No Aanhangaba, tem uma cena grande na Boca. Faz parte do meu imaginário. Quis prestar homenagem a algumas pessoas, como o Máximo Barro. E algumas pessoas identifico como parte desse universo, como o Adriano Stuart. Também queria colocar o cenário. Meio uma declaração de amor.

Z – Expresso para o Aanhangaba me parece bem diferente de O Avesso do Avesso, por ser mais um filme de balanço e de memória.

TS – É isso mesmo. Ele mantém algumas características das coisas que faço, que é ser metalinguístico e colocar o universo da Boca de alguma forma. Dentro do metalinguístico, queria muito citar alguns filmes que marcaram e consegui fazer em parte. Acho que se tivesse feito a quantidade de filmes que o Carlão fez teria tido mais possibilidades de citar os filmes que me marcaram. Como fiz filmes com espaçamento de tempo muito grande, aproveitei o Aanhangaba para colocar várias coisas, em especial O Passageiro: Profissão Repórter, do Antonioni, que já aparecia em Mary Jane. Coloquei citação a Tarkovski, ao Carlão Reichenbach. Acho que você enxergou bem, é um filme de balanço, uma declaração de amor às coisas e às pessoas. Coloquei minha mulher, coloquei amigos. Balanço também de como enxergo o cinema e a arte. O que Tarkovski pensa sobre a arte é o que eu penso.

Tony9A-300x225Z – Você acha que ter sido feito com tão pouco dinheiro prejudicou o resultado final do filme?

TS – Não. A única coisa que acho que sempre prejudicou minha atividade – não em sentido de lamentação, porque aceito o que aconteceu comigo – é conseguir fazer com que as pessoas tomem conhecimento de que existe a obra. Não é sucesso, me basta saber que você viu e fez a sua leitura. Não quero que nenhum crítico fale bem. O que faltou nas coisas que fiz foi divulgação. Não tenho talento para isso, tampouco habilidade. Se tivesse dinheiro, talvez tivesse conseguido pagar alguém para fazer isso. Tenho uma avaliação minha sobre os trabalhos que faço que é de não usar estrelas como um gancho para ser divulgado. Isso dificulta o filme aparecer na mídia. No caso específico do Aanhangaba, ele foi feito para passar na televisão, num canal do MinC chamado Cultura e Arte. Como eles extinguiram o canal, fiquei desobrigado dessa coisa com o MinC. Fiquei com o filme e podia fazer o que quisesse. O primeiro caminho que tentei foram as salas de cinemas. Cheguei a falar com André Sturm, para passar no Belas Artes, numa das primeiras salas digitais da cidade. Mas depois parece que não deu certo a sala digital que pretendia. Depois cheguei à conclusão que era mais certo exibir na televisão. Fui conversar no Canal Brasil. Eles ofereceram um valor irrisório, como oferecem a qualquer filme. Mas não era esse o problema, topava até de graça. Eles davam para assinar um contrato leonino – que acho que todo mundo assina -, mas como fui de sindicato, leio o contrato com outro rigor. Achei o contrato um absurdo. Tem uma cláusula que diz que, se qualquer pessoa fizer uma reclamação sobre direitos autorais e direito de imagem, é de inteira responsabilidade da produtora ressarcir o Canal Brasil por eventuais prejuízos. Tenho todos os contratos em ordem, mas acho um absurdo muito grande. Eles jogam toda a responsabilidade sobre o produtor e eximem o exibidor. Ofereci passar o filme de graça, desde que removessem aquela cláusula. Eles disseram que não podiam, porque era o padrão. Talvez tenha até tentado o canal errado, talvez a TV Cultura topasse, mas toda vez que tento e dá errado algumas vezes, desisto no meio do caminho e deixo de lado. Por que vou me matar? A responsabilidade da exibição deveria ser de outra instância. Não tenho competência para certas coisas, como distribuir e procurar exibidores. Por isso desisti de ser produtor, porque sou incompetente em fazer o filme chegar às pessoas. Meus filmes são todos meio inéditos.

Z – Você ainda pensa em dirigir?

TS – Sim, penso. Tenho um projeto de faroeste, que é sobre a invasão da cidade de Mossoró pelo bando do Lampião, chamado Lampião no Oeste, mas é um filme caro, um épico. Só topo fazê-lo se uma produtora me der suporte. Já fui na O2, acharam muito interessante, mas iam produzir não sei que filme e falaram que o meu projeto não era prioridade e que podia procurar outra produtora. Falaram até para voltar. Mas quis dar um tempo. Se não encontrar um produtor, vou continuar escrevendo livro, que é mais tranqüilo e na qual tenho mais competência. Chega um momento na vida que você tem que colocar seus limites. Uma coisa que me deixa incomodado no cinema é que envolve muitas pessoas e isso é complicado. Se você não tem paciência de lidar com muita gente, não é o seu lugar. Você fica com o peso de não fazer o filme aparecer. Agora estou fazendo o esforço de fazer os DVDs, o site e fazer os filmes que fiz aparecerem. São muitas pessoas envolvidas que depois te cobram. Os livros que escrevi têm um pouco essa função de complementar o que queria fazer no cinema e não aconteceu – nunca tive uma resposta efetiva.

Parte 1

A Boca do Cinema Paulista

Dossiê Tony de Souza

A Boca do Cinema Paulista
Direção: Tony de Souza
Brasil, 1985.

Por Sérgio Andrade

Neste documentário de 12 minutos, vencedor do Prêmio Estímulo da Secretaria Estadual de Cultura de SP e finalizado em 1985, o diretor Tony de Souza contextualiza o cinema paulista a partir da Cia. Vera Cruz, passando pela Multifilmes, Maristela, a Kino Filmes, até se concentrar no cinema realizado na Boca do Lixo.

Lembra do início das lutas pela regulamentação do setor, com a criação da “Associação dos Técnicos e Artistas Cinematográficos do Estado de São Paulo” em 1956 (com depoimento de um de seus fundadores, o cineasta Agostinho Martins Pereira, diretor de A Carrocinha), que depois se tornaria o “Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica do Estado de SP”, fechado pela revolução de 64.

Fala de Flávio Tambellini e da importância do Instituto Nacional de Cinema (INC) no incremento da produção de cinema no Brasil. Ozualdo Candeias foi um dos primeiros cineastas a procurar investimento no Instituto, em 1967, para realizar o antológico A Margem.

O diretor Souza conta que no começo do projeto contou com a colaboração do crítico Jairo Ferreira (creditado como “Diretor de Produção” e que dá um depoimento) e de Candeias. Mas logo surgiria um conflito de visões diferentes, pois enquanto Jairo defendia que o cinema da Boca deu origem a um movimento em resposta ao Cinema Novo (e realmente ali nasceram obras seminais do chamado Cinema Marginal, como O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla; O Pornógrafo de João Callegaro; os filmes em episódios As Libertinas, Em Cada Coração um Punhal e Trilogia do Terror; Orgia, ou O Homem que Deu Cria, de João Silvério Trevisan; Gamal, o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade entre outros) Candeias, com seu jeito bronco de ser, discordava completamente, dizendo que em São Paulo cada um fazia seu cinema do jeito que queria. Jairo acabou deixando o filme e Candeias assina câmera, fotografia, montagem e pesquisa.

Filmado em table top (estilo de filmagem de fotografias simulando movimento), com alguns poucos depoimentos e takes realizados na Boca, o curta-metragem dá uma boa idéia do que foi o agito cultural naquela zona do baixo meretrício paulistana, entre as ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, nos anos 70 e 80.

O cineasta Carlos Reichenbach tem uma tese polêmica. Num outro documentário, O Galante Rei da Boca, ele afirma que a entrada do cinema pornográfico no Brasil foi uma estratégia armada pelas majors americanas para acabar de vez com a produção independente da região, o que acabou acontecendo. Pode ser que ele esteja exagerando. Mas a verdade é que nunca mais encontraremos naquele lugar críticos de cinema como Rubens Ewald Filho, Inácio Araujo e o “Presidente” Almeida Salles.

Não veremos produtores poderosos como a família Massaini, Augusto Sobrado ou o Barretão conversando animadamente com os mais humildes dos técnicos. Nem atores como Sergio Hingst, Flavio Portho e John Herbert ao lado das musas Aldine Muller, Joana Fomm, Elizabeth Hartmann, Barbara Fázio ou Lola Brah.

Não presenciaremos um papo carinhoso entre Roberto Santos e Rubem Biáfora. Nem diretores de um cinema popular tipo José Mojica Marins, Toni Vieira, José Miziara, Ody Fraga, Juan Bajon e John Doo batendo altos papos com outros considerados mais exigentes, como Walter Hugo Khouri, Anselmo Duarte, Sergio Ricardo, Carlão Reichenbach e Walter George Durst.

O pessoal do MIS comandado por Bernardo Vorobow ou os funcionários do INC circulando entre as putas. Pesquisadores, jornalistas e estudantes à procura de oportunidades. Não teremos a chance de tomar uns rabos de galo com os intelectuais Paulo Emilio Salles Gomes e Caio Scheiby nos botecos da Rua do Triunfo. Muito menos acompanharemos a troca de experiências entre um veterano como Adhemar Gonzaga com aspirantes a cineastas como Guilherme de Almeida Prado.

Hoje em dia quem se aventura a andar pela região cruza com zumbis anestesiados pelo crack. E no futuro, se as promessas forem cumpridas, nem isso mais existirá, com a revitalização (ou melhor dizendo, a higienização) que o governo pretende realizar para trazer de volta ao centro as famílias de classe média para cima. Será a pá de cal em nosso passado.

Mary Jane

Dossiê Tony de Souza

Mary Jane
Direção: Tony de Sousa
Brasil, 1997

Por Daniel Salomão Roque

A princípio, Mary Jane evoca Perfume de Gardênia, o filme dirigido por Guilherme de Almeida Prado onde Christiane Torloni interpreta uma ex-atriz da Boca do Lixo às voltas com seu passado. O curta de Tony de Sousa, feito cinco anos depois, se debruça sobre esse mesmo universo e, uma vez dentro dele, mira toda sua atenção numa única figura: a personagem-título, estrela decadente de fitas eróticas que é exposta a constrangimentos e levada a atitudes extremas em decorrência de sua dificuldade em lidar com a fama minguante. As semelhanças, contudo, não vão além disso. Se a comparação entre ambos os filmes serve para comprovar alguma coisa, trata-se da encantadora polivalência do cinema popular paulista: é difícil encontrar duas obras tão próximas na temática e ao mesmo tempo tão distantes em termos narrativos.

O retrato que Perfume de Gardênia faz da Boca em muitos aspectos lembra a Hollywood que Billy Wilder desnuda em Crepúsculo dos Deuses, com tudo o que isso pode carregar em termos de cinismo, violência e, pasmem, afetuosidade. Mary Jane, por sua vez, caminha na direção da caricatura, da comédia de costumes, e esteticamente se assemelha a um comercial datado de televisão – e é exatamente nesse ponto que reside sua ambigüidade. As desventuras da protagonista começam num programa de auditório, e nele também se encerram: tudo o que se passa entre esses dois momentos é polarizado pela presença da TV. Mary Jane recebe a contragosto o estigma de atriz pornô, tem sua integridade questionada, planeja um atentado que é amplamente divulgado pelos telejornais e alcança a redenção nos palcos de um talk-show.

Seria o filme uma homenagem à pornochanchada ou uma crônica sobre a superficialidade e o sensacionalismo televisivos? Difícil saber. Tal como a personagem que retrata, o curta dirigido por Tony de Sousa parece duvidoso, desleixado e um pouco raso, mas contém em si mesmo uma certa graça, e esta lhe concede o benefício da dúvida.

O Fazedor de Fitas Inacabadas

Dossiê Tony de Souza

 

 O Fazedor de Fitas Inacabadas
Direção: Tony de Sousa
Brasil, 1992.

 Por Daniel Salomão Roque

O cinema é, definitivamente, uma das preocupações centrais de Tony de Sousa, constituindo o elo que interliga seus três curtas-metragens. A Boca do Cinema Paulista, o primeiro deles, é um documentário que recria o espírito de uma época e região; Mary Jane, o último, acompanha a decadência profissional de uma musa da pornochanchada; O Fazedor de Fitas Inacabadas, por sua vez, encontra-se numa posição intermediária entre esses dois filmes, não apenas em termos cronológicos, mas também narrativos e estilísticos. 

Ao longo de seus dez minutos, o curta acompanha o cotidiano de frustrações, misérias e alegrias de um cineasta temperamental (Cássio Scapin) que se depara com todos os tipos de obstáculos no processo de filmagem das suas obras, nunca concluídas. Ele não tem nome, tampouco os outros personagens à sua volta: o “fazedor” mencionado pelo título é, na verdade, um ser genérico, paradigma do jovem que se arrisca a fazer cinema no Brasil. Entre porres no centro da cidade e encontros desmarcados com a namorada, ele perde as estribeiras com o produtor homossexual, torna-se gigolô de uma possível mecenas, dá respostas evasivas ao montador que lhe cobra constantemente o pagamento atrasado e, por fim, encontra a saída: transformar a falta de condições em elemento de criação. 

O Fazedor de Fitas Inacabadas é um filme que só poderia ter sido dirigido por um cinéfilo, e, com todos os seus méritos e falhas, resulta extremamente sincero.

 

O Avesso do Avesso

Dossiê Tony de Souza


O Avesso do Avesso
Direção: Tony de Souza
Brasil, 1986. 

Por Vlademir Lazo

Não é necessário ter lido antes sobre O Avesso do Avesso para que diante dele percebermos que se trata de um filme de produção paupérrima. Seus recursos na tela são visivelmente tão pobres e mínimos que nos fazem pensar nos exemplares recentes do Cinema de Bordas (muito antes do termo existir), mas ao contrário dos filmes de Bordas, que quase sempre se assumem como trashs e amadores (e fazem dessa condição um motivo de orgulho e razão de ser), em O Avesso do Avesso é possível enxergar uma luta de seu realizador para dar um acabamento ao seu filme, resultando em uma das tentativas mais interessantes do cinema brasileiro da época em transformar a precariedade de recursos em criação. 

Primeiro longa de Tony de Souza, após ter dirigido três curtas-metragens e trabalhado bastante como assistente de direção, O Avesso do Avesso é fruto de sua precariedade de meios. Distante da possibilidade de um financiamento oficial, Tony de Souza o filmou em 16 mm com a idéia de depois ampliá-lo para 35 mm, recurso que chegou a ser utilizado durante o cinema marginal brasileiro e que durante a própria década de oitenta diversos diretores veteranos ainda lançavam mão. Porém, O Avesso do Avesso não seria bem um representante tardio do Cinema Marginal, tampouco se filiaria a algum contexto especifico da nossa cinematografia ou de qualquer outra coisa que estivesse sendo feita na época. 

É um filme fora de tempo, uma impossível tentativa de fazer cinema em meio à queda da Boca do Lixo (onde Tony de Souza fora assistente de direção), que então em declínio estava por fechar suas portas com o ciclo dos filmes de sexo explicito (o próprio diretor declara que O Avesso do Avesso foi feito pela vontade de mostrar seu amor não apenas pela cidade de São Paulo, mas também pela Rua do Triunfo). 

O cineasta confessa também sua inspiração no cinema de Ozualdo Candeias, que extraia um sentido estético sublime através de sua precariedade e das locações, e também sem a necessidade de ilustrar seu filme com explicações orais ou diálogos em excesso. De certa forma, O Avesso do Avesso bem ou mal é um dos filmes que parecem fechar um ciclo de vinte anos de tentativas do cinema paulista entre o autoral e o popular (iniciado com A Margem do próprio Candeias ou com os primeiros filmes de terror de Zé do Caixão), ou quem sabe uma luta (sem resultados) por ao menos recomeçá-lo. 

O Avesso do Avesso é um filme de cinéfilo. Mas também sobre a cidade do seu realizador, mais especificamente, a sua periferia: um filme envolvido na atmosfera de pó e fumaça. Seu protagonista é Chico (Pedro Lacerda), um operário de uma fábrica de gesso, que acorda diariamente de madrugada para se dirigir ao local de trabalho, onde se dedica a colocar a mão na massa ou levantar sacos de cimento. Uma peça insignificante de um quadro industrial, cuja enorme quantidade de fumaça jogada por suas torres pelo ar (por entre prédios e edifícios da metrópole) contrasta com a pureza das nuvens mostrada no primeiro plano. O filme começa e se encerra com as nuvens brancas do céu azul escurecendo a cada novo jorro de fumaça. 

O filme se concentra num dia de folga de seu personagem, a principio na sua moradia miserável na periferia, quatro paredes forradas com recortes, jornais e pôsteres da atriz de pornochanchada (Dalileya Ayala) por quem é obcecado. A própria distração de Chico é vagar pelos cinemas de rua que ofereciam sessões de filmes populares, e nos quais vemos cartazes de faroestes com Clint Eastwood, filmes de sexo ou títulos de terror como Zumbi Holocausto. 

O Avesso do Avesso se divide entre a realidade e fantasia do protagonista, seus devaneios e ilusões. Deitado em seu quarto e imaginando como sua vida poderia ser diferente, entre lembranças da vida no interior e da noiva que teve que abrir mão, Chico vai ao cinema vestido à maneira do personagem do “homem sem nome” dos primeiros faroestes de Sergio Leone e entra numa sessão de Por um Punhado de Dólares, daí os cenários dos filmes e fantasias de Chico tomam forma até ele perder o controle da realidade. O filme então ganha cor, as imagens ganham em colorido, algo que não existe enquanto o cotidiano do personagem estava em primeiro plano. 

Tudo ao som de música brega, sintetizadores típicos da década de oitenta e trechos de Ennio Morricone tirados de algum LP com trilhas de faroeste italiano. O Avesso do Avesso vai se fazendo a partir de sua própria insuficiência, entre momentos irregulares e outros mais inspirados, com o maior mérito de (goste-se ou não do resultado) escapar do humor involuntário no qual sua premissa poderia descambar. Um filme feito entre amigos, mas com enorme vontade criadora, que pede um olhar menos de complacência do que de compreensão do filme em si.

O Expresso para Aanhangaba

Dossiê Tony de Souza

 

O Expresso de Aanhagaba
Direção: Tony de Souza
Brasil, 2002. 

Por William Alves

Em uma espécie de bula contida em seu site, o diretor Tony de Souza explica como não conseguiu obter recursos suficientes para realizar O Expresso de Aanhagaba como inicialmente planejou. Diante da indiferença dos responsáveis pela Lei Audiovisual em relação ao seu projeto, Tony resolveu transformar o longa-metragem em um telefilme. Isso explica muita coisa, visto que O Expresso de Aanhagaba é tão ruim quanto qualquer novela. 

Típico caso em que a “proposta” do autor se choca brutalmente com  a avaliação. Afinal, o que exatamente transforma o filme em uma tremenda perda de recursos mentais? A canastrice geral? O proto existencialismo autoindulgente de seu protagonista? Clichês que não têm mais graça (velhos de classe média vomitando conhecimento de causa em vernissages)? Todas essas críticas são indolores à obra e ao seu diretor. Afinal, “é um telefilme”. 

Na história, Rafael, publicitário arrependido,  finalmente decide se dedicar à verdadeira aspiração: diretor de cinema. Anidra, bonita estudante de arte, se envolve com traficantes para poder custear uma viagem – que ela presume que será automaticamente life changing – à Nova Iorque. Os dois personagens se cruzarão, o que ocasionará a pior versão de Lolita já encenada. 

E, claro, há as temidas referências, quase todas elas retiradas do livro Utopia, de Thomas More. Tony resolveu nomear os personagens principais com nomes retirados da obra. No arco da exposição de artes plásticas, o diretor resolve empilhar todos os seus livros teóricos de mestres do cinema: dá-lhe Cassavetes, Tarkovski, Kurosawa e Bergman… é até uma tristeza que a osmose não se aplique.

 Adriano Stuart, no papel de um bicheiro entediado cheio de grana para rifar, surge lá pelos quarenta minutos de projeção e imprime algum divertimento ao negócio. Afinal, quando ele afirma que não gosta muito “desse negócio de cinema de arte”, a referência é o próprio Stuart. Vide filmografia, em que se destaca o hilário “Cada Um Dá o Que Tem”, co-dirigido por ele. 

No mesmo texto em que Tony disserta sobre o filme, há um trecho em que ele afirma que a principal inspiração para O Expresso de Aanhagaba foi O Passageiro – Profissão Repórter, do italiano Michelangelo Antonioni, com Jack Nicholson como protagonista. E não é que mesmo com um balaio tão caprichado de influências, Tony não conseguiu absorver absolutamente nada da verve desse pessoal? 

Está aí, pois, a verdadeira graça desse telefilme.