Dossiê Tony de Souza
A Boca do Cinema Paulista
Direção: Tony de Souza
Brasil, 1985.
Por Sérgio Andrade
Neste documentário de 12 minutos, vencedor do Prêmio Estímulo da Secretaria Estadual de Cultura de SP e finalizado em 1985, o diretor Tony de Souza contextualiza o cinema paulista a partir da Cia. Vera Cruz, passando pela Multifilmes, Maristela, a Kino Filmes, até se concentrar no cinema realizado na Boca do Lixo.
Lembra do início das lutas pela regulamentação do setor, com a criação da “Associação dos Técnicos e Artistas Cinematográficos do Estado de São Paulo” em 1956 (com depoimento de um de seus fundadores, o cineasta Agostinho Martins Pereira, diretor de A Carrocinha), que depois se tornaria o “Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica do Estado de SP”, fechado pela revolução de 64.
Fala de Flávio Tambellini e da importância do Instituto Nacional de Cinema (INC) no incremento da produção de cinema no Brasil. Ozualdo Candeias foi um dos primeiros cineastas a procurar investimento no Instituto, em 1967, para realizar o antológico A Margem.
O diretor Souza conta que no começo do projeto contou com a colaboração do crítico Jairo Ferreira (creditado como “Diretor de Produção” e que dá um depoimento) e de Candeias. Mas logo surgiria um conflito de visões diferentes, pois enquanto Jairo defendia que o cinema da Boca deu origem a um movimento em resposta ao Cinema Novo (e realmente ali nasceram obras seminais do chamado Cinema Marginal, como O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla; O Pornógrafo de João Callegaro; os filmes em episódios As Libertinas, Em Cada Coração um Punhal e Trilogia do Terror; Orgia, ou O Homem que Deu Cria, de João Silvério Trevisan; Gamal, o Delírio do Sexo, de João Batista de Andrade entre outros) Candeias, com seu jeito bronco de ser, discordava completamente, dizendo que em São Paulo cada um fazia seu cinema do jeito que queria. Jairo acabou deixando o filme e Candeias assina câmera, fotografia, montagem e pesquisa.
Filmado em table top (estilo de filmagem de fotografias simulando movimento), com alguns poucos depoimentos e takes realizados na Boca, o curta-metragem dá uma boa idéia do que foi o agito cultural naquela zona do baixo meretrício paulistana, entre as ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, nos anos 70 e 80.
O cineasta Carlos Reichenbach tem uma tese polêmica. Num outro documentário, O Galante Rei da Boca, ele afirma que a entrada do cinema pornográfico no Brasil foi uma estratégia armada pelas majors americanas para acabar de vez com a produção independente da região, o que acabou acontecendo. Pode ser que ele esteja exagerando. Mas a verdade é que nunca mais encontraremos naquele lugar críticos de cinema como Rubens Ewald Filho, Inácio Araujo e o “Presidente” Almeida Salles.
Não veremos produtores poderosos como a família Massaini, Augusto Sobrado ou o Barretão conversando animadamente com os mais humildes dos técnicos. Nem atores como Sergio Hingst, Flavio Portho e John Herbert ao lado das musas Aldine Muller, Joana Fomm, Elizabeth Hartmann, Barbara Fázio ou Lola Brah.
Não presenciaremos um papo carinhoso entre Roberto Santos e Rubem Biáfora. Nem diretores de um cinema popular tipo José Mojica Marins, Toni Vieira, José Miziara, Ody Fraga, Juan Bajon e John Doo batendo altos papos com outros considerados mais exigentes, como Walter Hugo Khouri, Anselmo Duarte, Sergio Ricardo, Carlão Reichenbach e Walter George Durst.
O pessoal do MIS comandado por Bernardo Vorobow ou os funcionários do INC circulando entre as putas. Pesquisadores, jornalistas e estudantes à procura de oportunidades. Não teremos a chance de tomar uns rabos de galo com os intelectuais Paulo Emilio Salles Gomes e Caio Scheiby nos botecos da Rua do Triunfo. Muito menos acompanharemos a troca de experiências entre um veterano como Adhemar Gonzaga com aspirantes a cineastas como Guilherme de Almeida Prado.
Hoje em dia quem se aventura a andar pela região cruza com zumbis anestesiados pelo crack. E no futuro, se as promessas forem cumpridas, nem isso mais existirá, com a revitalização (ou melhor dizendo, a higienização) que o governo pretende realizar para trazer de volta ao centro as famílias de classe média para cima. Será a pá de cal em nosso passado.