Dossiê Tony de Souza
Parte 1: Infância, juventude e a descoberta do cinema brasileiro
Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto
Zingu! – Como foi sua infância?
Tony de Sousa – Nasci em 1952, numa vila chamada São Sebastião, que era parte do município de Mossoró. Depois virou município e teve nome alterado para Governador Dix-Sept Rosado. A cidade ganhou o nome em homenagem a um dos governadores do Rio Grande do Norte. É um vilarejo, um lugar muito pequeno. Na época, nem tinha energia elétrica, parecia filme de faroeste. Vivi lá até os 14 anos. Era muito simples, não tinha nada. O ensino ia até o primário. Fiz lá. Tinha muita diversão de criança, como tomar banho no rio – que hoje está totalmente poluído -, jogar bola. Meu pai tinha uma padaria, era a primeira da cidade. Trabalhava com meu pai desde pequeno. Ele me levava para lá para aprender o ofício, queria que me interessasse pela padaria como negócio. Gostava de pão, mas não da atividade. Mudamos para Natal, em 1965, estava com quase 15 anos, e só ficamos um ano lá. Meu pai sempre trabalhou com padaria e era uma pessoa muito simples. Não sabia ler, nem escrever, só assinava o nome. Mas era um padeiro de mão cheia. Ele não sabia administrar o negócio, fazer contas direito, estava sempre correndo atrás do prejuízo. Ele fazia tudo na padaria, desde a padaria mesmo, até a administração. As coisas começavam a dar certo e ele logo contraía uma dívida e ficava desesperado, não conseguindo pagar as contas. Isso me desestimulou muito. ‘Não quero fazer uma coisa que a pessoa fica desesperada para pagar as contas’, pensava. E sempre que lembro do meu pai, lembro do desespero para pagar as contas. Ele era muito honesto. Naquela época, as crianças eram tratadas com rigor absurdo. A gente apanhava muito. Quando ele ficava nervoso, batia em todo mundo. Quando fomos para Natal, meu pai fez uma trapalhada: trocou uma casa por uma padaria em Natal, e foi um mau negócio. Ficamos só um ano lá e depois voltamos para Mossoró.
Z – Ir para Natal foi uma mudança grande para você?
TS – Foi, muito grande. Em São Sebastião, todas as ruas eram de terra, sem asfalto, tinha uma estação de trem, e parecia muito uma cidade de faroeste, meio deserta – quando estava muito quente, a poeira começava a subir do chão. Em Natal, tivemos que fazer novas amizades, conhecer novas pessoas. Meu irmão, Paulo, sempre foi mais atirado do que eu e fez várias amizades quando se mudou. Eu era mais calado, não conseguia fazer amizade facilmente. Outra coisa, que foi muito pesado para a gente, era que em São Sebastião, meu pai tinha funcionários, e em Natal, nós, a família, viramos empregados na padaria. Em função disso, paramos de estudar. A padaria lá tinha outro ritmo. Para ele conseguir freguesia, a gente tinha fazer pão de madrugada para chegar antes nos restaurantes e oferecer o pão. 5 horas da manhã tínhamos que ter o pão quente para entregar. Meia-noite, uma hora da manhã, já estávamos trabalhando. Minha mãe reclamava dessa situação. Paramos de estudar e de brincar, vivíamos para trabalhar. Nas folgas, começou o interesse meu e do meu irmão por revistas em quadrinho e por cinema, ainda que fosse menor. Tinha o Batman, o Super-Hormem, os super-heróis. Gostava do Fantasma. Nossa diversão era comprar as revistas em quadrinhos e ler. Tinha uma coisa de trocar revistas na porta do cinema. Ficávamos na frente do cinema com uma pilha de revistas trocando, como se fossem figurinhas. Foi aí que comecei a me interessar por cinema. Ficava vendo os cartazes dos filmes, mas não sabia direito como era um filme. Minha mãe uma vez assistiu a um filme e contou como era. Mas até os 15 anos, não tinha a menor ideia de como era um filme. Quando chegamos em Mossoró, em 1967, 1968, voltamos a estudar e continuou o negócio de revistas em quadrinhos. Aí comecei a ir ao cinema. Tinha um cinema em Mossoró, o Cine Pax, cujo porteiro deixava a gente entrar, quando a sessão estava vazia. O primeiro filme que vi foi nesse esquema. Lembro que foi um estranhamento, por causa dos closes e dos planos mais fechados. Achava que era a pessoa de corpo inteiro o tempo todo. Depois comecei a assistir mesmo só faroestes. Foi com eles que me apaixonei pelo cinema. Esses e os filmes de heróis mitológicos, como Hércules, aquelas coisas bem maniqueístas. Mas era o cinema como divertimento. Faroeste-spaghetti, como Django, Ringo. Via para caramba.
Z – Depois você foi servir a aeronáutica, certo?
TS – Isso. Em 1971, fui, com 18 anos, cumprir serviço obrigatório. Mas em 1968, 69, comecei a me interessar por música e tinha um programa de calouro na cidade e quis ser cantor. Foi na época da Jovem Guarda, queria imitar esses caras. Ia em programas de calouro ao vivo. Tinha um amigo que queria ser cantor também e fizemos um plano de juntar dinheiro na aeronáutica para vir para São Paulo, tentar a vida artística. O meu amigo teve a ideia de servir o exército em Natal. Quando chegamos lá, ficamos um ano como soldado raso, ganhando meio salário mínimo, não dava para nada, não dava para juntar. Meu amigo fez tanta bagunça que não tinha mais condição de engajar – ficar mais tempo lá. Veio para São Paulo de carona, passando fome, a história dele foi muita mais complicada que a minha. Quando fui servir a aeronáutica, descobri que existia ensino de cinema. Mexer com isso nunca tinha passado pela minha cabeça. Durante o serviço, vi um anúncio numa revista de curso de cinema por correspondência e resolvi fazer. Foi o primeiro contato e achei interessante. O exemplo de cinema para mim era estrangeiro. Não chegava nada de filme nacional lá. Em 1971, fiz o curso e achei que poderia ser interessante me envolver com isso. Depois de um ano de serviço militar obrigatório, fiquei mais uns dois anos juntando dinheiro na aeronáutic, para vir a São Paulo. Conheci um cara, lá na base aérea, que era ator de teatro de São Paulo, lá nos portões, onde eu trabalhava. Acho que ele tinha um parente lá. No documento dizia que era ator. Fui falar com ele, perguntei como era. Fiquei gostando da ideia de ser ator, que seria algo que gostaria de fazer. Contei para ele que queria vir a São Paulo e ele me disse para procurá-lo, deixou endereço e tudo. Mas nunca o procurei. (risos) Aprendi a tocar violão de ouvido, mas a música já não era a coisa mais importante para mim quando vim. Queria fazer cinema, e teatro passou a ser um caminho. Comecei a ler sobre cinema e falavam que o diretor deveria conhecer todas as áreas, do roteiro à fotografia, à atuação. A maioria dos jovens hoje tem uma ansiedade para chegar logo lá no topo e não tem muita paciência para aprender. Na época, não me importava em ficar um ano, dois anos, a aprender como se interpreta, como se arranca uma baita interpretação de alguém. Foi quando fiz teatro amador, com o Sérgio Bambace. Vim para São Paulo em 1974 e comecei a trabalhar num banco. Mas já tinha toda uma estratégia, de aprender a atuar, para depois procurar emprego na área.
Z – Você também pensou em estudar nos EUA, não?
TS – Sim. Descobri o Museu Lasar Segall, onde tinha muitos livros de cinema – coisa rara na época, em português. Cismei que queria aprender a técnica, como fazia fotografia, captação de som, e só tinha livros em inglês. Comecei a aprender inglês para ler esses livros. Nisso, fiz amizade com um grupo de americanos e quando disse a eles que queria fazer cinema, eles recomendaram que eu fosse para os EUA estudar. Tinha um deles que era amigo de um diretor de uma faculdade no Alabama que tinha curso de teatro e que estava disposto a me conceder uma bolsa para ir estudar lá. Era um curso de dois anos. Lá aprenderia o idioma e o ofício e, em seguida, iria estudar cinema. Já estava tudo pronto, ia trabalhar na lanchonete da universidade, tinha uma bolsa. Quando fui pegar o visto, foi uma confusão. Me pediram muitas coisas e começaram a me pressionar e me atrapalhei nas respostas. Haviam me orientado dizer que minha família ia mandar dinheiro para me sustentar lá, porque não podia falar que iria trabalhar. Me atrapalhei e pediram o comprovante de imposto de renda do meu pai. Meu pai não paga imposto de renda (risos), ele não tem grana, vive falido. Perguntei se podia ser parente. Falei com uma prima minha que até se comprometeu a assinar um termo. Mas achei que estava complicado demais e fiquei com receio de eles ficarem enchendo a minha prima. Era muito humilhante. Desisti. Foi quando o cinema brasileiro começou a entrar em minha vida, pois, até então, minha referência era o cinema estrangeiro. Nessa época, havia visto dois ou três filmes brasileiros que reforçavam a ideia de que brasileiro não sabia fazer cinema. Era Coração de Luto, com o Teixeirinha, porque ouvia essa música quando pequeno e chorava muito. O filme é interessante, mas muito tosco. Também tinha visto Quelé do Pajeú, do Anselmo Duarte, que achei bem feito, mas não tinha a estrutura maniqueísta que gostava e as brigas não convenciam. Nos faroestes, pareciam que brigavam de verdade e as brigas aqui pareciam que ninguém sabia brigar. Havia formado uma opinião preconceituosa. Aí assisti A Hora e Vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos, que mudou completamente a minha opinião. Pensei: tem alguém no Brasil que sabe fazer filme. Achava que só os americanos sabiam fazer. E conheci Roberto Santos, uma pessoa que foi muito generosa comigo. Era moleque e ele senhor, muito assediado, muita gente querendo trabalhar com ele. Conversamos e ele começou a me dar atenção. Ele gostava de tomar umas e descobri um bar na Bela Vista onde ele ia beber whisky – na R. Fortaleza com a Rui Barbosa. Ele trabalhava na Lynx Filmes, que era perto. Aí ia lá no bar e ficava conversando com ele. O Roberto desmistificava o fazer cinema. Ele dizia que você tinha que criar as condições para fazer o seu filme e não ficar na cola dos outros. Qualquer um pode se meter a fazer cinema. Com ele, desisti de vez de ir aos EUA, porque me estimulou a ficar e tentar fazer cinema aqui. Também era muito alienado e comecei com o Bambace a me inteirar quanto às questões culturais e políticas. Nessa época, apareceu uma seleção para a peça de teatro O Último Carro – fui fazer e fui selecionado. Foi a primeira peça profissional que fiz. O diretor, João das Neves, acabou me ensinando muito, ele abriu minha cabeça, sobre a realidade e a cultura brasileira.