Entrevista: Tony de Souza – Parte 3

Dossiê Tony de Souza
Parte 3: O Avesso do Avesso

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Por Gabriel Carneiro
Fotos de Gabriel Carneiro e Pedro Ribaneto

Zingu! – Como surgiu O Avesso do Avesso?

Tony de Sousa – O Avesso do Avesso foi feito com muita influência do Ozualdo Candeias, porque admirava muito o estilo dele, não só a estética – que sabia que nunca ia alcançá-lo nesses termos. Ele enquadrava de um jeito muito particular. O Godard falava que o sonho dele era enquadrar como o Eisenstein enquadrava. Tenho a mesma coisa em relação ao Candeias. Ficava pensando em seguir um pouco o estilo dele, que era realmente marginal, anticomercial. Tinha as ideias, levava as pessoas ao lugar e filmava. Olhava na moviola. Depois seguia assim em todos os dias. Esse modelo de construir uma história me atraiu muito. Você passa num lugar e vê uma locação interessante, vai lá e bola uma cena. Imaginei para ser feito assim esse filme. Pegava um final de semana e fazia um pouco. O Jean-Claude Bernadet assistiu ao filme e me disse que era a reinvenção do Zézero, do Candeias. “Você é um filho do Candeias”. O Candeias tinha uma maneira muito crua de mostrar a miséria, eu sou mais poeta, suavizo. Mas vou beber na mesma fonte, que é o submundo das pessoas oprimidas. Bolei a historinha de um operário, que tem vida massacrante, e trabalha numa fábrica. Só faz isso, passa o dia trabalhando e no trem. A única diversão dele é ver pornochanchada. O único escape é ver programas duplos de filmes eróticos. Se passa em São Paulo, queria mostrar a arquitetura, como é opressora.

Tony3A1-225x300Z – E o filme foi feito com recursos da Boca?

TS – Pouco antes havia entrado na vida sindical. Nunca havia me passado pela cabeça ser militante sindical, só queria fazer cinema. Quando comecei a trabalhar em cinema, nas primeiras investidas que fiz, vi que tinha que me envolver na política audiovisual, porque é tão massacrante o processo de ocupação do cinema brasileiro pelo estrangeiro que você tem que lutar contra isso. É muito absurdo. Lembro que tinha uma época em que entrava numa locadora de vídeo, procurava filme brasileiro e não achava. Pensava: faço parte de uma atividade que não existe. Em todo lugar, é filme estrangeiro. Aonde estava o que eu fazia? Quando me dei conta disso, comecei a me interessar pela atividade política, para mudar essas coisas. Quando fiz O Avesso do Avesso, já estava envolvido em sindicato. Lutamos para conseguir fazer valer a lei brasileira perante uma grande produção estrangeira no Brasil, em que dizia que precisava ter uma quantidade ‘x’ de brasileiros nessa produção para ser rodada aqui. Veio um filme estrangeiro que tinha 60 técnicos, e diziam que não precisavam de brasileiros. Ok, mas que paguem. Nos EUA é assim. Se você tem 20 câmeras, vai ter que contratar 20 câmeras locais. Se quiser usar o cara e trabalhar, que usem. Caso contrário ele fica parado e recebendo. Era A Floresta das Esmeraldas, do John Boorman. E o Concine cujo presidente na época era ponta firme. Não era cara que se vendia, que quer cargo para subir na vida ou ter poder e ganhar dinheiro, como hoje. Eles contrataram. Poucos foram trabalhar. Essa produção rendeu um dinheiro para pagar os técnicos brasileiros e eu estava incluído nessa equipe, como contrapartida de mão-de-obra brasileira. Foi uma puta grana para mim, na época. Quando acabou essa produção, peguei essa grana e falei: vou começar um filme. Não era muita coisa, mas dava para comprar os negativos. Tinha um amigo que tinha uma câmera 16mm e fiz com ela. Rodava uma semana, parava, rodava outra. Banquei todo o filme. Quando tinha 35, 40 minutos de filme, levei um pedido de finalização na Embrafilme. Foi quando ela já estava meio mal das pernas, mas incluiu o filme para receber recursos. Consegui finalizar o filme com esses recursos.

Z – O filme me parece bastante ligado a um metacinema feito em São Paulo na época, como a Trilogia da Noite e os filmes do Guilherme de Almeida Prado.

TS – Eu e o Guilherme começamos na mesma época e tivemos quase a mesma formação na Boca, tínhamos gostos parecidos. O Guilherme é uma pessoa que admiro muito. O Carlão também usava esse metacinema, coisa que não era praia do Candeias, por exemplo. Nessa época, o tema estava em voga, o pessoal da Vila Madalena também fazia isso. Descobri ao longo dos anos que é mais interessante o que acontece atrás das câmeras do que o que acontece na frente. A metalinguagem tem um pouco disso para mim, desmistificar o que acontece por trás das câmeras. Os livros que estou escrevendo versam muito sobre isso: o que é essa atividade no dia-a-dia, em sua essência. O que acontece com a vida das pessoas que se metem a fazer cinema é muito interessante: um bando de malucos que tentam criar condições, coisa totalmente utópica.

Z – Como você chegou à Daliléya Ayala, que depois de O Avesso do Avesso faria todos os seus filmes?Tony2A3-300x225

TS – A Daliléya foi um achado. Ela é uma pessoa bonita de rosto e muito sensual. E não era estrela. Por muito tempo, evitou entrar na onda do filme erótico, mas acabou aderindo e segurou até onde pode para não entrar na apelação. Na época, ela já não sabia para onde ia – tinha medo de ser considerada uma atriz de filme erótico. Ela é bonita, inteligente e bom caráter, coisa difícil de se juntar no meio do cinema. Tem um tipo de beleza que admiro, esteticamente falando. Foi isso. Em O Avesso do Avesso ela topou fazer sem grana, porque gostou do projeto. O Mary Jane foi em outra fase, ela já estava mais madura. Ela me retorna muito mais do que espero e dá conta do recado para o que faço. Em O Avesso do Avesso, ela está muito bem.

Z – Em O Avesso do Avesso, a Vanessa Alves faz uma ponta.

TS – Conhecia a Vanessa dos filmes do Carlão e ela também tinha um pouco disso que falo. E a Vanessa tinha um corpo lindo. Outro dia estava vendo um filme do [José] Agrippino [de Paula], Céu sobre a Água, e é engraçado que bolei uma cena de uma mulher saindo da água, e pensei, quando vi, que tivemos uma ideia parecida. A Vanessa tinha um corpo belíssimo. Tinha essa cena e ela topou, sem frescura. O curioso desse filme é que ele ficou pronto quando a Embrafilme estava nas últimas e havia uma pressão da classe cinematográfica, porque não vinha produzindo mais nada. E para mostrar que ainda havia filmes sendo produzidos, meu filme entrou na estatística de longa, apesar de ter apenas 52 minutos.

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