Lilian M.: Relatório Confidencial

Dossiê Inácio Araújo

Lílian M – Relatório Confidencial
Direção: Carlos Reichenbach
Montagem e edição: Inácio Araújo
Brasil, 1972

Por Marcelo Miranda

Quando perguntado sobre seu trabalho em Lilian M – Relatório Confidencial, Inácio Araujo nem precisa pensar muito. Diz que foi uma grande diversão, que esteve lado a lado com Carlão Reichenbach, que enxergou ali na mesa de montagem uma grande possibilidade de nascerem vários filmes diferentes. Despretensiosamente, Inácio dá a melhor definição possível para Lílian M: um filme de infinitos caminhos possíveis de percorrer, todos eles sempre feitos com extremo prazer – e diversão.

Era apenas o segundo longa-metragem de Carlão e um momento tateante de Inácio em sua breve (e significativa) carreira de montador. Em pleno começo dos anos 70, havia basicamente dois caminhos para se fazer cinema no Brasil: as produções “oficiais”, com a Embrafilme começando a atuar mais fortemente no mercado; e as produções “marginais”, nas quais os realizadores pegavam o que tinham e saíam com câmera em riste e equipe correndo atrás para dar vida a alguma obra artística. Era desta última leva toda a concepção de Lílian M. E isso está impresso em cada segundo de filme.

Nunca restaram dúvidas de que, se Carlão Reichenbach foi o pai de Lílian, Inácio Araujo foi seu padrinho mais querido e próximo. Tão mais surpreendente do que o próprio resultado final do que ficou sendo o filme é saber que a montagem foi a farra assumida pela dupla. Dá até para imaginar: Carlão chegou a Inácio com rolos e rolos de película (ou, ao menos, com o que tinha sido possível usar) e pediu que ele desse alguma forma àquilo tudo. Sentaram juntos e, acompanhados pelos olhos atentos e perspicazes de Ligia, esposa de Carlão, foram arriscando saber o que acontecia se tal cena viesse antes ou depois daquela outra, ou quanto tempo de tela essa imagem deveria ter em relação àquela.

Assim tentaram, sob várias combinações. De vez em quando, uma gargalhada; outras vezes, algum desentendimento; na maior parte das ocasiões, o olhar trocado de dois profissionais que sentiam estar criando algo ali, naquele momento. Inácio já disse que achava curioso como ele e Carlão riam durante a montagem enquanto, na tela, a trajetória de Lílian não era das mais engraçadas.

Esse é outro elemento bastante claro no filme: o desenrolar da vida da protagonista é cheio de momentos doloridos, mas a forma poética como tudo nos surge é sempre encantadora, comovente, forte, autêntica. Lílian M é orgânico, coeso, desbundado, debochado, engraçado, triste, verdadeiro, divertido e trágico. Muito desse admirável rompante estético e narrativo representado pelo filme está em toda aquela diversão que Inácio teve na junção dos pedaços que Carlão lhe trouxe em algum dia (ou noite) dos primeiros meses dos anos 70. No delírio maravilhoso que é Lílian M, Carlão atuou como uma espécie de Dom Quixote; Inácio talvez tenha sido seu Sancho Pança.

Marcelo Miranda é jornalista e crítico de cinema em Belo Horizonte. Escreve para o jornal  O Tempo e para a revista eletrônica Filmes Polvo.

Tchau, Amor!

Dossiê Inácio Araújo

Tchau, Amor!
Direção: Jean Garrett
Co-argumento, co-roteiro, edição, montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1983

Por Adilson Marcelino

Jean Garrett não é só um dos maiores cineastas da Boca do Lixo, mas do cinema brasileiro. Afinal, ter no currículo filmes como Amadas e Violentadas (1976), Possuídas Pelo Pecado (1976), Excitação (1977), Noite em Chamas (1978), Mulher, Mulher (1979), A Mulher que Inventou o Amor (1980), O Fotógrafo (1981), Karina, Objeto do Prazer (1981), Tchau Amor! (1983) e Estranho Desejo (1983) não é mesmo para muitos.

O paradoxo é que seu nome quase nunca é citado, a não ser por parte da crítica, sobretudo da internet, e pelos amantes do cinema popular e da Boca do Lixo. A obra desse português radicado no Brasil em meados da década de 1960 é prova de que cinema popular não tem que ser sinônimo de produção rastaquera, que sofisticação e inteligência não são atributos apenas de uma parcela de eleitos.

Tchau, Amor! é mais um filme que nos assombra tanto pelo enfoque de sua trama quanto pelo rigor em sua condução. Aqui, Inácio Araújo assina o argumento e o roteiro com o diretor, além de pilotar a edição e a montagem. O filme é protagonizado por Antônio Fagundes e Angelina Muniz, secundados por Selma Egrei, Walter Forster e Denis Derkian.

Na trama, Fagundes é Paulo Reys, radialista das antigas que perde seu lugar por ser considerado ultrapassado demais para seduzir as novas plateias. Com um casamento em que não há mais lugar para paixão, sua vida não anda das melhores, daí seu passatempo é caminhar por uma São Paulo noturna, quase sempre com destino certo para o Viaduto do Chá. Em uma dessas noites encontra Rejane, interpretada por Angelina Muniz, e aí é que sua vida vira mesmo de ponta a cabeça.

Rejane é uma riquinha mimada e liberada, sempre disposta a conseguir tudo o que quer, nem que seja o prazer pelo prazer. Certa noite vê Paulo em pé no parapeito do viaduto e corre até ele a fim de evitar um possível suicídio. Nasce aí uma paixão intensa e conflituosa, e que fará Paulo Reys se segurar nela como se fosse sua derradeira tábua de salvação.

A fotografia do mestre Claudio Portioli ressalta uma São Paulo fria e impiedosa, e desde a primeira cena fixa em close na placa do Viaduto do Chá, percebemos que a metrópole será personagem essencial na trama. Se como cenário de São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person, ela asfixiava o personagem de Walmor Chagas – “recomeçar, recomeçar” -, aqui ela parece querer anunciar que não há mais caminhos possíveis. Resta a Paulo Reys tentar driblar as armadilhas e estender um pouco mais seu tempo até o encontro indesviável de seu destino.

Amor, Palavra Prostituta

Dossiê Inácio Araújo

 

Amor, Palavra Prostituta
Direção: Carlos Reichenbach
Assistente de Direção, Cenografia, co-argumento, co-roteiro: Inácio Araújo 
Brasil, 1981.

Por Vébis Junior

Extremos do Prazer e Amor, Palavra Prostituta são resultados do fascínio do diretor pelo existencialismo, e principalmente do pré-existencialismo de Kierkgaard, ao mesmo tempo que os filmes carregam o débito do diretor com a pornochanchada.. Estes filmes não sintetizam o cinema de Reichenbach, mas sua experiência no cinema. Segundo o próprio Carlão “são atípicos na sua obra”.

Amor, Palavra Prostituta foi o primeiro filme em parceria com o crítico e jornalista Inácio Araújo como roteirista (que antes já havia montado Lilian M).

Naquela época, a captação de fundos para realização de um filme era diferente dos dias de hoje. Já tinham a verba e depois corriam atrás do assunto para o filme e seu roteiro. Existia uma lei de obrigatoriedade em que os produtores já estavam argolados com exibidores, por isso as produções eram rápidas, em duas semanas desenvolviam o roteiro, um curto espaço se levarmos em consideração que partiam do nada.

No caso de Amor, Palavra Prostituta desenvolveram algumas hipóteses como a história de um cara chato que se instalava na casa de dois amigos, mas engavetaram devido ao filme ficar tão chato quanto o personagem. Aí Reichenbach recorreu a velhas idéias em uma pasta arquivada. Encontraram uma história que acabou virando a primeira frase da personagem vivida pela Patrícia Scalvi: Vou voltar para Catanduva! – referindo-se a um amigo, Éder Manzini, montador do filme que era da região.

Inácio Araújo e Carlos Reichenbach escreviam os roteiros e argumentos durante a noite, a pedido de Reichenbach que achava a melhor hora para criar e desenvolver, e o processo de criação de personagens surgiam quando os dois construíam os diálogos como réplica, que soavam muito engraçado para os dois, que riam bastante. Quando o filme foi lançado, Lígia, esposa de Carlão, encontrou Inácio ao final da projeção que lhe perguntara se havia gostado do filme. A resposta foi um tanto quanto irônica: – Vocês riam muito a noite inteira e o filme é uma puta tragédia!!!

Inácio explica que o conjunto era dramático na história, Carlão queria mesmo era uma história de sangue! Ainda mais sobre um aborto mal feito, somente nos diálogos como, por exemplo, do personagem Luis Carlos (Roberto Miranda) com Fernando (Orlando Parolini).

A história é sobre uma operária especializada, casada com um professor desempregado (Orlando Parolini) que foi mestre do personagem de Roberto Miranda, que é o bonitão da história, e que aparecia com a moça na casa do professor depois de fazer um aborto que não deu certo.

A construção dos personagens, como a concepção dos filmes em geral contém muito do processo criativo de Inácio Araújo, por mais que o filme fosse de Reichenbach. Inclusive, Amor Palavra Prostituta é considerado pelo roteirista o primeiro filme com linguagem narrativa mais linear, graças a esta união.

Há uma preocupação social, do problema histórico do Brasil, subdesenvolvimento, das lutas de classes, mas não apenas isso. Acima de tudo e que difere dos problemas já citados, ele aborda problemas humanos. O personagem Fernando (Orlando Parolini), a vida que ele vive insiste que tome outra atitude, mas ele prefere continuar vivendo na contra-mão. (arquétipo comum dos personagens masculinos nos filmes de Carlão, os homens que dão murro em ponta de faca) Um problema existencial trazendo desilusão e desencanto. Um intelectual sem ação, resultado dos existencialistas que não têm certezas.

A presença da morte no filme está presente a todo tempo, desde o suicídio de um engravatado numa árvore na represa, até o aborto da garota deixada em agonia pelo personagem de Roberto Miranda. Nas leituras de Kierkgaard, a situação em que se encontra o professor é de desespero, justificando seu silêncio contínuo, conforme pesquisa já realizada por Milton do Prado ao redor da obra de Reichenbach. Um personagem, e, por consequência, um filme sem certezas. Só dá indícios de vida no final do filme, quando passou pela experiência simbólica da morte com o aborto de Lilita.

                                          “Eu acho que tem aí uma noção de que os encontros são múltiplos, a vida é múltipla, você vai ver na vida real, está sempre metido com pessoas que são diferentes de você. O fato de uma pessoa ser seu aluno não quer dizer que ela seja como você, completamente diferente neste contexto. Os caminhos que as pessoas são levadas são muito pessoais e estranhos. Mas isso também sempre teve, uma capacidade de escuta e de observar as coisas. Minha mulher achava que o Carlão carregava nas tintas na descrição dos personagens por exemplo, que os caras eram muito pesados, podiam ser mais leves, não eram aquilo, e o palavreado não é bem assim e tal. (pausa) mas de vez em quando eu estava com ela e você via uma cena, escutava alguém e você via como era assim mesmo, como na verdade e gente estava próximo da realidade. O que acontece? Quando estamos na vida real, você abstrai, né? quando você está vendo um filme, aquilo lá se transforma numa coisa muito importante. Mas os brasileiros estão muito parecidos com o que tem naqueles filmes, na verdade, nós tínhamos um objetivo a rigor realista, mas um realismo debochado também, né, senão não tem graça, seria buscar sempre o que está fora do parâmetro mais corriqueiro, tornando as relações mais completas, atrapalhadas e humanizadas.” (ARAÚJO Inácio entrevista concedida em Setembro de 2003).

Vébis Junior é cineasta e professor de cinema.

O Gosto do Pecado

Dossiê Inácio Araújo

O Gosto do Pecado
Direção: Cláudio Cunha
Assistência de direção, co-argumento, co-roteiro: Inácio Araújo
Brasil, 1980

Por Adilson Marcelino

Em O Gosto do Pecado, Jardel Mello é um crápula. Daqueles machões que não aceitam que suas presas escapem de suas mãos. Quando seu filho, uma criança, pergunta se ele não vai voltar mais para casa, ficamos sabendo que está recém-separado. Ele desconversa com o filho, mas para nós, o público, toma a narração condutora e é taxativo: certo dia olhei para ela (a esposa) e vi que ela não me interessava mais. Logo depois assistimos a separação de fato diante do juiz e ficamos sabendo que a mulher é Maria Lucia Dhal.

O amigo, John Herbert, logo leva Julio Garcia – Jardel – para se esbaldar nos inferninhos da noite paulistana, mas logo ele vai perceber que não sabe o que fazer com a liberdade adquirida e, a partir daí, fará de tudo para que a esposa o aceite de volta. Não necessariamente para casamento, mas para namoro com pinta de amante.

Maria Lucia se debate, resiste e não resiste, mas quando ele vê que está mesmo perdendo terreno, encanta-se pela secretária. Nada menos que a bela Simone Carvalho, que em cena digna de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado, desperta-lhe a libido e as garras de macho dono do pedaço. Só que a moça tem um noivo, o possessivo Fábio Villalonga, e daí se instaura um triângulo amoroso às claras, cheio de permissividade e interesses.

Essa descrição dos personagens poderia denotar seres repulsivos e sem nenhum real interesse além do escárnio. Só que não é nada disso. Em parte pelo talento dos atores – Jardel Mello, Simone Carvalho, Maria Lucia Dhal, John Herbert, Fábio Villalonga e Alba Valéria -, e também em boa parte pela direção de Claudio Cunha, que tem Inácio Araújo como assistente, e a fotografia elegante do mestre Carlos Reichenbach.

O Gosto do Pecado, que tem roteiro de Cunha, Araújo e Jean Garret, aponta sua lâmina com precisão para a diferença de classes e o quanto o poder manda e desmanda nessa seara. Enquanto Mello, Herbert e Dhal estão do lado de quem tem posses, Simone e Villalonga sacodem no ônibus lotado em direção à periferia onde moram.

Há ainda nesse mundinho de secretárias e patrões a figura de Alba Valéria – luminosa presença -, amante marginalizada de Mello, que se contorce na cama diante do gozo precoce do garanhão, que por sua vez não dá o braço a torcer e promove uma verdadeira curra na moça com a mão. A mesma atitude sádica ele terá com a prostituta interpretada por Ana Maria Kreisler, que ele sodomizará durante um programa.

O Gosto do Pecado esbanja solidão embebida em cinismo, mas nunca em ares blasé. O que há ali é uma verdade incômoda em personagens absolutamente e indesejadamente críveis. Tudo ao som de trilha sonora deliciosa de Jairo Ferreira, com direito a Je t´aime moi non plus e outras pérolas mais.

O Garotos Virgens de Ipanema

Dossiê Inácio Araújo

Os Garotos Virgens de Ipanema
Direção: Osvaldo Oliveira
Edição e Montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1973

Por Leo Pyrata

Existem alguns caminhos quase inevitáveis de se esbarrar quando falamos do Cinema da Boca. Partir do principio que de certa forma eles traduziam o senso comum e o imaginário popular servindo hoje como uma espécie de documento histórico do momento não é nenhum exagero. Em alguns filmes, a sensação parece se amplificar quando nos damos conta que alguns aspectos negativos daquele momento, ainda hoje, quarenta anos depois, continuam muito longe de serem superados.

Os Garotos Virgens de Ipanema ou Purinhas do Guarujá, uma comédia juvenil, é produção da Serviços Gerais de Cinema, mais conhecida como Servicine, (produtora fruto da parceria entre Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante). Comédia picante dirigida por Osvaldo de Oliveira, o Carcaça, diretor que segundo dizem não gostava de freqüentar cinema, mas que deixou uma obra exuberante em sua variedade de gêneros, de filmes de cangaço à musicais sertanejos, passando pelo marco do WIP e comédias eróticas, como esta que esse texto se propõe a tratar.

Produção de grande sucesso que trouxe em definitivo o apelo picante ao repertório das produções da Servicine, trata-se de um filme leve com temática juvenil, que trazia em seu elenco nomes estrelados como os de Mario Benvenuti e Elisabeth Hartmann. Os Garotos Virgens de Ipanema, visto hoje fora do contexto da época, mesmo levando em conta que boa parte das gags e a própria razão de ser do roteiro (de Enzo Barone e Osvaldo de Oliveira partindo da adaptação feita por Marcos Rey ao argumento proposto por Galante) venham justamente de interpretações equivocadas que o pai, vivido por Benvenuti, faz do comportamento do filho. Daniel, um adolescente que desde o primeiro plano do filme se aventura bisbilhotando o corpo feminino, não é compreendido por seu pai, que vive uma preocupação crescente acerca de um suposto desinteresse do filho pelo sexo oposto.

O pomo da discórdia é plantado logo no inicio do filme quando o pai se confunde achando que Daniel, por ter cabelo grande (como era bem comum aos jovens da época do filme), estava sendo confundido com uma mulher e, consequentemente, paquerado durante um desfile de moda. Daniel passa a partir daí a representar o fantasma da homossexualidade, apavorando o personagem de seu pai, que por sua vez tenta de varias maneiras “endireitar” o filho com soluções cujos efeitos parecem ainda mais inócuos aos olhos do pai.

Vale lembrar ao leitor que as comédias eróticas faziam uso dos tipos e dos clichês que povoavam o imaginário popular e que por trás da intenção cômica muito pode ser observado sobre um certo olhar machista-varão-patriarca da época. E daí surgem alguns dados importantes na seqüência final, em que o pai descobre que está sendo corneado pelo filho e a despeito da traição sai comemorando e bradando ” meu filho é homem”, “um verdadeiro trombeta”. Sintomático que o filho só passe a existir depois de provar sua “macheza” aos olhos bisbilhoteiros do pai, que não liga para o fato de ser traído desde que sua linhagem tenha continuidade. Emblemático o plano final com Benvenuti fazendo o gestual de fodedor garanhão em frente à casa grande.

Relacionando o momento do filme com episódios recentes de homofobia nos esportes ou ainda as agressões noticiadas quase que diariamente nos jornais protagonizadas até por representantes do povo brasileiro como o deputado Bolsonazi, ops, Bolsonaro, o que fica é a impressão de que vivemos em momentos ainda mais medievais. Resta saber se isso se traduzirá aos nossos olhos quando pensarmos com distanciamento no cinema de hoje, especialmente o que tem acesso ao circuito de exibição e que é bancado pelos editais e avalizado por equipes de marketing de grandes empresas. Tenho o palpite que dificilmente existirá a sinceridade de um filme como o Garotos, que remete à um tempo em que o cinema brasileiro (salvo a Embrafilme) era feito com recursos privados.

Leo Pyrata é estudante de cinema, ator do curta Contagem – Prêmio de Melhor Direção para Gabriel Martins e Maurílio Martins no Festival de Brasília -, diretor do curta Retrato em Vão, co-diretor do longa Estado de Sítio, e vocalista da banda Grupo Porco de Grindcore Interpretativo.

Brava Gente Brasileira

Especial O Indio no Cinema Brasileiro

 

Brava Gente Brasileira
Direção: Lucia Murat
Brasil, 2000.

Por Filipe Chamy

Não é preciso lembrar dos infames exemplos dados por gente como os Bolsonaros da vida para perceber que o Brasil não está muito longe de seus primitivos preconceitos étnicos. Podemos dizer que hoje já não somos colônia, mas certamente ainda temos um pensamento colonial.

Solapamos parte de nossa ancestralidade ao ignorar a cultura indígena, ao ponto de termos magnífica dificuldade em compreender seus gestos, seu pensamento, suas pinturas corporais ou faciais, até mesmo sua língua. Os dialetos dos nativos de nossa terra nos parecem mais misteriosos que todo o exotismo linguístico de um Oriente inteiro.

Então aí chegamos na ironia: a distância dos colonizadores é inexistente. Ou melhor, se ela existe, é temporal: porque no cerne é o nosso mesmo tempo. Nós somos desse jeito. Zombamos das diferenças, imitamos hábitos irracionais ruins, não queremos saber do que é diferente do nosso habitual. E quando queremos apreender ou aprender algo, já é tarde, dizimamos uma raça, uma cultura, uma etnia.

No filme de Lúcia Murat, temos um retrato dessa nossa característica brasileira e humana. À parte os trajes, somos aqueles ignorantes agressores de índios, a condená-los por monstros e feras e bestas por seus costumes, seu agir, sua vida. E também somos aquela religiosidade hipócrita representada no filme por um gordo padre (filmado como Orson Welles se filmava, de baixo para cima, ocupando a tela com sua pança malvada), lavando as mãos para os crimes que no fundo endossa com sua velada falsidade. E, claro, somos o europeu de olhares mais brandos, covarde na sua falta de ânimo para reagir, acomodado ante sua certeza de bons modos, incapaz de tentar fazer algo para mudar o que quer que seja — e que quando se mete a consertar algo, acaba por apressar o fim de tudo, para o bem ou para o mal.

Então temos um filme com códigos (cultura indígena) decodificado pelo nosso reconhecimento naqueles personagens. E se não é exatamente um mérito ser um espelho de nossa realidade, o filme balança entre extremos de uma certa poetização da realidade e uma crueza naturalista no choque entre o habitante e o invasor. Então vemos, com diferença de minutos, planos com a natureza, sons mágicos de produção rude mas delicada presença, e um homem rachando a cabeça de um menino que agrediu seu Cristo.

No fundo, mais que uma crítica ao atribulado processo de devastação do físico e moral do país, Brava gente brasileira é uma espécie de teatro de tipos que construíram a identidade desta terra. Se gostamos mais de nos imaginar como a bela indiazinha nadando nua e serena em águas despoluídas, em verdade estamos mais próximos do barbudo e truculento capitão do mato que escangalha uma paz em que não acredita. Bêbado, intransigente, desbocado e com ideias bem definidas sobre a moralidade pagã dos peles-vermelhas nacionais, o homem é parte do Macunaíma que Lúcia Murat mostra em seu filme, tentando não fazer julgamentos mas evidentemente ficando atrás em seu intento pela força das imagens.

E de tudo, o que fica é o contraste desagradável e necessário entre a felicidade dos índios do começo do filme, pintados por orgulho, altivos e joviais, e os índios guerreiros do fim, abatidos, embrutecidos e apagados numa miséria atávica que os condena a vagar como espíritos por entre as páginas só hoje revisadas da História. E mesmo assim, quem garante que eles retomem sua dignidade? Ao menos no cinema eles são livres para correr e respirar em sua terra, conviver com seu povo e tentar lutar contra as forças que os oprimem. E quando o cinema deixar de apoiá-lo, o índio morrerá de novo.

Caramuru, A Invenção do Brasil

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Caramuru, a Invenção do Brasil
Direção: Guel Arraes
Brasil, 2001.

Por William Alves

Diogo Álvares, o personagem, representa a legítima encarnação do português panaca. Sua mania execrável de sempre acreditar em qualquer um que não em si mesmo acaba forçando o seu degredo ao Brasil, sobre o qual os artistas pobres, como ele, não sabiam absolutamente nada. A embarcação que o transportava naufraga, e ele se vê perdido em meio à tribo dos temíveis tupinambás. Na história oficial, conta-se que os índios assassinaram todos os companheiros de barco de Álvares. O diretor Guel Arraes, por devida conveniência, não menciona o episódio sangrento e prefere focar suas lentes nas peripécias do bem-humorado artista.

Álvares conquista dos indígenas a alcunha de “Caramuru” – algo como “Pau que cospe fogo” –, após disparar uma rajada da arma de fogo que levava consigo. Melhor: Caramuru, além de uma nomenclatura estilosa, conquista o direito de fornicar livremente com as curvilíneas índias Paraguaçu e Moema (interpretadas, respectivamente, por Camila Pitanga e Débora Secco), que se enrabicham pelo rapaz logo no início. Ambas são criaturas despachadas. Ou “tupinambás hospitaleiras”, como preferem os franceses que também aportam naquele pedaço colonizado de terra.

Há de se ressaltar a enorme similaridade de Caramuru com o filme mais conhecido de Arraes, O Auto da Compadecida. Além de compartilharem o protagonista (Selton Mello, que também atuou em Lisbela e o Prisioneiro, terceiro longa do diretor), partilham do mesmo modus operandi: os personagens falam muito, expelem sem reservas todos os pensamentos que brotam em suas respectivas telhas. E toda essa verborragia vem na forma de piadas ou anedotas. Como a grande maioria desse fluxo interminável de prosa é, de fato, espirituosa, inegável mérito para Arraes e seu escudeiro, o também diretor Jorge Furtado. Que, certamente, se debruçaram sobre um volume colossal de script.

Os dois condutores do filme também são “ajudados” pela fotografia paradisíaca proporcionada pela praia de Picinguaba, que serviu de cenário para a parte brasileira do filme. Não por acaso, a cena mais bonita do filme não contém palavras: Moema, vencida pelo cansaço após furiosas braçadas, observa o barco de Paraguaçu e Álvares partirem para a Europa, onde Caramuru sempre foi um pouquinho mais infeliz.

Como o longa foi produzido pela Globo Filmes, era freqüente a sua exibição nas tardes da emissora, talvez numa referência velada a outro clássico tropical das exibições vespertinas da Globo, o estadunidense A Lagoa Azul, com Brooke Shields. Na dúvida, não hesite demais: Brooke, nos desculpe, mas o nosso é bem melhor.

Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel
Direção:Carlos Coimbra
Brasil, 1979

Por Matheus Trunk

O diretor Carlos Coimbra (1928-2007) é um dos homens mais injustiçados da história do cinema brasileiro. Seu nome ainda é desprezado por diversos intelectuais do meio cinematográfico. Mas na Boca de São Paulo, ele sempre foi tido como um cineasta do primeiro escalão.

Com seu jeito retraído, humilde e bastante educado, o realizador ficou conhecido por seus filmes de cangaço. Profissional de mão cheia, ele era respeitado por ser um excelente montador. Era desses tipos que acordam, almoçam e dormem pensando somente em cinema.

Em 1979, o cineasta fez um de seus melhores trabalhos: Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel. Baseado no consagrado romance de José de Alencar, o longa-metragem conta a clássica história de amor entre a uma índia e um explorador português.

Filha do pajé da tribo Tabajara, a protagonista é a guardiã do segredo do licor da Jurema. Dessa maneira, o corpo da moça pertence à divindade indígena Tupã. Para a mitologia de seu povo, o corpo de Iracema não pode ser entregue a ninguém. Tudo muda quando ela conhece Martim.

São diversos os aspectos que merecem ser destacados. A produção é bastante caprichada para as produções paulistas da época. A fotografia de Pio Zamuner e Antônio Meliande é fantástica. As belas praias do litoral cearense poucas vezes tiveram tanto espaço no cinema brasileiro como nesse trabalho.

A atriz Helena Ramos está divina como a índia Iracema. É impressionante como Coimbra conseguiu transformar a musa da pornochanchada em uma atriz dramática. Poucos diretores conseguiriam isso. Sem dúvida, Helena faz um dos grandes papéis de sua carreira.

Tony Correia não está na mesma sintonia. “Não era exatamente um ator, era um tipo bonitão que havia feito uma novela de sucesso na TV Globo”, admitiu o diretor da película em sua biografia Um Homem Raro, escrita pelo jornalista Luiz Carlos Merten para a Coleção Aplauso.

Sucesso de bilheteria, este longa-metragem resistiu razoavelmente bem ao tempo. Embora tenha o clima um pouco arrastado, o filme melhora significamente do meio para o final. De qualquer maneira, assistir Iracema é uma boa oportunidade para conhecer a obra de José de Alencar, as belas praias do Ceará e principalmente a grandeza de Carlos Coimbra.

Mato Eles?

Especial O Indio no Cinema Brasileiro

Mato Eles?
Direção: Sérgio Bianchi
Brasil, 1982.

Por Sérgio Andrade

Diante da questão indígena muita gente gostaria de adotar a filosofia do General Sheridan, aquele que dizia que “índio bom é índio morto”.

O diretor Sergio Bianchi, sempre disposto a provocar, decidiu encarar o problema.

Nascido em Curitiba, mas morando em São Paulo, ele decidiu, no final dos anos 1970, voltar à sua cidade para realizar um filme. Na sua busca por investimento, chegou a ser acusado de tentar agredir o Secretário da Cultura com uma barra de ferro. Esclarecido o assunto, conseguiu a verba necessária e uma carta de apresentação para tocar um projeto, que veio na forma de um documentário sobre os índios da reserva Mangueirinha, no sudoeste do Paraná.

Utilizando como base o texto Paraná Nativo, de Jacó Cesar Piccoli, e uma equipe reduzida (fotografia de Pedro Farkas, som de Marian Van de Ven), munido de sua ironia particular, Bianchi faz uma série de perguntas a padres, índios, funcionários públicos, ao espectador e a ele próprio sobre o que acontece na tal reserva. Mas não espere por respostas definitivas.

A morte do cacique Ângelo Cretã em janeiro de 1980, num acidente de carro até hoje não solucionado, dá início a várias questões de múltipla escolha, como se fossem perguntas de vestibular, escritas na tela.

Na reserva onde vivem índios Guaranis, Kaincangs e um Xetá (provavelmente o último da sua tribo, o que leva ao momento mais divertido do filme), a Funai tinha uma serraria onde os índios eram usados como mão de obra barata e as toras eram vendidas para outras firmas madeireiras da região. A pergunta sobre o que acontecerá com os indígenas quando a madeira acabar é feita diversas vezes, sem que ninguém saiba dar uma resposta satisfatória (a melhor delas: “vamos ficar olhando um pra cara do outro”). A alegação de que era cortada apenas madeira desvitalizada é desmentida por um dos índios. Aliás, vale assinalar que é o diretor Bianchi que questiona os entrevistados, às vezes por trás da câmera e outras vezes diante dela.

Ele se antecipa aos documentários atuais, que misturam realidade com ficção, ao colocar dois atores – uma representando uma socialite e outro um professor – dando falsos depoimentos. E também não se exime de culpa, ao mostrar um velho índio perguntando quanto ele iria faturar com o filme.

Ao final, enumera as diversas formas de se ganhar dinheiro defendendo os índios, antes que eles acabem: comprar terras da reserva; fazer um livro de fotografia; pegar objetos indígenas para vender numa loja; desenvolver uma pesquisa acadêmica visando bolsa de estudo; criar uma ONG ou então filmar um documentário sobre o extermínio indígena para ganhar passagens de graça para diversos festivais de cinema em várias partes do mundo…