Brava Gente Brasileira

Especial O Indio no Cinema Brasileiro

 

Brava Gente Brasileira
Direção: Lucia Murat
Brasil, 2000.

Por Filipe Chamy

Não é preciso lembrar dos infames exemplos dados por gente como os Bolsonaros da vida para perceber que o Brasil não está muito longe de seus primitivos preconceitos étnicos. Podemos dizer que hoje já não somos colônia, mas certamente ainda temos um pensamento colonial.

Solapamos parte de nossa ancestralidade ao ignorar a cultura indígena, ao ponto de termos magnífica dificuldade em compreender seus gestos, seu pensamento, suas pinturas corporais ou faciais, até mesmo sua língua. Os dialetos dos nativos de nossa terra nos parecem mais misteriosos que todo o exotismo linguístico de um Oriente inteiro.

Então aí chegamos na ironia: a distância dos colonizadores é inexistente. Ou melhor, se ela existe, é temporal: porque no cerne é o nosso mesmo tempo. Nós somos desse jeito. Zombamos das diferenças, imitamos hábitos irracionais ruins, não queremos saber do que é diferente do nosso habitual. E quando queremos apreender ou aprender algo, já é tarde, dizimamos uma raça, uma cultura, uma etnia.

No filme de Lúcia Murat, temos um retrato dessa nossa característica brasileira e humana. À parte os trajes, somos aqueles ignorantes agressores de índios, a condená-los por monstros e feras e bestas por seus costumes, seu agir, sua vida. E também somos aquela religiosidade hipócrita representada no filme por um gordo padre (filmado como Orson Welles se filmava, de baixo para cima, ocupando a tela com sua pança malvada), lavando as mãos para os crimes que no fundo endossa com sua velada falsidade. E, claro, somos o europeu de olhares mais brandos, covarde na sua falta de ânimo para reagir, acomodado ante sua certeza de bons modos, incapaz de tentar fazer algo para mudar o que quer que seja — e que quando se mete a consertar algo, acaba por apressar o fim de tudo, para o bem ou para o mal.

Então temos um filme com códigos (cultura indígena) decodificado pelo nosso reconhecimento naqueles personagens. E se não é exatamente um mérito ser um espelho de nossa realidade, o filme balança entre extremos de uma certa poetização da realidade e uma crueza naturalista no choque entre o habitante e o invasor. Então vemos, com diferença de minutos, planos com a natureza, sons mágicos de produção rude mas delicada presença, e um homem rachando a cabeça de um menino que agrediu seu Cristo.

No fundo, mais que uma crítica ao atribulado processo de devastação do físico e moral do país, Brava gente brasileira é uma espécie de teatro de tipos que construíram a identidade desta terra. Se gostamos mais de nos imaginar como a bela indiazinha nadando nua e serena em águas despoluídas, em verdade estamos mais próximos do barbudo e truculento capitão do mato que escangalha uma paz em que não acredita. Bêbado, intransigente, desbocado e com ideias bem definidas sobre a moralidade pagã dos peles-vermelhas nacionais, o homem é parte do Macunaíma que Lúcia Murat mostra em seu filme, tentando não fazer julgamentos mas evidentemente ficando atrás em seu intento pela força das imagens.

E de tudo, o que fica é o contraste desagradável e necessário entre a felicidade dos índios do começo do filme, pintados por orgulho, altivos e joviais, e os índios guerreiros do fim, abatidos, embrutecidos e apagados numa miséria atávica que os condena a vagar como espíritos por entre as páginas só hoje revisadas da História. E mesmo assim, quem garante que eles retomem sua dignidade? Ao menos no cinema eles são livres para correr e respirar em sua terra, conviver com seu povo e tentar lutar contra as forças que os oprimem. E quando o cinema deixar de apoiá-lo, o índio morrerá de novo.

Caramuru, A Invenção do Brasil

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Caramuru, a Invenção do Brasil
Direção: Guel Arraes
Brasil, 2001.

Por William Alves

Diogo Álvares, o personagem, representa a legítima encarnação do português panaca. Sua mania execrável de sempre acreditar em qualquer um que não em si mesmo acaba forçando o seu degredo ao Brasil, sobre o qual os artistas pobres, como ele, não sabiam absolutamente nada. A embarcação que o transportava naufraga, e ele se vê perdido em meio à tribo dos temíveis tupinambás. Na história oficial, conta-se que os índios assassinaram todos os companheiros de barco de Álvares. O diretor Guel Arraes, por devida conveniência, não menciona o episódio sangrento e prefere focar suas lentes nas peripécias do bem-humorado artista.

Álvares conquista dos indígenas a alcunha de “Caramuru” – algo como “Pau que cospe fogo” –, após disparar uma rajada da arma de fogo que levava consigo. Melhor: Caramuru, além de uma nomenclatura estilosa, conquista o direito de fornicar livremente com as curvilíneas índias Paraguaçu e Moema (interpretadas, respectivamente, por Camila Pitanga e Débora Secco), que se enrabicham pelo rapaz logo no início. Ambas são criaturas despachadas. Ou “tupinambás hospitaleiras”, como preferem os franceses que também aportam naquele pedaço colonizado de terra.

Há de se ressaltar a enorme similaridade de Caramuru com o filme mais conhecido de Arraes, O Auto da Compadecida. Além de compartilharem o protagonista (Selton Mello, que também atuou em Lisbela e o Prisioneiro, terceiro longa do diretor), partilham do mesmo modus operandi: os personagens falam muito, expelem sem reservas todos os pensamentos que brotam em suas respectivas telhas. E toda essa verborragia vem na forma de piadas ou anedotas. Como a grande maioria desse fluxo interminável de prosa é, de fato, espirituosa, inegável mérito para Arraes e seu escudeiro, o também diretor Jorge Furtado. Que, certamente, se debruçaram sobre um volume colossal de script.

Os dois condutores do filme também são “ajudados” pela fotografia paradisíaca proporcionada pela praia de Picinguaba, que serviu de cenário para a parte brasileira do filme. Não por acaso, a cena mais bonita do filme não contém palavras: Moema, vencida pelo cansaço após furiosas braçadas, observa o barco de Paraguaçu e Álvares partirem para a Europa, onde Caramuru sempre foi um pouquinho mais infeliz.

Como o longa foi produzido pela Globo Filmes, era freqüente a sua exibição nas tardes da emissora, talvez numa referência velada a outro clássico tropical das exibições vespertinas da Globo, o estadunidense A Lagoa Azul, com Brooke Shields. Na dúvida, não hesite demais: Brooke, nos desculpe, mas o nosso é bem melhor.

Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel
Direção:Carlos Coimbra
Brasil, 1979

Por Matheus Trunk

O diretor Carlos Coimbra (1928-2007) é um dos homens mais injustiçados da história do cinema brasileiro. Seu nome ainda é desprezado por diversos intelectuais do meio cinematográfico. Mas na Boca de São Paulo, ele sempre foi tido como um cineasta do primeiro escalão.

Com seu jeito retraído, humilde e bastante educado, o realizador ficou conhecido por seus filmes de cangaço. Profissional de mão cheia, ele era respeitado por ser um excelente montador. Era desses tipos que acordam, almoçam e dormem pensando somente em cinema.

Em 1979, o cineasta fez um de seus melhores trabalhos: Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel. Baseado no consagrado romance de José de Alencar, o longa-metragem conta a clássica história de amor entre a uma índia e um explorador português.

Filha do pajé da tribo Tabajara, a protagonista é a guardiã do segredo do licor da Jurema. Dessa maneira, o corpo da moça pertence à divindade indígena Tupã. Para a mitologia de seu povo, o corpo de Iracema não pode ser entregue a ninguém. Tudo muda quando ela conhece Martim.

São diversos os aspectos que merecem ser destacados. A produção é bastante caprichada para as produções paulistas da época. A fotografia de Pio Zamuner e Antônio Meliande é fantástica. As belas praias do litoral cearense poucas vezes tiveram tanto espaço no cinema brasileiro como nesse trabalho.

A atriz Helena Ramos está divina como a índia Iracema. É impressionante como Coimbra conseguiu transformar a musa da pornochanchada em uma atriz dramática. Poucos diretores conseguiriam isso. Sem dúvida, Helena faz um dos grandes papéis de sua carreira.

Tony Correia não está na mesma sintonia. “Não era exatamente um ator, era um tipo bonitão que havia feito uma novela de sucesso na TV Globo”, admitiu o diretor da película em sua biografia Um Homem Raro, escrita pelo jornalista Luiz Carlos Merten para a Coleção Aplauso.

Sucesso de bilheteria, este longa-metragem resistiu razoavelmente bem ao tempo. Embora tenha o clima um pouco arrastado, o filme melhora significamente do meio para o final. De qualquer maneira, assistir Iracema é uma boa oportunidade para conhecer a obra de José de Alencar, as belas praias do Ceará e principalmente a grandeza de Carlos Coimbra.

Mato Eles?

Especial O Indio no Cinema Brasileiro

Mato Eles?
Direção: Sérgio Bianchi
Brasil, 1982.

Por Sérgio Andrade

Diante da questão indígena muita gente gostaria de adotar a filosofia do General Sheridan, aquele que dizia que “índio bom é índio morto”.

O diretor Sergio Bianchi, sempre disposto a provocar, decidiu encarar o problema.

Nascido em Curitiba, mas morando em São Paulo, ele decidiu, no final dos anos 1970, voltar à sua cidade para realizar um filme. Na sua busca por investimento, chegou a ser acusado de tentar agredir o Secretário da Cultura com uma barra de ferro. Esclarecido o assunto, conseguiu a verba necessária e uma carta de apresentação para tocar um projeto, que veio na forma de um documentário sobre os índios da reserva Mangueirinha, no sudoeste do Paraná.

Utilizando como base o texto Paraná Nativo, de Jacó Cesar Piccoli, e uma equipe reduzida (fotografia de Pedro Farkas, som de Marian Van de Ven), munido de sua ironia particular, Bianchi faz uma série de perguntas a padres, índios, funcionários públicos, ao espectador e a ele próprio sobre o que acontece na tal reserva. Mas não espere por respostas definitivas.

A morte do cacique Ângelo Cretã em janeiro de 1980, num acidente de carro até hoje não solucionado, dá início a várias questões de múltipla escolha, como se fossem perguntas de vestibular, escritas na tela.

Na reserva onde vivem índios Guaranis, Kaincangs e um Xetá (provavelmente o último da sua tribo, o que leva ao momento mais divertido do filme), a Funai tinha uma serraria onde os índios eram usados como mão de obra barata e as toras eram vendidas para outras firmas madeireiras da região. A pergunta sobre o que acontecerá com os indígenas quando a madeira acabar é feita diversas vezes, sem que ninguém saiba dar uma resposta satisfatória (a melhor delas: “vamos ficar olhando um pra cara do outro”). A alegação de que era cortada apenas madeira desvitalizada é desmentida por um dos índios. Aliás, vale assinalar que é o diretor Bianchi que questiona os entrevistados, às vezes por trás da câmera e outras vezes diante dela.

Ele se antecipa aos documentários atuais, que misturam realidade com ficção, ao colocar dois atores – uma representando uma socialite e outro um professor – dando falsos depoimentos. E também não se exime de culpa, ao mostrar um velho índio perguntando quanto ele iria faturar com o filme.

Ao final, enumera as diversas formas de se ganhar dinheiro defendendo os índios, antes que eles acabem: comprar terras da reserva; fazer um livro de fotografia; pegar objetos indígenas para vender numa loja; desenvolver uma pesquisa acadêmica visando bolsa de estudo; criar uma ONG ou então filmar um documentário sobre o extermínio indígena para ganhar passagens de graça para diversos festivais de cinema em várias partes do mundo…

O Guarani

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

O Guarani
Direção: Norma Bengell
Brasil, 1996.

Por William Alves

Não há espaço para inferência em O Guarani. Tudo é, meticulosamente, explicitado em voz alta, e a índole dos personagens ou é branca, ou é preta. Não existem desinteressados, acomodados ou indiferentes. O núcleo sórdido do filme tem sua representação máxima em Loredano, interpretado por José Abreu, que tenciona tomar a fortuna do chefe, Dom Antônio de Mariz, e deflorar a cobiçada Ceci, filha do senhor de terras. Ceci, que capitaneia a turma do bom coração, só deseja o índio Peri, que vive nas redondezas como um bicho de estimação de luxo. O anseio da moça é frustrado pelo fato incontornável de que Peri é um… índio, né? De maniqueísmo em maniqueísmo, de luta de classe em luta de classe, um longa-metragem vai se formando.

Dirigido por uma das eternas musas do cinema nacional, Norma Bengell, e baseado no romance clássico de José de Alencar, O Guarani é constantemente rememorado mais pelo fracasso de público e por supostas irregularidades financeiras envolvendo a produção do que pelo filme em si. Um dos papéis principais ficou para Marcio Garcia, até então uma emergente estrela oriunda de telenovelas Globais. O resto do elenco foi povoado por figuras célebres, como Herson Capri, Glória Pires e o já mencionado Abreu.

Na história, que tem como pano de fundo o Brasil do século XVII, Peri e a filha dos nobres, Ceci, vivem um amor platônico, depois que o nativo salva a vida da moça. Peri conquista, então, o direito de morar – ou pelo menos passear pelo quintal – na casa do colonizador, Dom Antônio de Mariz, pai de Ceci. Dom Diogo, também filho do colonizador, acaba assassinando um índio aimoré. A família passa a viver em tensão, aguardando uma violenta represália dos indígenas. Mesmo com toda a forte segurança privada que Antônio de Mariz é capaz de custear, é Peri quem acaba tomando para si a tarefa de defender a família e, como bônus, ficar mais perto do seu amor.

Peri, inclusive, parece imune a qualquer humilhação. E o desprezo dos portugueses pelo humilde indígena é demonstrado explícita (“quero esse selvagem fora daqui”, exclama a matriarca) ou implicitamente, através do sectarismo português, que só julga digno de respeito os batizados na cristandade. Peri, que é mais simples, não liga para nada disso e só busca a aprovação de Ceci. Os dois mal se tocam, apesar do desejo evidente. E é nessa tensão sexual que reside o único apelo do filme. Visto que todo o resto é escancarado em voz alta.

Serras da Desordem

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Serras da Desordem
Direção: Andrea Tonacci
Brasil, 2006

Por Vlademir Lazo

Passados cerca de cinco anos da realização (e posterior exibição) de Serras da Desordem, o filme de Andréa Tonacci prossegue sua existência firme na lembrança dos que o assistiram e alheio a uma multidão que o ignora ou simplesmente nunca ouviu falar nele. Saudado como o retorno de Tonacci vinte cinco anos após o clássico marginal Bang Bang (embora não devam ser esquecidos os documentários etnográficos que dirigiu nessas três décadas, e que muito o prepararam para Serras da Desordem), o filme se estabelece como um novo mito de nossa cinematografia.

Pouco visto e divulgado (ainda não saiu em DVD e é raro encontrá-lo nas programações dos canais de TV), Serras sofre uma marginalização tristemente coerente com a trajetória de seu realizador e com o universo que seu filme circunda. Num tempo em que a maioria dos sucessos do cinema nacional são filmes (e isso inclui os bons e os ruins) que parecem feitos para quem especificamente não gosta de cinema nacional, Serras se ergue como uma peça de resistência sobretudo por ser um filme brasileiro até a medula. Tonacci pode ter citado nas entrevistas alguns cineastas que o inspiraram (como Roberto Rossellini, para ficarmos em apenas um exemplo), e nada impede que ao nos confrontarmos com o filme estabeleçamos conexões com obras das origens mais diversas, porém não enxergamos ali uma maior influência européia, americana ou asiática. Serras da Desordem é filme essencialmente brasileiro, no sentido de que não poderia pertencer a nenhuma outra cinematografia, visto que sua razão de ser é emergir um bocado da identidade do país e de uma etnia, mas muito também por sua pregnância estética que não encontra paralelo com nada conhecido ou que tenhamos visto antes.

Escrever sobre Serras da Desordem pode incorrer em ao menos um problema: o do quanto é difícil descrever em palavras e comentá-lo à altura dos seus atributos. O seu encanto vem de uma tal potência de forma e conteúdo (que se imbricam o tempo todo) que desafia a possibilidade de sua descrição. E como deter-se no filme sem a vontade de colocá-lo num pedestal, o que por si só cairia no perigo de torná-lo ainda mais à parte e distante do que nos rodeia, deixando-o como um objeto cinematográfico vítima do excesso de reverência que seus maiores admiradores alimentam (nossa reação natural é mesmo a de maravilhamento)? Serras é tão novo e já um mito não-visto, menos conhecido do que deveria. Um filme para poucos, quando ao contrário, deveria mesmo era ser assistido por multidões relativamente maiores. O que não pode é o próprio mito do filme afastar espectadores desconfiados e os não-curiosos por medo ou aversão pré-concebida. Porque, mais que uma investigação a fundo sobre um povo e um país, Serras da Desordem desemboca numa aventura estimulantemente cinematográfica.

O crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum certa vez escreveu que é preciso se tornar amigo de O Vento Nos Levará (de Abbas Kiarostami) para o filme se abrir por inteiro ao espectador, mas que depois suas recompensas se tornam ilimitadas. O mesmo ocorre com Serras da Desordem: não é preciso esforço ou dedicação redobrada para compreender ou apreciar sua proposta, porém ao nos permitirmos estabelecer uma intimidade com o filme de Tonacci, com as possibilidades que ele abre em nosso olhar, suas recompensas são bem mais amplas do que com a maioria dos outros filmes.

Como já ocorria em Bang Bang, Tonacci é um cineasta que mantém o seu cinema em constante fluxo. A cada plano há a necessidade de chegar a imagem/abordagem mais adequada. Daí seus filmes desconcertarem num primeiro momento. Na abertura, temos um prólogo com um índio na selva, e logo aparecem outros, em planos lúdicos que compartilham conosco suas ações (como o corte do mato para produzir o fogo ou banhos em grupo no riacho) durante uns quinze minutos, com muitas fusões e variações cromáticas que nos deleitam o olhar sem se tornarem gratuitas, reforçando a atmosfera pretendida pela ambiência desse contexto primitivo. Seria uma encenação ficcional da vida indígena pré-Descobrimento ou num tempo posterior ou atual? Um registro documental de um grupo indígena no presente?

O filme rompe as fronteiras entre a representação e a documentação. Nada nos é explicado (pelo menos não num primeiro momento), apenas observamos como o filme consegue capturar a textura da vida cotidiana daquelas pessoas, e essa representação é tão verdadeira que pouco importa se estamos diante de um filme de ficção ou se os acontecimentos são contemporâneos ou pré-colonial. Os detalhes das ações são menos importantes em si do que a maneira com que Tonacci simplesmente acompanha em planos fixos os indígenas. Poderíamos mencionar o começo de 2001-Uma Odisséia no Espaço como um paralelo próximo ao da abertura de Serras da Desordem, cuja natureza e habitantes primitivos também são transformados pela inclusão de elementos novos e estranhos. No filme de Kubrick, o aparecimento do monolíto extraterrestre e a descoberta do osso como armas para a caça e a guerra; no de Tonacci, o avião sobrevoando os céus da floresta (tendo apenas o som que ele produz, e o olhar curioso dos personagens, nos localizando também no tempo) e a chegada do trem (cujo fundo sonoro à base de sintetizadores prolongam a experiência sensorial e manifestação concreta e fluida que já se desenvolvia até ali e prossegue até o final) prenunciando o progresso e a destruição advinda do homem branco.

Toda uma perspectiva da construção da civilização brasileira é apresentada na montagem do fragmento seguinte: sobreposições de imagens de arquivo com o desmatamento e derrubada de árvores e florestas, construções de ferrovias, períodos históricos recentes, estádios de futebol repletos de gente da classe trabalhadora, usinas hidrelétricas, carnaval, conflitos com a polícia, atentados políticos, entre muitas outras passagens brevemente resumidas. Em suma, todo um amplo mosaico (não didático ou intelectual) de alguns minutos a partir das aldeias com os primeiros habitantes indígenas até a contemporaneidade é passado a limpo no primeiro ato de Serras da Desordem, com a transformação de um país sempre em busca de uma identidade perdida e jamais recuperada.

Ocorre o massacre de uma tribo, Awa-Guajá, por criminosos brancos. Serras da Desordem se revela como a reencenação da história de um sobrevivente do massacre, o índio Carapiru, cuja história é a própria síntese de sua civilização expulsa do território que ocupavam. É o próprio Carapiru, mais velho, que interpreta a si mesmo anos depois dos acontecimentos, com as variações de formato, 16mm/vídeo, alternância entre preto-e-branco e cores, utilização de material de arquivos, depoimentos e entrevistas, etc. Em alguns momentos, um filme de aventura (realçado por efeitos da própria montagem), em outros, de puro registro documental. Serras da Desordem é tanto um painel antropológico e humano quanto um mosaico estético, que nunca nos deixa desorientado, mas imersos em sua construção, pois esta se desenvolve de maneira orgânica, se desvela de modo natural. Carapiru foge e é acolhido, primeiro por uma comunidade rural, depois pelos moradores de uma região do sertão, que o ensinam a se adaptar à vida urbana até se afastar deles e reencontrar um filho perdido e sobreviventes de sua tribo, e até se perceber também diferente deles e novamente ir embora.

Nem ficção ou documentário (deixemos as classificações para os resenhistas de sinopse ou para os acadêmicos de plantão); Tonacci faz com algumas histórias reencenadas trinta anos depois diante de uma câmera se transformem em história que acontece agora também, fatos são dramatizados e convertidos em película, transformados em cinema puro. O cineasta acaba com a linha tênue do documental e ficção. E o filme e a trajetória de Carapiru dentro dele se encerram com um registro da sua própria filmagem: o próprio Tonacci dando instruções à sua equipe sobre as primeiras imagens do filme que está sendo feito, e já à esta altura em definitivo parte integrante de cada um de nós, o filme que terminamos de assistir, evidentemente. O círculo se fecha, mas pede que sempre retornemos a ele.

Yndio do Brasil

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Yndio do Brasil
Direção: Sylvio Back
Brasil, 1995.

Por Aílton Monteiro

Yndio do Brasil (1995), de Sylvio Back, é uma colagem de dezenas de imagens com canções de diversas épocas e poesias escritas pelo próprio cineasta e narradas por José Mayer. Uma das mais interessantes é a que diz “Run, Xavanti, Run; Run, Rondon ronda”. Assim, a poesia vai citando diversas tribos indígenas e mencionando o Marechal Rondon, homem que desbravou o Brasil e que o cineasta vê como inimigo dos índios, embora ele mostre uma propaganda do Governo que o veja como um homem que nunca matou um índio, um “apóstolo das selvas”. Como o tom de Yndio do Brasil é ácido, todo e qualquer trecho apresentado é visto como uma amostra dos maus tratos e do preconceito que o índio sofreu e continua sofrendo.

A propaganda, por exemplo, que mostra a guerrilha do Araguaia, com vários índios nos arredores sendo afetados pelo tiroteio, sem ter praticamente nada a ver com aquela briga, traz um registro trágico-cômico. Alguns trechos soltos parecem estranhos ao filme, como a cena que mostra um grupo de jovens felizes ao som de “Marcas do que se foi”, dos Incríveis. Talvez a razão de Back ter incluído essas imagens na edição seja para fazer um contraste entre aquele povo branco e negro do novo mundo e a ausência do índio naquele cenário de alegria.

Mas provavelmente a sequência que mais choca é ver uma tribo de índios desnutridos, tão magros que lembram judeus nos campos de concentração. Em outra sequência, um grupo da Funai passa veneno para piolhos nas cabeças dos índios. Mas também podemos destacar os vários trechos de filmes, inclusive estrangeiros, que penetraram na selva amazônica para enriquecer os seus enredos. E assim, o filme vai nos fazendo ver o quanto o índio tem servido como figura exótica e estranha à civilização, o quanto ele serve como entretenimento para as massas. Inclusive, um dos presidentes brasileiros chegou a visitar uma tribo a fim de ver ao vivo os costumes e as apresentações que esse povo tão esquecido tratou de oferecer para aquele homem.

Hans Staden

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Hans Staden
Direção: Luis Alberto Pereira
Brasil, 2000.

Por William Alves

Como é de praxe, a Fundação Nacional do Índio preparou todo tipo de festividade (e efusividade), no 19 de abril, dia brasileiro dos indígenas, instituído por Getúlio Vargas. Pelo que lhe cabe, a Funai realizou mais uma (justa) homenagem à uma cultura riquíssima, que influenciou gente de todas as índoles, de diretores cinematográficos de faroeste a alguns rockstars, como os norte-americanos do The Cult. No entanto, toda essa benigna efervescência desaparece de imediato do imaginário quanto se assiste a esse Hans Staden.

O personagem-título é um imigrante alemão que naufraga no litoral de Santa Catarina, pouco após o descobrimento do Brasil, em 1500. Ao se embrenhar em terreno desconhecido, Staden acaba sendo capturado pelos índios tupinambás, que abertamente declaram a intenção de devorá-lo, no sentindo denotativo do termo. A luta do imigrante, então, é para permanecer vivo, mesmo que isso signifique ser tratado – ou “suportado” – como um arredio bicho de estimação.

Os pragmáticos indígenas do diretor Luis Alberto Pereira destoam brutalmente das injustiçadas figuras raquíticas, banidas e humilhadas em sua própria terra, descritas em grande parte dos livros escolares. O filme é escuro é opressor: os nativos estão sempre concebendo rituais que exigem a permanência de Staden, como que para lembrar constantemente ao “convidado” que, em algum momento próximo, ele estará borbulhando em um caldeirão. Mesmo apavorado, é impressionante como o alemão consegue utilizar a religião a favor da própria sobrevivência. Ao instigar mitos que atemorizam os índios (“meu Deus está concebendo essa chuva porque vocês querem me comer”), Staden compra mais alguns preciosos meses de vida. Mas até quando?

O pouco apreço que os tupinambás demonstram por Staden, a quem julgam português, se converte em patética submissão na presença de seus (supostos) aliados, os franceses. O mesmo brilho que figura nas retinas de um tupinambá que devora um pedaço caprichado da perna de um membro de tribo rival é o mesmo que aflora com a visita dos negociantes franceses, devidamente acompanhados de seus espelhos, facas cegas e tesouras inúteis.

Curiosamentente, Carlos Evelyn, que comove com a atuação do protagonista, é mais conhecido por suas aparições em telenovelas, como Celebridade. O deus dos Tupinambás deve estar furioso.

Todo Dia era Dia de Índio

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Por Adilson Marcelino

“Todo dia era dia de índio, mas agora ele só tem o dia 19 de abril” já cantava Baby do Brasil, então Baby Consuelo, em hit nas rádios do país em 1981 composto por Jorge Benjor, então Jorge Bem. Passados mais de meio século da colonização e mais de trinta anos da canção, a questão indígena ainda permanece marginalizada por uma cultura reinante no país que ainda a enxerga apenas pelas tintas do exotismo.

Além do sangue e do imaginário, a herança indígena e sua continuidade na cena brasileira seduziu nossos cineastas desde o os primeiros tempos do cinema. Na literatura, José de Alencar construiu todo um universo mítico sobre os índios, não à toa despertando o interesse do cinema ainda na décadas de 1910 e 20 – Vittorio Capelaro com O Garani em 1916, e Iracema, em 1919; Luiz de Barros com Ubirajara em 1919; João de Deus com O Guarani em 1920; Vittorio Capellaro novamente com O Guarani em 1926.

Tanto as hitórias de Iracema como de o Guarani continuaram com forte apelo, resultando em filmes nas décadas de 30, 40, 50, 70 e 90: Iracema (1931), dirigido por Jorge S. Konchin; Iracema (1949), dirigido por Vittorio Cardinalli e Gino Talamo; Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel (1979), de Carlos Coimbra. O Guarani (1950), de Riccardo Freda; O Guarani (1979), de Fauzi Mansur; O Guarani (1996), de Norma Bengell

Diferentes modelos de produção e diferentes ciclos do cinema brasileiro focalizaram o tema, pela lente de cineastas como Humberto Mauro, Alfredo Palácios, Nelson Pereira dos Santos, André Luiz de Oliveira, Zelito Vianna, Oswaldo Caldeira, Sérgio Bianchi, Lúcia Murat, Luiz Aberto Pereira, Fábio Barreto, Sylvio Back, Guel Arraes, Andrea Tonacci, Tânia Lamarca.

Este especial da Zingu! O Índio no Cinema Brasileiro apresenta um recorte de oito títulos, em uma produção que vai da década de 1970 até os anos 2000.

Dessa forma, temos do classicismo de Carlos Coimbra em Iracema, A Virgem dos Lábios de Mel (1979) ao cinema de invenção de Andrea Tonacci em Serras da Desordem (2006); das provocações de Sérgio Bianchi em Mato Eles? (1982) e de Sylvio Back em Yndio do Brasil (1995) à versão anódina de O Guarani (1996) dirigida por Norma Bengell; dos impactantes Brava Gente Brasileira (2000), de Lucia Murat, e Hans Staden (2000), de Luiz Alberto Pereira, ao estilo personalíssimo de Guel Arraes com Caramuru, A Invenção do Brasil (2001).

Este recorte, claro, não procura esgotar o tema, e nem estão aqui elencados alguns dos mais importantes filmes. A intenção é apresentar uma diversidade que possa servir como introdução a essa trajetória em que o cinema brasileiro voltou sua lente para a raiz mais profunda do país.