O Guarani

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

O Guarani
Direção: Norma Bengell
Brasil, 1996.

Por William Alves

Não há espaço para inferência em O Guarani. Tudo é, meticulosamente, explicitado em voz alta, e a índole dos personagens ou é branca, ou é preta. Não existem desinteressados, acomodados ou indiferentes. O núcleo sórdido do filme tem sua representação máxima em Loredano, interpretado por José Abreu, que tenciona tomar a fortuna do chefe, Dom Antônio de Mariz, e deflorar a cobiçada Ceci, filha do senhor de terras. Ceci, que capitaneia a turma do bom coração, só deseja o índio Peri, que vive nas redondezas como um bicho de estimação de luxo. O anseio da moça é frustrado pelo fato incontornável de que Peri é um… índio, né? De maniqueísmo em maniqueísmo, de luta de classe em luta de classe, um longa-metragem vai se formando.

Dirigido por uma das eternas musas do cinema nacional, Norma Bengell, e baseado no romance clássico de José de Alencar, O Guarani é constantemente rememorado mais pelo fracasso de público e por supostas irregularidades financeiras envolvendo a produção do que pelo filme em si. Um dos papéis principais ficou para Marcio Garcia, até então uma emergente estrela oriunda de telenovelas Globais. O resto do elenco foi povoado por figuras célebres, como Herson Capri, Glória Pires e o já mencionado Abreu.

Na história, que tem como pano de fundo o Brasil do século XVII, Peri e a filha dos nobres, Ceci, vivem um amor platônico, depois que o nativo salva a vida da moça. Peri conquista, então, o direito de morar – ou pelo menos passear pelo quintal – na casa do colonizador, Dom Antônio de Mariz, pai de Ceci. Dom Diogo, também filho do colonizador, acaba assassinando um índio aimoré. A família passa a viver em tensão, aguardando uma violenta represália dos indígenas. Mesmo com toda a forte segurança privada que Antônio de Mariz é capaz de custear, é Peri quem acaba tomando para si a tarefa de defender a família e, como bônus, ficar mais perto do seu amor.

Peri, inclusive, parece imune a qualquer humilhação. E o desprezo dos portugueses pelo humilde indígena é demonstrado explícita (“quero esse selvagem fora daqui”, exclama a matriarca) ou implicitamente, através do sectarismo português, que só julga digno de respeito os batizados na cristandade. Peri, que é mais simples, não liga para nada disso e só busca a aprovação de Ceci. Os dois mal se tocam, apesar do desejo evidente. E é nessa tensão sexual que reside o único apelo do filme. Visto que todo o resto é escancarado em voz alta.

Serras da Desordem

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Serras da Desordem
Direção: Andrea Tonacci
Brasil, 2006

Por Vlademir Lazo

Passados cerca de cinco anos da realização (e posterior exibição) de Serras da Desordem, o filme de Andréa Tonacci prossegue sua existência firme na lembrança dos que o assistiram e alheio a uma multidão que o ignora ou simplesmente nunca ouviu falar nele. Saudado como o retorno de Tonacci vinte cinco anos após o clássico marginal Bang Bang (embora não devam ser esquecidos os documentários etnográficos que dirigiu nessas três décadas, e que muito o prepararam para Serras da Desordem), o filme se estabelece como um novo mito de nossa cinematografia.

Pouco visto e divulgado (ainda não saiu em DVD e é raro encontrá-lo nas programações dos canais de TV), Serras sofre uma marginalização tristemente coerente com a trajetória de seu realizador e com o universo que seu filme circunda. Num tempo em que a maioria dos sucessos do cinema nacional são filmes (e isso inclui os bons e os ruins) que parecem feitos para quem especificamente não gosta de cinema nacional, Serras se ergue como uma peça de resistência sobretudo por ser um filme brasileiro até a medula. Tonacci pode ter citado nas entrevistas alguns cineastas que o inspiraram (como Roberto Rossellini, para ficarmos em apenas um exemplo), e nada impede que ao nos confrontarmos com o filme estabeleçamos conexões com obras das origens mais diversas, porém não enxergamos ali uma maior influência européia, americana ou asiática. Serras da Desordem é filme essencialmente brasileiro, no sentido de que não poderia pertencer a nenhuma outra cinematografia, visto que sua razão de ser é emergir um bocado da identidade do país e de uma etnia, mas muito também por sua pregnância estética que não encontra paralelo com nada conhecido ou que tenhamos visto antes.

Escrever sobre Serras da Desordem pode incorrer em ao menos um problema: o do quanto é difícil descrever em palavras e comentá-lo à altura dos seus atributos. O seu encanto vem de uma tal potência de forma e conteúdo (que se imbricam o tempo todo) que desafia a possibilidade de sua descrição. E como deter-se no filme sem a vontade de colocá-lo num pedestal, o que por si só cairia no perigo de torná-lo ainda mais à parte e distante do que nos rodeia, deixando-o como um objeto cinematográfico vítima do excesso de reverência que seus maiores admiradores alimentam (nossa reação natural é mesmo a de maravilhamento)? Serras é tão novo e já um mito não-visto, menos conhecido do que deveria. Um filme para poucos, quando ao contrário, deveria mesmo era ser assistido por multidões relativamente maiores. O que não pode é o próprio mito do filme afastar espectadores desconfiados e os não-curiosos por medo ou aversão pré-concebida. Porque, mais que uma investigação a fundo sobre um povo e um país, Serras da Desordem desemboca numa aventura estimulantemente cinematográfica.

O crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum certa vez escreveu que é preciso se tornar amigo de O Vento Nos Levará (de Abbas Kiarostami) para o filme se abrir por inteiro ao espectador, mas que depois suas recompensas se tornam ilimitadas. O mesmo ocorre com Serras da Desordem: não é preciso esforço ou dedicação redobrada para compreender ou apreciar sua proposta, porém ao nos permitirmos estabelecer uma intimidade com o filme de Tonacci, com as possibilidades que ele abre em nosso olhar, suas recompensas são bem mais amplas do que com a maioria dos outros filmes.

Como já ocorria em Bang Bang, Tonacci é um cineasta que mantém o seu cinema em constante fluxo. A cada plano há a necessidade de chegar a imagem/abordagem mais adequada. Daí seus filmes desconcertarem num primeiro momento. Na abertura, temos um prólogo com um índio na selva, e logo aparecem outros, em planos lúdicos que compartilham conosco suas ações (como o corte do mato para produzir o fogo ou banhos em grupo no riacho) durante uns quinze minutos, com muitas fusões e variações cromáticas que nos deleitam o olhar sem se tornarem gratuitas, reforçando a atmosfera pretendida pela ambiência desse contexto primitivo. Seria uma encenação ficcional da vida indígena pré-Descobrimento ou num tempo posterior ou atual? Um registro documental de um grupo indígena no presente?

O filme rompe as fronteiras entre a representação e a documentação. Nada nos é explicado (pelo menos não num primeiro momento), apenas observamos como o filme consegue capturar a textura da vida cotidiana daquelas pessoas, e essa representação é tão verdadeira que pouco importa se estamos diante de um filme de ficção ou se os acontecimentos são contemporâneos ou pré-colonial. Os detalhes das ações são menos importantes em si do que a maneira com que Tonacci simplesmente acompanha em planos fixos os indígenas. Poderíamos mencionar o começo de 2001-Uma Odisséia no Espaço como um paralelo próximo ao da abertura de Serras da Desordem, cuja natureza e habitantes primitivos também são transformados pela inclusão de elementos novos e estranhos. No filme de Kubrick, o aparecimento do monolíto extraterrestre e a descoberta do osso como armas para a caça e a guerra; no de Tonacci, o avião sobrevoando os céus da floresta (tendo apenas o som que ele produz, e o olhar curioso dos personagens, nos localizando também no tempo) e a chegada do trem (cujo fundo sonoro à base de sintetizadores prolongam a experiência sensorial e manifestação concreta e fluida que já se desenvolvia até ali e prossegue até o final) prenunciando o progresso e a destruição advinda do homem branco.

Toda uma perspectiva da construção da civilização brasileira é apresentada na montagem do fragmento seguinte: sobreposições de imagens de arquivo com o desmatamento e derrubada de árvores e florestas, construções de ferrovias, períodos históricos recentes, estádios de futebol repletos de gente da classe trabalhadora, usinas hidrelétricas, carnaval, conflitos com a polícia, atentados políticos, entre muitas outras passagens brevemente resumidas. Em suma, todo um amplo mosaico (não didático ou intelectual) de alguns minutos a partir das aldeias com os primeiros habitantes indígenas até a contemporaneidade é passado a limpo no primeiro ato de Serras da Desordem, com a transformação de um país sempre em busca de uma identidade perdida e jamais recuperada.

Ocorre o massacre de uma tribo, Awa-Guajá, por criminosos brancos. Serras da Desordem se revela como a reencenação da história de um sobrevivente do massacre, o índio Carapiru, cuja história é a própria síntese de sua civilização expulsa do território que ocupavam. É o próprio Carapiru, mais velho, que interpreta a si mesmo anos depois dos acontecimentos, com as variações de formato, 16mm/vídeo, alternância entre preto-e-branco e cores, utilização de material de arquivos, depoimentos e entrevistas, etc. Em alguns momentos, um filme de aventura (realçado por efeitos da própria montagem), em outros, de puro registro documental. Serras da Desordem é tanto um painel antropológico e humano quanto um mosaico estético, que nunca nos deixa desorientado, mas imersos em sua construção, pois esta se desenvolve de maneira orgânica, se desvela de modo natural. Carapiru foge e é acolhido, primeiro por uma comunidade rural, depois pelos moradores de uma região do sertão, que o ensinam a se adaptar à vida urbana até se afastar deles e reencontrar um filho perdido e sobreviventes de sua tribo, e até se perceber também diferente deles e novamente ir embora.

Nem ficção ou documentário (deixemos as classificações para os resenhistas de sinopse ou para os acadêmicos de plantão); Tonacci faz com algumas histórias reencenadas trinta anos depois diante de uma câmera se transformem em história que acontece agora também, fatos são dramatizados e convertidos em película, transformados em cinema puro. O cineasta acaba com a linha tênue do documental e ficção. E o filme e a trajetória de Carapiru dentro dele se encerram com um registro da sua própria filmagem: o próprio Tonacci dando instruções à sua equipe sobre as primeiras imagens do filme que está sendo feito, e já à esta altura em definitivo parte integrante de cada um de nós, o filme que terminamos de assistir, evidentemente. O círculo se fecha, mas pede que sempre retornemos a ele.

Yndio do Brasil

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Yndio do Brasil
Direção: Sylvio Back
Brasil, 1995.

Por Aílton Monteiro

Yndio do Brasil (1995), de Sylvio Back, é uma colagem de dezenas de imagens com canções de diversas épocas e poesias escritas pelo próprio cineasta e narradas por José Mayer. Uma das mais interessantes é a que diz “Run, Xavanti, Run; Run, Rondon ronda”. Assim, a poesia vai citando diversas tribos indígenas e mencionando o Marechal Rondon, homem que desbravou o Brasil e que o cineasta vê como inimigo dos índios, embora ele mostre uma propaganda do Governo que o veja como um homem que nunca matou um índio, um “apóstolo das selvas”. Como o tom de Yndio do Brasil é ácido, todo e qualquer trecho apresentado é visto como uma amostra dos maus tratos e do preconceito que o índio sofreu e continua sofrendo.

A propaganda, por exemplo, que mostra a guerrilha do Araguaia, com vários índios nos arredores sendo afetados pelo tiroteio, sem ter praticamente nada a ver com aquela briga, traz um registro trágico-cômico. Alguns trechos soltos parecem estranhos ao filme, como a cena que mostra um grupo de jovens felizes ao som de “Marcas do que se foi”, dos Incríveis. Talvez a razão de Back ter incluído essas imagens na edição seja para fazer um contraste entre aquele povo branco e negro do novo mundo e a ausência do índio naquele cenário de alegria.

Mas provavelmente a sequência que mais choca é ver uma tribo de índios desnutridos, tão magros que lembram judeus nos campos de concentração. Em outra sequência, um grupo da Funai passa veneno para piolhos nas cabeças dos índios. Mas também podemos destacar os vários trechos de filmes, inclusive estrangeiros, que penetraram na selva amazônica para enriquecer os seus enredos. E assim, o filme vai nos fazendo ver o quanto o índio tem servido como figura exótica e estranha à civilização, o quanto ele serve como entretenimento para as massas. Inclusive, um dos presidentes brasileiros chegou a visitar uma tribo a fim de ver ao vivo os costumes e as apresentações que esse povo tão esquecido tratou de oferecer para aquele homem.

Musas Eternas

Odete Lara

Por Donny Correia

“A primeira vez que vi Odete…”

Mulheres são eternos mistérios, sabemos. No entanto, quando cercadas pelo quadrilátero da tela de cinema, em primeiro plano, ou num acintoso close-up, seus mistérios podem contribuir tanto para a ascensão, quanto para a queda do mito que as permeiam, caso não tenham o timing para usarem de seus predicados.

Não é o caso desta figura que pairou as películas brasileiras por quase 40 anos e deixou sua marca de musa intocável e inacessível aos deleites mundanos dos homens (e certamente de umas tantas outras mulheres).

A primeira vez que vi Odete Lara, eu não tinha mais do que uns 13 ou 14 anos. Uma cena muito bem filmada para os padrões da época. Tratava-se de um plongé da atriz, que, de braços abertos, balançava o cabelo com bastante charme e cantava uma canção triste de amor. Esta cena em questão fora pinçada de um dos últimos filmes realizados pela Atlântida, para o documentário sobre a produtora, realizado por Carlos Manga em 1973 (Assim Era a Atlântida). À época do filme pinçado, Odete estava apenas começando no cinema, mas já trazia bagagem da TV.

Hoje, refletindo sobre ela para escrever estas linhas, percebo que na minha avidez como colecionador do cinema nacional desde muito cedo, ela foi a figura feminina mais marcante, mesmo quando colocada ao lado de ícones mais apelativos como Norma Bengell, Lyris Castellani, Leila Diniz e tantas outras que despontaram nos primórdios dos sex-symbols nacionais.

Explico: Odete Lara, nascida Odete Righi, em 17 de abril de 1929, em São Paulo, construiu ao longo de tantos papéis a imagem mítica da mulher intocável, mesmo quando interpretando personagens tão mundanos e palpáveis, como D. Guigi em Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Não sei dizer onde exatamente reside esta aura, mas consigo identificar pelo menos três papéis de filmes tão distintos, que se complementam para consolidá-la no hall das Deusas.

Em 1957, Odete estrela Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte em sua estréia como diretor. Personagem dos mais usais para uma mulher de sua beleza, num filme um tanto quanto comum, para a bagagem do diretor. Interpretando um papel homônimo, ela é a namorada no vilão, colocada por este crápula manipulador vivido por Aurélio Teixeira na vida do herói da fita (o próprio Anselmo, claro!) para tentá-lo e manipulá-lo usando para isso os mais baixos golpes de sedução, de maneira que consiga se apossar do dinheiro que ele irá ganhar num programa de TV. Com a ruína do plano maligno, Odete se vê sem o vilão (agora preso), sem o dinheiro (que de fato ficou com nosso herói), e sem o herói (redimido nos braços da mocinha, que sempre amou). No entanto vai embora carregando consigo um ar de incólume, inabalável pela ingenuidade do mundo daqueles dias e do enredo feito à medida do espectador chanchadeiro. NOTA: O número musical cantado no filme por Odete é desnecessário, já que sua sensual voz grave não serve para cantar meras marchinhas de letra fácil e pegajoza. Se toca Anselmo!

Em Noite Vazia, obra-prima de Walter Hugo Khouri, aquela mulher assolada pelas tramas redondinhas a que a vida nas chanchadas esta submetida (leia-se: o bem sempre vence o mal), ressurge na terrível São Paulo de 1964 na pele de Regina, agora prostituta de luxo que, junto de Norma Bengell vivendo Mara, cai nas garras de dois típicos misóginos (Mário Benvenutti e Gabriele Tinti) em busca de farras intermináveis. Aqui Odete é a mulher que se tornou fria pela falta de oportunidades melhores, que é pragmática no exercício de suas funções, ao contrário de sua frágil amiga. Em seu papel, Odete não titubeia em deixar claro que negócios são negócios e que homem nenhum a passa para trás. Nevermore!. Nem mesmo uma possível transa lésbica para deleite de seus clientes a faz sair deste corporativismo da carne. Infelizmente para nós, espectadores, a cena não se consuma porque a amiga, Mara, refuga na hora H. Mas tudo bem! Khouri não nos daria mais que seus belos olhos e boca bem desenhada insinuando um ato sexual muito bem enquadrado. Aliás, é aí que a personalidade intocável de Odete aflora. Ao contrário de Norma Bengell, Odete Lara nunca é mostrada com os seios nus, ou em planos abertos quando despida. Sobre isso recai a ânsia de queremos desvendar esta atriz-personagem tão instigante congelada pelos percalços da vida (agora real até de mais) numa cidade cada vez mais vertical e vertiginosa. Queremos tocá-la com olhar atento, mas o corvo diz: Nevermore!

Se primeiro a vida era ingênua e depois dura demais, em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), dirigido por Glauber Rocha (também mito, porém alocado num outro departamento do panteão do cinema), a vida se torna sonho, pesadelo, delírio, êxtase, arquétipo, miragem, e todos os outros adjetivos que possam remeter ao “inusitado” e que o leitor sinta-se impelido a usar.

A mulher antes lançada ao acaso de suas poucas oportunidades, que precisava dispor da sedução, e que depois se tornou prostituta de pedra quente e macia, agora se torna Laura. “Odete Regina Laura” é a síntese da imagem de Odete Lara, que encarna a esposa oportunista de um coronel cego, velho e mesquinho (Joffre Soares), “rei” num vilarejo do sertão baiano. Esta Laura é o último estágio da personagem intocável que envolve Odete Lara. Seu “trem para as estrelas”. Nunca sabemos, ao longo do filme, se o que vemos é uma simples mulher desgostosa com a vida, ávida por beber até o último gole de sua própria beleza e juventude ao lado de Hugo Carvana, que aqui vive o secretário do coronel, ou um fantasma que nos surge a todo momento como a fonte de um prazer do qual jamais desfrutaremos.

É nesse papel polifônico que Odete consolida sua imagem de beleza inalcançável ao mundano, ao toque terreno de mãos poluídas pelo cotidiano medíocre. Com Laura, Odete Lara paira para fora da tela e vem acariciar atormentada nossos traumas e nossas consternações diante do mundo real onde fomos aprisionados. Sentimos sua carícia terrível (e por que não dizer mórbida?) em nossas retinas. Odete Lara já não pertence ao reino do palpável. Desperta a lascívia dos homens mesmo depois de morta no fim do filme. O anjo nasceu! NOTA: Se marchinhas não combinam com a voz de Odete, o mesmo não se pode dizer da letra de Carinhoso, deslizando doce por seus lábios afora, a certa altura da estória. Carvana, cala a boca e deixa o anjo cantar!

Outras mulheres passaram pela pele de Odete Lara, mas esta trinca que escolhi traduz a imagem que ficou na minha memória. Começo, meio e fim.

Odete Lara retirou-se de cena antes que o tempo e a TV de massa corroessem sua deidade, para se isolar no campo, como se este mundo não tivesse o direito de dizê-la sua. Nem mesmo o constrangedor roteiro (roteiro?) escrito e dirigido (se é que se pode dizer assim) por Ana Maria Magalhães em 2002, sob o título de Lara, supostamente sua cinebiografia, conseguiu trazê-la ao chão que nós, ínfimos e mortais cinéfilos, habitamos.

Quanto dura um mito?

Eternamente, se ele souber surgir no momento certo… e souber desaparecer quando vir que já espalhou sua magia.

Donny Correia, 1980, é paulista. Poeta e cineasta, publicou O eco do espelho (2005) e Balletmanco (2009). Teve seu curta-metragem Totem (2010) selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. É graduado em Letras – tradutor e intérprete, e pós-graduando pelo Instituto de Artes da UNESP e pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Atualmente, é gerente geral da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.

Reflexos em Película

As últimas sessões de cinema

Por Filipe Chamy

Há algumas semanas, o assunto mais discutido entre os cinéfilos paulistanos não era nenhum filme, diretor ou coisa do tipo, mas sim o fechamento de um cinema bastante tradicional, o Belas Artes. Organizaram passeatas, divulgaram via internet movimentos de protesto, petições pedindo o tombamento do edifício e outras mil medidas para segurar a vida do edifício.

Evitar que se repita a história de Cinema Paradiso é sem dúvida nobre, mas por que não houve essa comoção toda quando os cinemas também clássicos Top Cine e Gemini fecharam suas portas na mesma São Paulo tão “engajada”? Parece que há um certo estardalhaço em torno não de um cinema, mas de um determinado modo de vida.

Pois vejamos: o Belas Artes era conhecido principalmente por sua peculiar ideia de fazer um “Noitão”, evento em que filmes eram exibidos de madrugada, seguidos por confraternizações, cafés da manhã e todo tipo de entrosamento. Mas eu pergunto: e o cinema? Não sou radical e nem extremista, mas na verdade o que isso representa enquanto uma experiência de cinefilia? Isso está mais para uma festa, um encontro social, e aí não dá para entender bem por que milhares de pessoas se dizem carentes agora que o cinema fechou, já que filmes eram o que menos lhes interessava.

Tempos atrás, a Zingu! fez um Dossiê Marabá, sobre o destino desse célebre cinema e sua luta para ressuscitar repaginado como um multiplex. Se parece triste que um espaço de tradição cinematográfica vire uma vitrine de blockbusters, não dá muito para se surpreender: o público valoriza cada vez mais a experiência de se reunir ou festejar ou mesmo simplesmente sair do que a experiência propriamente dita de ir a um cinema, sentar-se e ficar durante duas horas imerso em mundos tão diferentes do seu.

O caso Marabá é bem sintomático do que vai acontecer em breve, com todos os filmes menos “espetaculosos” resumidos em um gueto, e cinemas, de rua ou de shoppings, exibindo apenas essas fitas em que os sentidos físicos do espectador são postos à prova. E o cinema, enquanto espaço, cada vez mais perderá a condição de “templo” e virará uma boate, um local para se divertir com os amigos, parque urbano onde os filmes a serem exibidos serão o brinde (ou a sobremesa, nunca o prato principal).

Então quando vemos esse debate todo sobre o Belas Artes é preciso que se perceba que o cinema é a última coisa que se discute. Ninguém quer saber dos filmes, ninguém se importa com eles. Porque outros cinemas fecharam e fecharão porque o público os abandonou, mesmo com boa programação, preço, acesso. O caso do Belas Artes não é para ser louvado como uma guerrilha de resistência, mas como uma tentativa de manter um estilo de comportamento que nada tem a ver com filmes ou cinema.

Nos últimos dias desse cinema, comportamentos dos mais diversos foram observados: pessoas se acotovelavam em grandes filas para assistir às últimas sessões especiais programadas pela casa para a exibição de filmes clássicos; gente se lamentava na bombonière — outro sinal de que cinema era só uma moldura desse quadro — sobre o iminente fim daquele espaço; ambulantes e outros particulares graciosos resolveram ganhar os seus cobres vendendo improvisados souvenirs, camisetas estilo “estive no Belas Artes em seu fechamento e lembrei de você”.

Mas são essas mesmas pessoas que dia após dia deixam a Cinemateca às moscas, não prestigiam as mostras e retrospectivas dos centros culturais e resumem sua experiência de ver filmes à televisão e aos “baixamentos” de mil coisas virtuais. Então é hora de tentar reverter a coisa e fazer do fim do Belas Artes um caminho de esperança para a cinefilia.

Nossa Canção

Romance, de Sérgio Bianchi

Por Heitor Augusto

A primeira música num filme a grudar na minha cabeça e resistir em me abandonar é Perseguição & O Sertão Vai Virar Mar, que Sérgio Ricardo escreveu para as imagens de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Quando criança, me sentia nas costas de um cavalo disparando tiros inocentes de uma velha espingarda dentro de um faroeste.

Um menino aventureiro que não sabia o que tiros causavam nas pessoas, muito menos entendia quem era o tal do Corisco, o que significava “mais fortes são os poderes do povo!” ou entendia bulhufas de narrativa alegórica. Mas um apaixonado pelo violão rasgado, a voz desavergonhada do cantor e as imagens do filme. Tudo junto a despertar um primitivo sentimento aventureiro. Adoraria descrever por horas todos os sentimentos que esta canção me despertou quando criança e ainda desperta agora já adulto. Mas, para esta coluna Nossa Canção, prefiro atirar no escuro e falar de uma trilha que não anda de boca em boca com tanta frequência. Por isso, a opção pelo trabalho do Grupo Chance para o Romance que Sergio Bianchi fez em 1988.

Não posso afirmar que é o melhor filme do Bianchi, mas é certamente sua obra que mais me emociona. A desesperança dos dois personagens que perdem o rumo após a morte de um intelectual de esquerda mitológico – Antônio César – contamina as estranhas. As músicas, ou melhor, comentários musicais, que o Grupo Chance fez para o filme criam uma atmosfera de labirinto, uma falta de rumo que invariavelmente vai levar à desilusão. Representação perfeita da prisão humana por meio da música.

Num filme de um cineasta tão direto e duro, os comentários musicais colocam mais espaços de indefinição, ruídos, perguntas e dores, elementos que contrastam com a câmera-faca de Bianchi, roubando o título de João Luiz Vieira no livro sobre o cineasta lançado em 2004.

Romance começa com Antônio Cesar, o morto, denunciado, por meio de imagens de arquivo, a miséria brasileira e os poderes constituídos, num discurso muito duro. Em seguida, uma sequência de seu enterro com personagens comentando – e Bianchi, invisível, satirizando por trás deles – o quão importante o militante era para a esquerda. Logo após, novamente uma afirmação retumbante do morto de presença tão viva.

Enquanto essas cenas remetem a ideias palpáveis, a música de cantos agudos e confusos do Grupo Chance nos coloca em outro registro. É tudo tão literal mesmo? Quem é de fato este Antônio César cheio de frases polêmicas? Por que se armou este circo em torno da morte do intelectual? E essa mulher com cara de aproveitadora que está ao seu lado na entrevista? Questões que os comentários musicais ajudam a instigar.

Após essa abertura, a mesma mulher – que descobriremos ser uma das companheiras de Antônio Cesar – está vestida de preto com a mão mergulhada em tinta preta. Frente a uma parede branca, traça linhas descoordenadas ao som de sintetizadores e distorções. Linda sequência! Fernanda (mais à frente saberemos seu nome) está sem rumo num filme que decreta a falência dos ideais de libertação sexual dos anos 1960 e 70. Mais do que isso: Romance olha para o Brasil de 1988 e decreta a falência do próprio país.

Desesperançoso em cada take, o filme ainda encontra espaço para fazer seu comentário mais poderoso: a falta de liberdade que a Aids trouxe, especialmente aos gays. Numa sequência absolutamente cadavérica, André (Hugo Della Santa) – que também fora companheiro de Antônio Carlos – anda pela escuridão da cidade à procura de sexo rápido e fugaz com o primeiro estranho que lhe atrair.

Mas ele não pode: Antônio Cesar morreu de Aids numa época que predominava a ignorância acerca da doença. André pode estar contaminado também e seria imprudente arriscar (triste curiosidade: Hugo Della Santa morreu no ano do lançamento do filme por causa da… Aids!). Ele vive uma dupla prisão: a de esconder publicamente a homossexualidade e de não poder extravasar seu desejo nem no mais obscuro canto da cidade. Como ser humano, ele está falido, como quase todos os personagens de Romance.

Nesses momentos, Bianchi captura racionalmente o espírito desiludido de uma época, enquanto os comentários musicais do Grupo Chance se encarregam de penetrar no fundo do peito e rasgá-lo sem dó, nos invadindo de uma tristeza absoluta.

Heitor Augusto é repórter e crítico de cinema. Atualmente, colabora com o Cineclick, no qual faz cobertura dos principais festivais no Brasil, escreve sobre os lançamentos do circuito e mantém a coluna mensal Clássico do DVD. Mantém, desde 2008, o blog Urso de Lata. Colaborou para a Agência Carta Maior e Revista de CINEMA.

Hans Staden

Especial O Índio no Cinema Brasileiro

Hans Staden
Direção: Luis Alberto Pereira
Brasil, 2000.

Por William Alves

Como é de praxe, a Fundação Nacional do Índio preparou todo tipo de festividade (e efusividade), no 19 de abril, dia brasileiro dos indígenas, instituído por Getúlio Vargas. Pelo que lhe cabe, a Funai realizou mais uma (justa) homenagem à uma cultura riquíssima, que influenciou gente de todas as índoles, de diretores cinematográficos de faroeste a alguns rockstars, como os norte-americanos do The Cult. No entanto, toda essa benigna efervescência desaparece de imediato do imaginário quanto se assiste a esse Hans Staden.

O personagem-título é um imigrante alemão que naufraga no litoral de Santa Catarina, pouco após o descobrimento do Brasil, em 1500. Ao se embrenhar em terreno desconhecido, Staden acaba sendo capturado pelos índios tupinambás, que abertamente declaram a intenção de devorá-lo, no sentindo denotativo do termo. A luta do imigrante, então, é para permanecer vivo, mesmo que isso signifique ser tratado – ou “suportado” – como um arredio bicho de estimação.

Os pragmáticos indígenas do diretor Luis Alberto Pereira destoam brutalmente das injustiçadas figuras raquíticas, banidas e humilhadas em sua própria terra, descritas em grande parte dos livros escolares. O filme é escuro é opressor: os nativos estão sempre concebendo rituais que exigem a permanência de Staden, como que para lembrar constantemente ao “convidado” que, em algum momento próximo, ele estará borbulhando em um caldeirão. Mesmo apavorado, é impressionante como o alemão consegue utilizar a religião a favor da própria sobrevivência. Ao instigar mitos que atemorizam os índios (“meu Deus está concebendo essa chuva porque vocês querem me comer”), Staden compra mais alguns preciosos meses de vida. Mas até quando?

O pouco apreço que os tupinambás demonstram por Staden, a quem julgam português, se converte em patética submissão na presença de seus (supostos) aliados, os franceses. O mesmo brilho que figura nas retinas de um tupinambá que devora um pedaço caprichado da perna de um membro de tribo rival é o mesmo que aflora com a visita dos negociantes franceses, devidamente acompanhados de seus espelhos, facas cegas e tesouras inúteis.

Curiosamentente, Carlos Evelyn, que comove com a atuação do protagonista, é mais conhecido por suas aparições em telenovelas, como Celebridade. O deus dos Tupinambás deve estar furioso.

A Herança

Dossiê Inácio Araújo

AHeranca_Cartaz

A Herança
Direção: Ozualdo Candeias
Gerência de produção, Assistência de direção: Inácio Araújo
Brasil, 1970.

Por Gabriel Carneiro

O terceiro longa de Ozualdo Candeias foi também a estréia de Inácio Araujo no cinema, participando como assistente de direção. A Herança é um filme muito atípico e curioso na cinematografia brasileira, mas nem tanto dentro da filmografia desse precursor do dito cinema marginal que foi Candeias. O diretor transpõe Hamlet, de William Shakespeare, para o Brasil rural dos anos 1960, sem se fazer usar de falas – ainda que legendas tenham sido acrescidas em muitas cópias por exigência do produtor. A visita ao filme já vale pela inventividade e inovação do projeto, mas não só.

a_heranca_candeiasCandeias marcou seu cinema pelo enorme apreço à Boca do Lixo e pela busca do ousado, do criativo e ainda assim do popular, na acepção de que buscava dialogar com camadas populares da sociedade pela temática próxima a elas: camponeses, motoristas de caminhão, pessoas marginalizadas, etc. Em A Herança, transforma a história do príncipe dinamarquês numa saga de derrocada rural, falando de fazendeiros imponentes e abuso, com direito a uma consciência social que cabe muito bem ao projeto.

A história em si pode não ser necessariamente o mais interessante de A Herança, mas a forma como o diretor encontra para retratá-la garante o interesse do espectador: a partir de sons construídos, conduz a narrativa. Não é o mero som ambiente, mas a evocação de vozes, urros, palavras e caracterizando as situações por meio de sons cartunescos, que dão novos sentidos ao desenrolar dos fatos. O mesmo pode se dizer da direção de atores. David Cardoso, em começo de carreira, faz Omeleto, e o interpreta de maneira debochada como poucos conseguiriam, abusando dos sorrisos e risadas descabidos, da paródia e do caricato. O restante do elenco segue o mesmo tom.

A graça em A Herança está justamente na subversão da peça do bardo e ainda assim mantendo-se muito fiel a ela. Porque, afinal,Aheranca fala de orgulho, ganância e família. A herança do título parece muito mais ligada à herança genética e à representatividade dos atos de uma família em um descendente, do que aos bens materiais – ainda que eles, ao final, desenvolvam importante mensagem que era importante ao diretor transmitir, ainda mais em tempos de Regime Militar. Mas o que Candeiais faz é optar por uma linha que fuja da tragédia, escolhendo o jocoso e o inusitado. Não são muitos os que conseguem adaptar uma peça clássica para uma realidade completamente diversa e ainda usarem essa mudança como mote para experiências estéticas nada convencionais.

O Que É Cinema Brasileiro?

Por Daniel Caetano

 

A pergunta parece fácil, mas não é. Brasileiro é o sujeito que nasce no Brasil ou adquire cidadania, mas o que define a cidadania de um filme? Os atores, a locação, o diretor-autor, a empresa produtora ou a fonte de financiamento? Não sei, juro que não sei, mas não queria deixar a questão sem resposta. E olha que só falei do adjetivo. O que é cinema, então é uma pergunta cada vez mais difícil de responder com dados objetivos, embora tanta gente tenha convicção de saber. Talvez cinema seja como o jazz segundo o Louis Armstrong: se você precisa perguntar, nunca vai saber. Não sei se eu vou saber responder, mas tudo bem, porque não costumo perguntar.

Mas há, no entanto, aquela velha história de que é fácil sair do Brasil, difícil é tirar o Brasil da gente. Pois eu estou percebendo isso mais uma vez, já que estou passando uma curta temporada no exterior desde março. A gente é o que é mesmo (e talvez sobretudo) quando escolhe modelos pra imitar. Não tem nada mais brasileiro que todos aqueles filmes que querem parodiar o cinema americano – das chanchadas até os vídeos no youtube, passando pelos filmes dos Trapalhões e vários outros – e se tornam auto-depreciativos. A gente avacalha e se esculhamba, já disse o outro.

Talvez por aí, por essa sensação de esculhambação, a gente possa tatear um pouco mais a resposta. Talvez seja inviável e até doentio querer definir o “cinema brasileiro” como algo que possa ser sintetizado, como uma entidade única que tem uma cara determinada, ao invés de múltiplas facetas irredutíveis e inconciliáveis. Mas o nosso sentimento define a nossa relação, então não podemos deixar essa pista se perder. O que pode indicar essa sensação de avacalhamento que alguns filmes podem nos provocar?

Minha suspeita ainda é a dos velhos culturalistas: acho que essa sensação só acontece porque encontramos alguma identidade (mesmo que seja imaginária e delirante, mesmo que seja mentirosa) com o que estamos vendo. Vergonha alheia só existe quando a gente se sente pertencendo ao universo que nos constrange. Então talvez seja por aí que a gente possa definir, mesmo que seja só como espectador, o que é “cinema brasileiro”. Nós, brasileiros (por nascimento ou por opção), sabemos que ele é aquele cinema (ou seja, aquelas imagens e aquele ritual que consideramos cinema) que pode trazer uma realidade de nós mesmos que não conhecemos ou que preferíamos conseguir negar e esquecer. Ou seja, aquele cinema que sempre pode provocar, de modo súbito, uma identificação direta com o nosso meio e tudo que nele nos constrange.

Ou, nas melhores vezes, cria uma certa emoção por parecer que é por onde temos que ir: como uma representação que apresenta realidades ainda cheias de potência. Talvez seja o desejo de ver isso (mais uma vez) que nos motiva a encarar essas imagens que têm um potencial de desagrado ainda maior do que as que nos são estrangeiras.

Essa tentativa de resposta é tateante e por isso talvez seja pouco assertiva. Bem, mas é uma tentativa. Outras podem ser feitas para uma questão que por definição permanece em aberto, já que tanto o cinema como o Brasil mudam muito com o passar do tempo.

Daniel Caetano é professor, cineasta e crítico.