Odete Lara

Por Donny Correia
“A primeira vez que vi Odete…”
Mulheres são eternos mistérios, sabemos. No entanto, quando cercadas pelo quadrilátero da tela de cinema, em primeiro plano, ou num acintoso close-up, seus mistérios podem contribuir tanto para a ascensão, quanto para a queda do mito que as permeiam, caso não tenham o timing para usarem de seus predicados.
Não é o caso desta figura que pairou as películas brasileiras por quase 40 anos e deixou sua marca de musa intocável e inacessível aos deleites mundanos dos homens (e certamente de umas tantas outras mulheres).
A primeira vez que vi Odete Lara, eu não tinha mais do que uns 13 ou 14 anos. Uma cena muito bem filmada para os padrões da época. Tratava-se de um plongé da atriz, que, de braços abertos, balançava o cabelo com bastante charme e cantava uma canção triste de amor. Esta cena em questão fora pinçada de um dos últimos filmes realizados pela Atlântida, para o documentário sobre a produtora, realizado por Carlos Manga em 1973 (Assim Era a Atlântida). À época do filme pinçado, Odete estava apenas começando no cinema, mas já trazia bagagem da TV.
Hoje, refletindo sobre ela para escrever estas linhas, percebo que na minha avidez como colecionador do cinema nacional desde muito cedo, ela foi a figura feminina mais marcante, mesmo quando colocada ao lado de ícones mais apelativos como Norma Bengell, Lyris Castellani, Leila Diniz e tantas outras que despontaram nos primórdios dos sex-symbols nacionais.
Explico: Odete Lara, nascida Odete Righi, em 17 de abril de 1929, em São Paulo, construiu ao longo de tantos papéis a imagem mítica da mulher intocável, mesmo quando interpretando personagens tão mundanos e palpáveis, como D. Guigi em Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Não sei dizer onde exatamente reside esta aura, mas consigo identificar pelo menos três papéis de filmes tão distintos, que se complementam para consolidá-la no hall das Deusas.
Em 1957, Odete estrela Absolutamente Certo, de Anselmo Duarte em sua estréia como diretor. Personagem dos mais usais para uma mulher de sua beleza, num filme um tanto quanto comum, para a bagagem do diretor. Interpretando um papel homônimo, ela é a namorada no vilão, colocada por este crápula manipulador vivido por Aurélio Teixeira na vida do herói da fita (o próprio Anselmo, claro!) para tentá-lo e manipulá-lo usando para isso os mais baixos golpes de sedução, de maneira que consiga se apossar do dinheiro que ele irá ganhar num programa de TV. Com a ruína do plano maligno, Odete se vê sem o vilão (agora preso), sem o dinheiro (que de fato ficou com nosso herói), e sem o herói (redimido nos braços da mocinha, que sempre amou). No entanto vai embora carregando consigo um ar de incólume, inabalável pela ingenuidade do mundo daqueles dias e do enredo feito à medida do espectador chanchadeiro. NOTA: O número musical cantado no filme por Odete é desnecessário, já que sua sensual voz grave não serve para cantar meras marchinhas de letra fácil e pegajoza. Se toca Anselmo!
Em Noite Vazia, obra-prima de Walter Hugo Khouri, aquela mulher assolada pelas tramas redondinhas a que a vida nas chanchadas esta submetida (leia-se: o bem sempre vence o mal), ressurge na terrível São Paulo de 1964 na pele de Regina, agora prostituta de luxo que, junto de Norma Bengell vivendo Mara, cai nas garras de dois típicos misóginos (Mário Benvenutti e Gabriele Tinti) em busca de farras intermináveis. Aqui Odete é a mulher que se tornou fria pela falta de oportunidades melhores, que é pragmática no exercício de suas funções, ao contrário de sua frágil amiga. Em seu papel, Odete não titubeia em deixar claro que negócios são negócios e que homem nenhum a passa para trás. Nevermore!. Nem mesmo uma possível transa lésbica para deleite de seus clientes a faz sair deste corporativismo da carne. Infelizmente para nós, espectadores, a cena não se consuma porque a amiga, Mara, refuga na hora H. Mas tudo bem! Khouri não nos daria mais que seus belos olhos e boca bem desenhada insinuando um ato sexual muito bem enquadrado. Aliás, é aí que a personalidade intocável de Odete aflora. Ao contrário de Norma Bengell, Odete Lara nunca é mostrada com os seios nus, ou em planos abertos quando despida. Sobre isso recai a ânsia de queremos desvendar esta atriz-personagem tão instigante congelada pelos percalços da vida (agora real até de mais) numa cidade cada vez mais vertical e vertiginosa. Queremos tocá-la com olhar atento, mas o corvo diz: Nevermore!
Se primeiro a vida era ingênua e depois dura demais, em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), dirigido por Glauber Rocha (também mito, porém alocado num outro departamento do panteão do cinema), a vida se torna sonho, pesadelo, delírio, êxtase, arquétipo, miragem, e todos os outros adjetivos que possam remeter ao “inusitado” e que o leitor sinta-se impelido a usar.
A mulher antes lançada ao acaso de suas poucas oportunidades, que precisava dispor da sedução, e que depois se tornou prostituta de pedra quente e macia, agora se torna Laura. “Odete Regina Laura” é a síntese da imagem de Odete Lara, que encarna a esposa oportunista de um coronel cego, velho e mesquinho (Joffre Soares), “rei” num vilarejo do sertão baiano. Esta Laura é o último estágio da personagem intocável que envolve Odete Lara. Seu “trem para as estrelas”. Nunca sabemos, ao longo do filme, se o que vemos é uma simples mulher desgostosa com a vida, ávida por beber até o último gole de sua própria beleza e juventude ao lado de Hugo Carvana, que aqui vive o secretário do coronel, ou um fantasma que nos surge a todo momento como a fonte de um prazer do qual jamais desfrutaremos.
É nesse papel polifônico que Odete consolida sua imagem de beleza inalcançável ao mundano, ao toque terreno de mãos poluídas pelo cotidiano medíocre. Com Laura, Odete Lara paira para fora da tela e vem acariciar atormentada nossos traumas e nossas consternações diante do mundo real onde fomos aprisionados. Sentimos sua carícia terrível (e por que não dizer mórbida?) em nossas retinas. Odete Lara já não pertence ao reino do palpável. Desperta a lascívia dos homens mesmo depois de morta no fim do filme. O anjo nasceu! NOTA: Se marchinhas não combinam com a voz de Odete, o mesmo não se pode dizer da letra de Carinhoso, deslizando doce por seus lábios afora, a certa altura da estória. Carvana, cala a boca e deixa o anjo cantar!
Outras mulheres passaram pela pele de Odete Lara, mas esta trinca que escolhi traduz a imagem que ficou na minha memória. Começo, meio e fim.
Odete Lara retirou-se de cena antes que o tempo e a TV de massa corroessem sua deidade, para se isolar no campo, como se este mundo não tivesse o direito de dizê-la sua. Nem mesmo o constrangedor roteiro (roteiro?) escrito e dirigido (se é que se pode dizer assim) por Ana Maria Magalhães em 2002, sob o título de Lara, supostamente sua cinebiografia, conseguiu trazê-la ao chão que nós, ínfimos e mortais cinéfilos, habitamos.
Quanto dura um mito?
Eternamente, se ele souber surgir no momento certo… e souber desaparecer quando vir que já espalhou sua magia.
Donny Correia, 1980, é paulista. Poeta e cineasta, publicou O eco do espelho (2005) e Balletmanco (2009). Teve seu curta-metragem Totem (2010) selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. É graduado em Letras – tradutor e intérprete, e pós-graduando pelo Instituto de Artes da UNESP e pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. Atualmente, é gerente geral da Casa das Rosas – Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura.