Entrevista com Anselmo Duarte

Especial Anselmo Duarte

Entrevista com Anselmo Duarte

Por Marcus Vinicius Moraes, especialmente para a Zingu!*

A entrevista a seguir com Anselmo Duarte foi realizada em março de 2000, para o site Cine Brasil, porém nunca foi publicada.

As respostas foram datilografadas pelo próprio Anselmo, numa máquina de escrever, e revisadas por ele, com anotações em caneta azul, além de correções batidas à máquina. Característica muito presente em Anselmo, o seu perfeccionismo. Junto com essa transcrição, abaixo, poderão ver as oito páginas originais da entrevista, scaneadas a partir da versão em papel de fax que Marcus Vinícius possui e mantém. As imagens foram tratadas em Photoshop para recuperarem sua cor.

Zingu! – Como o senhor descobriu sua vocação para o cinema?

Anselmo Duarte – Na minha infância, dos 7 aos 10 anos de idade, eu freqüentei o cine-Pavilhão, na cidade de Salto/SP, onde nasci. Fiquei maravilhado com as imagens em movimento. O cinema era ainda mudo, sem som, e com letreiros. As cenas eram acompanhadas pela música de um piano. O projetor ficava atrás da tela, tão próximo dela, que para evitar incêndio, precisava esfria-ia com esguichos d’água, nos intervalos – trabalho este, executado por meninos pobres, que não podiam comprar a entrada. Eu era um deles. Tímido, nunca pretendi ser ator, nem famoso, queria apenas fazer o meu filme, atrás da tela, atrás da câmera, num quarto es¬curo da minha casa, para minha família e meus amiguinhos. Construí uma pequena tela, molhada, onde eu grudava recortes de revistas de cinema, iluminados pela luz de vela. Depois construí um protetor de slides, para exibir minha coleção de fotogramas de filmes, que eram vendidos pelo projecionista do cine-Pavilhão. Vocação? Eu nem sabia o que significava; os que nos conhecem percebem que a possuímos, através de atos como estes.

Z – Como começou no ramo do cinema?

AD – Comecei como figurante nos filmes: It’s All True, de Orson Welles, e Inconfidência Mineira, de Carmem Santos, apenas por curiosidade. Depois o diretor italiano Alberto Pieralise convidou-me para fazer um teste para o papel principal de seu filme Querida Suzana. Fui contratado.

Z – Em quais companhias cinematográficas o senhor atuou?

AD – A primeira companhia foi Imperial Filmes, do exibidor e produtor carioca Luiz Severiano Ribeiro. A segunda, Cinédia, do produtor Ademar Gonzaga. A terceira, Estúdios San Miguel, em Buenos Aires, Argentina. A quarta, Atlântida Cinematográfica, no Rio de Janeiro, onde atuei em muitos fil¬mes populares. A quinta, Estúdios Vera Cruz, em São Paulo, em quatro filmes de nível internacional, com famosa equipe inglesa. Com a falência da Vera Cruz, voltei ao Rio de Janeiro, e associei-me ao meu amigo, professor, e diretor da Atlântida, Watson Macedo, como produtor, ator, e roteirista. Realizamos diversos filmes no sexto estúdio, Brasil Vita Filmes, atualmente estúdios de dublagem de Hebert Richers. A sétima, Maristela, de São Paulo. A oitava, Tóbis Filmes, em Lisboa, Portugal. A nona, Céa Filmes, em Madrid, Espanha. Conheci os melhores estúdios da Argentina, Espanha, e da Cine-Cittá, em Roma, Itália, onde, a convite de Federico Fellini, assisti uma filmagem do seu lendário estúdio 5, do seu famoso filme Roma.Visitei os grandes estúdios da Universal Pictures em Hollywood, em companhia do seu presidente, que convidou-me para dirigir nos EUA.

Z – Como se deu sua entrada na Vera Cruz?

AD – Em 1950, a Vera Cruz já havia realizado quatro filmes com artistas do teatro, e grupos amadores da alta sociedade, que apesar de bons atores, não tinham popularidade. Com o alto custo da produção, deram prejuízo à companhia. O produtor Alberto Cavalcanti foi demitido, e contrataram Fernando de Barros, um expert em filmes populares. Foram contratados Anselmo Duarte, Tônia Carrero, Modesto de Souza, Ruth de Sousa, Alberto Ruschel, Mazzaropi, Ilka Soares, e outros da Atlân¬tida e independentes, que já haviam conquistado o grande público do cine-ma brasileiro. De 1951 em diante, saíram os filmes de maior rentabilidade da Vera Cruz: Tico-Tico no Fubá, O Cangaceiro, Sinhá Moça, os filmes do Mazzaropi, e outros. Apesar da boa rentabilidade dos novos filmes no território nacional, a Vera Cruz nada recebia das exibições no exterior. Sem experiência do comércio internacional de filmes, a Vera Cruz entregou seus produtos a distribuidoras americanas, e foi lesada de todas as formas. Além disto, Zampari não abdicava da boa qualidade técnica dos seus filmes, apesar de populares e do seu sonho em terminar de construir o estúdio. Gastou tudo que tinha, ficou pobre, endividado, e perdeu seus estúdios para o Banco do Estado, que fechou suas portas.

Z – O senhor poderia falar mais sobre a Vera Cruz?

AD – Depois que parou de produzir, alugava os estúdios e equipamentos técnicos para produtores independentes. Eu fui um dos primeiros a utilizá-los fora dos estúdios. Levei-os para a Bahia, para produzir e dirigir O Pagador de Promessas, e, antes deste, já havia realizado dentro dos mesmos o meu primeiro filme como diretor, Absolutamente Certo!. O acervo técnico era de excelente qualidade: quatro câmeras Mitchel, a mais famosa e cara do mundo; seis de outras marcas; refletores de iluminação Moll Richard-Son; som R.C.A. para gravações óticas e magnéticas; mesa de mixagem com 12 canais; aparelho de back-projection – fundo projetado atrás dos artistas, para simular e ambientar cenas exteriores dentro dos estúdios; gruas; dollings; cabos; geradores; projetores; moviolas; coladeiras; truca; microfones, e gravadores portáteis, etc. – importados dos EUA, da França e da Inglaterra. Graças ao idealismo de Franco Zamapari em produzir filmes de nível internacional, recursos financeiros, e uma competente equipe de técnicos ingleses, os filmes da Vera Cruz realizados há 40 anos são os únicos que resistiram ao tempo, e ainda são exibidos com sucesso na televisão daqui e de outros países. Em 1996, na França, o Festival International de Biarritz – Cinémas et Cultures de L’Amérique Latine homenageou dois di¬retores, Alberto Cavalcanti e Anselmo Duarte, e dedicou uma retrospectiva a 16 filmes da Vera Cruz. Nos colóquios com cinéfilos e universitários franceses, sempre perguntavam: “porque há 40 anos atrás o Brasil realizava melhores filmes que os de hoje?”

Z – O senhor foi o galã mais famoso do cinema brasileiro. Como convivia com essa popularidade? Gostava?

AD – Não… não gostava. Ao contrário, preocupava-me ter de conviver com a notoriedade de grande artista do cinema, admirado por muitos, e invejado por outros tantos, que não sabiam nada sobre os sérios problemas do artista brasileiro (sem televisão), com a responsabilidade de manter com dignidade um lar, com mulher, e filhos para criar e educar, com salário de coadjuvante do cinema de Hollywood. Enquanto era galã invejado, trabalhava sem nada ganhar, em todas as funções técnicas de um estúdio, para aprender, realizar meus sonhos de criança, e livrar-me da pecha de galã de cinema brasileiro.

Z – O senhor atuou em filmes que fazem parte da história do Brasil, como Independência ou Morte, interpretou o compositor e pianista Zequinha de Abreu, em Tico-Tico no Fubá e, com surpreendente versatilidade, desempenhou o papel de vilão do filme baseado em fatos verídicos, O Caso dos Irmãos Naves. Como se sentiu interpretando personagens tão diferentes?

AD – O ator ou atriz que adquire experiência profissional, popularidade, bons conceitos da mídia, a confiança dos diretores, e bom “negócio” para os produtores, pode se dar ao luxo de escolher os argumentos e os papéis que deseja interpretar. Eu não fugi à regra, só não escolhi os diretores que me dirigiram, o que resultou constar, em minha filmografia de ator, bons e maus trabalhos. Quanto aos temas, predominam os de conteúdo histórico, costumes e problemas sociais. Tal preferência nota-se não só nas personagens que interpretei como também nos roteiros que escrevi, que contam a história de um Zé do povo, Zé da Bomba, Zé do Lino, Zé do Burro. Em Independência ou Morte, cujo roteiro é meu, fiz o papel do orador da maçonaria, a pedido dos maçons, e porque digo a verdade histórica sobre a nossa independência. Em Tico-Tico no Fubá, porque tenho afinidade com a música, gente do interior, exponho a luta e os grandes feitos de um músico e compositor que morreu na miséria. O Caso dos Irmãos Naves, um filme documentário do mais odioso e desumano ato do Governo Ditatorial, que, à guisa de justiça, condenou à prisão dois inocentes trabalhadores. Colaborei com os realizadores do filme, interpretando o papel do Tenente-vilão, para rememorar tão escabroso julgamento e fato, na esperança que os senhores da justiça e dos governos ditatoriais não o esqueçam, meditem e não voltem a cometê-lo.

Z – Sua longa carreira artística caracterizou-se pela sua extensa atividade como ator ou diretor, atuando ou realizando filme atrás de outro sem muito espaço de tempo. Na década de 60, houve uma longa parada de três anos, sem aparecer como ator ou realizador de qualquer filme. Qual foi o motivo?

AD – Graças à premiação do meu filme O Pagador de Promessas com a Palme D’Or no Festival de Cannes-França, passei o ano de 1962 com¬parecendo ou disputando outros festivais internacionais. Terminadas as festividades, tive que assumir o papel de produtor para as vendas fora do Brasil, e passei os anos de 1963/64 viajando. Portanto, só em 1964 consegui voltar às atividades de diretor.

Z – Quais as funções de um produtor de filmes?

AD – Na Europa ou nos EUA, é escolher a história, financiar a produção, e geri-la. Contratar estúdio, técnicos, artistas, laboratório, cinemas exibidores, realizar inscrições em festivais, publicidade, pagamentos, contabilidade, etc. Porém, naquela época não tínhamos produtores capacitados para essas funções, eram apenas financiadores. Aplicavam o capital e recebiam os lucros. O diretor era responsável por tudo, e tinha que entregar o filme pronto ao produtor. Para realizar meus filmes, sempre desempenho as funções acima descritas, e no caso de O Pagador de Promessas, por insuficiência de dinheiro para produzi-lo, tive que desempenhar funções técnicas, tais como fotógrafo de cenas, cenógrafo, produtor executivo, editor, e até o cartaz do filme, em que compus, diagramei e fotografei. Depois vieram as viagens para os festivais e vendas no exterior como já disse. Gostaria de esclarecer que isto não é lamento, foi um prazer ter trabalhado em todas as funções relacionadas com o cinema.

Z – Por favor, conte algo sobre a história de O Pagador de Promessas, bem como sobre a época, sobre como foram as filmagens em Salvador/BA, e sobre o povo que ali morava.

AD – Trata-se de uma peça teatral de Dias Gomes. Estava sendo representada em São Paulo com o ator Leonardo Villar, encenada pelo diretor Flávio Rangel, que me convidou para assisti-la. Era o tema que eu procurava: um pobre e inocente homem do campo faz uma promessa para Santa Bárbara, a de carregar uma cruz tão pesada quanto à de Cristo, até a longínqua cidade de Salvador, se a santa curasse o seu burro Nicolau, que está à morte. Consegue a graça, mas quando tenta colocar a cruz dentro da igreja de Santa Bárbara, o Padre pergunta: ‘porque o senhor não pagou a promessa na igreja da cidade onde mora?’ Zé do Burro responde: ‘porque lá no sítio não tem uma igreja, então a fiz num terreiro de candomblé, onde tem uma Santa Bárbara, que chamam de Iansã’. Deste momento em diante, começa a tragédia do pobre Zé do Burro, impedido pelo padre de entrar na igreja, humilhado pelas autoridades, usado pela imprensa e pelo comércio, perde a mulher, sofre, luta contra a incompreensão e intolerância da igreja, sociedade, polícia, e beatos, mas consegue entrar na igreja com a sua cruz prometida, porém morto e crucificado nela. Comprei os direitos de adaptação da peça para o cinema, fiz o roteiro, escolhi os locais em Salvador, e realizei as filmagens, sendo 80% delas nas escadarias da igreja. O fato ocorreu na década de 40, naquela cidade, mas se repete até os dias de hoje, devido ao sincretismo religioso na Bahia. O povo baiano é simpático e receptivo, sempre atende às convocações feitas pela imprensa para comparecer ao local das filmagens para trabalhar como figurante – conforme a cena, utilizava-os para figurar como transeuntes, variando a quantidade (de 20 a 1000, diariamente, e, nas cenas finais, 2000). Gosto de filmar fora dos estúdios, em locais autênticos, de preferência onde aconteceram os fatos. Foi para mim muito trabalhoso e difícil dirigir no meio do povo, com atores amadores, não profissionais de cinema, e sem assistente de direção. Em compensação, o desempenho talentoso dos artistas Leonardo Villar, Gloria Menezes, Dionísio Azevedo e Norma Bengell muito me facilitou cumprir essa árdua missão. Trabalhamos durante dois meses, nas escadarias da igreja, ruas e outros locais, sem descanso semanal, dias e noites, movimentando a parafernália técnica no meio do trânsito e do povo sorridente. Nas cenas noturnas, colocávamos os grandes e possantes refletores de arco voltaico nas janelas, sacadas, salas e até quartos, sempre com simpática e bondosa permissão dos moradores, e ainda nos desejavam bom trabalho. Estou certo de que se condoíam de ver a nossa desesperada luta diária para transformar suas janelas em plataformas-pontos para refletores, eletricistas ligando cabos de alta voltagem, ensopados pela chuva artificial, como nunca viram, e que Hollywood faz brincando em seus estúdios. O bondoso povo baiano parecia adivinhar que o filme seria importante para o nosso cinema, e principalmente para a Bahia. Transformou nosso trabalho numa grande festa. Todos os locais escolhidos por mim, inclusive os postes de iluminação da escadaria da igreja, foram comprados e colocados lá pela minha produção, e depois utilizados pela TV Globo para gravarem a. minissérie colorida O Pagador de Promessas, sem um simples crédito de cenógrafo para minha pessoa. Ignoraram a minha criatividade, e não fui merecedor nem de um “mini” agradecimento. Quem não tem idéia, aproveita as dos outros.

Z – O que o senhor tem a dizer sobre o cinema brasileiro atual?

AD – O nosso cinema é epidêmico, com duração de dez anos. Já assisti o início e o fim de cinco deles. O último morreu com o advento da televisão, o fechamento das casas exibidoras e Cinema Novo. Nunca tive o auxílio do governo como atualmente. Em 1998/99, foram aplica¬dos mais de 300 milhões de reais, dinheiro do imposto de rendas, que na sua maioria são captados por pessoas e escritórios de prestação de serviços, que nunca tiveram o menor relacionamento com o cinema, infelizmente. Resultado: uma avalanche de produções, na sua maioria, realizada também por pessoas sem intimidade com a sétima arte. Os que conseguem chegar ao fim, com alguma qualidade, não conseguem ressarcir o capital empregado por falta de casas. O Brasil possuía 5000 salas de cinema, hoje, viáveis, apenas 500! Apenas um ou dois filmes, de promissores diretores, conseguiram sair de nossas fronteiras, mais pela criatividade, não pela qualidade, conseguiram algum sucesso em festivais internacionais. Como desenvolver uma indústria, cujo produto não tem onde ser vendido, e com possíveis consumidores, em casa assistindo televisão? Não freqüentam os cinemas por diversos motivos – os principais, segurança e financeiro.

Z – Quais filmes mais gostou de dirigir e de atuar?

AD – Como ator, A Sombra da Outra, Carnaval no Fogo, Tico-Tico no Fubá, Sinhá Moça, Arara Vermelha, O Caso dos Irmãos Naves, e Absolutamente Certo!, o mais completo, em que roteirizei, atuei, produzi e dirigi. Como diretor, O Pagador de Promessas, Vereda da Salvação, Um Certo Capitão Rodrigo, Quelé do Pajeú, e O Crime do Zé Bigorna.

Z – O senhor atuou como ator em outros países (Argentina, Portugal e Espanha), e como diretor iniciou o filme Le Rapt, na França. Porque não o terminou?

AD – O Rapto, história e roteiro meus, seria uma co-produção França-Espanha. Comecei a filmar ruas e locais famosos de Paris, que serviriam de back-projection, fundo projetado para as cenas que seriam filmadas nos estúdios de Madrid, na Espanha. Estourou uma greve no cinema francês, e o governo decretou: ‘Toda co-produção francesa deverá obrigatoriamente ser filmada em estúdios franceses, e os exteriores onde a história exigisse’. Exatamente ao contrário do que fazíamos por questões econômicas. Os estúdios e equipes técnicas da França eram três vezes mais caros que na Espanha, e as filmagens foram interrompidas. Tornou-se inviável a produção do meu filme, com as novas leis e condições.

Z – Porque aceitou fazer o livro Adeus Cinema, escrito por Oséas Singh Jr.?

AD – Depois de estagiar três anos na Europa, voltei convicto de que poderíamos conquistar prêmios em festivais internacionais e ganhar aqueles mercados com temas e conteúdos mais originais, realistas, documentais. Filmes que expressassem nossa cultura, ansiedades, problemas e realizados fora dos estúdios (precários), nas ruas e locais autênticos e gente com cara do Brasil – em que o conteúdo e a verdade fossem mais importantes que o preço das sofisticadas produções copistas. Enfim um CINEMA NOVO. Realizei o primeiro, O Pagador de Promessas. Escolhido pelo Departamento Diplomático do Itamaraty para representar o Brasil no Festival Internacional de Cannes-França, despertou a curiosidade de um grupo jovem de cinéfilos, jornalistas, e universitários, que comungavam as mesmas idéias. Pediram para ver o filme. Após a projeção, em meio de eufórica manifestação de entusiasmo e cumprimentos, o jornalista, cineasta e dicionarista Alex Viany proclamou: ‘nesta noite, está nascendo um CINEMA NOVO do Brasil’. Aplausos e vivas. Depois da premiação internacional do meu filme, o aferido grupo, perplexo, ficou frustrado em seus ideais, pois era exata¬mente o que pretendiam com os seus futuros filmes. Iniciaram campanha desmoralizadora à minha obra, através de conferências em cineclubes, televisão, escolas de comunicação, edições de livros, alguns oficiais custeados pela Embrafilme, artigos em jornais, que os acolheram por simpatia profissional. Vítimas dessa lavagem cerebral também foram seus inocentes ouvintes, que saíram das faculdades com a cabeça feita, indo para os jornais ou se tornando professores de cinema. E, durante 20 anos de militância nos meios de comunicação, revelaram-se críticos sectários, e semearam impiedosamente a discórdia no meio da pacifica família cinematográfica brasileira, destruindo-a. Produzíamos mais de cem filmes por ano, e chegamos à estaca zero em 1990. Alguns remanescentes hoje justificam: “estávamos na década do protesto (1960), éramos muito jovens, e tudo valia, até os irracionais protestos contra a família, religião, e vencedores.” “Realmente demos ume esnobada no Anselmo, no seu O Pagador de Promessas, e jogamos um pó no brilho de sua palminha de ouro.” Criticavam a comédia-musical, sem perceber que eram protagonistas da mais ignóbil comédia-satírica, a que denigre respeitáveis seres humanos, e inocentes profissionais. A novela cinemanovista “uma idéia na cabeça” começou nas mesas dos bares de Ipanema, e fiéis a continuidade cinematográfica morreram na praia, após o naufrágio num mar infestado de mentiras. Alguns sobreviventes contam histórias com evasiva consoladora. Tarde demais. Tudo que diziam era verdade e a imprensa divulgava. As contestações das suas vítimas eram censuradas ou simplesmente jogadas no lixo. Por esses motivos, resolvi publicar o livro Adeus Cinema, para que os estudantes de comunicação não fiquem privados da verdade histórica que privou uma centena de cineastas de exercerem suas profissões.

Z – Para terminar, diga algumas palavras para os que desejam trabalhar com cinema.

AD – Humildade, vocação, estudar em boas escolas de arte dramática e em faculdades de comunicações. Começar trabalhando como estagiário, amador, ou qualquer função em teatro, televisão, e cinema. Não alimentar a ilusão de grandes salários, gostar realmente da profissão como meio de expressão artística, sem vaidades, e principalmente não pensar que se tornará famoso da noite para o dia. A notoriedade e a fama chegam quando menos se espera, porque é o resultado da dedicação, dos feitos e das obras realizadas com talento, e não de pretensões. Somos felizes quando trabalhamos na profissão que gostamos, mas, em termos de cinema brasileiro, é preciso precaver-se com outros afazeres profissionais, mesmo não gostando. Como não há idade estabelecida pare se recomeçar a vida, os jovens devem tentar.

*Marcus Vinicius Moraes é residente de medicina e saltense. Conviveu com Anselmo em sua adolescência, quando realizou esta entrevista.

Tragam-me a Cabeça de Anselmo Duarte

Especial Anselmo Duarte

Tragam-me a Cabeça de Anselmo Duarte

Por Andrea Ormond, especialmente para a Zingu!*

Agora que é morto, podemos abrir o verbo e dizer tranqüilamente que a grande tragédia na carreira de Anselmo Duarte foi ter recebido, em maio de 1962, uma Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A glória francesa transformou o cineasta em muso de assédios mórbidos, iconoclastias revanchistas e toda sorte de doenças que envenenam a cultura brasileira. No meio tempo, embora realizasse filmes excepcionais – como Vereda da Salvação (1964) e O Descarte (1973) – parecia somente réu preferencial do mais hediondo dos crimes: vencer por seu próprio mérito.

Na fase áurea da pornochanchada, figurante de 59 anos, sotaque impoluto da Vera Cruz, personagem de marido corno dissertando sobre wife swap – enquanto seus detratores torravam milhões da Embrafilme -, Anselmo já era prova triste de uma desconstrução bem sucedida. E expurgo da guerra cultural vencida pelos invejosos.

Digamos invejosos com ênfase psicanalítica, pois grande parte dos “gênios” do Cinema Novo que lhe jogaram pedras, representavam, sem tirar nem pôr, exatamente aquilo que lhes causava repulsa: uma elite fria e provinciana, distante da emoção popular.

E, na hipocrisia cinemanovista, Anselmo lembrava verdade incômoda: o brasileiro comum sempre preferiu – ainda prefere – O Pagador de Promessas (1962) e identifica-se mais com o drama de Zé do Burro, do que com centenas de alegorias ideológicas obscuras.

Daí para acusações de alienado, reacionário, quadrado, foi um pulo. Teriam dito qualquer outra coisa – que nadava nu em Peruíbe ou que vestia terno Ducal. O que importava somente era descontar a frustração, desopilar o fígado, em uma época de paixões infantis e radicalizadas.

Mas toda essa injustiça pode ser revertida com um simples ato generoso: revermos Anselmo Duarte nas telas, seja como ator em mais de 40 filmes, seja como diretor, roteirista, produtor.

Galã da ponte-aérea – na Atlântida e Cinédia, do Rio, e na Vera Cruz, de São Paulo – contava que só aprendeu a representar levando um tapa da diretora Gilda Abreu, durante as filmagens de Pinguinho de Gente (1947). Como seu sonho de infância era tornar-se diretor, em 1956 aproveitou Arara Vermelha, de Tom Payne, para editar um mini-documentário, quase um making of da produção, intitulado Fazendo Cinema.

Dirigiria no ano seguinte seu primeiro longa, Absolutamente Certo (1957), que o perseguiu como fantasma. A razão é que os futuros detratores adoravam dizer que aquele teria sido seu melhor trabalho. Dessa forma, sugeriam indiferença à coleção de êxitos e esforços de Anselmo – como se, para ele, estivesse reservado apenas um destaque nas chanchadas.

Ao adaptar a peça de Dias Gomes em O Pagador de Promessas, era óbvio que desejava aproximação com os movimentos de vanguarda – social e cinematográfica – que pipocavam pelo mundo. Fez isso da maneira mais inteligente possível, iluminando a fé em oposição à Igreja. O que ele não sabia era que, a partir de então, não bastava somente filmar. Era preciso pertencer aos grupos certos, submeter-se aos caprichos coletivos, aceitar lideranças em nome de projetos duvidosos.

Em resumo: O Pagador de Promessas já nascia politicamente velho, ultrapassado. Teve sorte do júri de Cannes acolhê-lo em um ano de títulos absurdamente bons – O Anjo Exterminador, de Luís Buñel, e O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, estavam entre os concorrentes – o que fez o êxito parecer irrefutável. Tão irrefutável que seus detratores – novamente e sempre eles – sofismariam que, na presença de obras brilhantes, os jurados haviam escolhido o medíocre brasileiro para não se comprometerem.

Recebendo outros prêmios, nos Estados Unidos, no México e na Grã-Bretanha, ao voltar para o Brasil – trazendo os canecos embaixo do braço -, Anselmo Duarte devia estar julgando-se acima do bem e do mal. Mas obteve recepção gélida, principalmente no Rio de Janeiro, onde os garotos com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” vislumbraram no ex-galã de 42 anos, caipira e laureado, o melhor alvo para demarcarem onde terminava o velho e começavam eles – os novos.

Por outro lado, Anselmo foi utópico e auto-destrutivo o suficiente para brigar com meio mundo, indispôr-se até nos círculos paulistas – vide polêmicas envolvendo Rubem Biáfora e Alfredo Sternheim – e investir fortuna em adaptar uma história dificílima de Jorge Andrade, autor teatral desconhecido do público e da crítica – que esperavam novo Pagador. Vereda da Salvação (1964), marginalizado no Festival de Berlim, selaria definitivamente um paradigma: realizar trabalhos populares ou impecáveis, mas que sempre davam a impressão de que o “ganhador da Palma” afundava, decaía.

Ao correr dos anos, somou-se idéia de que Anselmo reagia aos altos e baixos com pedantismo e arrogância. Talvez seja verdade. Mas Lima Barreto e Glauber Rocha não eram exatamente flores de modéstia, e ninguém os expulsou do Olimpo a pontapés. Artistas não precisam ser humildes e cordatos, precisam é criar grande arte.

Revisão isenta de Quelé do Pajeú (1969), Um Certo Capitão Rodrigo (1971), O Descarte (1973), O Crime do Zé Bigorna (1977), além de sua odienta performance em O Caso dos Irmãos Naves (1967), de Luis Sérgio Person, matam qualquer dúvida sobre o talento de Anselmo Duarte para o cinema. E sua real empatia com as coisas brasileiras, seu amor visceral pelo país, nos fazem querer justamente o embate que os cinemanovistas tanto buscaram: quem realizou, de fato, uma arte de vanguarda com os pés fincados nas raízes nacionais? Quem aludiu ao novo revigorando as tradições, dialogando sinceramente com o autêntico imaginário do povo?

Não se espantem, leitores, que as respostas provem que foi Anselmo Duarte, servindo de inspiração e sparring, o maior impulso criador para o cinema brasileiro dos anos 60. E que o “trágico” prêmio de Cannes, antes de ofensa, injúria, era dilúvio de generosidade, cheque em branco para um país periférico e esquecido, mas com potencial imenso de expressão. Calhou de Anselmo Duarte ser a vítima de tantas esperanças, cercado de derrota por todos os lados.

*Andrea Ormond é pesquisadora e ex-colunista da Zingu! Mantém o blog Estranho Encontro.

Recortes sobre Tony Vieira

Dossiê José Lopes

Recortes sobre Tony Vieira

Por Nuno César Abreu*
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Em meados dos anos 70, observa-se, na produção da Boca do Lixo, uma certa tendência (que ocorre na produção nacional em geral) de investir no gênero policial ainda sem abandonar os outros gêneros – o que é coerente com seu projeto “industrial”. O cinema policial (popular de massa) surgido nas manufaturas da Boca do Lixo apropriava-se do imaginário cinematográfico do gênero, de uma literatura popular do tipo “livro de bolso” e de casos policiais veiculados pelos jornais populares.

Tony Vieira foi um dos produtores que fizeram essa rotação. Na segunda metade dos anos 1970, com o declínio do western junto ao público, Vieira passa a realizar filmes policiais mantendo o mesmo espírito (e a mesma maneira, por assim dizer) que movia sua produção. Inspirado em “casos verídicos”, recolhidos no meio policial ou do jornal Notícias Populares – que deveriam ser “fantasiados, porque o que aconteceu realmente não funciona em cinema” – realizou um cinema simples, ingênuo e mal costurado, copiando os clichês da produção B estrangeira, mas resistente em seu apelo junto ao público mais carente. Se é possível dizer que o cinema da Boca guarda identidade com que o realiza e com seu público, o caso dos filmes de Tony Vieira é exemplar. Tony representava exatamente seu público, extratos do “povão” que, no escurinho do cinema poderiam pensar: “Isso aí tem a ver comigo”.

Em Os violentadores (1978), um “policial de fronteira”, o herói é um caçador de prêmio que faz justiça a estupradores. Em Os depravados (1978), um policial urbano, um bandido renega o bando e faz sua vingança – tema recorrente nos filmes populares (de massa). Nestes dois filmes, Tony utiliza-se de um recurso – por ele já utilizado antes – significativo: os créditos são narrados na apresentação. Um tiro certeiro em dois alvos: o barateamento dos custos de laboratório e o encontro com setores de “seu público” que tinham dificuldade de leitura.

Tony Vieira tinha consciência do papel do filme de gênero como elemento de sustentação da dinâmica comercial e cultural do cinema:

Eu acho que devemos arrastar o povo para o cinema nacional, dando ele o que está acostumado a ver: a televisão e o cinema americano. É por isto que eu adotei essa linha de cinema policial, saltos mortais, tiros. (…) Os Estados Unidos têm inúmeros diretores fazendo bangue-bangue, violência, policial, certo? Nós não temos (…) e eu procuro ficar martelando a mesma coisa. Então, nós não podemos discutir esse assunto de filmes diferenciados, com personagens mais complexos, por nós não temos gênero no Brasil. (retirado de O Imaginário da Boca, de Inimá Simões, Cadernos IDART 6. São Paulo, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981).

Em 1979, Tony Vieira realizou O matador sexual, baseado nos “hediondos crimes de Chico Picadinho”. Seu compromisso com o popular é enfatizado em matéria publicada na revista Cinema em Close-Up, especializada em produções da Boca:

O personagem de Tony Vieira, Renê ao contrário (de Chico Picadinho), é ágil, escorregadio, mais para “estrangulador de Boston” do que o vulgar coitado caboclo. Este filme, como os anteriores de Tony Vieira visa unicamente ao divertimento da platéia. Uma aventura policial bem contada, sem firulas, sem tentativas de incursão num problema que a medicina ainda não resolveu, o Tony não se arrisca. É justa a posição, desprovida de pretensões babacóides, como a de outros cineastas conhecidos que pensam expor a mentalidade escandinava em seus filmes e comentem o infantil erro de colocar crises morais em personagens classe média do citado povo. (retirado de Cinema em Close Up, ano 1, número 18, São Paulo: MEK, junho 1979).

Uma das características dos filmes do gênero policial (americano) é estabelecer os traços psicológicos de alguns personagens, principalmente do “culpado”, e, ao longo das peripécias, ir construindo um quase sempre misterioso desenho psicológico da vilania, algo – um trauma – que o conduziu ao mal e, de certo modo, justifica sua culpa no nível pessoal, muitas vezes absolvendo as causas sociais, já que do mesmo contexto saem os heróis- detetives, policiais, investigadores etc. Neste filme, o personagem “tem problemas” em função de seu relacionamento com a mãe – o que explica o texto da revista -, mas Vieira vai direto ao ponto, sem firulas. “E, se a ciência não resolveu, o Tony não se arrisca.”

Vieira posiciona-se firmemente na trincheira da Boca do Lixo. Ao contrário de outros cineastas da Rua do Triunfo, ele não procura revestir seu trabalho de um verniz cultural, ou mesmo alegar falta de recursos para uma produção mais bem acabada. Assume corajosamente a condição de popular – que, no texto, está de “mais verdadeiro”, “mais puro”, mais próximo do “povo” -, para marcar a diferença entre seus filmes e outros produtores da própria Boca que pretendiam cortejar setores intelectualizados, bem como em relação aos filmes de extração mais intelectual que abordam o mesmo sistema. Vieira define-se desprovido de pretensões babacóides e, para muitos, ele trabalhava o “popularesco”.

Como observa José Mário Ortiz Ramos, a ingenuidade do cinema de Tony Vieira era, por assim dizer, aparente. Um sistema de sustentação do produto estabelecia-se (a exemplo de David Cardoso), aproximando sua figura pessoal e a imagem pública veiculada pelos personagens, articulada pela construção de um tipo de herói informado pela própria mitologia do cinema.

Na verdade, procurava-se a imersão no universo cultural das classes B e C, que o diretor pretendia atingir, e pensando nesse público os filmes eram divulgados em jornais e programas populares. Fechava-se, assim, um contorno cultural e midiático dentro do qual seria eficaz o gênero policial com essas características. O imaginário do cinema americano e italiano, sempre apontados como molas-mestras desse cinema, na verdade, entrava na composição de uma constelação mais ampla, que abarcava dimensões diversificadas da vida cultural das classes populares.

Tony Vieira praticou um cinema naïf, em que articulava pessoa e personagem, detendo um público cativo- inclusive com fã-clube.

Matilde Mastrangi revela:

Ele ganhou muito dinheiro. Ganhou mais dinheiro, sei lá, que o Khouri, que tinha um filme mais…(…) Eu nunca levei o Tony a sério. Era um bom sujeito, mas nunca quis trabalhar com ele. Muito fraco, pobre demais, de roteiro, acabamento. Ignorantão né? Ele se achava o Clint Eastwood do Brasil (…) Mas ele era assim mesmo na vida pessoal. Aliás, na Boca, tinha uma turma que se achava aquilo mesmo.

Seus filmes tinham distribuição e exibição garantidas em cinemas populares, e ele era um dos poucos (em companhia de Mazzaropi) astros do cinema brasileiro com exclusiva veiculação através do cinema. Associado ao comendador Francisco A. Soares, investidor que participava como ator secundário nos filmes, Tony Vieira manteve, através de sua produtora, MQ – Mauri de Queiroz Produtora e Distribuidora, uma expressiva continuidade de produção, seja como ator, diretor ou produtor. Exercendo as três funções, realizou 11 filmes entre 1975 e 1983, entre eles Os pilantras da noite (Picaretas sexuais) (1975), Torturadas pelo sexo (1976), As amantes de um canalha (1977), O matador sexual (1978) e O último cão de guerra (1979). De 1982 até sua morte, em 1987, seguindo uma estratégia se sobrevivência abraçada por parte da Rua do Triunfo, dedicou-se à produção e direção de filmes de sexo explícito. “Gerido, parido e solado”, na Boca do Lixo, Tony Vieira foi um dos seus habitantes mais queridos.

Sobre ele, diz Guilherme de Almeida Prado:

Tive um contato maravilhoso com o Tony Vieira, que eu gostaria de ter gravado (…). Quando ele soube que eu ia dirigir As taras de todos nós, sentou-se comigo lá no Soberano e falou: “Você vai dirigir um filme e eu preciso te explicar como é direção de cinema”. E me deu uma aula que…eu não vou dizer que estava precisando, mas foi uma aula sensacional, com uma visão fantástica (…). Eu achei extremamente bonito da parte dele. E era uma coisa muito sincera. Não tinha nenhuma sacanagem naquilo, nenhuma pretensão. Ele queria realmente que eu não cometesse os erros que ele havia cometido. (…) Era uma coisa inesperada, até pelo cinema que ele fazia. Não dava para imaginar que ele tinha uma certa reflexão sobre aquilo.

E depõe Luiz Castillini:

Eu gostava do Tony. O cinema dele tinha aquela coisa ingênua e divertida, gostosa de se ver pela ingenuidade. Hoje, não. Se a gente for ver, é um cinema…Desculpe-me o falecido, é um cinema ruim. Na época, era uma coisa saborosa, tinha o seu lugar. Era uma coisa kitsch, uma coisa jeca não é? Ele tinha uma visão das coisas que era extremamente saborosa. (…) O Tony tinha coisas assim: “Vamos fazer um filme sobre a Máfia no Brasil”. “Legal, vamos”. Ele misturava as estéticas, misturava tudo. Botava o bandido brasileiro assim como a gente está acostumada a ver aí na rua e, ao lado dele, um cara com terno listrado e m cravo na lapela. Era maravilhoso.

Este tipo de produção cinematográfica entra em declínio juntamente com a decadência física e social do centro das cidades grandes (e médias), que leva ao aviltamento das salas de cinema, e com a clausura televisiva que esvazia e fecha as salas populares de bairro e periferia. Classes populares e cinema sem espaços sociais- na vida pública- para celebrarem seu encontro. A violência cobrou seu empobrecimento, e alguns gêneros ficcionais – terror, suspense, policial, etc -, de certo modo, saíram das telas para entrar na vida.

*Parte do capítulo A Boca do Lixo Está na Rua do Triunfo: 1976-1982, retirado do livro Boca do Lixo: Cinema e Classes Populares, de Nuno César Abreu, publicado pela editora Unicamp, em 2006.

Feitos pela Vida, Formados pela Técnica: Tony Vieira

Dossiê José Lopes

Feitos pela Vida, Formados pela Técnica: Tony Vieira

Por Nuno César Abreu*
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Tony Vieira e David Cardoso são dois exemplos de carreiras bem-sucedidas na Boca do Lixo. Embora com percursos de vida e de obra completamente diferentes, eles construíram carreiras de certo modo simétricas, tornando-se figuras lendárias neste universo. Ambos começam como atores, desenvolvem personagens “machões” – marcados por características arraigadas no imaginário popular -, em filmes de aventura com “mulher pelada”, e depois enveredam pela produção e pela direção. São “heróis Boca do Lixo” para o público, pelos tipos que construíram nos filmes, e para a própria Boca, pelo que representavam como exemplos de êxito pessoal e populares que se inserem no imaginário processado pelas telas grandes do país nos anos 1970. Cidadãos exemplares- pelo trabalho e esforço-, para o métier cinematográfico da Boca do Lixo, pelo que representam com suas trajetórias de sucesso e enriquecimento.

Aos 12 anos, Tony Vieira, aliás Mauri Queiroz de Oliveira (1938-1990), deixou a casa dos pais para acompanhar um circo que passava por sua cidade natal, Dores do Indaiá, em Minas Gerais. Nele, trabalhou como baleiro, apresentador e trapezista, conhecendo as manhas da picardia e das estradas do interior. A partir de 1960, já em Belo Horizonte, foi locutor de parque de diversões e animador de programas de telecatch na tevê. Trabalhava na TV Itacolomi enquanto fazia o curso do Teatro Universitário. Em 1968, mudou-se para São Paulo e passou a atuar em novelas da TV Excelsior, em que representou o papel principal no seriado Psiu, taxi da TV Excelsior, sob a direção de José Vedovato. No cinema, começou em pequenos papéis, como nos dramas A vida quis assim e Enquanto houver uma esperança, de Edward Freund. Em seguida, atuou como coadjuvante, principalmente em filmes com temas sertanejos, como Panca de Valente (Luís Sérgio Person, 1968), Corisco, o Diabo Loiro (Carlos Coimbra, 1969), Uma pistola para Djeca (Ary Fernandes, 1969). Passou a protagonista nos faroestes Um pistoleiro chamado Caviúna (1971) e Quatro pistoleiros em fúria (1972), ambos sob a direção de Edward Freund.

Tony Vieira é alçado no papel de galã de filme romântico em As mulheres amam por conveniência (1972), filme que tem uma sinopse sugestiva:

A história de um idealista que está fazendo um filme numa cidade do interior, onde conhece uma jovem de rara beleza. Ele se apaixona por ela, julgando ter encontrado a pureza que tanto procurava, mas descobre que a jovem foi amante de um bandido e tivera outros homens em sua vida. O romance continua, mas ela o abandona, voltando para os braços do marginal e mergulhando no submundo. Ele faz sucesso em sua carreira, tornando-se um diretor consagrado, mas vai procurar reconquistá-la para a sociedade e para a vida.

De galã, Vieira passa a diretor com Gringo, o último matador (O matador erótico) (1972), valendo-se de sua experiência e de uma oportunidade, conforme relata Ozualdo Candeias:

Havia um filme que era para o Freund dirigir, mas o Comendador (Francisco de Assis Soares, produtor) brigou com ele. Então o Comendador convidou o Tony, que aceitou. E deu certo. A fita deu muito dinheiro. O Tony encheu o Comendador de mulher- um monte delas- e fez cinema até o fim da vida.

Depois de Gringo, Tony Vieira interpretou, produziu e dirigiu cerca de 15 filmes de “faroeste brasileiro” e policiais. Misturando sexo e aventura em produções de baixo custo e forte apelo para as “classes populares”, aclimatou para o cinema nacional uma versão do herói solitário- a serviço da justiça e do bem-, e do mocinho justiceiro, que nasce no western americano e, nessa época, andava circulando com sucesso nos spaghetti western italianos e nos policiais classe B americanos.

Em seus filmes, sempre referenciados no cinema B estrangeiro, certos plots universais- vingança, resgate da honra, solidariedade humanitária etc.-, resolvidos pela violência, coragem e desprendimento, recebem um tratamento cinematográfico primário, plenamente adaptado ás condições de produção da Boca. Neste “imaginário de revista de quadrinhos”, Tony fez par romântico com Claudete Joubert em grande parte dos filmes completando com Heitor Gaiotti, em papéis cômicos, um trio de aventureiros. Com este esquema, realizou Sob o domínio do sexo(1973), Desejo proibido(1973) e A filha do padre(1975), dentre muitos outros.

Tony Vieira é um caso exemplar de diretor “gestado, parido e solado” na Boca do Lixo. Em 1975, associado ao comerciante e industrial comendador Francisco de Assis Soares, já co-produtor de seus filmes, fundou a produtora MQ Filmes. MQ, além das iniciais de seu nome, significava “marca e qualidade”. Os filmes eram realizados num esquema de produção bastante precário, mas rentável o suficiente para permitir a continuidade das atividades da empresa, atraindo investidores. O desempenho comercial de alguns trabalhos foi surpreendente até mesmo para o produtor.

Vou dar um exemplo. A pior fita, a mais ordinária que eu já pude fazer, foi Sob o domínio do sexo. Nesta fita eu tinha só 25% e foi feita em duas semanas, com quatorze latas de negativo. Todo mundo na pior. Eu não tinha dinheiro, estava começando, e foi tudo no sufoco (…) e foi a fita que mais rendeu, que mais deu o que falar. Tem até uma cena em que apareço dizendo “corta” e eu erguei aquilo e dublei “segue em frente”. No fim, foi o maior sucesso, deu muito dinheiro. Então, você vê quando a gente pensa que sabe das coisas…Depois eu melhorei, me aperfeiçoei, mas não fiz o mesmo sucesso de Sob o domínio do sexo (…) Quem pode explicar isso? Ninguém.

Escritor de vários roteiros de filmes protagonizados, produzidos e dirigidos por Tony Vieira, dentre eles o que parecem ter sido uma “trilogia do desejo”- Sob o domínio do desejo (1973) , Desejo proibido (1973) e Traídas pelo desejo (1976) -, Luiz Castillini revela que a parceria entre eles era realizada por meio de um gravador: Tony contava a história, registrando-a numa fita de áudio, e ele passava para o papel, mudando alguma coisa e dando uma feição de roteiro. Sobre o tipo de cinema realizado por Vieira, Castillini comenta, carinhosamente:

E os filmes de caubói dele? Tem um que é um clássico da fala kitsch: o personagem entra no escritório de um despachante e diz: “Eu quero um passaporte para o exterior”. Teve um filme em que o mocinho passava a cavalo por duas tabuletas: uma indicando Brasil, outra México (…) Ele fazia o que a gente chamava de western feijoada.

Além de para as peripécias dos filmes e das filmagens, Castillini chama a atenção para um ponte que, acredita, não tem recebido a devida atenção quando se aborda o popular (e o nacional) no cinema brasileiro, que é a produção elaborada, de fato, por realizadores- diretores, roteiristas, etc.- vindos das camadas populares, Tony Vieira era o perfeito representante de um tipo de cinema que, de certo modo, representava seu público. Segundo Castillini,

Essas coisas podiam ser reanalisadas, mas sob um ponte de vista…Como uma forma popular, como uma forma folclórica, um tipo de cabeça que agia dentro do cinema brasileiro. E que deve ter gente agindo por aí, hoje. Aquele rapaz, bombeiro lá de Brasília, o Afonso Brazza…Ele até casou com a Claudette Joubert (ex-mulher do Tony). Era fã. Então, pegou tudo, não é? Deve ter outros por aí.

Na época dos spaghetti westerns, um filão correspondente desenvolveu-se na Boca do Lixo. Os faroestes brasileiros made in Boca tiveram uma forte e contínua produção. Entre outros, Edward Freund, Rubens da Silva Prado e Custódio Gomes foram realizadores assíduos no gênero. Gênero que, pelo talento de seus praticantes, acumulou pérolas do folclore do mais cinematográfico, conforme relatam alguns de seus contemporâneos.

Ozualdo Candeias:

Este cara, o Freund, em meados de 1950, começou a dirigir uma fita, em Campinas, chamada Santo Antonio e a vaca. Ele fazia televisão também e era um pé no saco. Mas, em determinado momento, quando a Boca surgiu, ele pintou lá e começou a fazer fitas com o Comendador (e com o Tony). Ele era polonês e era um cara letrado. Mas era muito ruim para dirigir. E metido a fotógrafo também. Depois, fez uma fita com o David Cardoso como ator principal – Meu nome é Trindad -, porque o bangue-bangue, principalmente o italiano, os Trinitys e tal, ainda davam pé.

Cláudio Portioli:

Inclusive tem uma cena fantástica com o Carlos Bucka que era aquele ator muito gordo. Ele teve de montar num cavalo, e o cavalo arriou, caiu. Em vez de o Freund usar esta cena no filme com o Bucka levantando do cavalo nas costas, ele cortou tudo e jogou fora. Era uma comédia, tinha que aproveitar!

Luiz Castillini:

Todo mundo sabia que tinha um pouquinho de Ed Wood dentro de si. E, até gostávamos disso. A gente até curtia. Tinha coisas maravilhosas, genais nos filmes de caubói brasileiros. Por exemplo: o mocinho entra no saloon, abrindo aquela porta de vaivém. A garçonete entra em campo e pergunta: “O que é que o senhor deseja?” O mocinho responde: “Eu quero uma mesa”. Ela sai, ele fica parado ali, a câmera também. A garçonete volta e põe uma mesa na frente dele.

Nesta linha de produção, revela-se de modo exemplar, a prática da Boca de se apropriar da produção estrangeira e realizar seu produto calcada na realidade brasileira, efetuando uma verdadeira política de substituição de importações. Neste momento, os modelos de cinema estrangeiro a ser enfrentados não são mais os originais, mas suas versões B ou C, uma produção fake que dissolve (e pulveriza) o imaginário cinematográfico- temas, ambientes, iconografia, conteúdos ideológicos etc. Neste caso, a referência não é o mais autêntico western do cinema americano, mas o já degradado (com exceções) western de produção italiana (muitas vezes falado em inglês). A questão não é mais estética, mas a mercadológica: “É disto que o povo gosta? É isto que está vendendo? Então, vamos fazer”.

Essa estratégia, dominante na Boca, não era, no entanto, isenta de críticas, como se percebe neste depoimento de Ozualdo Candeias:

Por exemplo, no bang-bang americano não tem um cara que tenha a metade da categoria de bandido de um Lampião. O conteúdo do nosso western era bem melhor. (Lá) Era tudo vagabundo matando os caras atrás do toco, mas o cinema americano cria aquelas coisas: sacar (a arma) primeiro, aquelas roupas e tudo o mais. E é por isso que todo mundo entra nessa: é americano, vê. O nosso, nós não valorizamos. Essa é que é a grande merda, porque se pensa deste jeito, não é? É colonizado.

Interessante notar que esta linha de filmes tem uma certa tradição no Brasil, que passa pelos dramas sertanejos e, principalmente, pelos filmes de cangaço, nos anos 1950 e 1960, que aculturaram a narrativa do western com firmes raízes regionais. Porém, neste momento em que a proposta é tentar ocupar o mercado, fornecendo produtos que satisfaçam as expectativas geradas no público por décadas de consumo de filmes estrangeiros, “a atitude de substituição da produção estrangeira na área do cinema comercial, ao invés da estratégia de atrair o público oferecendo elementos cinematográficos que o filme estrangeiro não podia oferecer (temas brasileiros, ambientações marcadamente regionais, elenco com a nossa feição), optou-se, na maior parte das vezes, por simplesmente copiar, mimetizando o modelo estrangeiro. Mas, como somos incapazes de copiar…

Deve-se atentar para os mecanismos da relação da produção da Boca do Lixo com a produção internacional, o modo como a produção nativa vai-se apropriando de temas e ambientações estrangeiros, “atualizando-se”. Um exemplo claro são os filmes de cangaço. Tendo atravessado os anos 1960 já com as características de um gênero – com temas, ambientações, iconografia e personagens definidos-, esses filmes, cuja produção acabaria restrita à Boca do Lixo, irão sofrer uma “adaptação” no início dos anos 1970, com os cangaceiros sendo substituídos pela imitação dos gringos, Trinitys e Djangos dos spaghetti western italianos (por sua vez, já “perversões” do modelo americano original). Os personagens desses filmes despem-se das roupas de couro e passam a usar poncho. “O cangaceiro queria atingir o público pela diferença; o gringo paulista quer atingi-lo pela semelhança. A passagem cangaceiro/gringo revestiu-se, na Boca do Lixo paulista, de qualidades didáticas, tal a nitidez do processo.”

Uma atitude radical de apropriação (para marcar uma rejeição) do estrangeiro pode ser observada em Rogo a Deus e mando bala (1972), cujos créditos são propositadamente apresentados “em inglês” – como nos faroestes italianos-, acabando por revelar sua óbvia falsificação:

Ficha técnica: Rogo a Deus e mando bala

Roteiro, fotografia e direção: O. Oliver (Oswaldo de Oliveira)
Montagem: Syl Reynolds (Sylvio Renoldi)
Música: Francis Decalfine (Francisco Decalfine)
Intépretes: Mark Wayne (Marcos Miranda) , Veronica Teijido, George Karan, Marlen Kos (Marlene Costa), Ian Suyl (Itamar Silva), Walter Seyssel (…)

O sentido dessa apropriação é ressaltada pelo montador Sylvio Renoldi, co-produtor do filme:

Esse filme a gente fez de gozação. Nós estávamos tão putos com esse negócio de bangue-bangue italiano atrapalhando a vida da gente que resolvemos fazer uma brincadeira (…) Eu fui co-produtor desse filme, o Oswaldo de Oliveira também, com a Servicine do Galante. Deu pra pagar. Sempre dava pra pagar.

*Parte do capítulo A Toque de Caixa e a Todo Vapor: 1970-1975, retirado do livro Boca do Lixo: Cinema e Classes Populares, de Nuno César Abreu, publicado pela editora Unicamp, em 2006.

Eu dirigi José Lopes

Dossiê José Lopes

Eu dirigi José Lopes
Depoimento de José Mojica Marins

O Tony Vieira foi muito meu amigo. Fomos bastante próximos e eu procurei ajudar ele em todos os momentos. Ajudei a trazê-lo para a Boca do cinema. Depois, ele acabou lançando os trabalhos dele e se saiu muito bem. Obteve grande sucesso e se tornou famoso. Mas o Tony acabou morrendo muito cedo e deixando uma lacuna dentro do cinema brasileiro. O gênero que ele gostava de realizar ficou carente. Não tivemos mais nenhum diretor dedicado ao faroeste, aquele tipo de cinema que ele gostava. Ele sempre teve a linha dele e realizou trabalhos bastante audaciosos. Sempre gostei muito do José Lopes, o Índio, e sempre que pude o coloquei nos meus trabalhos. Ele, Mário Lima e outros da época da Boca são todos grandes amigos meus. Infelizmente, o tempo vai passando e são cada vez menos sobreviventes daquela época.

José Mojica Marins, o Zé do Caixão, 73, é cineasta e dirigiu José Lopes em Finis Hominis (1971)

José Lopes e Mojica

Dossiê José Lopes

José Lopes e Mojica

Por André Barcinski e Ivan Finotti
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Dias depois, Mojica e a equipe foram ao apartamento da atriz Terezinha Sodré, na rua Augusta, filmar a cena em que ela é flagrada pelo marido, transando com outro homem. Mojica havia escalado um de seus alunos para o papel do amante, mas Terezinha se recusou a fazer a cena, com a desculpa de que o rapaz era um amador e que ela não se sentiria à vontade. Mojica irritou-se e foi tomar um trago no restaurante Ferro´s, que ficava ao lado do prédio da atriz. No Ferro´s ele encontrou o amigo José Lopes, mais conhecido como Índio, um veterano da Boca do Lixo. Índio estava bem de vida, trabalhando na produção de Chacrinha na TV Excelsior, onde era assistente de Valentino Guzzo (ator que anos mais tarde interpretaria a antológica personagem Vovó Mafalda no programa do Bozo).

– Índio, graças a Deus que te encontrei! Estou com um problemão e acho que você pode me ajuda. Você conhece a Tereza Sodré?

– Lógico, Mojica!

– O que você acha de fazer uma cena pelado na cama com ela?

Mojica explicou o problema: disse que Terezinha havia se recusado a fazer a cena com um amador, mas que, com ele no papel, ela certamente toparia.

– É rápido, Índio, coisa de meia hora!

Índio não tinha mesmo nada mais interessante para fazer. Além do mais, a idéia de ficar agarrado com Terezinha Sodré não era de todo má… Mojica subiu para falar com a atriz. Disse que havia encontrado um “famoso ator de novelas” que aceitara fazer a cena (na verdade, Índio já havia atuado numa novela, As Minas de Prata no papel de – o que mais? – um índio chamado Visão, parte de um trio que incluía ainda os índios Audição e Olfato). Terezinha topou.

A filmagem não demorou trinta minutos como previra Mojica, mas seis horas. Além de trabalhar de graça, Índio ainda pagou o lanche de equipe. Ele ficou com pena ao ver que o pessoal não tinha dinheiro sequer para um sanduíche de mortadela, e resolveu pagar baurus e cerveja para todo mundo.

Alguns meses depois, Índio estava na rua do Triunfo, quando foi abordado pelo ator Tony Vieira, rei dos faroestes da Boca do Lixo.

– Índio, meus parabéns!

– Parabéns, por quê?

– Eu passei em frente ao Cine Ouro e sua foto está bem grande no cartaz!

Mojica havia gostado tanto da cena de sexo entre Índio e Terezinha Sodré que resolvera usá-la no cartaz do filme. Índio nunca poderia imaginar que sairia de casa um dia para tomar um trago e acabaria tendo sua foto espalhada por toda a cidade.

*Parte do capítulo 1969-1970: Zé do Caixão Contra a Embrafilme retirado do livro Maldito – A Vida e o Cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, de André Barcinski e Ivan Finotti, publicado pela Editora 34, em 1998.

Entrevista com José Lopes – Parte 5

Dossiê José Lopes

Entrevista com José Lopes 
Parte 5: Trabalhos atuais, o cinema brasileiro hoje e o futuro

Por Matheus Trunk

Zingu! – Hoje, você trabalha com cineastas mais novos. Como é isso pra você?

José Lopes – Para mim, não tem diferença. Esses jovens têm uma cabeça moderna, pra frente. São pessoas que estudaram. Infelizmente, da parte antiga de cinema, quase ninguém estudou. Mas não é só por isso que vamos dizer que sabem fazer cinema melhor que nós. Mas são pessoas que tem outra visão e outra filosofia do cinema. Eu me dou muito bem com eles, me respeitam bastante.

Z – Como foi sua participação no curta Minami em Close-Up – A Boca em revista, do Thiago Mendonça?

JL – Foi um curta que inclusive foi premiado. O Thiago me tratou com respeito, tratei ele com respeito e não tivemos problemas. Sou um velho jovem (risos), me dou bem com todo mundo.

Z – Como foi sua participação no Hans Staden?

JL – Foi um papel grande até. Mas acontece que eu acabei me aborrecendo com o pessoal da produção. Por isso, eles o acabaram encurtando. Era muita gente, polêmicas. Falei com o diretor que era o Luiz Alberto Pereira, o Gal, e saí. Ele é meu amigo até hoje, não prejudiquei o trabalho de ninguém.

Z – O que você acha do cinema brasileiro hoje?

JL – Tem muita gente que não é de cinema e fala que o cinema nacional cresceu. Pra mim, não cresceu. Antes, você fazia um filme independente com pouco dinheiro e a maioria eram bons filmes. Hoje, o cara gastou oito milhões, você vai ver o trabalho e não corresponde ao valor que ele gastou. Outra coisa: é um negócio de monopólio. Você vê um filme só com um tipo determinado de gente e isso pra mim não é legal. Tem hoje muita gente fazendo filme que não é de cinema, é de televisão. Televisão é uma coisa e cinema é outra coisa.

Z – É outra linguagem.

JL – Lógico que eles tem direito, todo mundo tem direito de trabalhar. Mas hoje está centrado somente nesse povo. Então, pra mim não houve melhora nenhuma. É aquele povo e acabou. Os outros não existem.

Z – Tropa de Elite você chegou a ver?

JL – Vi. Até gosto.

Z – Cidade de Deus, esses filmes?

JL – Vi alguns deles. Tem uns até mais ou menos, mas tem outros… Falo pela produção e o que o filme é. Você pode fazer um filme que não seja tão interessante, mais ou menos porque talvez você não teve certa produção pra fazer um trabalho. Mas fico louco quando os caras fazem um filme de seis milhões, não sei quantos milhões e você vai ver e não é nada disso. Você vai ver o filme e ele é ruim. Vi muitos filmes nacionais com dinheiro do governo e ruins. Não vou citar nomes, mas tem muita coisa ruim.

Z – O que o senhor acha do financiamento estatal ao cinema?

JL – Não acho legal. O cinema tem que ser feito como indústria. Você coloca o seu dinheiro e aí você vai fazer o seu filme pra você defender o teu. Agora, quando você pega o dinheiro do governo, você está pouco se lixando se o filme deu ou não deu dinheiro. Ainda vai dizer que é filme pra concorrer para o Oscar. Ah, dá licença! Para com isso! Esse filme mesmo sobre o Zezé Di Camargo [Dois Filhos de Francisco]. Não é ruim, mas é um filme infantil, pra criança. Não é algo para mandar para o Oscar. Você mesmo sabe disso.

Z – O Mojica ficou vinte anos sem conseguir fazer um longa-metragem. Você acredita isso é, em parte, algum preconceito contra o pessoal da Boca?

JL – Não chamaria de preconceito. A maioria do pessoal da Boca é meio acomodada. Você tem que correr atrás também. Você vê porque esse pessoal do Rio está sempre conseguindo? Eles correm atrás. Eles não ficam trancados em casa esperando o tempo passar. Acho que o pessoal de São Paulo é muito acomodado, fica muito parado. Acho uma injustiça não financiarem um filme para um Zé do Caixão ou para um Fauzi Mansur. O Fauzi fez grandes trabalhos também. Agora não sei se é preconceito ou as pessoas não correm atrás. Mas de certa forma, alguns tem certo preconceito. Mas isso é coisa de bobo. Boca é Boca, a Boca foi quem levantou o cinema nacional. Tanto a Boca nossa aqui, como a Boca do Rio, o Beco da Fome.

Z – O senhor chegou a ir ao Beco da Fome nessa época?

JL – Sempre fui muito bem recebido no Rio. Nas vezes que fiz filmes lá, sempre passei pelo Beco da Fome. O pessoal tudo gente fina, não tinha divisões, nada. Carioca, lógico, eles correm atrás do deles primeiro. Farinha pouca, o meu pirão primeiro (risos). Mas eles estão certos. O que não entendo é darem dinheiro para empresas de comunicação que tem bastante dinheiro. Eles são os que mais pegam dinheiro do governo. Isso não dá pra entender. Não é que eles não tenham direito, mas os outros também têm. Ser exclusividade dessas pessoas é complicado.

Z – Como surgiu essa oportunidade de participar de alguns filmes internacionais?

JL – Foi por intermédio da agência Princípio do Talento, onde estou cadastrado. Fiz primeiro aqui o Plastic City, que é uma co-produção chinesa, brasileira e japonesa. Tive um papel pequeno, mas legal. Contracenei com os atores principais, um chinês e um japonês cujos nomes não vou lembrar agora. Em 2008, fui pro Rio de Janeiro e fui escolhido para participar de um filme chamado Gringos no Rio [Rio Sex Comedy]. Sei que nesse filme estão o Bill Pullman e um grande elenco. Foi legal, maravilhoso e está pra sair. Gringos no Rio é uma comédia, um trabalho legal. Ainda não vi o resultado final.

Z – Um trabalho internacional te motiva?

JL – Lógico, vou estar lá fora também mostrando o nosso Brasil. É maravilhoso. Pra fazer esse filme, tive que fazer algumas viagens de avião. Na última, efiquei com medo e acabei voltando de ônibus (risos). Mas o pessoal da produção era maravilhoso, bacana. Fiquei hospedado em Ipanema, tudo maravilhoso.

Z – E se te chamarem pra novos trabalhos, você está aí?

JL – Sim, enquanto estiver vivo e a sombra estiver na parede, estamos aí.

Z – Depois que o cinema deu uma brecada, você se dedicou mais aos comerciais?

JL – Isso. Depois da Boca, fiquei mais nos comerciais e graças a Deus fiquei nisso. Sou uma pessoa conhecida nos comerciais. Várias agências me conhecem há muito tempo. Sou conhecido no meio de propaganda porque fui o primeiro a fazer propaganda de caderneta de poupança. Então, quando precisam de um índio, estou aí. Fiz índio xaiene, pele vermelha, até Navarro já fiz (risos). Fico feliz com isso. Não gosto de televisão, mas gosto de fazer comercial. É rápido e o pessoal é muito sério. Você recebe o que foi combinado de antemão e não tem dor de cabeça.

Z – O que você acha que fica de você para posteridade?

JL – Eu sei lá. O meu filho, graças a Deus, não seguiu a minha profissão. Com a minha família, está tudo legal, ninguém seguiu a arte. Não sei se vou deixar lembranças, saudade, essas coisas. Acho que depois que vai, acaba não se deixando nada (rindo). Depois que foi, já era. O que gostaria de ver antes de ir é um país bonito, não essa miséria, essa fome, drogas, crianças na rua. Essa miséria é uma vergonha. Quando estou com alguns amigos, muitos reclamam que falo palavrão. Retruco: “Isso não é palavrão. Palavrão é você ver quarenta, cinquenta crianças cheirando cola na calçada e ninguém toma uma providência”. Isso pra mim é palavrão, é feio, é desgraça.Queria que nossos políticos tivessem um pouco de vergonha na cara. Eles deveriam pensar que ninguém leva nada pro céu. O homem leva aquilo que ele deixou de história. Se ele nada fez, ele não leva nada.

Parte 4

Entrevista com José Lopes – Parte 4

Dossiê José Lopes

Entrevista com José Lopes 
Parte 4: A participação no cinema da Boca

Por Matheus Trunk

Zingu! – Dos trabalhos da Boca, por quais outros você tem carinho? Você fez dois filmes com o Fauzi, O Guarani e O Inseto do Amor.

José Lopes – Com o Fauzi, fiz mais coisas na área técnica. Fiz aquele com a Maria Isabel de Lisandro na técnica. Tenho esse papelzinho em O Guarani, mas a minha função era mais na parte técnica. O Inseto eu fiz, mas nem me lembro mais. Foi uma coisa rápida. O Fauzi é uma pessoa pela qual tenho grande respeito. Acho um bom diretor.

Z – Ter papel pequeno em muitos filmes te incomodava?

JL – Não. Trabalho é trabalho. Queria estar no meio, então não importava ser ator, fazer efeito especial ou colocar luz. Lógico, ser ator era o meu negócio, sou ator e não técnico. Isso me preenche mais. Mas me sentia bem num campo de filmagem. Ás vezes, fazia até o trabalho dos outros.

Z – Você tem idéia de quantos filmes você fez?

JL – Tenho uma idéia, contando tudo, como ator e técnico, devo ter uns oitenta filmes. Há um tempo você me falou que fiz um trabalho com o Toninho Meliande. Eu nem me lembrava desse filme (rindo). Com o próprio Mário Vaz Filho fiz dois.

Z – Isso já na fase do explícito?

JL – Sim. Estou no filme, mas não faço cena explícita.

Z – Quando os filmes começaram a ir pra esse lado te incomodou?

JL – Me incomodou. Nunca gostei dessas coisas. Não quero ser interpretado como um cara puro, mas não me batia legal. Não é da minha área. Sexo é uma coisa e cinema é outra. Misturar os dois… Não condeno ninguém. Mas não me sentia bem.

Z – Com o Francisco Cavalcanti, o senhor fez vários.

JL – Fiz. Mas muitos atrás das câmeras. Quando teve alguma coisa, era só no faz de conta, no simulado. Era o que tinha que fazer, porque era o que estava rolando, senão não trabalhava. Com o Chico, fui diretor de produção de uns quatro filmes. Outros como assistente. Fiz muito explícito, mas atrás das câmeras.

Z – Com o Jean você chegou a trabalhar?

JL – Em um filme do Tony. Ele era meu amigo. Mas em filme dele, nunca trabalhei. Com o próprio Carlão Reichenbach não cheguei a trabalhar em fita dele, mas em filme do Tony. Mas o Carlão é outra pessoa maravilhosa, adoro ele. Trabalhamos juntos no Gringo. Também trabalhei com o Ody Fraga assim, em filme do Tony. Era um cara legal, tranquilo. Conversava com todo mundo.

Z – Com o Candeias, você também fez várias coisas.

JL – Nossa, com o Candeias tenho uns quatro filmes. Meu amigo Candeias. O Candeias era um barato. Ele primeiro falava assim: “Tem um negócio pra você fazer, só que não tem dinheiro”. Depois, ele queria saber se você topava. Ele depois chegava: “Nós vamos rodar em tal lugar e talvez tenha um PF” (risos). Era tudo brincadeira, no fim tinha tudo. Depois você chegava, terminava uma cena e você perguntava: “Como está ?”. Ele falava: “Não tem como ficar melhor”. Era uma baita figura. Eu gostava muito do Candeias. Foi uma das pessoas que senti também quando faleceu. Eu participei acho que de A Opção: As Rosas da Estrada, A Herança. Este foi um dos primeiros filmes que fiz com ele. Tinha no elenco também o Agnaldo Rayol, o David Cardoso.

Z – Com o David, você trabalhou mais?

JL – Sim. Mas ele não estava produzindo. Fizemos juntos no filme do Freund, em que faço um índio, Trindad É Meu Nome. Fiz outras coisas com o David também. Ele é meu amigo, uma pessoa de que gosto muito.

Z – Como você começou a fazer efeitos especiais?

JL – Comecei a ver as pessoas fazendo os efeitos e gostei disso. De repente, me chamavam pra destruir uma espoleta, essas coisas. Depois, e peguei gosto pela coisa e fiz vários trabalhos nessa função.

Z – Além dos filmes com o Tony, você dirigiu efeitos num filme do Clery Cunha.

JL – Tem um do Clery que ele disse que era uma obra-prima. Tem uma cena em que acendi um cara. Teve outro do Wilson Rodrigues em que ele queria até dar uma cópia do filme pra uma moça da faculdade ver. Tem uma cena em que dou um tiro na testa, e que ele diz que ficou perfeito. Efeitos fiz pra muita gente, para o Galante também.

Z – Como era trabalhar com o Galante?

JL – O Galante como produtor? Gosto do gordo também. Ele é meio danado pra acertar (risos), mas é gente fina.

Z – Tinha muita divisão na Boca?

JL – Tinham grupos já acostumados. Você tinha um grupo de pessoas com quem você trabalhava sempre, então você ficava muito próximo a esse grupo. Não era uma divisão por quem era melhor ou pior. Tinha um pessoal de vanguarda que era outra turma. Dentro de uma elite, tinha esse grupo. O Jean ia filmar, ele já sabia quem era o diretor de fotografia, quem era o eletricista, o assistente. O Tony ia filmar e já sabia quem era a turma dele. Mas eu trabalhei com quase todos eles.

Z – As ruas ficaram mais cheias no final dos anos 70 e início dos anos 80?

JL – Acho que de 1972 até 1980 e pouco foi a melhor fase. Nos anos 90, o negócio já estava meio ruim.

Z – Você fez outro trabalho com o Freund chamado O Diário de Uma Prostituta, um filme com a Helena Ramos. Você se lembra disso?

JL – Fiz outro filme com o Freund que não me lembro o nome. Eu estava com uma roupa maluca. Gostava do Edward Freund, era uma pessoa muito amiga.

Z – Tem um boato na Boca de que ele contava piadas ruins.

JL – Ah! Só ele dava risada. Ele contava umas piadas e só ele dava risada (risos). As piadas ele colocava no cinema e não dava certo. Imagine só ele fazendo Trindad É Meu Nome, que é uma sátira de uma sátira. Aí o David Cardoso era o Trindad e o Carlos Bucka era o Butt Spenser. O elenco era bom, tinha a minha amiga Marlene França, veio uma menina que o David trouxe que era miss Pernambuco. David sempre com as misses dele (risos).

Z – Qual é o filme como ator que mais te marcou?

JL – Meu Nome É Lampião. Eu entro numas três seqüências, mas pra mim é muito bacana, é o longa-metragem que mais marcou. Tem um que fiz no Paraguai que gostei bastante. Me fizeram ser um velho de oitenta anos, o maquiador era um argentino muito bom. Esse maquiador tinha trabalhado durante trinta anos nos Estados Unidos, tinha atuado na televisão. O cara me transformou, me deixou um velhinho. Eu fiz o pai da mocinha nesse trabalho. Fora do cinema, tem um bocado de coisas que fiz. Fiz um monte de comerciais bons.

Z – Comerciais você já fazia na época da Boca ou foi depois?

JL – Já estou meio velho pra lembrar das coisas. Acho que fui o primeiro a fazer uma propaganda de caderneta de poupança. Foi o cadernetão feito pela Blinp ou pela Linxs Filmes. Isso foi feito há quarenta anos. Depois, fiz outras com o Blinp do Guga de Oliveira, com a Wilza Carla.

Z – O Guga de Oliveira que foi diretor?

JL – Sim. O Guga, irmão do Boni. Fiz um filme dele também chamado Lista Negra Para Black Metal. Uma pessoa maravilhosa. Depois, ele estava fazendo uma novela, um pessoal me encontrou e acabei fazendo uma pontinha. A novela chamava Cortina de Vidro.

Z – Na época da Boca, havia muito preconceito contra quem fazia esse tipo de cinema?

JL – Não. Pelo contrário, na nossa época, nós na Boca éramos como reis. Os outros é que eram os outros. Alguns não tinham escritório lá, mas faziam parte de lá. Nós éramos a maioria. Chegou um ano que a rua do Triunfo fez 109 filmes, por aí. Nós éramos as estrelas, quem estava fora é que tinha que se adaptar. O Khouri, por exemplo, fazia o filme dele e não tinha escritório na Boca. Mas a equipe e tudo dele era na Boca.

Z – Como era a relação de vocês do cinema com a marginalidade da época?

JL – Tranqüila, era como uma família. Cada um ficava na sua. Nunca tive atrito nenhum com bandido lá, nem ninguém. Muito pelo contrário, a gente batia papo com eles. Com quase todo mundo era assim. Ás vezes, alguma besteirinha de um cara que não era muito conhecido por lá. Eles respeitavam a gente, a gente respeitava eles e estava tudo certo.

Z – Quem para o senhor está no primeiro time da Boca?

JL – Fauzi, Tony Vieira, David Cardoso, Khouri, Reichenbach, João Batista. Tem outros que vou esquecer e eles que me desculpem. Jean.

Z – Ody?

JL- Ody mais ou menos. Era um cara intelectual pra escrever, mas pra dirigir me desculpe. Outro amigo nosso, o Carcaça, era razoável.

Z – O Toninho mais como fotógrafo?

JL – O Toninho mais fotógrafo, mas também dirigiu algumas coisas. Portioli também.

Z – O Pio?

JL – O Pio era um diretor de fotografia muito bom. Fez alguns filmes do Mazzaropi que acho razoável. Nada de espetacular, mas é um cara que conhece cinema. Conhecer cinema é uma coisa, colocar na tela é outra. Tinha outros ali, o próprio Chico Cavalcanti tem umas coisas razoáveis, mas tem umas coisinhas boas.

Z – E o Mojica?

JL – Mojica! Ele é uma lenda nossa. Não se pode falar nem bem, nem mal. Ele é o Mojica.

Z – E o filme dele que o senhor fez?

JL – (rindo) Finis Hominis, com a Terezinha Sodré. Fiquei um tempo de mal com o Mojica inclusive, mas gosto muito dele. O cara me colocou no cartaz do filme na porta do cinema e não colocou nem o meu nome no mesmo cartaz. Era uma foto linda, eu abraçado com a Terezinha. Mas são coisas que passam, ele é meu amigo. Só acho que ele podia mudar esse negócio de Zé do Caixão, isso já é passado. Fiquei chateado com esse filme dele não ter ido bem de bilheteria. Tadinho, ele merece, é um vencedor do cinema nacional.

Parte 3 // Parte 5

Entrevista com José Lopes – Parte 3

Dossiê José Lopes

Entrevista com José Lopes
Parte 3: A parceria e os trabalhos com Tony Vieira

Por Matheus Trunk

Zingu! – O Tony virou seu amigo na Excelsior?

José Lopes – Sim. Éramos amigos, irmãos. O Tony Vieira não era meu amigo, era meu irmão. A gente era amigo de sair junto, de tomar umas junto.

Z – O Heitor Gaiotti entrou na turma quando?

JL – O Gaiotti era da Excelsior também, era assistente direto do Baleroni. Inclusive, dona Laura Cardoso era mulher do Baleroni. Eles se conheceram na Excelsior. Depois, o Gaiotti veio fazer um filme com o Edward Freund e o Tony estava fazendo um filme com o Mazzaropi. Aí o Gaiotti falou pro Freund: “Vamos trazer o Tony para fazer o papel da galã”.

Z – Como se formou a produtora MQ?

JL – O Tony terminou esse filme do Mazzaropi e foi fazer o filme do Freund, Um Pistoleiro Chamado Caviúna. Depois, fizeram Quatro Pistoleiros Em Fúria e Gringo.

Z – Nessa época, o Comendador já produzia?

JL – Olha, não sei bem. Ele já estava no Quatro Pistoleiros Em Fúria. Entrou e já fazia alguma coisa. Depois, cuidava de coisas da produção, como fazenda, cavalo, comida. Num desses filmes, o Tony fez amizade com o Comendador. O Freund conheci muito bem. Era uma pessoa maravilhosa aquele polonês caladão, outra cultura. O Comendador era o dono da fazenda e acabou conhecendo o Tony. O Tony com aquele jeitão dele de mineiro – “Porra, meu compadre, meu irmão” – acabou ganhando o Comendador. Quando foi fazer Gringo, o Freund entrou somente de ator e o Tony dirigindo. Depois, o Freund foi para o lado dele e o Comendador adotou o Tony. Começaram a produzir juntos e surgiu a MQ. As pessoas acham que o Comendador só jogava dinheiro. Essa idéia é falsa. O Comendador jogava dinheiro e depois o Tony chegava nele e falava: “Esse filme deu tanto, Comendador”. O Tony prestava contas com o Comendador. Era algo honesto e eles fizeram muitas produções juntos.

Z – Por ser produtor, o Comendador exigia um papel grande no filme?

JL – Não. O Tony que acabava colocando ele nos filmes porque era um tipo. O Comendador nunca foi ator. Mas gostava de cinema, de estar perto do pessoal, era namorador (risos). Outra figura maravilhosa, o Comendador, que Deus o tenha.

Z – Nos filmes do Tony, o senhor não tinha grandes papéis.

JL – Não tinha. Mas nos filmes dele, eu fazia de tudo: produção, efeitos… Ele confiava em mim. A gente brigava pra caramba, mas brigava num dia e no outro estava tudo bem. O Tony ficava doente na casa dele e me ligava às três da manhã: “Meu irmão, eu estou mal, estou com dor de cabeça. Vai na farmácia comprar um remédio pra mim”. E eu ia. O Tony não era meu amigo, era meu irmão.

Z – Não importava, para o senhor, o papel ser menor em algum filme?

JL – Não. Eu queria estar lá fazendo alguma coisa. E fazer efeitos especiais era uma coisa que me dava prazer. Hoje, não dá mais porque é tudo computadorizado. Mas fazer aquela coisa artesanal, preparar uma bomba, preparar um tiro, preparar um corte era muito legal. Isso me dava muito prazer e fazia com prazer, com carinho.

Z – Você e o Tony viviam juntos?

JL – Sim. Éramos muito amigos e sempre andávamos juntos. Sei bastante da vida dele. Tanto que, quando comprei um carro, ele o dirigia mais do que eu. Uma vez, fomos fazer um show com o Canarinho no interior. Na cidade, depois da apresentação, tinha até um hotel para gente pernoitar. Mas o Canarinho falou: “Vamos embora pra São Paulo”. E o Tony foi dirigindo, ele adorava dirigir. Nós entramos numa cidadezinha de madrugada e o Tony errou o caminho. Ele veio num embalo e tinha um guarda noturno na rua. Ele brecou o carro para perguntar o caminho e o guarda saiu correndo. O Tony: “Pô, meu irmão, eu parei para perguntar o caminho para o cara e ele saiu correndo”. O Canarinho respondeu: “Você é um mineiro xarope. Você vem nessa velocidade de madrugada, para o carro, breca e ainda quer que ele dê a informação pra você?”. O Canarinho fez a maior gozação com o Tony.

Z – O senhor trabalhou bastante com o Canarinho?

JL – Não muito. Mas viajei com ele. Uma vez nós fomos fazer um show em Aparecida. Esse Canarinho é um palhaço. O Canarinho só gosta de carrão. Pegamos a Dutra e ele me falou: “Cara, vem me contando umas piadas, senão pego no sono”. Ele ia dirigindo e eu contando piada pra ele. Chegou uma hora que não tinha mais piada e comecei a inventar. Mas ele quis me enganar. Ele parou o carro e me falou: “Deu um problema no automóvel”. Ele mandou eu descer para olhar o que tinha acontecido e ele ficou no carro. Quando eu desci, ele puxou o carro e me fez andar uns cinco quilômetros atrás dele (risos). O Canarinho me falou depois: “Isso é pra você não ficar mais contando piada infame” (risos).

Z – É verdade que foi o Canarinho que trouxe o Tony de Minas?

JL – Tem esse papo. Algumas pessoas falam que o Tony veio com o Moacyr Franco, outras com o Canarinho. O Tony já trabalhava lá em Minas na TV Itacolomi. Eu acho que foi o Canarinho que trouxe o Tony.

Z – Qual a importância de A Filha do Padre na filmografia do Tony?

JL – O nosso cinema estava numa evolução legal, crescendo bastante. A Filha do Padre teve uma importância pela ousadia de fazer um bangue-bangue real com cenário, montagem, aquela coisa toda. O Tony fez um cenário caprichado. Para fazer o cenário do filme, usamos não sei quantas carretas de madeira. Acho que o público brasileiro é bem chegado a bangue-bangue. A fita é bem feita, não chega a ser um espetáculo, mas é uma fita bem feita, bem fotografada, é uma história razoável. Uma fita típica do bangue-bangue nacional. É uma coisa diferente que surgiu no cinema brasileiro.

Z – Quando começou o envolvimento do Tony com a Claudete Joubert?

JL – Eles começaram a namorar acho que no Gringo, o primeiro filme que fizeram juntos. A Claudete era meninona ainda, muito nova.

Z – O Tony realmente não deixava–a participar de filmes de outros diretores?

JL – Acho que isso é conversa. O Tony fazia um filme, dois filmes por ano. Então, não tinha necessidade de ela trabalhar com outra pessoa. Acho que a mulher que ele mais amou na vida foi a Claudete. Foi a grande mulher da vida dele. Acho que ele tinha até ciúmes, mas não tinha isso de proibir ela de fazer outros trabalhos. Ela não tinha essa necessidade também de trabalhar toda hora, vivia com ele numa boa.

Z – Qual a importância do Walter Wanny no cinema do Tony? Ele montou quase todos os filmes dele.

JL – O Waltinho andou fazendo alguns papéis também. Mas a importância dele era mais como montador. O Tony gostava muito dele como montador.

Z – Do Jair Garcia Duarte também?

JL – Do Jair também. Mas o Waltinho e o Tony se entendiam muito bem. O Tony chegava nele: “Waltinho, eu quero assim” e deixava na mão dele. Além do Waltinho e do Jair, o Tony teve outro montador. Mas a maioria daqueles filmes tiveram montagem do Waltinho.

Z – Com o Henrique Borges, ele teve uma verdadeira parceria?

JL – O Henrique atuou como câmera e depois como diretor de fotografia. Chegou uma hora, o Tony manjava quase tudo de cinema. O Tony mesmo adorava fazer câmera. Câmera na mão então, ele adorava. Mas sempre ligado com o Henrique, com o resto do pessoal da equipe técnica. O tempo foi andando e como o tempo não pode parar, se foi Tony Vieira ainda jovem. O Tony morreu acho que com 55 anos. Meu amigo se foi e agora estão abrindo um museu em Contagem com o nome dele. Quero deixar, inclusive, registrado os meus agradecimento a essas pessoas, ao Giba e os demais que estão lutando. Acho que o Tony é merecedor dessa homenagem. Isso é merecido. Tem coisas que falam de Tony que me aborrecem muito. Na época em que os filmes iam bem, via em várias manchetes de jornais de São Paulo: “Tony Vieira: o rei do bangue-bangue brasileiro”. Aí depois que o cara morre me aparece uma notinha pequenininha: “Morre diretor de sexo explícito”. Isso me deixou muito chateado, muito aborrecido. As pessoas não têm respeito. O Tony tem uns filmes que realmente não são bons, mas a maioria é. Ele acertou mais que errou. Pra mim, Pilantras da Noite é um puta de um filme. Assim como Gringo, A Filha do Padre

Z – Em qual cinema ele lançava os filmes dele?

JL – A maioria foi no Marabá.

Z – Como era um dia de estréia de um filme do Tony Vieira?

JL – Um dia de estréia era um dia de festa para os atores, técnicos, diretor. Não tinha coquetel, porque isso surgiu de um tempo pra cá. Mas se reuniam as pessoas, se assistia o filme, ia para um restaurante jantar, tomar uns negócios, discutir sobre o filme.

Z – Como era a popularidade dele? Ele era muito reconhecido na rua?

JL – O Tony era. De 1973 até os anos 90, Tony Vieira era conhecido em São Paulo, no Sul. Mas no Norte e Nordeste ele era o Roberto Carlos do cinema. Todo filme de Tony Vieira naquela região dava dinheiro e as pessoas adoravam ele. Era um cara muito querido no Norte e Nordeste. Nós até chegamos a filmar, uma vez, em Recife. Até o Candeias foi, como diretor de fotografia.

Z – O Tony dava muito autógrafo? Ele gostava do assédio dos fãs?

JL – O Tony era uma pessoa vaidosa. Gostava muito de cuidar do físico. Era muito namorador também (risos).

Z – Gostava de andar com carrão, roupa legal?

JL – Sim. Sempre com umas roupas diferentes. De repente, me aparecia com uma calça toda vermelha, um casacão preto, ele gostava dessas coisas (risos). Carrão sempre. Durante uma época, teve um Landau. Quando o carro chegava na rua do Triunfo, pegava um espanador e ficava limpando o carro. Ele fazia isso principalmente de sexta-feira. Chegava pra mim e falava: “Hoje, nós vamos dar umas bandas por aí e estou deixando o automóvel bonito”. Ele adorava ficar limpando o veículo. Os caras faziam gozação com o Tony e ele respondia: “Estou dando um trato aqui”.

Z – Como era a presença dele no bar Soberano?

JL – Todo mundo tinha um certo respeito por ele. Ele era muito querido do Serafim e de todos os donos. Era uma pessoa que se, no Soberano ou no bar do Ferreira, chegasse quatro, cinco pessoas e falassem “Eu vim almoçar. O Tony Vieira que me mandou”, eram servidas na hora, sem problema. Ele era bem considerado lá por todo pessoal.

Z – O Gaiotti também ficou muito próximo a vocês?

JL – Sim. O Gaiotti já vinha da Excelsior. Ele é nosso irmão, nosso amigo. Só que o Gaiotti casou logo com uma menina inclusive que ele conheceu em A Filha do Padre. Ele tinha uma família grande aqui. Eu e o Tony Vieira não tínhamos família em São Paulo. Então, a gente era mais amigo por isso. Eu e o Tony estávamos sempre juntos. Muitas vezes, o Gaiotti ficava com a gente, mas depois ia pra casa dele.

Z – Onde o Tony morava aqui em São Paulo?

JL – Na época da Excelsior, ele morava numa ruazinha perto da Praça 14 Bis. Perto da Vai-Vai. Depois quando ele saiu e fez a parceria com o Comendador, morou na rua Vitória, perto da São João. Morou na Rio Branco, também perto da São João. Esses dois locais eram apartamentos do Comendador.

Z – Ele ficou abalado com a separação da Claudete?

JL – Ele era meio machista e dizia que não (risos). Mas abalou sim, dizia que não, mas a gente olhava na cara e percebia (risos). Ele não demonstrava, ficava naquela, brincava. Eu, como amigo, percebi que abalou sim. Depois, ele arrumou outra menina muito bacana, a Cleuza Ramos.

Z – A que também era atriz?

JL- Isso. Mas acho que a Claudete ficou na lembrança dele até a morte. A Cleuza é uma pessoa maravilhosa. Especialmente, porque quando o Tony estava internado no Hospital Santa Isabel, pelo menos três vezes por semana ela ia lá e levava um frango com quiabo. Como bom mineiro, ele adorava esse prato (risos). Eles já estavam separados, mas mesmo assim a Cleuza levava. Quando faleceu, em Belo Horizonte, me ligaram umas três da manhã avisando que ele tinha morrido. Não teve condições de eu ir ao enterro, mas a Cleuza conseguiu numa correria uma passagem de avião e foi. Acho que ela foi a única pessoa de São Paulo a ir no enterro dele. Acho que o irmão do Tony, que era meu amigo, ficou até chateado comigo porque eu não ter ido. Me ligaram às três horas da manhã e ele ia ser enterrado quatro da tarde. Não deu, mas tudo bem. Importante é a lembrança que eu guardo dele, a amizade que nós tivemos. Isso é o mais importante.

Z – Tem um filme que o Ronnie Cócegas faz o papel cômico no lugar do Gaiotti, As Amantes de um Canalha.

JL – Ah! O Ronnie Cócegas era meu amigo. Também morou no meu prédio. O Ronnie não está mais aqui pra falar a verdade, mas uma vez ele falou pra minha mulher e pros meus amigos que quem o trouxe para televisão fui eu. Quando eu o conheci, ele morava na Vila Ré. Um dia estava ele na porta do canal 9, com aquela cara: baixinho, feinho, narigudo e cheio de graça. O Ronnie que me desculpe, mas ele era muito feio (risos). Ele tinha chegado da Bahia, contando umas piadinhas. Eu já trabalhava no Show Riso do finado Valentino Guzzo. Eu o achei engraçado e cheguei pro Valentino Guzzo: “Tem um cara aí que não precisa nem falar, ele já é engraçado”. Quando terminou o programa, a gente saiu da Excelsior e o apresentei pro Ronnie. O Valentino também gostou dele. Depois, apresentaram o Ronnie para o Paulo Celestino e arrumaram um papelzinho no Show Riso para ele.

Z – Vocês continuaram amigos?

JL – Sim. Inclusive, lembro que, na época, tinha um Gordini e fui buscar a mudança dele na Vila Ré e levei não sei pra onde (risos). Lembro da mulher dele, uma baiana, moreninha, bonitinha pra caramba. Separaram depois, mas ela era muito bonitinha, uma baixinha morena. Encontrei com Ronnie na São João, tomamos um negócio juntos, ficamos nos vendo e de repente ele morre. Fiquei triste na última vez que o vi. Ele já estava com a barriga grande, com tudo estourado. Uma pena.

Z – Por que, nesse filme, o Tony usa o Ronnie e não o Gaoitti?

JL – Eu não sei o que aconteceu. O Tony já conhecia o Ronnie Cócegas do canal 9, do Show Riso. Como outro amigo meu, o Tony Tornado, que fez o mesmo filme. O Tony Vieira gostava muito do Tony Tornado também. Não sei se foi briga com o Gaiotti ou se o Tony quis fazer uma experiência com o Ronnie Cócegas.

Z – O Jofre Soares também era amigo de vocês?

JL – O velho Jofre já foi amizade da Boca. O Tony adorava ele. Outro que foi meu irmão, meu amigo. Deus que o tenha.

Z – É verdade que o Jofre era meio chato pra tomar café?

JL – O Jofre era um velho gozador (risos). Ele tinha um apartamento no Rio, mas de vez em quando aparecia aqui. Quando o via na rua do Triunfo, ele começava a relinchar, a imitar um bode. Aí a gente saia da Boca pra ir comer buchada de bode com ele lá no Brás. Acho que o Jofre era da Marinha. Uma figura maravilhosa e bom ator também.

Z – Trabalhar em um filme da Boca, pra ele, não era problema?

JL – Não. A gente chegava nele: “Jofre, tenho tanto pra pagar pra você”. Ele falava: “Ah, vamos fazer”. Ele fez também um filme do Wilson Rodrigues comigo. O Wilson é outro cara que sempre batalhou. Está até hoje na ativa. Foi ator, diretor, produtor. Teve muito bem de vida quando começou com distribuição de vídeo. Ele tomou um andar inteiro onde era o escritório do Mazzaropi. Depois, foi fazer O Gato de Botas, acho que gastou muito dinheiro, não deu muito certo. Mas está aí na batalha e vivo graças a Deus.

Z – Desses trabalhos com o Tony, tem algum preferido?

JL – Gosto muito de Pilantras da Noite. Tem vários filmes que eu gosto, tem um bangue-bangue que foi feito em Minas que eu tenho um papel bom… Esse filme era do João Amorim, lá de Santa Catarina. Outra pessoa bacana. No Calibre 12, tenho um papel bacana também. Faço um cara maluco, um oficial doidão.

Z – Como foi pro Tony fazer filmes de sexo explícito?

JL – Não foi o Tony, foi o momento. Não dava para fazer outro tipo de filme. O explícito veio caindo, arrebentando e se você fizesse outro gênero não acontecia. Então, mesmo não gostando, os diretores tiveram que adotar o explícito. O Tony, inclusive, não usava o nome dele.

Z – Ele assinava como Maury Queiroz.

JL – Sim. Ele não gostava. Ele falava: “Meu irmão, faço porque é o jeito”. Aliás, acho que a maioria dos diretores da Boca não gostavam. Tinham uns que sim, mas a maioria não. O Tony, Ary, Fauzi Mansur, esse pessoal não. Muita gente fala que o que acabou com o cinema de São Paulo foi o explícito. Mas não foi o explícito. O que acabou com o cinema de São Paulo foi que, quando o explícito estava caindo, o pessoal não teve coragem de mudar para outro gênero. Então, não foi o explícito que derrubou. Aí alguns produtores que estavam com dinheiro no bolso foram embora com medo de perder. Outros se aventuraram e andaram perdendo. Eu acho que foi uma mudança do erótico, que não é explícito. Um filme erótico é outra coisa. Hoje, nas novelas, você vê o erotismo que falavam mal. Então, o erótico ficou um tempo segurando e veio o explícito. Mas quando o explícito começou a cair, não souberam fazer outro tipo de cinema.

Z – Vocês achavam que aquele cinema ia voltar? Os eróticos.

JL – O cinema deveria ter melhorado, com uma produção melhor. Um cinema de elencos melhores. Tinha cara que fazia cinema na Boca porque tinha somente aquele cinema. Muitas vezes, podia ter capacidade pra fazer um cinema melhor, mas não tinha dinheiro. E tudo nessa vida é dinheiro. Digamos: equero filmar numa sala de um prédio e o dono não me deixa. Se tenho dinheiro, posso alugar essa sala ou então monto uma igual. Cinema depende de dinheiro. Acho que se o pessoal tivesse segurado, não tinha morrido.

Z – O Tony, quando estava fazendo um filme explícito, falava: “Depois desse filme, com a grana que entrar, vou voltar a fazer um faroeste ou um policial”?

JL – Chegou a comentar isso. Quando ele ficou doente, o irmão dele o levou pra Belo Horizonte e ele teve uma recuperação legal. Só que eu já sabia que não adiantava. O médico tinha falado pra mim que ele estava impregnado com câncer. Ele voltou pra São Paulo quatro meses depois muito feliz. Estava forte, gordo. Só que aquela gordura que não era legal. Estava careca. A terapia deixa o cara assim. Na volta, quando ele me reencontrou, me abraçou e falou: “Compadre, vamos fazer um filme em Belo Horizonte que o Milton Cardoso vai financiar”. Ele estava todo feliz. Fomos jantar no restaurante Tabu, mas a comida não me desceu. O médico tinha me falado: “Índio, o seu amigo está impregnado de câncer. Ele tem câncer nos ossos. Se ele tiver uma melhora, essa melhora vai durar somente uns três meses, quando voltar pro hospital pode ser tarde”. Foi dito e feito. Passaram uns dois meses, numa madrugada, o filho dele me liga. Antes de ele falar, eu disse: “Já sei Toninho. O seu pai faleceu”. Para o caso dele, não tinha cura, infelizmente.

Z – Na Boca, se espalha muito que ele morreu de AIDS.

JL – Sobre isso, já cansei e até briguei com alguns amigos meus. Você até tem o direito de me perguntar sobre isso. Agora, uns imbecis amigos meus e amigos dele sabem que o cara morreu de câncer. Já fiquei nervoso com isso. O cara morreu de câncer, eu sei. Eu ia no hospital com ele todo dia. Foi um professor de medicina, que era dono de um hospital no Pari, que fez o diagnóstico do Tony. Esse médico era parente do Farah Abdalla.

Z – O Farah que era dono daquela distribuidora de revistas na Boca?

JL – Sim. Ele foi produtor de filme também, de O Rei da Boca, do Clery Cunha. Até esqueci de falar do meu amigo Farah. O Farah ligou pra esse primo dele que era professor de medicina e esse cidadão foi na Santa Casa, chamou o médico do Tony e falou: “Não tem jeito”. Quando dava as crises no Tony, eu estava no quarto com ele no hospital. Ele pegava o travesseiro e mordia de tirar o pedaço, dava aquelas crises de dez, quinze minutos. Então, não tem nada de AIDS.

Z – O Tony era um cara muito invejado na Boca?

JL – Não. Ele era uma pessoa legal com todo mundo. Sempre foi um cara brincalhão. Acho que esse negócio de inveja é relativo. Ás vezes, alguém tem, mas isso passa despercebido. Mas não tinha inimigos, todos gostavam muito dele.

Z – Os filmes dele iam muito bem de público. Mas a maioria das críticas dos jornais não era positiva. Ele se sentia incomodado com isso?

JL – Ele não ligava. Ele falava que crítico não levava dinheiro para o cinema (risos). Tanto é que num filme dele, ele levou o Zé Júlio Spiewak pra ser ator. Aí o Zé Júlio começou a errar lá e o Tony já começou a gritar. Ele falava: “Tá vendo, seu pedaço de arrombado, porque filme nacional não presta? Porque tem uma desgraça que nem você, você é ruim demais”. O Zé Júlio coitado, só faltou chorar (risos). O Tony era muito engraçado em campo de filmagem, dava uns estouros em certos momentos. Muitas vezes, brigava comigo sem eu saber. Ele ficava com raiva de algum ator e, ao invés de ir falar com o cara, vinha falar comigo. Depois, pedia desculpa. Ficava descontando em cima de mim.

Z – O senhor acha que ele era melhor ator ou diretor?

JL – O Tony era bom ator. Para dirigir também, era um cara criativo e tinha boas idéias. Muitas vezes, a coisa não saia como ele queria.

Z – Em muitos filmes, o Rajá Aragão e o Luiz Castellini faziam os roteiros. Ele seguia o roteiro? Chegava a dar o roteiro para vocês antes?

JL – Não me lembro. Mas ele gostava muito do Rajá, gostava do Castellini. Então, ele dava a idéia: “Olha, eu quero fazer um filme assim”. Eles faziam o roteiro e o Tony respeitava o que as pessoas escreviam. Ele podia mudar alguma coisinha, mas seguia a linha e respeitava.

Z – Como surgiu a idéia de Último Cão de Guerra? Afinal, é um filme sobre nazismo.

JL – É uma coisa maluca. Acho que o Rajá que escreveu, mas sendo uma idéia do Tony. Eu participo também. O Tony era criativo, tinha boas idéias e tinha noção de roteiro também. Não fazia por fazer.

Z – Tem outro filme que é sobre tráfico de escravas brancas.

JL – A mente dele já estava avançada nessas maluquices que tem hoje. Hoje, você vai ver um filme e tem muitas coisas assim. Ele já tinha essas idéias.

Z – Essas idéias para os filmes vinham dele?

JL – Vinham. De vez em quando, ele inventava uma idéia maluca e repassava para os roteiristas. Eles escreviam o roteiro e o Tony respeitava.

Z – Ele treinava a equipe e os atores antes da realização de um filme?

JL – Não. Eram filmes feitos em pouco tempo, então não tinha esse trabalho todo. Ele treinava o necessário. Estando bom, a gente filmava. Ele tinha paciência com o pessoal e tinha respeito pelos atores, equipe, todos. Mas se um cara precisava receber bronca, ele dava, explodia. Mas você não acreditava na explosão dele também (risos). Às vezes, quando ficava muito maluco, dava uns gritos comigo, com o Gaiotti. Mas ficava nisso mesmo.

Z – O Alex Prado e o Francisco Cavalcanti faziam filme no mesmo estilo que o dele. O senhor acha que isso o incomodava? Existia uma rivalidade?

JL – Não. Ele nunca se incomodou com isso. Tony Vieira ficava feliz quando alguém fazia um filme e dava sucesso. Ele chegava e falava: “Tá vendo? Nosso cinema está ficando legal”. O negócio do Tony era ver o cinema nacional bonito, não importa quem fosse. Lógico, ele também não era santo. Às vezes, comentava alguma coisa. Mas meter pau não era do feitio dele.

Z – E o time de futebol?

JL – Ele gostava de esporte. Então, criou e gastou muito dinheiro com esse time de futebol (rindo). Levava os caras pra jogar. Teve jogadores dele que foram até para o Palmeiras, um tal de Jorginho. Eles jogavam num campo perto da Portuguesa, o time dele tinha camisa, tudo (rindo).

Z – O senhor chegou a jogar bola com ele?

JL – Ah, eu era meio prego. Eu jogava às vezes, mas era meio ruim no negócio.

Parte 2 // Parte 4

Entrevista com José Lopes – Parte 2

Dossiê José Lopes

Entrevista com José Lopes
Parte 2: A TV Excelsior e o início da carreira no cinema

Por Matheus Trunk

Zingu! – No Minas de Prata, o senhor fazia parte de um trio de índios?

José Lopes – Isso. Éramos em três índios: Ouvido, Faro e Visão. Eu era o Visão. Inclusive, essa novela tinha um grande elenco, que incluía o Stênio Garcia.

Z – Chegou a fazer mais novelas na Excelsior?

JL – Depois participei do A Muralha, mas era um papel pequeno. Mas no Minas de Prata tinha um personagem bom. Ao mesmo tempo, era assistente de produção do Valentino Guzzo e trabalhava nos dois programas musicais do Chacrinha. Fazia A Hora da Buzina e A Discoteca do Chacrinha. O Valentino era produtor do Chacrinha e também fazia o Showriso do Paulo Celestino. Eu ficava na produção desse programa. Fazendo o Showriso, conheci Noira Melo, Rossana Ghessa, Célia Coutinho, Regina Célia, uma tropa de mulheres bonitas. E o Paulo Celestin,o uma pessoa maravilhosa e que está vivo graças a Deus. A Excelsior ficava na Nestor Pestana. Depois, deixaram de gravar na Vera Cruz e fizeram os estúdios na Vila Guilherme. As novelas eram quase todas filmadas nos estúdios da Vera Cruz.

Z – Como era trabalhar com o Valentino Guzzo?

JL – Valentino era uma figura maravilhosa, um baiano de Porto Seguro maravilhoso. Senti muito a morte dele. Depois, ele foi trabalhar com o Sílvio Santos na Globo e no SBT. Ficou acompanhando o Sílvio até morrer.

Z – E com o Chacrinha?

JL – Trabalhei mais de três anos nos dois programas dele. Aquele velho era um maluco maravilhoso. Sempre foi uma pessoa humilde, mas briguenta. Terminava o programa e ele ficava querendo saber como tinha sido o resultado do programa, se tinha sido bom. Ele tinha um coração bom, humilde, mas era maluco.

Z – Estar trabalhando próximo a muitos artistas consagrados mexia contigo?

JL – Não sei te responder isso. Só sei que já estava nessa escola maravilhosa que é São Paulo. Sempre converso com todo mundo. A única coisa que não nasceu dentro de mim é pedir. Não é questão de não ser humilde, sou humilde, só não gosto de pedir. A minha mulher chega a brigar comigo com isso. Então, as coisas que fiz foram porque me convidaram e acharam que eu tinha capacidade de fazer.

Z – O senhor conheceu o Tony Vieira na TV Excelsior?

JL – Conheci na Excelsior. Ele ficou meu amigo nesse tempo.

Z – Ele já usava bigode?

JL – Usava. Tinha pinta e ainda pintava mais a pinta (risos). Me lembro como se fosse hoje, ele na frente da emissora com uma camiseta vermelha. Ele sempre gostou de cuidar do corpo dele, fazer ginástica. E todo dia ele engraxava a bota na frente na porta da emissora (risos). Ele falava: “Meu irmão, estou engraxando a bota e estou vendo quem vem e quem vai. Os diretores me vêem aqui e eu já bato um papo”. Mas o Tony fez boas coisas na Excelsior. Ele teve um bom papel em A Viagem, mas o melhor foi no A Pequena Órfã, que o Dionísio Azevedo dirigiu. O Tony fazia o papel de um corintiano entregador de pão (rindo) e perturbava todo mundo. Ele fez bastante coisas, depois até luta livre. Eu fiz luta livre também. No fim, o apresentador do telecatch saiu, quando a Excelsior já estava entrando em decadência. O Bolinha apresentou algumas vezes e depois indicaram o Tony Vieira para apresentar a luta-livre. Ele foi apresentar e já colocou o Iragildo Mariano na equipe. O Ira diz que era lutador, mas ele era limpador de lona (risos). O Tony que colocou ele lá. O Ira é meu amigo também. Depois, o Tony foi fazer um filme do Mazzaropi. Nesse meio tempo, eu estava no Rio fazendo Meu Nome É Lampião, dirigido pelo Mozael Silveira.

Z – Como surgiu o convite do Mozael?

JL – Eu estava na frente da Excelsior, e chegaram o Mozael e o Vilmar. Eu não sabia quem eram eles. O Vilmar era tio do Roberto Farias e cuidava da parte de produção dos filmes dele. Eles estavam procurando o endereço do Milton Ribeiro. Chegaram em mim e perguntaram sobre o Milton. Depois, o Mozael me confessou que tinha percebido que eu tinha pinta de artista e que devia saber onde o Milton morava. E realmente sabia, ele morava na Vila Maria. Fiquei meio desconfiado de dar o endereço a pessoas que não conhecia. Mas o Mozael se apresentou como cineasta e isso chamou a minha atenção. Pegamos um taxi e fomos na casa do Milton. Eles acertaram tudo e os dois voltaram comigo, me deixaram de novo na Excelsior. Na volta, tomamos um café e o Mozael falou: “Vilmar, como está o roteiro?”. Ele passou uns detalhes e depois o Mozael respondeu: “Será que tem algum papel pro Índio?”, o Vilmar: “Vamos ver, vamos ver”. Eles pegaram o meu endereço e quando o filme estivesse pra começar, mandariam um telegrama pra ir ao Rio. Sabe como é esse negócio de cinema nacional? Passou um mês, dois meses e nem mais lembrava dessa história. Uns três meses depois me chega um telegrama: “Vem pro Rio de Janeiro”. Era para ir em um escritório de cinema. Quando cheguei lá, ele reuniu todo elenco e fomos filmar em Macaé, no estado do Rio. Pra mim, esse filme é o meu grande trabalho, e foi uma das coisas mais gostosas que passei na vida. Inclusive, o nosso irmão Cláudio Portioli era assistente de câmera. Algumas vezes o Claudião fazia câmera, mas o câmera mesmo era o José Medeiros, que era o diretor de fotografia do filme.

Z – Esse foi o primeiro filme com mais destaque que fez?

JL – Para você ter uma idéia, contracenei com Milton Ribeiro, Milton Rodrigues, Rodolfo Arena, Zezé Macedo, Aurélio Tomasini. O Milton Rodrigues foi muito famoso na Globo, fez A Gata de Vison. Ele também chegou a contracenar com a Cláudia Cardinale. Inclusive o Milton Rodrigues demorou mais ou menos um mês pra fazer amizade comigo. Fiz amizade com um pessoal que cuidava dos cavalos e os moleques eram metidos a fazer esporte. Em dia de folga, a gente ficava na praia lutando. Nisso, o Milton Rodrigues ficava olhando de longe. Não sabia que ele era apaixonado por esporte. Um dia, ele se invocou e chegou na rodinha da gente: “Pô, vocês ficam aí e não me chamam”. A gente falou: “Pô, mas você é o galã da fita”. Ele respondeu: “Mas quero também jogar umas pernadas com vocês”. Depois disso, ficou meu amigo, de chegar em mim algumas vezes no hotel e falar: “Vamos jantar fora, vamos numa feijoada em tal lugar”. E tinha uma cena em que cuspia na cara dele. Era uma cena maravilhosa, que me deixou aéreo depois de terminar. No filme, o meu personagem estava na casa do coiteiro do Lampião, que era o Rodolfo Arena. Nisso, chega o Milton Rodrigues, que era da volante com a tropa dele. Nesse momento, o Rodolfo Arena me deixa escondido dentro de um baú. Aí o Milton entra com a tropa dele e vê um atabaque pendurado na parede e pergunta pro Rodolfo se ali passou alguém. Ele diz que não, mas o personagem do Milton continua desconfiado, sai e depois volta, conseguindo me pegar. Eles me levam para um tronco de árvore fora da casa, me amarram e me perguntam: “Pra onde foi Lampião?”. Eu não respondo. Eles perguntam de novo: “Pra onde foi Lampião?”. Daí, encho a boca e cuspo na cara do líder da volante, que era o Milton Rodrigues. Era pra cena ser feita com maquiagem, mas o Milton falou: “Índio, velho, pode cuspir direto. Faz a cena direto, pode cuspir na minha cara”. Até eu fiquei com nojo (rindo). Mas enchi a boca e fizemos. Depois, o Milton casou com uma moça e foi pro México. Há uns dez anos, estava andando na avenida Ipiranga e alguém me chamou: “Meu cangaceiro!”. Era ele.

Z – Como era o Mozael no set?

JL – O Mozael é meu amigo, eu adoro ele. Depois fiz mais uns cinco, seis filmes com ele. No As Audaciosas, tenho um papel bom.

Z – Meu Nome É Lampião era uma produção grande, do Roberto Farias.

JL – Esse Meu Nome É Lampião era do Roberto Farias. Nas outras produções do Mozael, quando não era totalmente do Roberto, ele ajudava de alguma maneira. A filha do Roberto é afilhada do Mozael Silveira. O Mozael era gerente de banco, não tinha nada a ver com cinema.

Z – E como era o Milton Ribeiro?

JL – Olha, o Milton Ribeiro era outra figura maravilhosa. Todo mundo fala de alguns problemas com ele. Sei que era uma pessoa decente. Ele chegava para mim antes da filmagem: “Menino, vamos ensaiar porque quando chegar lá, eles podem errar, mas a gente não”. Era uma pessoa muito bacana. Deus que dê um bom lugar para ele.

Z – Como foi teu relacionamento com a Zezé Macedo?

JL – Zezé Macedo, que se foi agora há pouco, era minha queridinha. Depois fiz outros filmes com ela, fizemos juntos Pedro Bó, o Caçador de Cangaceiros, também em Macaé. A Zezézinha chegava para mim: “Meu filho, vamos dar uma saidinha. Te espero lá embaixo”. A gente ia num botequinho de fim de linha para tomar uma cervejinha. Ela me falava: “Se a gente toma uma cerveja lá, todo mundo fica olhando”. Nossa, Deus que a tenha em bom lugar, uma pessoa maravilhosa e minha amiga.

Z – Com tantos trabalhos, ela era uma pessoa bastante humilde.

JL – Humilde demais, uma pessoa doce. Fiquei muito triste e acho que até chorei quando a Zezézinha morreu. Minha amiga de tomar cervejinha. Nossa, que Deus a abençoe.

Z – Por que você acha que pessoas como a Zezé Macedo não são tão lembradas? O país tem memória curta?

JL – Acho que o brasileiro é muito fraco de memória e também não dá valor. Hoje em dia, a mídia é para mulher de peito grande, bunda grande e estão todo dia na imprensa. E o valor? Não sei, todo mundo tem o seu valor, não quero criticar ninguém. Mas a mídia vai em cima dessas coisas. Hoje em dia, um cara participa de um programa de competições e diz depois que é celebridade. Sinceramente, nunca quero ser chamado de celebridade. Se um dia fizer um trabalho que dê uma repercussão mundial, me torno celebridade. Porque tem o cara conhecido, o cara famoso e celebridade é outra coisa. Celebridade viva nós temos o Pelé. Mortos temos Ayrton Senna; a Martha Rocha também é uma celebridade. Sempre quando se fala de moda ela é lembrada. Agora o cara aparece um dia num lugar e no outro já é considerado celebridade? Isso é errado.

Z – Depois você foi fazer um filme com o Mazzaropi?

JL – Fui fazer um filme com ele. Quem escreveu o roteiro colocou um personagem índio na história. Isso foi em O Grande Xerife. Eles estavam precisando de um índio e o Mazza já me conhecia, mas não sabia onde estava. O meu amigo Pio Zamuner – por isso, dizem que tenho bronca do Pio – queria que outro índio, o Índio Paraguaio, ficasse com o papel. O Enoque Batista chegou no Mazza e disse: “O Índio está lá nas bocas de cinema todo dia”. O Mazzaropi pediu pra ir ao escritório dele. Fui e o Pio ficou meio assim, acho que não me queria no filme. Acertei com o Mazza, ele chorou pra acertar. Mas acertamos um cachê bom. Ele chorou, mas o que foi acertado me pagou. Mazzaropi era uma pessoa honesta e muito decente. Na produção, tive vários atritos, porque as pessoas ficaram com inveja porque estava ganhando muito bem. Telefonava para taxi ir me buscar na fazenda, me levar pra Taubaté tomar a minha cerveja e voltar. Terminei o filme, cortaram muita coisa, mas afinal foi um bom trabalho e o Mazzaropi era uma pessoa maravilhosa.

Z – Ele era tranqüilo no set?

JL- Muito, muito. Gente fina e muito honesto. Ele chorava pra acertar o cachê, mas depois que acertava com você, nem precisava assinar. No meu trabalho, gosto de respeitar os outros e de ser respeitado. Parte do elenco e do pessoal ficou um ciúmes de mim. Eles descobriram que eu estava ganhando mais que dona Wanda Marchetti, que era uma atriz bem conhecida. Quando descobriram isso, começaram algumas pirracinhas. Mas tirei de letra. Tinha dia que você ia deitar, chegava no colchão e voava água em cima de você. Uma vez, colocaram uma pedra debaixo da minha cama. Mas eram brincadeiras. Contracenei com o Mazzaropi, mas não sei quem acabou cortando várias cenas minhas. O meu papel era grande. Mas o importante é que sai de bem com todo mundo, recebi o meu e fiz amizades. Não tenho nada de mal pra falar do Mazzaropi, só coisa boa. Fiz muita amizade com a dona Clara, mãe dele – não foi pra puxar o saco não. Foi porque eu adoro crianças e pessoas de idade. Ela era uma pessoa maravilhosa, uma pessoa muito gente fina.

Z – Como era o Pio no set? Ele era muito mandão?

JL – Você está me provocando porque sabe que falo a verdade. O Pio era meu conhecido e de muito tempo pra cá ele é meu amigo. Não tenho mágoa de ninguém, mas ele era meio doido, me deu muita bronca sem necessidade. Depois, ele cortava o meu papel e dizia que era coisa do Mazzaropi. Chegamos a discutir algumas vezes, mas acho que não me prejudicou em nada. É essa coisa de cinema. Falo aqui o que já falei na cara dele: o Pio era meio nazista. Muito boca dura. Depois, nós fizemos mais filmes juntos e até hoje somos amigos. Agora se você me perguntar: ‘você gosta do Pio?’ Gosto. Só que lá ele era o rei, o dono da cocada branca. Teve um dia que ele mandou os caras me jogarem dentro da lagoa com roupa de cena e tudo. Isso só pra me sacanear. Não precisava. Mas deixa pra lá, ele é meu amigo e hoje estamos velhos. Velhos não, usados (risos) e gosto dele.

Z – Quando o senhor passou a freqüentar a Boca?

JL – Eu frequentava a Boca sem muita freqüência (rindo). Frequentava porque antes fiz Águias de Fogo, do Ary Fernandes. Mas, de 1971 até 1990, estava quase diariamente na Boca. Trabalho era na Boca, era tudo lá.

Z – Águias de Fogo era com o Carlos Miranda também?

JL – Não. O Miranda só fez mesmo O Vigilante Rodoviário. O Carlinhos, que está vivo graças a Deus, é outro que, se entrar nesta revista, receba um beijão e um abraço do seu amigo Índio. Teve uma vez que estava fazendo produção de um filme do Chico Cavalcanti em Peruíbe, a gente ia e voltava para São Paulo quase todo dia. Eu estava dirigindo uma kombi em Itanhaém, voltando de Peruíbe, à noite. Nessa hora, pensei: “Vou dormir dentro dessa perua, senão vou terminar batendo o veículo”. Parei a kombi numa rua e peguei no sono. Lá pelas nove e meia do outro dia, vejo um cara batendo na perua. Eu acordei todo suado, com o sol me queimando. Por coincidência, tinha parado na porta da casa do Carlos Miranda. Aí ele me chamou. Águias de Fogo também era um seriado, mas com vários atores. O principal era o Roberto Bolant. A gente fazia o seriado, que era filmado em Cumbica, principalmente, com o pessoal da aeronáutica. – inclusive usando os aviões e helicópteros. Quando cheguei, o pessoal falou: “O Índio vai filmar”. Um tenente chegou em mim: “Índio, você quer dar uma volta de avião?”. Entrei num caça, os caras quase que me matam do coração (risos). Fizeram de sacanagem comigo, o avião decolou e começou a dar pirueta no ar, eu com aquele troço no ouvido (risos). Depois, desci com as pernas tremendo.

Z – O Ary já tinha um certo nome na época?

JL – Já tinha sim. Ele tinha feito O Vigilante Rodoviário. Tomara que esteja com boa saúde. Eu adoro o Ary Fernandes até hoje.

Z – Você também teve passagem pela Tupi?

JL – Tive. Lá, inclusive, tinha uma pessoa maravilhosa que está até hoje na televisão. Pros amigos, ela é Vivinha, para os outros, ela é Eva Wilma. Cheguei a participar de um programa que ela tinha na Tupi, que se chamava Penélope [na verdade, o programa se chamava As Confissões de Penélope]. Eu fazia algumas coisinhas nesse programa. Depois, o Zara foi fazer uma novela chamada Maria Nazaré, em que ela ia ser a atriz principal. Era uma novela de cangaço, montaram todos cenários, mas a Tupi já estava meio caída. Saí da Excelsior que acabou e depois fui pra Tupi que também fechou. Estávamos todos ensaiando a novela em Itu. Durante todo esse tempo, a Eva Vilma sempre foi uma pessoa maravilhosa. O Carlos Zara, que ia dirigir a novela, tinha aquele jeitão dele, mas era uma figura bacana. Não chegamos a fazer a novela. A Tupi acabou indo à falência e a novela não foi feita.

Z – O senhor sabe porque a Excelsior fechou?

JL – Os velhos Simonsen morreram e os filhos ficaram. Parece que os filhos moravam nos Estados Unidos. Nessa época, o Edson Leite era o diretor responsável. Aí foi esse negócio de herança dizem que os filhos pegaram o dinheiro e gastaram. Não sei, não sei. Não estou afirmando nada. Sei que a televisão foi caindo, caindo, caindo e chegou à falência. Agora, como vai à falência uma televisão que tinha uma estrutura como a Excelsior não sei.

Z – A Tupi também tinha uma estrutura muito grande.

JL – Exatamente. A Tupi foi fundada pelo Assis Chateaubriand, que conheci pessoalmente. Uma vez fizeram uma matéria comigo no Diário da Noite, do Diários Associados. Era uma página inteira comigo. O título da reportagem era: Um índio a caminho do sucesso. Foi um jornalista gaúcho que fez a matéria. Ele inclusive me levou pra ser jurado de um concurso de escultura na areia uma vez.

Z – O senhor fez mais coisas em televisão?

JL – Olha, televisão nunca foi o meu forte. O meu negócio é cinema. Na verdade, não tenho nenhum tesão para televisão. Mas o cinema é a minha vida e a minha doença.

Z – O senhor já via filmes lá na Bahia?

JL – Via. Lá em Alagoinhas, fiz amizade com um cidadão chamado RF Dias, que era locutor da rádio local. O patrão dele, o Zequinha, era político e dono da rádio e do cinema. Eu era muito amigo do RF Dias e ele conseguia que eu visse muitos filmes proibidos. Eu entrava pelo fundo do cinema. Em filme de índio então… Gostava muito de faroeste. Seriado também, tipo Zorro, coisas bem antigas mesmo.

Z – Já queria ser ator de cinema nessa época?

JL – Só pensava a respeito. Mas nunca se sabe. De repente, você está dentro de algo que nunca imaginou. Acho que é o destino e você tem que correr atrás. Tudo que aconteceu na minha vida devo ao cinema. Sou uma pessoa muito feliz, não sou frustrado. Teve muitos trabalhos que fiz que não gostei, mas muitos gostei. Tenho um cachorro maravilhoso, uma sobrinha maravilhosa, uma periquita, minha mulher, meus amigos. Então, me sinto uma pessoa praticamente realizada. Porque totalmente acho que ninguém era.

Z – Tinha algum ator que você gostava de ver?

JL – Gostava muito da Doris Day, Aldie Murphy. John Wayne, claro! Achava ele um puta ator. Gostava muito também daquele loirinho, que depois morreu, o James Dean.

Z – Esses filmes você conseguia ver na Bahia?

JL – Conseguia. Dos atores brasileiros, tinham muitos que eu gostava. Tem um que está velho, uma figura maravilhosa. Deus que dê mais saúde para ele: Anselmo Duarte. [A entrevista foi realizada em setembro de 2009, Anselmo iria falecer em dezembro do mesmo ano; Anselmo é homenageado nessa edição também].

Z – Via também as chanchadas da Atlântida?

JL – Via. Gosto muito do baiano Geraldo del Rey. No gênero de cangaço, não tem outro igual ao Milton Ribeiro. As chanchadas também tinham grandes atores: Zé Trindade, Oscarito, Ankito, Grande Othelo – que ator maravilhoso.

Z – Quando você começou a se tornar ator somente de cinema?

JL – Isso foi em 71. Antes, tinha feito Meu Nome É Lampião. Nessa época, o Tony foi pro cinema. A gente já era amigo e ele acabou me levando. Fui assistente de câmera, sei acender um refletor. Adorava fazer efeitos especiais. Inclusive, fiz os efeitos do O Beijo da Mulher Aranha.

Z – Sério?

JL – Sério. O Babenco é outra pessoa maravilhosa. Só que ele colocou o José Marquesim como diretor de efeitos especiais. O Marquesim começou a fita, mas quem terminou fui eu. O Babenco me botou como truca.

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