Dossiê José Lopes
Entrevista com José Lopes
Parte 1: Infância, adolescência e a vinda para São Paulo
Por Matheus Trunk
Zingu! – Como era sua infância na Bahia?
José Lopes – Nasci em 1941. Sou baiano da cidade de Senhor do Bonfim. Mas a minha cidade de coração é São Paulo. Eu amo essa terra. Vivi com a minha mãe até os 12 anos, numa cidade chamada Monte Santo. Monte Santo é um lugar maravilhoso, onde tem uma festa religiosa itinerante que passa por 28 igrejas. Nessa cidade foi rodado Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha. Você não viu aquelas igrejas no filme? É lá. Depois, eu fui morar em Alagoinhas, outra cidade que amo e fui trabalhar na Petrobras. Quando trabalhei lá, ainda era menor de idade. A vida da gente tem umas coisas curiosas. Sempre se vê, na televisão, pessoas sem família que vem pra São Paulo batalhar e dar certo na vida. O ‘certo’ que digo não é estar rico, milionário. O certo é você ter a oportunidade de fazer o que você gostaria de fazer e lutar pelo seu ideal. Na Bahia, meus pais eram separados. Depois, fui morar com a minha tia. São pessoas que amo até hoje. Infelizmente, são pessoas que não existem mais, já se foram. Em Alagoinhas, nos anos 50, trabalhei com solda na Petrobrás, aprendi a soldar e uma série de coisas.
Z – O senhor estudou até que ano na escola?
JL – Fiz só o primário. Depois já fui trabalhar. Em Monte Santo, era muito difícil ter escola. Meu pai foi me buscar depois para eu estudar. Com ele, fui morar em Alagoinhas, que já era uma cidade bem maior, e lá pude estudar um pouco. Já tinha doze anos. Não deu muito certo. Depois nós mudamos de novo, porque meu pai tinha emprego federal. Meu pai era uma pessoa maravilhosa, mas, naquele tempo, a gente não se entendia muito. Inclusive, as minhas irmãs me perguntavam se eu tinha mágoa do meu pai. Mas não tenho e nunca tive mágoa dele. Pelo contrário, tenho orgulho dele porque ele me ensinou muitas coisas. O que sou hoje de personalidade foi muito do que eu aprendi com ele. Tive umas cinco mães.
Z – Eram suas tias?
JL – Sim. Mas tem uma que não era parente minha: dona Guilhermina. Inclusive o filho dela hoje é médico. Eu o tenho como um irmão e ele me tem como irmão também.
Z – Qual era o trabalho da sua mãe?
JL – A minha mãe vivia na roça e era parteira. Ela inclusive tinha feito o parto de quase todo pessoal daquela região. Por isso, ela tinha um monte de afilhados. Isso era um negócio que acontecia muito no Norte e no Nordeste, do nosso país de quarenta, cinqüenta anos atrás. Ela era tida pela população daquela região como uma médica. Mas ela era uma pessoa maravilhosa, respeitada e considerada por todo aquele pessoal da Bahia.
Z – E qual era o trabalho do seu pai?
JL – Ele trabalhava na empresa ferroviária federal.
Z – Naquele tempo, o transporte ferroviário era bastante importante.
JL – Era muito importante. Meu pai trabalhava em trens especiais de passageiros. Tinha um tal de Estrela do Norte. Inclusive, tive o prazer de andar naqueles trens antigos e isso me dá muito saudade. Aquele barulhinho do trem era muito gostoso. Quando trabalhei na Petrobras, tive um problema de saúde. A gente tinha ido pros lados de Sergipe trabalhar com solda e eu quase fiquei tuberculoso. Naquele tempo, se tinha poucos recursos pra fazer aquele trabalho de soldagem. Tinha umas máscaras, mas quase não funcionava. Fiquei doente e voltei para Alagoinhas e fiquei na casa de pessoas muito especiais, minhas queridas tias Bia e Duda, que eram irmãs de meu pai – inclusive, minha mulher tem uma foto da última vez em que estivemos com a tia Duda, que morreu com bastante idade. Acabei não indo pra casa do meu pai, que morava na mesma rua delas. Ele achou ruim, mas minhas tias mandavam, elas eram bem guerreiras.
Z – Depois o senhor foi pra Salvador?
JL – Em um determinado dia, estava melhorando e acabei brigando com a mulher do meu pai (risos). E você já imaginou, brigar com a mulher do teu pai naquele tempo? Eu pensei: “Meu pai está viajando, quando ele chegar, o bicho pega” (rindo). Tive uma discussão e terminei indo pra Salvador. Estava com 18 anos. Com essa briga com o meu pai, cheguei na capital baiana e fiquei procurando emprego. Mas não achava nada. Um dia, estava desorientado na Cidade Baixa, e, de repente, vejo um caminhão com um bocado de cargas. Eu estava somente passando perto. Quando percebi, o dono do caminhão era um amigo meu, o Miguel. Ele tinha trabalhado comigo na Petrobras. Ele era motorista, mas tinha saído da empresa e comprado um caminhão. Era um Alfa-Romeu (rindo).
Z – Esse caminhão não era conhecido como FNM?
JL – Sim! FNM, lá no Norte, a gente conhecia como fome, necessidade e miséria (risos). Então, quando encontrei esse cara na Cidade Baixa, apareceu Deus na minha frente. Conversamos e falei: “Miguel, briguei com a mulher do meu pai. Cara, quase dei uns tapas nela e se voltar pra casa, eu danço”. Falei pra ele que tinha procurado emprego em todos os lugares, mas não tinha achado. Ele me falou: “Estou indo pra Petrolina em Pernambuco. Mas depois vou pra São Paulo. Se você quiser ir embora pro Sul, nós vamos”. Respondi: “Só se for agora, cara”. Pegamos esse caminhão, carregamos de gesso em Petrolina e seguimos viagem. Hoje, de Salvador pra Petrolina, de ônibus, são umas seis horas, mas a gente levou bem mais tempo. Depois, fomos descendo pro Sul. Em Minas, pegamos uma chuva que acabou furando o pneu de dentro do caminhão. A gente usou um macaco grande, de manivela, para tentar trocar o pneu do veículo. O macaco enterrou no asfalto que estava muito molhado. Então, não saia nem o pneu, nem o macaco. Dormimos dentro do caminhão e no outro dia passou outro carro. O Miguel me falou: “Fica no caminhão que eu vou buscar ajuda”. Passaram-se dois dias.
Z – Você ficou sozinho?
JL – Sozinho. Mas não tinha perigo, o caminhão estava carregado de gesso. Mas fiquei com fome. No veículo, só tinha umas bolachinhas e tal. Do outro lado da estrada, tinha um bananal com várias bananas verde. Eu comi algumas. No outro dia, o tempo estava terrível, um frio danado. Olhei e meio longe dava pra ver uma casinha saindo fumaça. Pensei: “vou lá”. Quando cheguei perto, vi a dona da casa. Expliquei para ela a situação. “Minha senhora, sou daquele caminhão lá que está quebrado. Só queria um cafezinho quente, pago pra senhora”. Ela tinha uma porção de criança, um monte, todos peladinhos. Devia ter umas cinco ou seis. Ela fez o cafezinho e eu pedi pra ela fazer uma comida, um frango que eu pagava pra ela. A mulher fez e depois começamos a conversar. Ela me falou: “Moro aqui nessa fazenda, o meu marido foi embora pra São Paulo e me deixou aqui com todos esses filhos e nunca mais apareceu”. Aquilo me cortou o coração. Você sabe que fui no caminhão e dei para as crianças todas as camisas que eu tinha, fiquei somente com duas e o resto eu dei pras crianças. Depois o Miguel voltou e prosseguimos a viagem.
Z – Na viagem, o senhor estranhou o frio?
JL – Nossa, teve um pedaço que foi terrível. Eu nunca tinha sentido frio na minha vida. Quando chegou em Minas, tava um frio, meu irmão (risos), e eu só tinha trazido umas roupinhas da Bahia. Hoje, de Salvador pra Petrolina, nesses ônibus que andam bem, são umas seis, sete horas de viagem. Naquele caminhão, a gente deve ter ficado umas doze horas (risos). O Miguel já conhecia o caminho e me falou: “Tem muita gente que vai pedir carona pra gente. Então, você vai em cima do caminhão e quando você os vir, bate na cabine que eu paro. Eles entram aí atrás e acabam pagando uma graninha pra gente”. E deu certo, os caras subiam e davam um dinheiro pra gente.
Z – Quanto tempo foi de viagem até vocês chegarem em São Paulo?
JL – Deve ter sido um mês e mais alguns dias. Os caminhões hoje são todos modernos, mas naquele tempo era bem diferente. A gente vinha carregando umas dezoito toneladas de gesso.
Z – Como foi a chegada em São Paulo? Qual o primeiro lugar em que ficou?
JL – O primeiro lugar em que nós paramos em São Paulo foi na rua Vitor Hugo, no Pari, numa pensão só de caminhoneiros. Era uma pensão meio cara. O Miguel deixou quinze dias pagos de pensão pra mim. Ele chegou pra dona Sofia, a dona da pensão, e falou: “Olha, isso é se ele precisar de alguma coisa e não arrumar emprego”. Porque até então, não tinha profissão. Lá na Bahia, tinha sido soldador, tratorista, mas nem carteira eu tinha (risos).
Z – Como conseguira aquele emprego na Petrobras?
JL – Isso foi quando eu tinha uns catorze pra quinze anos. O pessoal da Petrobras trabalhava três meses no mato e tirava folga na cidade mais próxima. Sempre fui meio boêmio, nasci boêmio (risos). E nessa folga dos caras, conheci um tal de mister George, um americano. Ele gostou de mim, fizemos amizade, ele tomava todas. Ele falou pra mim: “Vai lá na firma que arranjo um trabalho para você”. Expliquei pra ele que eu era menor, mas ele não entendia. Eu fiquei naquela. Deu uns três meses e ele voltou a aparecer na cidade: “Você não apareceu”, falou todo enrolado. Uns amigos meus chegaram para mim: “Tanta gente querendo trabalhar nessa companhia, esse cara é o chefe de campo, e ele que está correndo atrás de você”. Eu acabei indo, o cara ficou meu amigo. Quando terminou o contrato dele, ele foi pro Canadá. Ele queria me levar, mas eu ainda era menor e não quis ir. Trabalhei lá até os 18 anos; foram 4 no total.
Z – Era lá em Alagoinhas?
JL – Era uma companhia de pesquisa itinerante. Companhia de pesquisa vai fazendo posições pra achar petróleo. Então, eu trabalhei em Alagoinhas, no Sergipe, Alagoas, em vários lugares.
Z – Nessa primeira pensão em São Paulo, morou por quanto tempo?
JL – Fiquei quinze dias na pensão e pensei: “Poxa, o cara já fez tudo isso pra mim, me trouxe até aqui, deixou pensão paga”. Sempre tive vergonha disso, de depender dos outros. Nesse tempo, fiz amizade com o pessoal de uma transportadora que era perto da pensão. A dona era uma senhora, ela me falou: “Meu filho, aqui o único trabalho que tem é para carregar as coisas do caminhão”. Resolvi encarar e fui ser carregador. Eram três caras pra carregar; se tivesse dez geladeiras, eu e os outros tínhamos que colocar as dez geladeiras no caminhão. Encarei isso, mas, quando era de noite, o meu pescoço não virava. Mas eu encarei, encarei, mas vi que não dava certo e fui ser chapa. O cara chegou pra mim: “Poxa, pra esse trabalho aqui tem que ser forte. Por que você não aprende a levar os caras nas empresas e ganha uma grana?”. Esse era o serviço do chapa. Mas fiquei pouco tempo nisso também. Aprendi nas empresas, eles me pagavam uma grana, fiz amizade com essa senhora dona da pensão. Quando era sexta-feira, todo mundo ia embora da pensão e eu ficava numa boa; fiz grande amizade com dona Sofia. Depois, a dona da transportadora onde eu trabalhava, a dona Iolanda, me arrumou emprego numa metalúrgica. Eu também não sabia de nada desse serviço. O meu chefe lá explicou: “Você vai fazendo as coisas que os caras pedirem e vai fazendo”. Com três meses, eu aprendi a ser prensista. Nesse emprego, eu fiquei dois anos e pouco. Um dia, vi o cara perder a mão lá e me apavorei (risos).
Z – O senhor já tinha vontade de trabalhar com arte?
JL – Sim, sim. Eu era apaixonado, gostava de música e tudo. Já fazia serenata com os meus amigos na Bahia. O meu pai corria atrás de mim e eu tomando umas e fazendo serenata (risos). Acontece que tinha um irmão de criação aqui em São Paulo e tinha o endereço dele. Esse cara trabalhava aqui na Air France. Era um bom emprego. Ele era bem mais velho que eu. Quando vim pra São Paulo, ele já estava trabalhando há mais de quinze anos na Air France. Tinha o endereço dele, mas falava comigo mesmo: “Não vou procurar porque depois ele vai falar com meu pai”. Meu pai que tinha criado ele. Ele era filho duma ex-esposa do meu pai. Depois que trabalhei nesse lugar, me arrumei e não precisava pedir nada, e falei: “Vou ver esse cara na Air France”. Fui na avenida São Luís, atrás da viação, e quando apareci, ele me falou: “Poxa, o pai tem escrito pra mim pra procurar você. Você não me procurou aqui”. Isso já fazia uns quatro anos que estava em São Paulo. Só fui procurá-lo quando estava com umas roupas bonitinhas, dinheiro no bolso (rindo). Ele me recebeu muito bem e acabou me arrumando um emprego na Air France. Fiquei uns dois anos e pouco lá. Lá, eu era tipo um contínuo. Ficava na sala do chefe, atendia as pessoas, tinha algum negócio na rua eu fazia.
Z – O salário que o senhor teve na Air France era melhor que os anteriores?
JL – Sim. Era um emprego legal. A única coisa que não gostava era que tinha de andar de gravata. Trabalhei na Air France e o seu Nelson, diretor de propaganda da empresa, era muito amigo do diretor artístico da TV Excelsior. Eu vivia perturbando o seu Nelson: “Poxa, me apresenta lá e tal”. Já tinha andado nessas escolinhas de artistas, mas nunca tinha pagado nada. Ia só ver. Inclusive conheci o finado Enoque Batista num curso desses. Um belo dia, o seu Nelson estava falando no telefone com o amigo dele diretor da Excelsior: “Tem um funcionário nosso que quer ser artista”. Depois, ele me falou assim: “O meu amigo falou que pra artista lá não tem vaga. Mas ir lá pra fazer alguma pontinha e ajudar em produção tem”. Bem, não é que o maluco largou a Air France e foi? Sempre fui meio maluco mesmo. Fui pra lá e graças a Deus sempre fui uma pessoa que me dei bem, sempre respeitei as pessoas. Logo fiz amizade com o Valentino Guzzo, meu grande amigo, que depois foi fazer o personagem da Vovó Mafalda no SBT. Fui ser assistente de produção dele. Depois fiz um papel numa novela do Walter Avancini chamada Minas de Prata.