Tragam-me a Cabeça de Anselmo Duarte

Especial Anselmo Duarte

Tragam-me a Cabeça de Anselmo Duarte

Por Andrea Ormond, especialmente para a Zingu!*

Agora que é morto, podemos abrir o verbo e dizer tranqüilamente que a grande tragédia na carreira de Anselmo Duarte foi ter recebido, em maio de 1962, uma Palma de Ouro no Festival de Cannes.

A glória francesa transformou o cineasta em muso de assédios mórbidos, iconoclastias revanchistas e toda sorte de doenças que envenenam a cultura brasileira. No meio tempo, embora realizasse filmes excepcionais – como Vereda da Salvação (1964) e O Descarte (1973) – parecia somente réu preferencial do mais hediondo dos crimes: vencer por seu próprio mérito.

Na fase áurea da pornochanchada, figurante de 59 anos, sotaque impoluto da Vera Cruz, personagem de marido corno dissertando sobre wife swap – enquanto seus detratores torravam milhões da Embrafilme -, Anselmo já era prova triste de uma desconstrução bem sucedida. E expurgo da guerra cultural vencida pelos invejosos.

Digamos invejosos com ênfase psicanalítica, pois grande parte dos “gênios” do Cinema Novo que lhe jogaram pedras, representavam, sem tirar nem pôr, exatamente aquilo que lhes causava repulsa: uma elite fria e provinciana, distante da emoção popular.

E, na hipocrisia cinemanovista, Anselmo lembrava verdade incômoda: o brasileiro comum sempre preferiu – ainda prefere – O Pagador de Promessas (1962) e identifica-se mais com o drama de Zé do Burro, do que com centenas de alegorias ideológicas obscuras.

Daí para acusações de alienado, reacionário, quadrado, foi um pulo. Teriam dito qualquer outra coisa – que nadava nu em Peruíbe ou que vestia terno Ducal. O que importava somente era descontar a frustração, desopilar o fígado, em uma época de paixões infantis e radicalizadas.

Mas toda essa injustiça pode ser revertida com um simples ato generoso: revermos Anselmo Duarte nas telas, seja como ator em mais de 40 filmes, seja como diretor, roteirista, produtor.

Galã da ponte-aérea – na Atlântida e Cinédia, do Rio, e na Vera Cruz, de São Paulo – contava que só aprendeu a representar levando um tapa da diretora Gilda Abreu, durante as filmagens de Pinguinho de Gente (1947). Como seu sonho de infância era tornar-se diretor, em 1956 aproveitou Arara Vermelha, de Tom Payne, para editar um mini-documentário, quase um making of da produção, intitulado Fazendo Cinema.

Dirigiria no ano seguinte seu primeiro longa, Absolutamente Certo (1957), que o perseguiu como fantasma. A razão é que os futuros detratores adoravam dizer que aquele teria sido seu melhor trabalho. Dessa forma, sugeriam indiferença à coleção de êxitos e esforços de Anselmo – como se, para ele, estivesse reservado apenas um destaque nas chanchadas.

Ao adaptar a peça de Dias Gomes em O Pagador de Promessas, era óbvio que desejava aproximação com os movimentos de vanguarda – social e cinematográfica – que pipocavam pelo mundo. Fez isso da maneira mais inteligente possível, iluminando a fé em oposição à Igreja. O que ele não sabia era que, a partir de então, não bastava somente filmar. Era preciso pertencer aos grupos certos, submeter-se aos caprichos coletivos, aceitar lideranças em nome de projetos duvidosos.

Em resumo: O Pagador de Promessas já nascia politicamente velho, ultrapassado. Teve sorte do júri de Cannes acolhê-lo em um ano de títulos absurdamente bons – O Anjo Exterminador, de Luís Buñel, e O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, estavam entre os concorrentes – o que fez o êxito parecer irrefutável. Tão irrefutável que seus detratores – novamente e sempre eles – sofismariam que, na presença de obras brilhantes, os jurados haviam escolhido o medíocre brasileiro para não se comprometerem.

Recebendo outros prêmios, nos Estados Unidos, no México e na Grã-Bretanha, ao voltar para o Brasil – trazendo os canecos embaixo do braço -, Anselmo Duarte devia estar julgando-se acima do bem e do mal. Mas obteve recepção gélida, principalmente no Rio de Janeiro, onde os garotos com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” vislumbraram no ex-galã de 42 anos, caipira e laureado, o melhor alvo para demarcarem onde terminava o velho e começavam eles – os novos.

Por outro lado, Anselmo foi utópico e auto-destrutivo o suficiente para brigar com meio mundo, indispôr-se até nos círculos paulistas – vide polêmicas envolvendo Rubem Biáfora e Alfredo Sternheim – e investir fortuna em adaptar uma história dificílima de Jorge Andrade, autor teatral desconhecido do público e da crítica – que esperavam novo Pagador. Vereda da Salvação (1964), marginalizado no Festival de Berlim, selaria definitivamente um paradigma: realizar trabalhos populares ou impecáveis, mas que sempre davam a impressão de que o “ganhador da Palma” afundava, decaía.

Ao correr dos anos, somou-se idéia de que Anselmo reagia aos altos e baixos com pedantismo e arrogância. Talvez seja verdade. Mas Lima Barreto e Glauber Rocha não eram exatamente flores de modéstia, e ninguém os expulsou do Olimpo a pontapés. Artistas não precisam ser humildes e cordatos, precisam é criar grande arte.

Revisão isenta de Quelé do Pajeú (1969), Um Certo Capitão Rodrigo (1971), O Descarte (1973), O Crime do Zé Bigorna (1977), além de sua odienta performance em O Caso dos Irmãos Naves (1967), de Luis Sérgio Person, matam qualquer dúvida sobre o talento de Anselmo Duarte para o cinema. E sua real empatia com as coisas brasileiras, seu amor visceral pelo país, nos fazem querer justamente o embate que os cinemanovistas tanto buscaram: quem realizou, de fato, uma arte de vanguarda com os pés fincados nas raízes nacionais? Quem aludiu ao novo revigorando as tradições, dialogando sinceramente com o autêntico imaginário do povo?

Não se espantem, leitores, que as respostas provem que foi Anselmo Duarte, servindo de inspiração e sparring, o maior impulso criador para o cinema brasileiro dos anos 60. E que o “trágico” prêmio de Cannes, antes de ofensa, injúria, era dilúvio de generosidade, cheque em branco para um país periférico e esquecido, mas com potencial imenso de expressão. Calhou de Anselmo Duarte ser a vítima de tantas esperanças, cercado de derrota por todos os lados.

*Andrea Ormond é pesquisadora e ex-colunista da Zingu! Mantém o blog Estranho Encontro.