Os melhores filmes de 2009

segundo a redação da Zingu!
(só estavam aptos a concorrer filmes que estrearam comercialmente no circuito em 2009, em São Paulo)

Participaram da eleição: Adilson Marcelino, Filipe Chamy, Gabriel Carneiro, João Pires Neto, Marcelo Carrard, Matheus Trunk, Sergio Andrade e Vlademir Lazo Correa.

1º. Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.
Inglorious Basterds, EUA/Alemanha, 2009, Universal Pictures do Brasil.
7 votos, 68 pontos.

Uma das grandes obsessões de Quentin Tarantino é o cinema B italiano dos anos 60 e 70. Diretores como Umberto Lenzi, Antonio Margheriti, Sergio Martino, e principalmente Enzo Castellari, e seu filme de 1978, Quel Maledetto Treno Blindato, aparece como a grande fonte inspiradora desse genial filme com mais de duas horas de projeção, com diálogos extraordinários, um elenco impecável e uma parte final de tirar o fôlego do mais tarimbado dos espectadores. Mas o filme é muito mais do que isso. É uma aula de cinema extremamente sofisticada, com citações deliciosas para os cinéfilos de plantão, nessa que é a obra mais madura e autoral de Tarantino. (Marcelo Carrard)

2º. Deixa Ela Entrar, de Tomas Alfredson.
Låt den rätte komma in, Suécia, 2008, Filmes da Mostra.
6 votos, 65 pontos.

Cinematográfico por excelência, o vampiro vem batendo ponto no cinema mundial em diferentes roupagens, seja na fase pioneira com Nosferatu, de Murnau, em 1922, até a fase adolescente atual, com a saga Crepúsculo. Mas 2009 reservou para os cinéfilos e amantes desse universo um filme surpreendente, o sueco Deixa Ela Entrar, de Tomas Alfredson. O filme focaliza o encontro de dois seres solitários, os adolescentes Eli (Lina Leanderson) e Oskar (Kåre Hedebrant), que se tornam vizinhos. Ele é um garoto que vive sendo perseguido e humilhado pelos colegas de escola. Ela, uma garota que é escondida durante o dia no apartamento de janelas tapadas e que só sai à rua nas noites gélidas. Na trama, uma amizade imediata que vai se transformando em amor e que, muda a vida de Oskar e sela o seu destino. Deixa Ela Entrar é a solidão em estado bruto. Tem horror e tem dramas existenciais. E é cinema de primeira. (Adilson Marcelino)

3º. Gran Torino, de Clint Eastwood.
Idem, EUA/Alemanha, 2008, Warner Bros.
5 votos, 52 pontos.

Gran Torino é um filme que fecha um ciclo no cinema de Clint Eastwood. Quase um cruzamento entre o personagem durão de seus policiais com o velho truculento e ranzinza, do cinema sóbrio que vem fazendo nos últimos 20 anos. Talvez por isso que o filme seja tão bom, especialmente em sua segunda metade. O herói está presente, mas desacreditado: é um homem desiludido da vida, já em seu final, que não tem nada a perder. Por isso é inconseqüente. Numa das mais belas cenas, o personagem de Clint, Walt liga para seu filho, só para saber como ele está. A resposta é igualmente dura e inconseqüente. Nas mãos de outro diretor, Gran Torino poderia ser só mais um filme-fórmula. Nas mãos de Clint, Gran Torino é um incomum filme de redenção – a redenção da própria existência. (Gabriel Carneiro)

4º. A Troca, de Clint Eastwood.
Changeling, EUA, 2008, Universal Pictures do Brasil.
5 votos, 50 pontos.

Clint Eastwood se apresenta nesse começo de novo século como a maior lenda viva do cinema do nosso tempo. Já se contabilizam nessa década nove filmes dirigidos pelo astro, sendo que com exceção de apenas um deles (o policial [i]Divida de Sangue[/i]), todos os demais variam do muito bom ao excelente. [i]A Troca[/i] é um dos seus filmes mais arriscados, que comporta tanta coisa que nem sempre consegue resultar coeso e equilibrado, mas que em sua totalidade se apresenta uma obra muito perto do excepcional. É o drama comovente de uma mãe que não sabe do paradeiro do filho pequeno. Também é uma história de [i]serial-killer[/i], e da investigação em torno do assassino. E a negligência e a corrupção policial, o abuso de autoridade e poder, o papel da justiça dentro da sociedade. E até mesmo sobre a internação em hospitais psiquiátricos, em meio a loucos e debilitados. Por fim, mais que todas essas camadas, [i]A Troca[/i] é sobre a esperança mais desesperançada do mundo. E ao fundo, a trilha jazzística do diretor, que posso dizer que a mim assombrou semanas a fio. (Vlademir Lazo Correa)

5º. O Lutador, de Darren Aronofsky.
The Wrestler, EUA/França, 2008, Paris Filmes.
5 votos, 35 pontos.

Um Aronofsky (PI e Requiém Para Um Sonho) um pouco diferente do que nos acostumamos, mas não menos genial. O Lutador consolida a carreira do cineasta e marca em grande estilo o retorno de Mickey Rourke, rendendo-lhe a indicação ao Oscar de Melhor Ator. Inevitável traçar um paralelo entre a jornada do protagonista, o lutador Randy “The Ram” Robinson, que envelhecido e sem dinheiro, 20 anos após o auge nos ringues, tem que encarar os fantasmas do passado e ao mesmo tempo sobreviver as intempéries do presente, com a vida do próprio Mickey Rourke. Um longa intenso, belo e comovente. (João Pires Neto)

6º. Inimigos Públicos, de Michael Mann.
Public Enemies, EUA, 2009, Universal Pictures do Brasil.
5 votos, 34 pontos.

Michael Mann é um formalista, e em [i]Inimigos Públicos[/i] encontrou um argumento à altura do seu projeto estético. É o diretor mais uma vez levando adiante a velha e acirrada disputa masculina de policia e ladrão, com o criminoso em guerra contra os engravatados dos bancos, do governo e de Wall Street. Mann demonstra uma concepção da ação no espaço natural digna de Raoul Walsh. É um filme de seqüências memoráveis ininterruptas: Dillinger (Johnny Depp) chorando ao dirigir; o corte do olhar de Marion Cottilard ao algoz de Dillinger fechando a porta; a troca de olhares quando Dillinger de dentro da cela e Melvin Purvis (Christian Bale) se encaram, com os tons escuros enaltecendo o brilho dos olhos de Depp… As execuções dos bandidos também são brilhantemente filmadas, assim como o longo tiroteio e a perseguição na estrada do bosque. Uma obra-prima. (VLC)

7º. Anticristo, de Lars Von Trier.
Antichrist, Dinamarca/Alemanha/França/Suécia/Itália/Polônia, 2009, Califória Filmes.
4 votos, 49 pontos.

Visualmente belísssimo. Elenco afinado. Ousado, controverso e polêmico, Anticristo acumulou todo tipo de rótulo, de odiado a aclamado. Carregado de simbolismo e metáforas, o novo trabalho do cineasta de Dogville, um manifesto anti-religioso, não recebeu nenhuma indicação ou prêmio da Academia. Curiosamente este é o seu maior prêmio, já que o longa não é uma obra típica que se enquadre em qualquer categoria comercial. (JPN)

8º. Avatar, de James Cameron.
Idem, EUA/RU, 2009, Fox Filmes do Brasil.
3 votos, 30 pontos.

James Cameron se superou. Não só nas bilheterias, mas como criação do cinema. Avatar é um novo cinema, pensado a partir da integração tela e espectador. Seria uma revolução? Talvez, mas parece cedo para dizer. O que faz Cameron é construir um cinema fundamentado na atmosfera, que coloca seu público ao lado dos personagens. Continuamos espectadores, assim como somos espectadores da vida – a real, que acontece ao nosso lado e muitas vezes nada fazemos. A escolha do tema, atual e relevante para os iminentes problemas do meio ambiente, parece se encaixar na metáfora: somos só espectadores em face dos problemas, nada fazemos para mudá-los. Na ficção científica, Cameron constrói um universo fabuloso para mostrar que nosso presente e nosso futuro estão intimamente conectados. (GC)

9º. Arraste-me para o Inferno, de Sam Raimi.
Drag me to Hell, EUA, 2009, Paramount Pictures.
3 votos, 29 pontos.

Em Arraste-me para o Inferno, Raimi cria uma fábula cigana para despejar cenas grotescas e escatológicas que envolvam babas, gosmas, insetos e uma maquiagem putrefata – tudo isso para narrar a história de uma jovem ambiciosa que é amaldiçoada por uma velha cigana, a ser atormentada e arrastada ao inferno pela mão de Lâmia. Voltando ao estilo que o consagrou com Evil Dead, Raimi faz, provavelmente, o filme mais divertido do ano, amparado num ótimo roteiro. Nele, tudo é politicamente incorreto, e talvez seja essa a característica que agrade tanto. Realmente se destaca em meio às produções puritanas de horror que chegam aos cinemas – como se para fazer cinema, devêssemos ser o mais próximo do real. (GC)

10º. Amantes, de James Gray.
Two Lovers, EUA, 2008, Playarte Filmes.
3 votos, 27 pontos.

Um filme sobre o amor e personagens que amam e sofrem parece um anacronismo e ao mesmo tempo algo inédito. É raro encontrar na programação comercial brasileira um filme que não pasteurize emoções e trate os sentimentos como fraquezas abomináveis. Amantes tem personagens fracos, mas não por má construção de suas características; o protagonista do filme, por exemplo, é fragilizado pelo medo de se envolver e pela covardia infantil de responder por seus atos. Não chega a ser uma surpresa sua indefinição entre mulheres tão diferentes entre si, mas o que fica afinal é que o rapaz não se encontra em condições de escolher acertadamente que rumo tomar — ou, o que dá na mesma, segue errado pelo caminho certo. É pela aparente banalidade de seu cotidiano e pelo discreto afeto superprotetor de seus pais que ele encontrará a saída — que talvez não seja a que ele esperava, mas que resume bem o espírito deste belo filme de James Gray e o torna tão diferente de tantas outras fitas que desacreditam nas relações amorosas. (Filipe Chamy)

11º. Ervas Daninhas, de Alain Resnais.
Les Herbes Folles, França/Itália, 2009, Imovision.
3 votos, 22 pontos.

O mais novo filme de Resnais é desconcertante. Quem esperar algo parecido com o anterior, Medos Privados em Lugares Públicos, que tinha um carinho especial pelos seus solitários personagens, com certeza irá se decepcionar. Aqui os personagens tomam decisões, algumas francamente antipáticas, que nos surpreendem a cada momento. Resumindo bastante, seria a história de um homem casado e com filhos já adultos que fica obcecado por uma mulher. Quando ele perde o interesse, ela é que irá atrás dele. Mas nunca saberemos suas reais motivações para tais comportamentos, assim como não entenderemos porque a esposa dele aceita tudo de modo tão tranqüilo. Para complicar ainda mais, o filme tem uma narração na 3ª pessoa, mas o narrador parece não estar muito certo sobre a estória que está contando. Mestre Alain Resnais, do alto de seus 87 anos, continua recusando se repetir, procurando sempre novas formas de expressar sua arte. Ele tanto pode filmar em cenários assumidamente fakes como acompanhar o vôo de um avião, uma cena que chega a lembrar àquela de Entre Dois Amores, antes que uma simples braguilha aberta desequilibre tudo. Na verdade esse é um dos temas abordados: as relações desequilibradas. E a frase final dita pela menina é daquelas, absurdas, que os surrealistas adoravam. André Breton e Luis Buñuel aprovariam! (Sergio Andrade)

12º. Apenas o Fim, de Matheus Souza.
Idem, Brasil, 2008, Filmes do Estação.
3 votos, 20 pontos.

Poucos filmes brasileiros atuais possuem a sinceridade e a grandiosidade de Apenas o Fim. O longa-metragem do estreante Matheus Souza custou apenas R$ 8 mil e tem o elenco encabeçado pelos atores Érika Madder e Gregório Duvivier. O grande mérito do filme é abordar a juventude brasileira sem uma espécie de arbítrio moral. Na película, os jovens são mostrados com suas qualidades e defeitos. Comédia romântica acima da média, Apenas o Fim é um filme recheado de referências ao mundo pop. (Matheus Trunk)

13º. Desejo e Perigo, de Ang Lee.
Se, jie, EUA/Taiwan/China/Hong Kong, 2007, Europa filmes.
3 votos, 13 pontos.

Após o impacto de O Segredo de Brokeback Mountain, Ang Lee retorna à Ásia para criar um melodrama de época inspirado em clássicos como Casablanca, refinado com cargas explosivas e surpreendentes de erotismo, cuja clássica trama do amor proibido conduz os personagens ao abismo da tragédia. Belo e poderoso, esse filme de grandes momentos é um presente para os sentidos. Os corpos dos amantes e a vertigem de seu desejo são representados com rara beleza nessa grande aula de sensibilidade cinematográfica. Grande direção de Ang Lee, premiada em Veneza, mas pouco celebrada pela crítica e pelo público, além de ter sido ignorada pelo Oscar. (MC)

14º. Gigante, de Adrian Biniez.
Idem, Uruguai/Argentina/Alemanha/Espanha, 2009, Imovision.
2 votos, 29 pontos.

O cinema uruguaio vem ganhando espaço nas salas brasileiras. O belo Whisky (2004) chegou a ter destaque no circuito de arte de São Paulo e Rio de Janeiro. Depois, outro longa-metragem do país, O Banheiro do Papa foi eleito o melhor filme na Mostra Internacional de São Paulo, em 2007. Porém, ambos são trabalhos menores se comparados ao recente Gigante. Premiado nos festivais de Berlim e Gramado, esse filme uruguaio conta a história de um homem que fica apaixonado, mas tem medo de expressar seu sentimento. O protagonista da história é o grandalhão Jara (Horácio Camandule), segurança de um supermercado de Montevidéu. Sem dinheiro ou posição social, ele começa a perseguir sua amada por todos os lugares. (MT)

15º. Hanami – Cerejeiras em Flor, de Doris Dörrie.
Kirschblüten – Hanami, Alemanha/França, 2008, Filmes da Mostra.
2 votos, 28 pontos.

Falar da morte para celebrar a vida: é disso que trata esse Hanami. A diretora se inspirou num fato pessoal para mostrar, com extrema delicadeza, a dor da perda do ser amado. Logo no começo, Trudi fica sabendo que o marido, Rudi, tem uma doença fatal. Eles vão visitar os filhos em Berlim, mas não são bem recebidos. Antes da metade do filme, acontece uma reviravolta, e quem falece é a mulher. O metódico e sisudo Rudi decide então ir ao Japão, onde reside outro filho, para realizar um sonho que a esposa sempre teve, conhecer o Monte Fuji. Lá ele faz amizade com uma garota que dança butoh (a dança da sombra) num parque. Nesse belíssimo filme, Doris Dörrie paga tributo, através dos temas abordados, a dois grandes mestres do cinema nipônico: Yasujiro Ozu (velhice, relação conflituosa entre pais e filhos, tradição x modernidade) e Kenji Mizoguchi (a situação da mulher na sociedade), mas tudo com uma autêntica sensibilidade feminina, percebida na forma como coordena movimentos de câmera, cenografia, som, música. E tem três interpretações inesquecíveis: do veterano Elmar Wepper, da novata Aya Irizuki e principalmente de Hannelore Eisner, que tem uma presença tão forte na primeira parte que sentimos, como Rudi, que ela está presente até o final. (SA)

16º. Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes.
Idem, Portugal/França, 2008, Imovision.
2 votos, 26 pontos.

Mistura de documentário e ficção, Aquele Querido Mês de Agosto é um filme bastante especial. Com duração de 150 minutos, o longa-metragem acompanha a relação amorosa entre dois primos. Ambos são músicos de uma banda de baile itinerante. O grupo realiza diversas apresentações em pequenas vilas portuguesas. Com uma trilha sonora extremamente competente, esse é um filme que pode ser visto e revisto diversas vezes. (MT)

17º. Beijo na Boca, não!, de Alain Renais.
Pas sur La bouche, França/Suíça, 2003, Pandora Filmes.
2 votos, 22 pontos.

Após seis anos de espera, os brasileiros honram sua tradição negligente ao subestimar e não apoiar mais esse grande filme de Resnais, que ficou pouquíssimo tempo em cartaz — ao contrário do glorioso caminho percorrido pelo magnífico Medos privados em lugares públicos, ainda nos cinemas paulistanos após dois anos e meio. Por sempre se pensar no diretor como um cineasta “cerebral”, o público parece não suportar a idéia de uma fita mais leve do realizador, de tema arejado, personagens pouco complexos e trama rasa. Ocorre que esses adjetivos são falsos, e a esta altura todos deveriam saber que Resnais é o rei da farsa — no sentido mesmo de encenação, que organiza com sua vivacidade invejável e seu brilhantismo de costume. Não são apenas luzes, marcações e opereta, mas o olho sagaz do artista que aprofunda as relações e transforma as intrigas em pequenos dramas que crescem à medida que as pessoas vão se revelando sob a rede de sua câmera. E é sempre uma delícia ver como Resnais trabalha os intérpretes. (FC)

17º. Horas de Verão, de Olivier Assayas.
L’heure d’été, França, 2008, Filmes da Mostra.
2 votos, 22 pontos.

Uma síntese dos melodramas familiares de Olivier Assayas com algumas das características de seus thrillers cibernéticos (porém distante dos seus ambientes futuristas), concentrando-se numa casa de verão e em alguns lugares da vida urbana contemporânea (restaurantes e museus, por exemplo). Sempre de maneira sóbria e fragmentada, com os mesmos ambientes neutros e assépticos, a diluição histórico-geográfica, a quebra das fronteiras internacionais, e cada um dos irmãos morando em países diferentes e afastados pelo mundo, em constantes deslocamentos geográficos e existenciais. Pessoas à beira da maturidade, e que ocasionalmente se reúnem na casa de campo da matriarca da família, a artista Héléne (Edith Scob, a jovem do clássico de horror [i]Os Olhos Sem Rosto[/i]), e que se chocam com a passividade e indiferença dos mais novos, imersos em realidades cotidianas e imaginário tecnológico típicos desse começo de século. (VLC)

17º. Quem quer ser um Milionário?, de Danny Boyle.
Slumdog Millionaire, Inglaterra, 2008, Europa Filmes.
2 votos, 22 pontos.

A interessante filmografia do cineasta inglês Danny Boyle passeia entre os mais diferentes gêneros, do insano Trainspotting, ou o exemplar horror Extermínio, até a transcendente ficção científica Sunshine – Alerta Solar. No drama oscarizado Quem quer ser um milionário? – vencedor de 8 prêmios, incluindo melhor filme, diretor e roteiro adaptado – Danny comprova seu talento neste drama emocionante, equivocadamente comparado a Cidade de Deus. Diferente do premiado longa brasileiro, Quem Quer Ser um milionário? consegue fugir do clichê apostando numa visão otimista, apesar do cenário miserável. Destaque também para o elenco formado por atores de Bollywood e a caprichada trilha sonora. (JPN)

20º. Loki – Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle.
Idem, Brasil, 2008, Moviemobz.
2 votos, 20 pontos.

Loki – Arnaldo Baptista, de Paulo Henrique Fontenelle, refaz a trajetória do roqueiro que foi do céu ao inferno. O filme foi produzido pelo Canal Brasil para exibição na emissora, mas o sucesso em festivais impulsionou seu lançamento comercial. Líder de Os Mutantes e um dos sinônimos do Tropicalismo, o artista foi fundo nas drogas. Rompeu com a parceira Rita Lee, e teve passagens por clínicas e sanatórios. O filme fala de tudo isso e une estética e conteúdo de forma direta e honesta. Escuta críticos e músicos, e tem imagens raras de shows e de bastidores. Mostra também a turnê que marcou a volta da banda e sua descoberta das artes plásticas. Loki é um vigoroso exemplar de um filão que vem dando bons ou maus frutos: o documentário sobre música brasileira. Artistas como Vinicius de Moraes, Maria Bethânia e Cartola já foram contemplados. Mas nenhum deles foi tão fundo no coração de seu biografado. (AM)

Inventário Grandes Musas da Boca

Nadyr Fernandes 

Por Adilson Marcelino

Nadyr Fernandes (também grafada Nadir em alguns filmes) atuou em teatro, televisão e cinema, em São Paulo e no Rio de Janeiro. A maior parte de seus longas foi feita na Boca do Lixo, onde se tornou uma de suas musas.

Nadyr Fernandes nasceu em São Paulo, capital, no dia 27 de fevereiro de 1937. Coroada Miss Cinelândia Paulista, inicia carreira no cinema fazendo pontas na década de 50 – Escravos do Amor das Amazonas (1957), uma produção americana filmada no Amazonas e dirigida por Curt Siodmak, é um desses primeiros trabalhos. Mas é nos anos 60 que começa a ter personagens expressivos, como a atriz mineira Helena no clássico São Paulo S/A (1965), de Luis Sérgio Person, e um papel importante como Eliana em O Anjo Assassino (1967), filme policial dirigido por Dionísio Azevedo e baseado na telenovela A Outra Face de Anita, de Ivani Ribeiro, e produzido por Oswaldo Massaini.

Nessa mesma época, Nadyr começa a carreira em novelas. Atua em O Grande Segredo, de Marcos Rey, exibida na TV Excelsior em 1967, no papel de Sandra. Nos anos seguintes, atua em várias emissoras, como na Record em As Pupilas do Senhor Reitor (1970/71), de Lauro César Muniz; na Tupi em A Fábrica (1971/72), de Geraldo Vietri, e A Rosa dos Ventos (1973), de Teixeira Filho; e na Globo em Pecado Capital (1975/76), de Janete Clair. No teatro, atua em peças como Circulo de Champagne, de Abílio Pereira de Almeida.

Nadyr Fernandes está na comédia 2000 Anos de Confusão (1970), um dos primeiros filmes de um dos mais importantes cineastas da Boca, Fauzi Mansur, e protagonizado pelos irmãos Dedé e Dino Santana. A seguir, atua na produção carioca/paulista Balada dos Infiéis (1970), de Geraldo Santos Pereira, em que tem papel de destaque como a rica Lúcia Bueno Feitosa, na produção carioca O Enterro da Cafetina (1971), de Alberto Pieralisi, e na paulista Cordélia, Cordélia (1971), de Rodolfo Nanni.

Nadyr Fernandes volta a atuar na Boca em A Virgem (1973), de Dionísio Azevedo, como a personagem Tina. Nesse belo filme, ela integra uma turma de jovens amigos que praticam o amor livre. Como entre eles tem uma virgem, interpretada por Nádia Lippi, os rapazes rifam sua virgindade no palitinho com o consentimento do seu namorado. Nadyr Fernandes está exuberante, e a cena em que conversa com seu sexo poderia ser risível, mas ela o faz com uma naturalidade e malícia desconcertantes. Com Edward Freund, atua no faroeste Trindad… É Meu Nome (1973), e com Oswaldo de Oliveira na comédia Os Garotos Virgens de Ipanema (1973).

A seguir, Nadyr se encontra com dois nomes fundamentais da Boca do Lixo: Ody Fraga, no drama Adultério – As Regras do Jogo (1974); e J. Avellar (pseudônimo de José Mojica Marins), na comédia A Virgem e o Machão (1974). No filme de Marins, ela está ótima como Maria Sorvete, a dona de casa que vira prostituta, mas que só aceita clientes que lhe trazem um sorvete no pauzinho. A fila na porta de seu quarto só cresce, mas somente o machão do título vai lhe causar tremores e entrega.

Depois disso, participa de uma das mais memoráveis, anárquicas e deliciosas comédias, Kung Fu Contra as Bonecas (1976), uma produção de Alfredo Palácios e Antonio Pólo Galante, dirigida por Adriano Stuart. Outra comédia em que atua é O Incrível Seguro de Castidade (1975), de Roberto Mauro.

Um encontro importante para Nadyr Fernandes será com o ator e diretor Egídio Eccio. Sob sua direção, atua em O Leito da Mulher Amada (1974), em que tem uma de suas mais exaltadas interpretações, e na comédia protagonizada por Agildo Ribeiro, O Sexualista (1975).

De volta ao Rio de Janeiro, a atriz está em …E as Pílulas Falharam (1976), de Carlos Alberto de Almeida. Mas logo, em São Paulo, está na produção em episódios de Palácios/Galante Sabendo Usar não vai Faltar – Francisco Ramalho Jr, Sidnei Paiva Lopes e Adriano Stuart são os diretores.

Mas se Nadyr Fernandes não tivesse feito nenhum filme a não ser Vítimas do Prazer – Snuff (1977), de Claúdio Cunha, seu nome já estaria para sempre na história da Boca do Lixo e do cinema brasileiro. Com roteiro de Cunha e Carlos Reichenbach, a trama de Snuff é sobre filmes pornográficos, em que as atrizes são supostamente estupradas e assassinadas em cena. No filme, Nadyr Fernandes é Tati Ibanez, uma grande estrela, que por estar em decadência, aceita participar de um filme pornográfico sem saber das reais intenções dos realizadores. A atriz está maravilhosa em cena, em um elenco sensacional, formado pelos atores como Carlos Vereza, Canarinho, Rossana Ghessa, Hugo Bidet, Fernando Reski. Snuff é um filmaço de Claúdio Cunha, um dos mais talentosos cineastas brasileiros.

Por fim, a atriz está no episódio de Victor di Mello em Os Melhores Momentos da Pornochanchada, lançado em 1978.

***

Pitaco do diretor:

Nadyr Fernandes foi uma das melhores profissionais com quem tive oportunidade de trabalhar. Trabalhamos juntos no Vitimas do Prazer – Snuff, tendo ela interpretando um personagem bem parecido consigo mesma, Tati Ibanez, rainha dos filmes de cangaço, formando um par romântico com o Carlos Vereza. Sua interpretação é um dos pontos altos do filme. Sempre alegre, descontraída, atenta à direção. Sem dúvida nenhuma uma profissional exemplar.

Claudio Cunha dirigiu Nadyr Fernandes em Vítimas do Prazer – Snuff (1977)

***
Filmografia:

Escravos do Amor das Amazonas (1957), de Curt Siodmak;
São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person;
Três Histórias de Amor (1966), de Alberto D´Aversa;
O Anjo Assassino (1967), de Dionísio Azevedo;
2000 Anos de Confusão (1970), de Fauzi Mansur;
Balada do Infiéis (1970), de Geraldo Santos Pereira;
O Enterro da Cafetina (1971), de Alberto Pieralisi;
Cordélia, Cordélia (1971), de Rodolfo Nanni;
A Virgem (1973), de Dionísio Azevedo;
Trindad… É Meu Nome (1973), de Edward Freund;
Os Garotos Virgens de Ipanema (1973), de Oswaldo de Oliveira;
Adultério – As Regras do Jogo (1974), de Ody Fraga;
A Virgem e o Machão (1974), de J. Avellar (pseudônimo de José Mojica Marins);
Kung Fu Contra as Bonecas (1976), de Adriano Stuart;
O Incrível Seguro de Castidade (1975), de Roberto Mauro;
O Leito da Mulher Amada (1974), de Egidio Éccio;
O Sexualista (1975), de Egidio Éccio;
…E as Pílulas Falharam (1976), de Carlos Alberto de Almeida;
Sabendo Usar não vai Faltar – Francisco Ramalho Jr, Sidnei Paiva Lopes e Adriano Stuart;
Vítimas do Prazer – Snuff (1977), de Claúdio Cunha;
Os Melhores Momentos da Pornochanchada (1978), de Victor di Mello.

Fontes:
Livros: Dicionário de Filmes Brasileiros – Longa Metragem (Antonio Leão da Silva Neto); Cinema da Boca – Dicionário de Diretores (Alfredo Sternheim)
Revista: Cinema em Close-UP
Sites: Mulheres do Cinema Brasileiro, IMDb

Subgêneros obscuros

Cinema of Transgression

Por William Alves, especialmente para a Zingu!*

A guerra é inveja menstrual

Nova Iorque vai bem, obrigado. A cidade mais populosa dos Estados Unidos não sofre um ataque terrorista há pouco mais de oito anos e os teatros da Broadway ainda resplandecem. O Brooklyn não cansa de jorrar bandas para o resto do mundo (algumas são o Yeasayer; outras, infelizmente, são o Yeah Yeah Yeahs) e o tempo anda meio frio. Em alguma acomodação precária estabelecida dentro dos limites dessa metrópole, é bem capaz que Nick Zedd esteja dirigindo ou atuando em mais uma de suas produções cinematográficas de custo e repercussão nulas.

Zedd é uma figura estranhíssima, uma esfinge moderna cuja data de nascimento os biógrafos e cinéfilos não conseguem estabelecer com precisão. Sabe-se (mais ou menos) que ele nasceu no estado de Maryland, em algum dia entre 1958 e 1959. O próprio website do cineasta não se esforça em esclarecer o mistério, preferindo a exibição de diversos artigos assinados por Zedd, com títulos cândidos como Listen up, americunt.

Mas o que realmente importa aqui é um de seus textos de 1985, redigido quando Nick editava o Underground Film Bulletin, periódico de curta existência, compreendida entre 1984 e 1990. Ele apresentava ao mundo – ou pelo menos a quem estivesse lendo – o Cinema of Transgression. O manifesto continha trechos rudes como “Nós propomos que todas escolas de cinema sejam asfixiadas e os filmes tediosos nunca sejam feitos de novo” ou “Nós renunciamos e rejeitamos à intrínseca vaidade acadêmica”. O primeiro filme do movimento já havia sido feito em 1979 e atende por They Eat Scum. Dirigido, obviamente, por Nick Zedd. O punk rock ainda estava em plena evidência na época e o filme não deixou escapar o frisson, parodiando o estilo de vida que alguns dos jovens entusiastas do novo estilo de música juravam levar. A narrativa do longa é absolutamente anti-linear e, sim, tem gente realmente comendo lixo, além de felações em poodles.

Mas o “nós” do manifesto se referia a outros dementes residentes em Nova Iorque, como Richard Kern, Lydia Lunch, Tessa-Hughes Freeland e Lung Leg. Tessa, inclusive, havia dado uma mão ao seu amigo Nick, divulgando o (não) movimento cinematográfico em outros zines da cidade. Richard Kern, um graduado em Belas Artes na Carolina do Norte, foi o que mais se aprofundou na exploração da degradação. Lydia Lunch, além da carreira cinematográfica, fazia parte da banda Teenage Jesus & The Jerks, que compartilhava os mesmos palcos e guetos malcheirosos com outras bandas alternativas locais, como o Contortions (de James Chance) e o Mars. Todas essas personagens do Cinema of Transgression detinham como ferramentas de trabalho apenas algumas precárias câmeras de 8 mm e um perverso senso de humor.

Kern declarou, certa vez, que “o que fizemos foi juntar o que o Warhol já fazia e que o Dadaísmo sustentava, e misturamos com um pouco de Punk”. O primeiro trabalho de Richard é Goodbye 42nd Street (1983), um agradável passeio por uma rua repleta de atividades e ativistas do cinema pornô. Essas imagens são intercaladas por outras fora das ruas, em que indivíduos se suicidam e apagam um cigarro em suas próprias faces, tudo isso focado por um equipamento de paupérrima qualidade. Depois veio Stray Dogs, de 1985, em que o ator David Wojnarowicz interpretava um pitoresco e perseguidor fã de um artista famoso. Wojnarowics veio a falecer em 1992, decorrente do HIV que ele contraiu após 38 anos vagando pelo mundo underground nova-iorquino.

Ele também atuou em outra das obras de Richard Kern, You Killed Me First. Nesse, a personagem vivida por Lung Leg se cansa de sua opressora família e descarrega um pente de balas em todos os outros três integrantes da linhagem. Lung Leg é mais famosa pela aparição na capa de Evol, disco de 1986 do grupo de rock alternativo Sonic Youth, também de Nova Iorque. A ligação da banda com os transgressores é estreita. Richard Kern dirigiu o clipe de Death Valley ’69, música que também conta com Lydia Lunch nos vocais.

Lunch é, talvez, a figura mais famosa da turma. Multiprofissional, já que se aventura, além do cinema, na literatura e na música, Lydia também se notabilizou por afanar os almoços de seus colegas de pensão (daí vem o “Lunch” do nome, almoço). Ela se tornou amiga de diversas bandas da efervescente cena local, tendo freqüentado compulsivamente o lendário clube roqueiro Max’s Kansas City. Em sua carreira musical solo, contou com colaboradores como Nick Cave, Omar-Rodriguez-Lopez, Einstürzende Neubauten, além da já citada galera do Sonic Youth. Teve seus hábitos excêntricos esmiuçados em The Wild World of Lydia Lunch, filme dirigido por Zedd em 1983. No entanto, o mais estapafúrdio de seus filmes foi realizado pelo onipresente Richard Kern.

O experimento se chama Fingered e data de 1986. Já no primeiro segundo de exibição, um aviso na tela já nos alerta para o grotesco exercício que virá a seguir, ressaltando palavras pouco quistas como “violento”, “sexista” e “repugnante”. Em pouco mais de 23 minutos de ação em preto e branco, Lydia nos apresenta toda a graça e agilidade do seu bumbum – dentre outros atributos. A cada dez palavras proferidas, onze são “fuck”. Fingered também conta com Lung Leg.

War Is Menstrual Envy, de Nick Zedd, é uma das poucas obras com mais de 60 minutos de duração. Embalado por uma trilha tremendamente dissonante, que lembra um daqueles momentos que precediam a quebra de instrumentos deflagrada por gente como Kurt Cobain, algo parecido com uma mulher extraterrestre se esfregando em algo parecido com tentáculos de polvo. Um homem completamente nu se corta com lâmina de barbear, formando iniciais em seu peitoral. Ao som de Gangsta Rap, uma figura mascarada varre o chão. Uma personagem azul pulula ao lado de um oficial de polícia. Entre outras coisas, que transcorrem no mesmo nível de surrealismo. E uma putaria aqui e ali, pra não escapar muito da proposta do manifesto.

Mesmo com as obras um pouco mais longilíneas de Nick Zedd, o trabalho mais perturbador do Cinema of Trasngression tem pouco menos de nove minutos e é assinado por Tessa Hughes-Freeland. Utilizando-se de mitos pagãos conhecidos e de uma trilha sonora erudita, ela arquitetou um dos mais bizarros curtas de todos os tempos. Uma ninfa – trajando uma fantasia até bem caprichada para os padrões do filme – vai dançando pela floresta, exibindo toda a sua sensualidade sobrenatural e pueril. Acontece que toda a cena é assistida de perto por um Pã, de pênis exageradamente grande, e a volúpia vai tomando conta dele a cada novo movimento da ninfa, aparentemente casta. Desnecessário revelar que a história não acaba bem para a doce criatura.

O Cinema of Transgression foi um fenômeno que se espalhou por uma grande cidade norte-americana, disseminado por figuras pouco proeminentes entre os diversos artistas locais. Devido aos temas escabrosos envolvidos, é um movimento low profile por excelência, criado e visto por poucos. Há focos de influência em lugares como a Austrália, onde cineastas como Mark and Colin Savage se esmeram em produzir trabalhos naturalmente obscuros, munidos de câmeras Super-8.

Nick Zedd ainda dirige. Richard Kern dedica-se a outras paixões, como a fotografia. Lydia ainda grava diversos álbuns com diversos colaboradores, enquanto Lung Leg ainda atua. Um documentário sobre essa controversa cena nova-iorquina foi produzido em 2009, e se chama Blank City, dirigido por uma moça de beleza estupenda que atende por Celine Danhier. Conta com depoimentos de todos os citados, mais o de Tessa-Hughes. Surpreendemente, todos eles continuam vivos.

Abaixo, uma mini (e lacônica e esquisita) entrevista que fiz com Nick Zedd, por e-mail:

Zingu! – Nick, você está trabalhando em um novo filme? É um trabalho para o Cinema of Transgression?

Nick Zedd – No momento, não. Um box de quatro discos da minha série de TV está saindo este ano, e será uma revelação para quem estiver esperando algo parecido com os meus trabalhos mais antigos.

Z – Você ainda conversa com os outros caras do movimento, como Kern & Lunch?
NZ – Em raras ocasiões, Kern e Tommy Turner (que deveria estar empalhando o meu gato morto), Richard Klemann, Casandra Stark e Tessa Hughes Freeland, não importa a hora em que eu corra até eles.

Z – Qual é o seu filme favorito do movimento?

NZ – Eu não poderia escolher um favorito. Há muitos para escolher. Cineastas são vampiros silenciosos. Nós sugamos a energia dos atores, tornando-os imortais. Isso é uma coisa boa. É baseada em amor. O melhor ator aprecia a tentativa que o diretor precisa seguir para manifestar este amor. Atores são crianças em busca de atenção, e é meu trabalho dar-lhes humor, fomentar os seus egos e sugar performances que valham o tempo que eu despender. Como diretor, sou o autor de tudo que dirigi, mesmo agradecido a quem escreveu o roteiro. O mesmo se aplica ao diálogo improvisado.

Z – Em 2009, foi lançado um documentário sobre a No Wave. Você está surpreso com a repercussão do Cinema of Transgression?

NZ – Não.

Z – Em Thrust In Me, de Richard Kern, há uma cena onde você esfrega o seu pênis em um jovem cadáver, algo pesado até mesmo para os seus trabalhos. Houve alguma hesitação da sua parte ou foi como “vamos logo fazer essa merda”?

NZ – Já que foi minha ideia, não hesitei nem um pouco em fazer o meu trabalho, co-dirigindo e editando.

Z – Você é amigo do pessoal do Sonic Youth, Thurston Moore, Kim Gordon?

NZ – Naturalmente.

Z – Por favor, fale sobre o Underground Film Bulletin. Você ainda tem algumas cópias?

NZ – Esse foi um zine que publiquei para subverter a censura corporativa, que tenta omitir a verdade de nós. Focando em linhas mais experimentais, não-lineares, narrativas e não-narrativas de filmes (e qualquer coisa entre isso), e os criadores do passado, presente e futuro. História é aquilo que qualquer um põe no papel ou digita primeiro. Ao invés de consumir passivamente a distorcida e comum versão da História, eu fiz a minha própria, com ajuda dos meus parceiros de crime. E eu tenho todas as cópias originais. Alguém deveria reimprimi-las como um livro.

Z – Há, em especial, algum artista alternativo da atualidade em Nova Iorque de que você goste?

NZ – Não.

P.S.: Já mencionei que a data de aniversário do rapaz é um mistério. Em todas as fontes que consultei (IMDB, site pessoal, diversas matérias na web), não constava uma data exata. E eu achei mal educado perguntar, né? No entanto, a página no facebook de Nick informa que o seu aniversário é no dia 26 de janeiro, tendo ele completado cinco décadas em 2010. Mistério resolvido, missão cumprida.

*William Alves, 24 anos, belorizontino e eterno postulante a jornalista, queria ter visto os Stones em 68 e pego a Ava Gardner em 46. Mantém o blog Sleepwalk Capsule.

Lançamentos: A fronteira da alvorada

Por Vlademir Lazo Correa

A Fronteira da Alvorada, em DVD.
Direção: Philippe Garrel
La frontière de l’aube, França, 2008.

O mais recente longa de Philippe Garrel flerta com o fantástico, mas se impõe mais pelos toques de melodrama e tragédia. Ainda assim, os amor fou de um fotógrafo dão origem a um quase filme de terror, embora na verdade não seja tido como tal. Tampouco seria justo reduzi-lo a tanto. Há, porém, alguns fortes elementos de filme de horror que perpassam por boa parte da projeção, não somente pelas referências mais óbvias, mas também pelas mais insuspeitas, como as cenas em que Louis Garrel é assombrado pelo seu inconsciente ou a magnífica fotografia em P&B que remete aos mais antigos filmes de fantasmas, e que concede ao longa uma aura de mistério que emana de suas ásperas imagens. Mas também os confinamentos a que os personagens vão se entregando, primeiro em espaços físicos, posteriormente em níveis mentais.

Estes são alguns dos temas de A Fronteira da Alvorada, uma história de fantasmas e loucos, em que Louis Garrel é o fotógrafo encarregado de uma sessão de fotos com Carole (Laura Smet), uma atriz tempestuosa, que mais tarde revelará problemas mentais e tendências suicidas – mas com a qual ele acaba se apaixonando e se envolvendo. Há uma guinada inesperada na segunda metade, que nos mostra que a transição entre dois amores é sempre complicada, como tem que experimentar na própria pele o protagonista, e essa circunstância o faz entrar num processo intrincado e amargo que se desloca da realidade para a imaginação.

É sobre os contrastes entre a vida e a imagem da vida, aprisionada e estática no quadro de uma fotografia, e exatamente por isso idealizada e ambígua, nos gestos e movimentos capturados pela câmera do profissional. O desejo nasce da vontade de apropriar-se de uma imagem, mas cujo controle nos escapa no mundo real.

Esse mal-estar insidioso que permeia a obra de Garrel faz com que os seus personagens perambulem como mortos-vivos na narrativa. Para François, o personagem de Louis Garrel, a vida junto à Eve representa uma situação de conforto, de estabilidade, de temperança, o que se torna um violento contraste à vida que levava com Carole. A Fronteira da Alvorada é um filme friamente romântico, com um quê de Vertigo, por mais que suas superfícies sejam tão distintas, e que suas (muitas) diferenças sejam bem mais acentuadas. O diretor Philippe Garrel se mostra um mestre da criação de atmosferas e na evocação do sobrenatural. Cabe destacar ainda a presença marcante (e, porque não, inesquecível) de Laura Smet, a musa cuja lembrança o protagonista não apagará tão cedo da memória. Ao final, após uma verdadeira sensação de desconforto diante do relacionamento perverso entre os personagens, só nos resta contemplar uma cabeça sangrando no asfalto, quando então o protagonista não será nada além de um objeto integrado à paisagem.

Cinema Extremo

Por Marcelo Carrard

Island of Death
Direção: Nikos Mastorakis
Ta paidia tou Diavolou, Grécia, 1974.

Dentro da gigantesca filmografia Exploitation produzida na Europa dos anos 70, alguns filmes se tornaram uma espécie de lenda, por seus extremos na representação da sexualidade e da violência. A grande maioria desses filmes foram feitos na Itália e muitos deles já foram comentados por aqui. Tão subversivo quanto um filme de Joe D’Amato ou Lucio Fulci, o filme grego Island of Death é um espetáculo de atrocidades em série, em um trabalho bastante autoral do pouco conhecido e não menos importante Nikos Mastorakis. Um grande número de edições desse filme foram lançadas em todo o mundo, inclusive em VHS por aqui. Vítima de severos cortes da censura, somente agora temos acesso à sua versão original, graças a reedições em DVD, razoavelmente fáceis de serem encontradas, inclusive com legendas em português na internet, em endereços variados de compartilhamento de filmes via download.

A trama é ambientada na ensolarada ilha grega de Mikonos, até hoje um paraíso do sexo livre e da badalação de turistas de todo o mundo, onde é presenciado um casal de irmãos incestuosos cometendo uma série de assassinatos brutais, todos com uma motivação moral. A fotografia procura deixar tudo às claras, sem sombras fortes, para que o espectador observe em detalhes cada crime. A mulher do casal fotografa tudo criando um interessante maneirismo de montagem. Esta, aliás, além da fotografia, do roteiro e da edição, ficou a cargo do próprio diretor. O primeiro assassinato é carregado de simbolismo católico, quando a vítima tem as mãos pregadas no chão em um ritual perturbador de crucificação. O tema dos assassinatos com motivação moral e doentia não são uma novidade, mas no caso desse filme parecem ser uma espécie de redenção dos pecados do casal incestuoso. Com uma trilha de canções meio hippies, tudo parece uma subversão do clima de paz e amor presente na ilha. A sexualidade carregada de morbidez e de conotações abjetas e grotescas aparece na sequência em que o homem transa com uma cabra, e que acaba se tornando seu objeto de sacrifício de sangue e quando uma mulher expressa suas taras sendo brutalmente assassinada pelo casal após uma sessão de perversões, tal o masoquismo e o Golden Shower.

A patológica homofobia do vilão surge como a própria negação de sua sexualidade, expressada nas mortes do casal gay e da bela lésbica que transa com sua namorada/irmã, sendo observada por ele com um fascínio doentio. A solução final da trama surpreende por sua crueza em uma mescla de punição e sublimação do casal em auge, em plena vertigem de seu desejo desenfreado que durante todo o filme transita pela dualidade Prazer/Morte. Obsessivos, amorais, violentos, eles entram para uma galeria de casais de assassinos em um lugar de destaque. A crueza do filme, típica das produções da época, o transforma em um clássico obrigatório para os fãs de Cinema Exploitation, que, por muitos anos, permaneceu na lista negra de filmes classificada na Inglaterra de Video Nasties.

Musas Eternas

Natalie Portman

Por João Pires Neto

Linda, vegetariana e talentosa

Com apenas 12 anos, Natalie Portman já desfilava os traços perfeitos e sutis que se tornariam, com o passar de alguns anos, sensuais e implacáveis. Interpretava então a órfã Mathilda, em O Profissional (1994), do cineasta francês Luc Besson. Em seu primeiro trabalho, a jovem atriz encarava, com delicadeza e talento promissor, o papel de co-protagonista num filme que trazia astros do calibre de Gary Oldman e Jean Reno.

Com o sucesso de O Profissional, imediatamente a carreira de Portman foi alavancada, sendo convidada a participar de produções como o musical de Woody Allen Todos Dizem Eu Te Amo, Marte Ataca!, de Tim Burton e o thriller Fogo Contra Fogo, de Michael Mann. Em 1999, Portman foi indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante pelo seu desempenho no drama Em Qualquer Outro Lugar, de Wayne Wang, em que contracenou com Susan Sarandon.

Natalie Portman nasceu em Jerusalém Natalie Hershlag; filha única do médico Avner Hershlag e da dona-de-casa Shelley Stevens, hoje sua agente. Formou-se em Psicologia, em 2003, pela Universidade de Harvard – na mesma época em que ficou conhecida ampla e internacionalmente pelo papel da Rainha Padmé Amidala, na nova trilogia Star Wars (1999, 2002 e 2005), de George Lucas.

Mas foi com Closer – Perto de Mais, em 2004, que Portman exibiu o máximo do seu talento e sensualidade. No drama, baseado na peça de mesmo título escrita por Patrick Marber e dirigido pelo alemão Mike Nichols, a atriz vive o seu papel mais maduro e mais arriscado, em um enredo que reflete os relacionamentos entre dois casais adultos, seus desamores e fantasias. A bela e sedutora stripper Alice rendeu a Portman o Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante e a indicação ao Oscar na mesma categoria. Se havia alguma sexualidade contida nas personagens anteriores de Portman, em Closer ela brinda o imaginário masculino com uma personagem inesquecível e inspiradora de fantasias.

Embora abomine o estigma de símbolo sexual, Natalie Portman aparece como veio ao mundo no curta-metragem Hotel Chevalier, dirigido e produzido por Wes Anderson. O trabalho foi disponibilizado na internet e virou um sucesso instantâneo (por favor, leitor, termine de ler o texto antes de ver o vídeo – parte 1 e parte 2). Portman se disse arrependida e repetiu aos quatro cantos que não protagonizará mais nus no cinema. Obviamente, nós cinéfilos amantes da beleza feminina, esperamos que ela mude de idéia. Muitas vezes.

Seu próximo papel no cinema será numa versão pouco comum da obra de Jane Austen, Orgulho e Preconceito. Na trama de Pride, Prejudice and Zombies – releitura assinada por Seth Grahme-Smith que já vendeu milhares de exemplares nos Estados Unidos e chegou a ocupar a terceira posição entre os mais vendidos do The New York Times – Elizabeth Bennet e suas quatro irmãs se tornam zumbis e lutam Kung Fu, ensinadas pelo Sr. Darcy. Blasfêmias e ousadias a parte, impossível não ficar curioso em como uma das atrizes mais respeitadas de sua geração se sairá na pele de um morto-vivo.

Enfim, falta força às palavras para que definam, à altura merecida, os méritos de Natalie Portman. Mas não custa nada encadear alguns adjetivos que procurem descrever o seu talento e beleza angelical – este foi o objetivo deste pequeno texto. E se depender da capacidade inspiradora para se eternizar uma musa, a jovem e linda Natalie Portman está eternizada, desde a sua primeira e apaixonante aparição nos cinemas.

Reflexos em película

Reflexos em película

Batismo
Por Filipe Chamy

Após mais de três anos como colaborador fixo da Zingu!, todo mês participando com pelo menos um texto — e já se somam várias dezenas —, finalmente apareço com uma coluna específica. Não que com isso pretenda me dar ares de uma importância que obviamente não tenho; mas é um exercício curioso condensar suas idéias em um espaço fixo em toda edição. Ao contrário dos meus artigos habituais, nessas linhas — que já existiam em alguns números anteriores, soltas e um tanto perdidas — traço relatos mais próprios, permito-me uma subjetividade outrora timidamente disfarçada, escancaro o aspecto pessoal da exposição em primeira pessoa.

Esse intróito não serve para muito mais que não introduzir a minha principal dificuldade com esta nova perspectiva textual dentro da revista: batizar esta coluna. Por muitos dias, perdi várias horas procurando um título que definisse minhas intenções e objetivos, sem parecer afetado ou ridículo, e sempre com a preocupação de que o nome não fosse um estepe apenas temporário, que me causasse um tormentoso constrangimento sempre que houvesse uma nova edição da Zingu!. Pensei em uma infinidade, a maioria abandonei por julgar por demais referencial, abstrato, ridículo ou despropositado. Entre esses títulos abortados, pensei em 24 por segundo, Retrato em movimento, Porrete e dentada, Aos nossos leitores, Como aprendi a parar de me preocupar e amar a crítica, Torneira de asneiras. Quando o nome me agradava, fazia uma rápida busca virtual para saber se estava me precipitando em um chavão. Não dava outra: havia blogues, poemas e artigos com os títulos tão arduamente cogitados. Também larguei a possibilidade de fazer esse humor citatório, homenagear os filmes que gosto, porque, afinal de contas, paródia sempre foi algo que minimamente suportei. Acabei chegando, então, a este Reflexos em película, nome que instantaneamente me interessou pelo seu caráter inaudito, que tanto diz respeito a uma possibilidade de análise e reflexão (que sempre foi o intuito destas minhas colunas) quanto a uma paixão vibrante pela arte, pelo movimento, pela película, pelo linguajar cinematográfico mesmo. Gostei da brincadeira visual com os “reflexos” do cinema e não pensei mais em outro nome.

Mas, afinal de contas, é o nome tão importante assim para uma obra? Será que há quem se interesse por Buñuel após pesquisar títulos tão originais quanto O discreto charme da burguesia, Esse obscuro objeto do desejo e Um cão andaluz — em que não aparece nenhum cachorro e nem é feita qualquer referência à região da Andaluzia — e ter sua curiosidade cutucada até o ponto de provocar incontrolável desejo de assistir a essas fitas? Pouco provável, mas, sabemos, nesses casos, a busca seria recompensada. Mas o que dizer de filmes cujos títulos são coisas simplórias como Faces, Suspeita, O desprezo? Todas obras com maior ou menor importância de diretores de relevância asseguradamente consagrada. Mas motivarão o público não-cinéfilo (e, portanto, não conhecedor dos cineastas) a alugá-las em sua locadora de preferência?

Isso quando o quadro não é ainda mais grave: falamos das traduções não-literais, geralmente títulos estapafúrdios escolhidos por executivos das distribuidoras e que visam a atrair um expressivo público para as bilheterias com elementos-chave das emoções baratas, nomes que sempre virão acompanhados de palavras como “amor”, “mistério” e “segredo”. Não há nada comprovado que um título simplório como Aurora impeça um filme de ter sucesso ou que um esdrúxulo Noivo neurótico, noiva nervosa mude algo na apreciação do trabalho de Woody Allen; o que talvez comprove que títulos são como nomes de pessoas, que nada mais significam que uma apresentação a elas, com todas as suas características.

Lançamentos: Ervas Daninhas

Lançamentos
Por Filipe Chamy

Ervas Daninhas , nos cinemas.
Direção: Alain Resnais
Les Herbes Folles, França/Itália, 2009.

Ervas daninhas é uma obra de tantas características diferentes (e, no entanto, complementares) que uma análise ou comentário sobre o filme pode se pautar sobre qualquer aspecto deste último — esperamos que apenas até a data — trabalho de Alain Resnais, o diretor francês que, na virada da década de 1950, mostrou ao mundo o que a inventividade pode produzir, quando aliada à arte sincera e apaixonada.

“Paixão” não é uma palavra à toa, pois Resnais é sem dúvidas um realizador consciente de suas potencialidades e que as exerce com competência não apenas de artesão esforçado, mas de amante dedicado ao ofício. Não é tão fácil chegar a quase noventa anos com uma cabeça tão fresca e tão aberta a novidades, tão cheia de interesse, tão animada por brincadeiras. Brincadeiras, aliás, que extrapolam a diegese de seus filmes e que demonstra até na maneira de filmar. Um detalhe, por pequeno que seja, que ele queira capturar, pelo simples gosto de o fazer. Uma frase aparentemente deslocada, um humor absurdo, um personagem insólito. Resnais não precisa “querer dizer algo” com suas decisões, pois a simples exposição de sua obra já diz tudo sobre ele – e, ao mesmo tempo, passa longe da autobiografia. Ele não escreve os roteiros de seus filmes, mas seria impossível uma pessoa filmá-los do jeito como ele o faz. Não é o elenco (que ele repete à exaustão, sempre de maneira criativa e carinhosa), não é a música, não é a fotografia, não é a edição, não é nada disso. Ao contrário da crítica “fórmula de bolo” que impera na tradição cinematográfica, ao analisarmos cada um dos componentes dos filmes de Resnais, não encontraremos talvez nenhum grande motivo para festa. No entanto, é só assistir a quaisquer de seus trabalhos para ter imediata noção da grandeza de seus feitos.

Em aparência, Ervas daninhas é a história de um homem (André Dussolier) que persegue uma mulher (Sabine Azéma) que teve sua bolsa roubada. Mas as aparências não disfarçam apenas os fatos e os atos, mas as personalidades e as próprias vidas dos personagens, retratados tão peculiar e sensivelmente pelo diretor. A delicadeza com que são mostrados os momentos torpes, de contradição amoral, passagens de crueldade e sofrimento faz pensar antes numa sinfonia que num romance. Porque se cada personagem é uma nota, elas oscilam sempre num movimento pautado, que pode parecer estranho e pouco usual (e talvez o seja), mas que é ritmado o suficiente para que nosso sentidos não sejam agredidos. A comicidade da polícia, as pequenas vinganças de amor, a loucura essencial da aviação, a resignação motivada pelo afeto (retratada com grande beleza pela esposa do protagonista), as cores que mudam conforme nossos humores: a existência não vive afinal de momentos definidos, mas de pequenas células de acontecimentos que não podemos descrever objetivamente – afinal, ninguém é juiz de si mesmo. Compreendendo esse princípio, Resnais carrega no tom de farsa – uma farsa tão bem encenada e perspicaz que passa por realidade absoluta, nunca grotesca, apesar de tudo.

Talvez possa causar rejeição a aparente bizarrice dos tipos envolvidos na trama, que parecem sempre discordar do que parece o caminho natural a seguir, mas romper as expectativas dos espectadores não só é nobre, como também é elogiável, se feito com precisão justificada — não existe apenas uma solução para as coisas, e optar pelo jeito errado e torto talvez seja a única forma de perceber que o prazer não reside apenas nas facilidades, mas na eficácia do conserto dos equívocos (e não que não seja delicioso também se contentar em perceber os equívocos dos outros). Resnais se diverte e concede ao seu público a oportunidade de se juntar a ele. A obsessão, a compulsão e a traição têm, afinal, seu lado bom. O lado bom é que Resnais as sabe filmar com esmero e maestria.

Santo de casa não faz milagre

Especial Anselmo Duarte

Santo de casa não faz milagre

Por Lafayette Vilella, especialmente para a Zingu!

Laureado com o prêmio máximo de um festival como o de Cannes, onde competem filmes de todos os países do mundo, O Pagador de Promessas permanece como um clássico do nosso cinema. Apesar das restrições que sofreu aqui por ser linear e acadêmico – sobretudo de grande parte dos cinemanovistas que sonhavam com a projeção do Brasil através de filmes mais vanguardistas -, o filme se impôs com sua simplicidade e seu texto emocionante (da autoria de Dias Gomes, autor da peça que lhe deu origem) a todas as platéias e espectadores até os dias atuais. Seu diretor, o recentemente falecido Anselmo Duarte, vinha de uma carreira de galã em chanchadas e de outras fitas modestas, só tendo experimentado a direção uma única vez, com a comédia popular Absolutamente Certo! (1957), quando fora muito bem aceito e, achavam, do nicho de que nunca deveria ter saído.

É a história de Zé do Burro (Leonardo Villar, admirável), um sertanejo simplório e ignorante, que chega com uma pesada cruz nas costas, em companhia de sua mulher (Glória Menezes), à cidade de Salvador, a fim de cumprir a promessa que fizera a Iansã (correspondente a Santa Bárbara no sincretismo religioso) pela cura de seu amado burrico. A enorme repercussão de sua presença às portas da igreja do Nosso Senhor do Bonfim agita a população de crentes, atrai a imprensa e o coloca em conflito com um influente padre local (Dionísio Azevedo), que acha inadmissível a sua entrada na igreja, enquanto sua mulher é assediada por um gigolô (Geraldo Del Rey).

Eu acredito na sinceridade de Anselmo Duarte quando dizia que “se tivesse que realizar O Pagador de Promessas hoje, não mexeria em nada”. Como está e com o retrato central de um homem humilde do interior em contato com a cidade grande, me parece um filme muito íntegro na forma e na força com que narra o desenvolvimento de sua história. Soaria incomunicável e pretensioso, quem sabe algo ridículo, se procurasse uma linguagem mais sofisticada e de acordo com os parâmetros do modernismo a la mode que já propunham seus colegas de um movimento jovem a que não pertencia e nem era íntimo. Se seu filme demonstrava uma característica naïf, por sinal, coerente com o tema que abordava, por que não aceitá-lo e aplaudi-lo como se aplaudem os pintores, compositores e outros artistas considerados, sem desdém, de “primitivos”?

É claro que a conquista da Palma de Ouro em Cannes afetou o orgulho dos novos cineastas rivais e dos baluartes da imprensa a estes simpatizantes, que se transformaram em detratores do filme, nem mesmo reconhecendo que era um trabalho sério e muito acima da média a que se costumava ver no cinema nacional. Era imperfeito? Sim, concordo, não são nem tão bem resolvidas as situações que envolvem outros personagens de destaque que se cruzam, como a mulher às voltas com o gigolô da ciumenta prostituta (Norma Bengell, em pequena, mas marcante participação). Por outro lado, tem momentos sublimes, como o que consegue Leonardo Villar não só no filme inteiro, mas principalmente com o seu olhar de encantamento e veneração à passagem de sua santa de devoção no andor – a câmera alternando o rosto iluminado de Zé do Burro com a imagem de Santa Bárbara, que segue lentamente na procissão – e as culminâncias dramáticas do notável desfecho. Seriam essas não só, mas duas razões mais que suficientes para que se atestasse o talento de Anselmo Duarte, que, “sutilmente” sabotado adiante, não mais teve meios ou obteve recursos para nos dar o melhor de si como realizador. Morreu ressentido.