Os Trombadinhas

Especial Anselmo Duarte

Os Trombadinhas
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1979.

Por Filipe Chamy

No Brasil as coisas costumam ser ao contrário.

O que se espera de um cineasta que ganhou, ainda jovem, a Palma de Ouro no Festival de Cannes é que ele, a exemplo de um Truffaut — que, com o sucesso de Os incompreendidos, passou a um patamar de confiabilidade inaudito naqueles anos de conturbada renovação do cinema francês —, tenha a partir de então uma visibilidade tal que lhe permita oportunidades que dificilmente seriam colocadas à disposição de qualquer jovem iniciante. Mas, no caso de Anselmo Duarte, isso não só não ocorreu como aconteceu quase o total contrário.

Após o êxito inesperado de O pagador de promessas, a icônica encenação de Dias Gomes realizada pelo diretor, Anselmo Duarte viu-se cercado pela desconfiança, pela inveja e pelo preconceito. Os cinemanovistas da turma do Glauber o achincalhavam de todas as maneiras possíveis, afirmando que de alguma forma esse reconhecimento era um desserviço à autoralidade no cinema brasileiro, sendo um passo digno de um ex-galã qualquer de chanchadas alienantes; o público o abandonou após o difícil experimentalismo de Vereda da salvação, muito intelectualizado para conquistar as classes que acompanhavam sua carreira; os produtores cinematográficos viam seus projetos com descrença, não querendo investir em fracassos financeiros. Anselmo Duarte estava sozinho.

O que restava a Anselmo Duarte? Embrenhar-se pelos caminhos fáceis do cinema popular barato. A partir dos anos 1970, suas fitas cada vez mais flertavam com a pornochanchada sutil que era a ordem do dia para a maior parte dos cineastas brasileiros do período. Realizou episódios para longas-metragens, filmes de encomenda. Obras de sexualidade abundante e ingênua, rasas e sem muito valor estético, ao contrário do que parecia ser a preocupação do Anselmo diretor em seus anos de glória.

Após alguns anos nessas condições inglórias, Anselmo Duarte encerrou sua carreira de diretor com este Os trombadinhas. Trata-se de mais um filme irregular, certamente não tão ruim quanto poderia ser pela premissa, mas visivelmente um veículo para louvar o já mitológico Pelé e ainda passar uma mensagem social por meio de uma trama leve e movimentada, bem ao estilo das produções televisivas que o público brasileiro cada vez mais acompanhava na década setentista.

Trata-se da história de um homem (Paulo Goulart) que, sensibilizado com a situação dos menores abandonados e sua cooptação para o mundo da marginalidade e da baixa criminalidade, resolve empreender a nobre tarefa de organizar uma campanha para esclarecer as pessoas e evitar que mais abusos e injustiças sejam cometidos. Para que ninguém ignorasse a força da tal campanha, nada de mais eficaz que um garoto-propaganda de peso e renome: surge Pelé, que, bom moço, aceita sem hesitar a tarefa de conscientizar a população sobre o crescente problema dos trombadinhas.

Se a sinopse em si já é pueril, o filme ainda se supera: temos, por exemplo, Pelé fazendo as vezes de detetive, policial, investigador e até mesmo de lutador de artes marciais! Como uma espécie de super-herói tupiniquim, o lendário jogador de futebol persegue os exploradores dos menores, escapa de atentados, salva o dia. O final é irônico, mas soa bastante natural na realidade brasileira (da época e de hoje). Os trombadinhas é um filme dirigido de modo convencional, sem grandes trabalhos de câmera, montagem, direção de elenco etc.; passa por obra de um cineasta qualquer. Anselmo Duarte, sábio conformado à força, entendeu que, se prosseguisse no ofício, passaria de lenda a caricatura.

Já Não se Faz Amor como Antigamente

Especial Anselmo Duarte

Já Não se Faz Amor como Antigamente (episódio Oh! dúvida cruel)
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1976.

Por Matheus Trunk

Dentro da história do cinema brasileiro, Anselmo Duarte (1920-2009) foi um personagem bastante especial. Paulista de Salto, iniciou sua carreira como galã nas chanchadas da Atlântida e prosseguiu na mesma função nos filmes da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O ator lançou-se como diretor em Absolutamente Certo em 1957, uma comédia acima da média inspirada no Neo-Realismo italiano.

Em 1962, o realizador conseguiu alcançar o estrelato com O Pagador de Promessas. Produzido por Aníbal Massaini, o filme obteve a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Consagrado internacionalmente, era de se esperar que Anselmo fosse tratado como ídolo em sua terra natal. Inimigo ferrenho do Cinema Novo e com inimizade em certos setores da crítica, Anselmo Duarte não teve muitas oportunidades para realizar seus trabalhos mais pessoais.

Nos anos 70, o realizador aceitou dirigir alguns episódios de pornochanchadas para a Cinedistri. Para o longa-metragem Já Não Se Faz Amor Como Antigamente, Anselmo fez o primeiro episódio, Oh! dúvida cruel. O filme trata de um pai que desconfia da masculinidade de seu filho.

No episódio, Anselmo interpreta Atílio, o pai do garoto. Homem rico e muito bem relacionado, ele possui uma grande dificuldade de relacionamento com o filho Júnior (Bruno Barroso). Por esse motivo, Atílio acaba contratando um detetive (Carlos Bucka em atuação hilária) para acompanhar as atividades do garoto.

Oh! dúvida cruel é um filme bem produzido para os padrões da pornochanchada paulista do período. O resultado final do episódio parece muito com os filmes italianos contemporâneos. A direção de fotografia ficou a cargo do competente Osvaldo de Oliveira e a montagem com o diretor Carlos Coimbra. No elenco, atrizes consagradas como Ivete Bonfá e Lucélia Santos fazem papéis secundários.

Segundo a biografia Adeus cinema: vida e obra de Anselmo Duarte – ator e cineasta mais premiado do cinema brasileiro, de Oséas Singh Júnior, o realizador não tinha grande admiração por este período de sua obra. “Embora os títulos sejam bastante sugestivos, os cinespectadores que esperavam filmes eróticos certamente ficarão decepcionados”.

Magoado com o cinema, o diretor retornou a Salto, onde viveu os últimos anos de sua vida. Talentoso, mulherengo, polêmico e autêntico bon vivant, Anselmo é um dos grandes nomes do cinema nacional em todos os tempos. Filmes como Absolutamente Certo, O Pagador de Promessas e Vereda da Salvação são o legado que este importante artista deixa para as próximas gerações.

O Crime do Zé Bigorna

Especial Anselmo Duarte

O Crime do Zé Bigorna
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1977.

Por Ney Gastal*
Seleção e transcrição: Matheus Trunk

Sou insuspeito! Evito, diplomaticamente, escrever sobre filmes brasileiros por uma razão muito simples: via de regra não gosto dos que vejo. Paulo Emílio (…) costumava dizer que somos de tal forma colonizados, culturalmente, que temos dificuldade em compreender a linguagem do cinema nacional, que seria diferente da linguagem do cinema estrangeiro. Pode ser. Só que acho que nada – nem ninguém – pode me obrigar a compreender uma linguagem semitruncada.

Para vê-los, então estabeleci um critério de julgamento paralelo. Não os comparo a nada que não seja também brasileiro. Isto possibilita a que se tenha uma avaliação melhor de nosso próprio cinema, longe do paralelo com filmes procedentes de lugares mais desenvolvidos, tecnicamente, e mais livres, socialmente. Só que, como dizem que o cinema brasileiro precisa de incentivo, e como não estava disposto a dar este incentivo, parei de escrever sobre filmes nacionais. Entre o silêncio e a mentira, fiquei com o silêncio.

Um filme, enfim, que passa por cinema dos erros, volteia com alguns defeitos e chega ao final incólume e belíssimo, dono de uma força que há muito tinha desistido de procurar nos filmes brasileiros, e raramente encontro em filmes estrangeiros.

Falo de O Crime do Zé Bigorna, de Anselmo Duarte. Uma análise perfeita da ascensão do populismo no Brasil, cheio de imagens metafóricas mas, ao mesmo tempo, de uma simplicidade linear, que o torna compreensível por qualquer público, o filme mostra que o Anselmo Duarte de O Pagador de Promessas voltou a existir e ainda melhor do que então: mais maduro, mais direto e, sobretudo, mais simples. (…) As duas cenas do encontro de Zé Bigorna com o público que o elegeu para ídolo, ele que lavou “com sangue a honra conspurcada”, e a cena da sessão de cinema, são praticamente perfeitas. Diferentes, talvez, das que estamos acostumados a ver em filmes estrangeiros, onde o padrão de comportamento das multidões frente às câmaras é outro; diferentes, também, porque dois bêbados brasileiros da década de 30, pobres de cidade de interior, não se comportam como bêbados hollywoodianos. Mas, dentro destas diferenças, ou quem sabe justamente por elas, belíssimos momentos de cinema; o que leva a pensar que Paulo Emílio tinha razão.

*Publicado originalmente no Correio do Povo, de Porto Alegre, em 15 de setembro de 1977.

O Descarte

Especial Anselmo Duarte

O Descarte
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1973.

Por Vlademir Lazo Correa

Os créditos de abertura de O Descarte começam ao som de uma versão instrumental da clássica canção Mulher, de Custódio Mesquita e Sadi Cabral. O que poderia ser o sinal de um filme que homenageia a força de todas as mulheres se dissipa em pouco tempo, pois não é preciso esperar muito para constatar que estamos diante de um filme realizado exclusivamente para uma só mulher. Em outras palavras, é evidente que O Descarte é feito para Glória Menezes brilhar, o que não ajuda nem ao filme, tampouco à própria atriz, porque Glória definitivamente não é uma atriz de cinema (não é à toa que a intérprete nunca conseguiu emplacar como estrela de cinema, apenas de televisão). O seu estilo de interpretação e repertório de gestos e expressões é demasiado carregado e melodramático, o que combina mais com as produções destinadas para a televisão.

Produzido pelo astro Tarcísio Meira (grande amigo e de certa forma sucessor de Anselmo Duarte como principal galã no imaginário feminino nacional), que aqui não participa como ator, e com financiamento da Embrafilme (não saberia dizer se Anselmo sofreu interferências em sua liberdade no processo criativo de O Descarte), o filme tem algo próximo de uma estrutura de novela das oito. Glória Menezes é Cláudia Land, uma viúva rica e bela que conhece Bruno, bem mais moço do que ela, encarnado por um jovem Ronnie Von fazendo pose como bad boy com seus trajes escuros e sua motocicleta. Um sujeito que não conta nada do seu passado, que não revela de onde vem. O relacionamento que se desenvolve entre os dois pode fazer a mulher finalmente superar a morte do antigo marido, do qual estava presente no acidente de automóvel que o tirou a vida, entretanto ela passa a receber cartas ameaçadoras no casarão em que vive recolhida.

É uma obra pontilhada também pela loucura. Cláudia vive neuroticamente em virtude do trauma de ter presenciado a morte do ente querido, enquanto sua irmã permanece confinada no alto da casa. As cartas anônimas pedem para que ela deixe o país sob pena de colocar em risco sua vida, e, além de Bruno, a personagem de Glória Menezes pode contar com a ajuda apenas de um detetive (Mauro Mendonça) que só acredita no óbvio e de um médico mal-intencionado (Fernando Torres), que logo descobrimos ser um personagem no qual não se pode confiar.

Em muitos momentos, Anselmo Duarte parece tentar salvar o filme do material que tem em mãos, porém O Descarte é um arremedo e um amontoado de situações e clichês dos melodramas mais antigos de Hollywood (como os estrelados por Bette Davis), que à época da realização do filme povoavam a grade de programação dos canais de TV brasileiros. O que, de certa maneira, nos faz considerar que Anselmo foi um de nossos cineastas que mais se interessaram em realizar uma carreira bastante influenciada pelo cinema clássico norte-americano (o que está longe de ser um demérito). O Pagador de Promessas, por exemplo, possui algo do populismo de Frank Capra, no sentido de expor um conflito ético, social e político apoiado em luta quase individual, quixotesca, do personagem principal. Quando bem-sucedido, Anselmo Duarte como diretor conseguiu alcançar belos resultados (especialmente em seus primeiros trabalhos). Mas nem sempre se pode acertar, e O Descarte está mais perto das telenovelas nacionais do que do brilho das produções da Hollywood clássica, das quais parece buscar inspiração.

É um filme que faria mais sucesso se realizado nos dias atuais, visto o padrão cada vez mais televisivo de grande parte de nossa produção cinematográfica recente.

Um Certo Capitão Rodrigo

Especial Anselmo Duarte

Um Certo Capitão Rodrigo
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1971.

Por Gabriel Carneiro

É estranho pensar que a mesma pessoa que dirigiu O Pagador de Promessas e Absolutamente Certo!, entre outros, tenha cometido esse Um Certo Capitão Rodrigo. Neste, Anselmo parece não ter domínio algum sobre o que está fazendo. Não sabe se faz um filme clássico ou um filme moderno – transige entre os dois, errante, assim como seu protagonista, enfadado pela própria linguagem. A adaptação da obra de Érico Veríssimo só parece existir por um capricho.

O filme acompanha a trajetória de Rodrigo Cambara, desde a luta contra os portugueses pela independência brasileira, até a liderança na Revolução Farroupilha. Vemos o certo capitão Rodrigo se estabelecer na pequena cidade de Santa Fé, conquistando mulheres – sendo que uma viria a ser sua esposa -, tendo um filho, se acomodando. Anselmo Duarte aproveita esse enfadonho percurso da vida em família que o capitão toma para desfilar tudo o que sabia da cultura gaúcha, dispondo trajes, mostrando danças típicas, locais, a cozinha local, além da música e do sotaque. E como se alonga nessas questões! Ao longo de 100 minutos, o protagonista pouco faz. Conquista uma ou outra mulher – elas não são difíceis, e Anselmo filma apenas a cotejo -, briga pela mão de sua esposa, toca viola, dança, come, ri alto. Os momentos em que o filme mais parece promissor, caso da batalha entre Rodrigo e Bento Amaral, Anselmo parece fazer tão a toque de caixa, que não há paixão, não há vida na disputa.

O mecanicismo permeia todo o longa-metragem. As poucas lutas são extremamente mal coreografadas, mal filmadas – Anselmo não sabe se coloca a câmera no meio da batalha, ou se observa à distância -, o capitão Rodrigo é um beberrão machista, que não provoca o mínimo interesse em sua personalidade – o cineasta realmente parece perdido frente à obra de Veríssimo. A impressão que fica é que, num filme de aventura épica, nada acontece.

A crítica não seria tão dura, possivelmente, se Anselmo não tivesse demonstrado tanta competência em filmes anteriores. Talvez tenha sido a amargura em relação ao boicote que recebeu após a Palma de Ouro. Queria a todo custo provar que era um cineasta moderno, mas incomodava-se com o liberalismo da nudez; pior, sua melhor característica enquanto cineasta descendente do classicismo era o gosto em contar uma boa história, sem firulas, de maneira limpa e clara, e parece que, em Um Certo Capitão Rodrigo, ele joga isso fora, contando uma história em que pouco ocorre, pouco importa – nem mesmo para criar um personagem interessante. Não à toa, enche o filme de cenas que parecem saídas de um vídeo institucional sobre as maravilhas do povo gaúcho.

Há uma sensação de que Anselmo não queria mais fazer aquilo, estava cansado. Fazia por uma birra, uma lógica interna, difícil dizer a razão. Filmou, fez uma produção cara, bem elaborada tecnicamente, utilizando muitos figurantes, recriando diversos uniformes. Havia um cuidado, mas não havia gosto. Anselmo parecia refém da sina que lhe pregaram. Cumpria, quase religiosamente, o mandamento de se afundar enquanto diretor. O ressentimento o corroeu – triste para ele, triste para nós.

Quelé do Pajeú

Especial Anselmo Duarte

Quelé do Pajeú
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1969.

Por Orlando Fassoni*

Um ar de produto sofisticado impede que “Quelé do Pajeú” seja, realmente, um grande filme brasileiro porque detem algumas das características principais da história de Lima Barreto (o escritor, não confundir com o diretor de “O Cangaceiro”), vista numa tela de 70 milimetros e ouvida em som estereofônico. “Quelé” não é a melhor obra do diretor Anselmo Duarte, mas é a maior, a mais espetacular, aquela que mais se assemelha aos épicos que pouco a pouco perdem o seu lugar no cinema. Essa grandiosidade, porém, não impede que Anselmo Duarte cumpra o seu objetivo e realize uma obra destacada na sua análise, no aprofundamento sobre os problemas e na visão correta de uma realidade. O filme atinge os seus fins com uma narrativa bem elaborada e pela qual consegue, apesar dos escorregões, envolver as platéias sem grandes apelos.

Influenciado em algumas seqüências pelo “western” e em outras por sua vocação em tratar temas regionais, Anselmo Duarte transforma a história de Lima Barreto num filme onde o denominador comum é a violência. É a partir do momento em que vê sua mulher ser violentada que o pacato sertanejo Clemente Celidônio, ou Quelé, começa a se transformar num ser despojado dos seus conceitos de Bem e Justiça, e sai de sua cidade, Pajeú das Flores, em busca de vingança, corroído pelo ódio, envolvido por um ambiente rude e hostil. Na sua trajetória, Quelé passa a ser um justiceiro do sertão, acompanhado por Maria do Carmo (Rossana Ghessa) e obsecado pela idéia de encontrar o desconhecido responsável pela violência contra sua mãe e sua irmã. Quando a missão acaba, ele já é um homem marcado pela necessidade de sobreviver através das armas, já é uma vitima do ódio e da brutalidade do seu meio.

À odisséia do personagem, Anselmo Duarte adiciona aventura, violência, sexo, amor e delírios, elementos dos quais se cerca para a construção de uma narrativa convincente, de clima sempre carregado, de situações dramáticas que transmitem bem os problemas de Quelé e fazem com que o espectador, assistindo as perseguições e injustiças cometidas contra o homem oprimido, perdoe os pecados do personagem e veja nele o símbolo do sujeito desesperado em busca de uma solução violenta numa paisagem onde as condições de sobrevivência não permitem a existência dos fracos. Os artificialismos existem, mas são raros. O nível cai algumas vezes, mas essas quedas instantâneas não comprometem um trabalho vigoroso, elaborado segundo uma visão que penetra nos aspectos psicológicos, sociais e religiosos de uma região onde as constantes são a violência, sexo primitivo, fanatismo e misticismo.

Distribuindo bem esses elementos, jogando entre eles uma relação sentimental que prende Quelé a Maria do Carmo, e outra sensual com Maria Rita (Isabel Cristina), o diretor chega a um filme de cangaço que se assemelha aos faroestes psicológicos, retratando a odisséia rural num tom épico-romântico despojado dos falsos clichês, e leva seu personagem principal a um final onde a solução é o grito de revolta.

Anselmo Duarte poderia, no caso, ter feito um filme sereno, sem as explosões que se sucedem. Mas optou pela grandiosidade e acabou gastando bem o seu orçamento de um bilhão de cruzeiros porque não permitiu que o espetáculo em si contaminasse a sua idéia de expor e analisar problemas do homem diante de uma situação violenta e cruel. Seu trabalho é seguro, apoiado num bom argumento, na música, na fotografia de José Rosa e no desempenho de um Tarcisio Meira que procura evitar os maneirismos de galã da televisão e adota uma interpretação correta. Rossana Ghessa, Jece Valadão e Sérgio Hingst aparecem bem em seus papéis, enquanto Isabel Cristina cumpre sua missão de fornecer à história a presença de uma mulher agressivamente sexy, uma espécie de Brigitte Bardot das caatingas.

* Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, do dia 01/05/1970.

Vereda da Salvação

Especial Anselmo Duarte

Vereda da Salvação
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1965.

Por Rodrigo Pereira

Tente entender o estado de espírito de Anselmo Duarte em 1964, enquanto rodava Vereda da Salvação – que ele sempre reputou como sua obra-prima. Entre os cineastas independentes e na imprensa em geral estava em andamento o movimento que entraria para a história sob o rótulo de Cinema Novo. E Glauber Rocha, arauto-mor da “nova onda”, não hesitara em taxar de “abortos típicos de uma cultura subdesenvolvida” os longas O Cangaceiro, de Lima Barreto (prêmio de melhor filme de aventuras no Festival de Cannes em 1953) e O Pagador de Promessas, de Anselmo, que havia conquistado a Palma de Ouro na edição de 1962 daquele mesmo festival. Tal crítica encontra-se num livro não por acaso batizado de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963).

Na panela cinemanovista, transbordando de jovens intelectuais de esquerda, não havia lugar para o ex-galã das chanchadas da Atlântida e astro de Sinhá Moça (1953) – outro grande sucesso da Vera Cruz, produtora de O Cangaceiro. O cinema novo mostrou seu poder de fogo com as estréias de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber – lançados respectivamente em maio e junho de 1964, pouco depois do golpe de 31 de março, que mergulharia o país numa ditadura militar pelos próximos 21 anos.

“O verdadeiro cinema novo brasileiro será apresentado agora, pois o que existe por aí sob essa rotulação é um cinema alienado de novos diretores, uma cópia dos europeus”, declarou Anselmo à revista Visão (4 de dezembro de 1964), numa reportagem feita enquanto rodava sua nova produção, na Fazenda Cachoeira, na Estrada de Itu, município de Jundiaí. Disse ainda que almejava “fazer um cinema novo com problemas nossos, nossa gente, como é o caso do tema de Vereda da Salvação”.

Tratava-se da versão cinematográfica da tragédia homônima, escrita por Jorge Andrade e dirigida pelo igualmente renomado Antunes Filho, no Teatro Brasileiro de Comédias, em 1964. A peça baseava-se num fato real: tomados de um fervor messiânico, moradores da comunidade rural de Catulé, em Malacacheta, Minas Gerais, sacrificaram quatro crianças e terminaram mortos pela polícia, a mando do fazendeiro para quem trabalhavam.

“Em matéria de arte, Vereda é, indiscutivelmente, a melhor película que dirigi”, diria no depoimento que originou a biografia Adeus Cinema (1993), de Oséas Singh Jr. Repetiria a idéia, com outras palavras em outros dois relatos biográficos: O Homem da Palma de Ouro (2004), de Luiz Carlos Merten – “Insisto, vou insistir sempre, que Vereda da Salvação é meu melhor filme, digam o que disserem os que forem contra ele” – e Anselmo Duarte (2005), de Cristina Magalhães – “Vereda se afinava com as propostas do cinema novo. Tecnicamente, rompeu com todos os enquadramentos e planos tradicionais. Intelectualmente, mostrou ao mundo a violência contra o camponês brasileiro e o misticismo exagerado de nosso povo. Se houvesse imparcialidade (mas não acredito nisso), seria o filme protótipo do cinema novo.”

Pela temática social e pelos nomes envolvidos, depreende-se que o cineasta estava em busca da respeitabilidade junto a critica brasileira que não havia conquistado com O Pagador de Promessas – um equívoco, visto que o sucesso de bilheteria de Absolutamente Certo! (1957) e os prêmios internacionais de O Pagador falavam por si. Jorge Andrade acompanhava a montagem de Vereda, e exigia que todas as falas que havia escrito permanecessem na película – ao que parece, o dramaturgo tinha esse direito assegurado por contrato. O resultado é excessivamente dialogado, com toda a ação concentrada num único espaço.

Em sua maioria, os atores vieram do espetáculo teatral, encabeçado por Raul Cortez e Stênio Garcia – este, alçado ao posto de assistente de direção e preparador de elenco na versão para o cinema. A discrepância entre o desempenho dos moradores da zona rural recrutados como coadjuvantes e a dos intérpretes oriundos dos palcos salta aos olhos. Enquanto os primeiros não atuam, Stênio e seus colegas de ribalta beiram a caricatura. Na pele de Joaquim, que se torna o líder religioso da comunidade, Cortez está particularmente irritante. Sua ojeriza ao pecado, a obsessão pela mãe, o homossexualismo reprimido, a crença de que é Cristo reencarnado, tudo soa artificial.

Os acertos no elenco ficam por conta de dois intérpretes que não participaram da montagem teatral: Lélia Abramo como Dolor, a mãe do personagem de Raul Cortez; e José Parisi no papel de Manuel, o líder que se opõe ao fervor messiânico de Joaquim. Célebre por interpretar o herói Falcão Negro na TV Tupi e em geral tido como canastrão, Parisi ganhou o Prêmio Cidade de São Paulo de melhor ator por seu desempenho no filme aqui tratado.

Diante de tantas “amarras teatrais”, Anselmo fez o que pode para deixar a fita mais “cinematográfica”. Os longos planos-sequências, com a câmera a girar em torno dos atores enquanto eles dialogam, sem os tradicionais planos e contraplanos, demonstram o domínio que o cineasta tinha de sua arte. Também merecem aplausos o trabalho do diretor de fotografia e cameraman argentino Ricardo Aronovich e a trilha do maestro Diogo Pacheco, com belíssimos solos de viola a cargo de A.C. Barbosa Lima. Mas tais predicados não bastam e, sob o peso do ranço teatral, Vereda da Salvação afunda feito um tijolo lançado à água.

Uma comissão do Ministério das Relações Exteriores vetou a ida do filme a Cannes, mas Anselmo conseguiu exibi-lo no Festival de Berlim. Lá, segundo o próprio cineasta, o crítico brasileiro Ely Azeredo teria feito campanha a favor de Alphaville, de Jean-Luc Godard, que acabou levando o Urso de Ouro. No Jornal do Brasil de 23 de julho de 1965, contudo, Azeredo publicou uma análise bastante lúcida e coerente sobre as razões que levaram a película a sair sem prêmios daquele certame:

“Enquanto penso no enigma, toca-me a memória o que ouvi de um europeu que conhece intimamente o Brasil e acompanha com interesse a trajetória dos filmes brasileiros pela retina dos festivais internacionais. Acha esse intelectual, estudioso imparcial das diversas categorias de impacto do espetáculo cinematográfico, que o cinema brasileiro tem impressionado os europeus pela ênfase no escândalo (no sentido mais amplo da palavra) e no exotismo (isto é, na qualidade de fuga ao que é habitual para determinada ótica). (…) No caso de Vereda da Salvação, a perplexidade chega muito antes da solução e se instala no espírito do espectador como um fator de paralisia do impulso de participação. Algo de essencial não funciona no processo de choque dirigido por Anselmo Duarte a cavaleiro no texto de Jorge Andrade. Por volta da metade da projeção, a platéia do Festival já se mostrava incrédula e algo fria ante o que lhe propunham. Ignorado o ponto de saturação da violência, o escândalo deixou de funcionar como arma de aliciamento e o dado verídico passou a ser visto como imagem superficialmente escandalosa.”

Quando do lançamento comercial de Vereda no Brasil, crítica e público lhe deram as costas. Infelizmente, ao se rever a obra hoje, quase 45 anos após a sua estréia, é difícil não concordar com a avaliação de Azeredo. Para o diretor, a receptividade negativa se devia à campanha contra ele em curso desde a Palma de Ouro atribuída a O Pagador de Promessas. Estaria o cineasta, àquela altura, com mania de perseguição? Talvez. Motivos para isso não faltavam. Seja como for, causa estranheza o fato de Azeredo omitir nesse artigo uma informação nada desprezível: a de que ele próprio havia integrado o júri daquela edição do Festival de Berlim da qual Vereda da Salvação havia saído sem prêmio algum.

O Pagador de Promessas

Especial Anselmo Duarte

O Pagador de Promessas
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1962.

Por Gabriel Carneiro

O Pagador de Promessas é um filme sobre opostos. É, talvez, isso que demonstre a grandeza do personagem Zé do Burro. O protagonista do longa-metragem de Anselmo Duarte carrega em si características que definem o filme. Não é contraditório, tem sua lógica própria, mas o oposto não está nele, e sim na forma como o vêem. O Pagador de Promessas discute a imagem; a imagem que se forma perante a sociedade.

Zé do Burro fez uma promessa a Yansan, Santa Bárbara para os católicos, em que, se seu burro vivesse, ele carregaria uma cruz do tamanho da de Cristo, de sua roça até a igreja da santa, em Salvador, nas costas. Chega à igreja e não consegue entrar lá, porque o sacerdote não deixa. Há Zé do Burro, o homem com uma fé cega, temente a Deus, que acredita na bondade do ser humano, e adora seu animal, seu grande companheiro. E há o padre, que é, quem diria, o vilão da história. O padre não quer deixar Zé entrar porque fez uma promessa a uma divindade do candomblé. Para ele, candomblé é igual a satanismo. O padre vê em Zé um discípulo do capeta, ainda mais quando se recusa a deixar a promessa feita no terreiro para buscar o perdão do único e verdadeiro Deus – é o que diz a Igreja Católica, pelo menos.

O sacerdote, curiosamente, é quem enxerga a maldade no ser humano. Zé, em sua inocência ou ignorância, acredita na existência de Deus, sua religião está lá, devoto aos santos. Pouco lhe importa se é Santa Bárbara ou se é Yansan – nomes apenas -, lhe importa a divindade que representam. Quer cumprir a promessa, porque teme as conseqüências. O padre não quer saber de dramas pessoais. Há outra questão também. O sacerdote não admite que Zé fale que pretendia carregar uma cruz do tamanho da de Cristo, pois, na sua cabeça maligna, Zé quer imitar Cristo, igualar-se a ele. É aí que vemos porque a religião está tão afastada do imaginário popular – muito presente ainda, mas não como antes -, o padre segue o dogma, não há poder de argumentação e não há erro. Ele olha para Zé do Burro e diz ‘você segue o capeta’ e é isso, tudo porque fez a promessa no terreiro. Quando começa a ter agitação social e as pessoas começam a acompanhar Zé de perto, a Igreja sente a necessidade de intervir, mas nunca volta atrás, tenta apenas remendar. Vemos como a política e a religião são próximas. Primeiro, a objeção do padre, depois a tentativa de negociação da Igreja.

Não é à toa que O Pagador de Promessas foi tão popular em sua época. Ele discute temas pautas, pré-golpe militar. É a oposição do novo com o velho, o ultrapassado. Não há mais lugar para uma igreja que não se modernize. Foi popular, fez púbico, e foi bem de crítica, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, até que merecidamente. A birra de Glauber Rocha e do Cinema Novo talvez esteja aí. Anselmo conseguiu falar de seu contexto de transformações e conquistar o público, com uma história bem contada, com um drama identificável, que não fosse panfletário. Não precisou inovar em sua estética para isso.

Há também, no filme, a questão político-social. Parte de sua promessa era dar metade de seu sítio para os lavradores pobres. Reforma agrária, mais um tema quente. Zé não sabe o que é isso e não lhe faz diferença, mas defende que cada tenha sua terra. Pronto. Agora, além de satanista, é comunista. Pelo menos é como a mídia passa a pintá-lo. Porque, claro, existe sempre a mídia abutre e sensacionalista, que quer vender a qualquer custo, em cima do drama alheio. Pessoas começam a se aglomerar.

Vemos a igreja e o governo de um lado, os que defendem os bons costumes e a integridade do país, e do outro lado, a população. Aí já não importa mais mesmo quem é Zé do Burro; tornou-se uma alegoria. Ele é o mártir que uns queriam, e o bode expiatório que outros buscavam. Ele é a síntese da própria política. A imagem é o que parece importar nesse mundo novo, cosmopolita – seja a da prostituta embelezada que não admite que seu cafetão tenha outra, seja a da esposa que trai para ver se o marido se importa com maneira como são vistos. O longa é atual até hoje por conta disso. Zé do Burro passa a ter um papel a cumprir, que designaram a ele. Ao fim, cumprirá o papel que lhe deram, mesmo contra sua vontade. Ele é a reflexão dos opostos alheios.

O Pagador de Promessas é menos um filme sobre como as pessoas são, e mais sobre como os outros querem que elas sejam.

Absolutamente Certo!

Especial Anselmo Duarte

Absolutamente Certo!
Direção: Anselmo Duarte
Brasil, 1957.

Por Sergio Andrade

Em 1957, dez anos após ter estreado como ator e se tornado o maior galã do cinema brasileiro – primeiro nas chanchadas da Atlântida e depois nos dramas da Vera Cruz -, Anselmo Duarte realizaria seu maior desejo: dirigir um filme, com roteiro e argumento próprios, baseado numa idéia original de J. Miguel e Jorge Dória.

Absolutamente Certo! (assim mesmo, com ponto de exclamação) se passa nos primórdios da televisão no Brasil, quando quem tinha uma TV cobrava dos vizinhos para assistirem programas como esse que dá título ao filme, em que as pessoas respondiam perguntas sobre determinado assunto na busca do prêmio de um milhão de cruzeiros. Anselmo é Zé do Lino, morador de um bairro periférico de São Paulo, que namora há 10 anos sua vizinha Gina (Maria Dilnah), filha de Dona Bela (Dercy Gonçalves), uma das poucas proprietárias de um aparelho de TV no local. Zé vem adiando o casamento devido ao baixo salário que recebe e por ter que cuidar do pai, que está inválido. Como o apelido diz, Zé trabalha como linotipista numa gráfica responsável pela lista telefônica da cidade, de forma que acabou decorando a lista inteira: nome do assinante, telefone e endereço. Seus amigos o incentivam a participar do programa, no qual acaba entrando com a ajuda do filho do dono da gráfica, Raul (Aurélio Teixeira), que na verdade comanda uma quadrilha especializada em apostas ilegais e pretende ganhar um bom dinheiro fazendo com que Zé erre a última pergunta.

Nessa estréia na direção, percebe-se claramente a influência de seu mestre, Watson Macedo, principalmente na inclusão dos números musicais. Alguns deles são bem encenados, mas outros envelheceram mal. Os melhores são Agora é Cinza, com o Trio Irakitan, Jura, com Dercy, e Quando eu Digo, com Odete Lara (e aquelas coxas maravilhosas!).

Embora a trama possa parecer bastante ingênua hoje em dia, ela é conduzida de forma bem envolvente, agradável, pelo diretor, que tira o melhor dos seus atores (Dercy, por exemplo, tem uma de suas melhores interpretações daquele período). No elenco, encontram-se também os nomes de José Policena (pai do Zé), Luiz Orioni (apresentador do programa), Fregolente (dono da gráfica), Edson França (amigo da gráfica), Jayme Barcellos, um bem jovem Mário Benvenutti e Valentino Guzzo (para sempre Vovó Mafalda), além das participações dos locutores Pedro Luiz e Nelson de Oliveira, do campeão de boxe Paulo de Jesus e do saxofonista Booker Pittman.

Na equipe técnica, Anselmo se cercou do que havia de melhor no país, a maioria vinda da Vera Cruz: música de Enrico Simonetti; fotografia de Chick Fowle; operação de câmera de Geraldo Gabriel; montagem de José Cañizares; direção de arte de Pierino Massenzi; produção executiva de Fernando de Barros; assistência de direção de Glauco Mirko Laurelli; engenheiros de som Bosdan Kostiw, Ernst Hack e Ernst Magassi. Como produtor o grande Oswaldo Massaini, da Cinedistri.

Mas o maior atrativo de assistir Absolutamente Certo! hoje é a nostalgia de ver como era a televisão daqueles tempos. Ver Anselmo e Odete andando de romiseta. Ver a vida na periferia, com o quebra-pau entre os vizinhos na rua. Ver, principalmente, como era a cidade nos anos 50. Numa cena, o carro onde estão Raul e Zé do Lino atravessa o “Buraco do Ademar” e passa por baixo do Viaduto Santa Ifigênia, e logo depois Zé e Gina pegam um bonde andando. Uma delícia!

Anselmo Duarte, com personalidade, mostrou que tinha talento como cineasta e estava pronto para um vôo bem maior.

Anselmo Duarte, o Ator

Especial Anselmo Duarte

Anselmo Duarte, o Ator

Por Adilson Marcelino

Quando se chama um ator de galã, muitas vezes o termo não significa apenas homem bonito, sedutor e viril, mas vem também embutido uma certa depreciação de sua arte de representação. Como se esses predicados estivessem à frente da capacidade de atuação. Se na televisão, apesar de sua aparição em novelas ser freqüente, o posto de galã maior ter sido sempre dividido entre Tarcísio Meira e Francisco Cuoco, no cinema brasileiro, Anselmo Duarte sempre foi soberano. E esses três nomes provam, vendo suas carreiras em retrospecto, que a alcunha de galã pode ser mesmo um termo furado, pois todos eles, além da beleza, da sedução e da virilidade, desenvolveram uma carreira de grandes interpretações. Mas como nosso assunto é Anselmo Duarte, deixemos os outros dois para uma outra oportunidade.

Anselmo Duarte saiu de Salto (SP), onde nasceu no dia 21 de abril de 1920, para fazer história e povoar o imaginário cultural brasileiro. Se a paixão pelo cinema veio desde as brincadeiras de criança, foi a mudança para o Rio de Janeiro, como já ansiava, que carimbou seu passaporte para a concretização do sonho. O pontapé foi ser descoberto na rua por Alípio Ramos, o homem de Severiano Ribeiro em sua produtora, que o convidou para um teste, certamente pela sua bela estampa. E a grande prova foi a aprovação do grande Alberto Pieralisi, o diretor de seu primeiro filme com ator, Querida Suzana (1947) – antes, tinha sido figurante em Inconfidência Mineira (1939/48), de Carmen Santos. Nascia aí aquele que seria chamado de o galã número um do cinema brasileiro.

De americano em Querida Suzana, Anselmo Duarte vira médico em Pinguinho de Gente (1949), de Gilda de Abreu. É um fato curioso o ator participar, em início de carreira, de filmes de mulheres pioneiras na direção. É na Atlântida que Anselmo Duarte vai se tornar uma estrela e ser amado pelo público. São dois os destaques em filmes dramáticos da companhia: a grande produção Terra Violenta (1948), uma adaptação de Jorge Amado, dirigido por Edmond Bernoudy, e Maior que o ódio (1951), de José Carlos Burle. Por esse último, em que faz um bandido, recebe o cobiçado prêmio Saci de interpretação – e é também o primeiro em que atua com Ilka Soares, com quem vem a se casar. Já nas comédias musicais, pejorativamente chamadas na época de chanchadas – hoje completamente assimiladas -, o primeiro grande sucesso foi Carnaval no Fogo (1949), do mestre Watson Macedo, e que tem história do próprio Anselmo. Outro arrasa-quarteirão foi Aviso aos Navegantes (1950), também de Macedo.

Na mesma época, em São Paulo, nasce a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, estúdio avesso às chanchadas cariocas e que produz filmes sérios e ambiciosos, além de adotar a política do star system. A Vera Cruz contrata grandes nomes do teatro, sobretudo do TBC, também dos fundadores da Cia, Francisco Matarazzo e Franco Zampari. Anselmo Duarte é tirado da Atlântida via convite de salário estratosférico. E é na companhia paulista que ele vai interpretar um de seus personagens mais populares e famosos, Zequinha de Abreu em Tico Tico no Fubá (1952), uma cinebiografia do compositor, dirigida por Adolfo Celi. Anselmo tem uma atuação comovente e é disputado pelas belas Tônia Carreiro e Marisa Prado, e ganha novamente o Prêmio Saci. Ainda na Vera Cruz faz Sinhá Moça (1953), de Tom Payne, outro grande sucesso em que faz para com a estrela número um da casa, Eliane Lage. Apassionata (1952), de Fernando de Barros, e Veneno, de Gianni Pons, são os outros filmes.

Depois da fase Vera Cruz, Anselmo Duate volta ao Rio de Janeiro, atua em Carnaval em Marte (1955) e Sinfonia Carioca (1955), ambos de Watson Macedo, O Diamante (1955), de Alípio Ramos, e Depois eu Conto (1956), de José Carlos Burle. E é novamente em São Paulo que tem outro grande desempenho no ótimo, mas pouco lembrado, Arara Vermelha(1957), de Tom Payne. Aventura que se desenvolve durante uma caçada sangrenta no universo do garimpo, Anselmo Duarte está ótimo nesse filme com excelente roteiro, direção e um elenco extraordinário: Anselmo, Odete Lara, Milton Ribeiro, Aurélio Teixeira.

Em seguida, Anselmo Duarte realiza um dos filmes mais memoráveis dos anos 50, Absolutamente Certo! (1957), em que dirige e faz o protagonista. Com elenco arrebatador, Odete Lara, Dercy Gonçalves, Aurélio Teixeira e Maria Dilnah, Absolutamente Certo! é delicioso e já sinaliza sua premiada carreira como cineasta. O sucesso do filme proporciona ao ator uma temporada na Europa, atuando em As Pupilas do Senhor Reitor (1959), de Perdigão Queiroga, em Portugal, e em Um Raio de Luz (1960), de Luís Lucia, na Espanha.

1962 é um ano emblemático para Anselmo Duarte, para o cinema nacional e para o Brasil. Com seu segundo filme como diretor, Anselmo conquista a Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes, com O Pagador de Promessas. É um momento histórico e único, e o filme desbanca pesos-pesados como Federico Fellini, Vittorio de Sica, Lucchino Visconti, Michelangelo Antonioni e Luís Buñuel. Adaptado de peça de Dias Gomes, O Pagador de Promessas é ótimo e um clássico absoluto. Único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro até hoje – a produção nasce na Boca do Lixo com produção de Oswaldo Massaini, o sucesso do filme marca os desentendimentos do cineasta com o Cinema Novo.

A carreira na direção de Anselmo Duarte vai prosseguir com o ótimo Vereda da Salvação (1965) e outros longas e episódios, mas como o foco aqui é a sua participação no cinema brasileiro como ator, voltemos para frente das câmeras. A década de 60 vai possibilitar a Anselmo um filme memorável e uma das suas mais incensadas interpretações: O Caso dos Irmãos Naves (1967), de Luis Sérgio Person. O mestre Person escolheu um fato verdadeiro, um erro jurídico que envolveu dois inocentes em uma cidade do interior de Minas Gerais durante o Estado Novo, para falar, metaforicamente, sobre a repressão militar que o país enfrentava. O ator faz um policial sádico que inferniza a vida dos Naves, interpretados por Juca de Oliveira e Raul Cortez. É um filmaço! Ainda nos anos 60, Anselmo Duarte atua no sucesso Madona de Cedro (1968), de Carlos Coimbra, e Juventude e Ternura (1968), de Aurélio Teixeira, um filme protagonizado pela cantora Wanderléa.

Na década de 70, atua em outro filme memorável, O Marginal (1974), de Carlos Manga, arrebatador policial protagonizado por Tarcísio Meira. Atua sob a direção de Lenita Perroy em A Noiva da Noite – ou o Desejo de Sete Homens (1974), em A Casa das Tentações (1975), de Rubem Biáfora, e em Embalos Alucinantes (1979), de José Miziara. Mas o outro grande destaque da época é o ótimo Paranóia (1976), de Antonio Calmon, um dos mais talentosos cineastas brasileiros e que ainda não teve o reconhecimento devido. Nesse filme, Anselmo é um pai de família que tem a casa invadida por marginais. O ator está também no documentário Assim Era a Atlântida (1974), de Carlos Manga, que reúne as maiores estrelas do estúdio carioca, e como ator nos episódios que dirigiu em Já Não se faz Amor como Antigamente (1976) – episódio Oh! Dúvida Cruel -, e Ninguém Segura Essas Mulheres (1976) – episódio Marido que Volta Deve Avisar.

As últimas atuações no cinema são na década de 80: em Tensão no Rio (1984), de Gustavo Dahl; e no belo Brasa Adormecida (1986), de Djalma Limongi Batista, em que contracena com a ex-esposa, Ilka Soares.