Depoimento: Antonio Meliande

Dossiê Alfredo Sternheim

 

Eu me lembro muito bem quando nós fizemos o Paixão na Praia aqui no Rio de Janeiro. Depois acabamos fazendo outros trabalhos juntos, embora a minha parceria com o Khouri tenha ficado maior. Sempre me dei muito bem com o Alfredinho e ele sempre foi um ótimo diretor. Me lembro que ele sempre foi um profissional muito calmo no set. Éramos da chamada Boca do Lixo, então, muitos filmes nossos não foram bem aceitos pela crítica e pelo pessoal da Vila Madalena. Apesar disso, fizemos muitas coisas boas.

Antônio Meliande, cineasta e diretor de fotografia. Trabalhou com Alfredo Sternheim como diretor de fotografia de Paixão na Praia (1973), Lucíola, o Anjo Pecador (1975), Mulher Desejada (1978) e A Herança dos Devassos (1979).

A Herança dos Devassos

Dossiê Alfredo Sternheim

A Herança dos Devassos
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1979.

Por Adilson Marcelino

A Herança do Devassos (1979) foi uma produção conturbada na carreira de Alfredo Sternheim. Co-produção Brasil/Argentina, o filme foi dirigido por César Cabral e Sternheim, sendo que os dois se desentenderam durante as filmagens. Em depoimento para esta edição comemorativa da Zingu!, Elisabeth Hartmann, uma dos protagonistas do filme, disse que nem sabia como Cabral podia ser o diretor, já que ele não entendia nada.

O próprio Alfredo elucida um pouco sobre os bastidores da produção em depoimento ao Dicionário de Filmes Brasileiros – Longa Metragem, de Antonio Leão da Silva Neto: “O filme foi escrito e produzido em sua maior parte financeira por César Soares Cabral, peronista ferrenho,que atuou como supervisor. Daí não ter boas lembranças da filmagem.Só no meio da filmagem eu soube: ele havia sido secretário de cultura de Isabelita Peron; a confissão se deu quando ele se ofendeu comigo por ter cantarolado Don´t Cry For me Argentina. Tivemos divergências e não gosto de lembrar as filmagens”.

Confusões à parte, A Herança dos Devassos é filme belíssimo, com todo um clima doentio de perversão, incesto e sombras que circundam uma família disfuncional. Mais de uma vez Alfredo Sternheim já disse que Walter Hugo Khouri, com quem trabalhou em A Ilha (1961/63) e Noite Vazia (1964), foi sua verdadeira escola. Mas sempre faz questão de dizer também, como na entrevista exclusiva para esta edição da Zingu!, que seu cinema é bem diferente do mestre. Com certeza porque é mesmo, e também por causa de uma certa parte de uma crítica implicante, que o denominava um sub-Khouri no início da carreira.

Só que nesse caso aqui é impossível não se lembrar do mestre, seja por causa da presença de Sandra Bréa e Roberto Maya, dupla dos inesquecíveis O Prisioneiro do Sexo (1979) e Convite ao Prazer (1980), seja pela forma como filma suas atrizes, Bréa e Elisabeth Hartmann, em imagens belíssimas – a direção de fotografia e a camera é do craque Antonio Meliande.

A Herança dos Devassos tem como tema central a degradação de uma família aristocrática. Quando a matriarca morre, o casal de filhos, uma tia, e o mordomo recebem a visita da viúva de um primo, que vem para o velório e para a abertura do testamento. Inadvertidamente, essa prima Délia, interpretada por Sandra Bréa, envolve-se amorosamente com Rogério, vivido por Roberto Maya, um dos filhos da falecida. Esse fato despertará a ira de Laura, interpretada por Elisabeth Hartmann, que mantém uma relação quase incestuosa com o irmão. Délia acaba por descobrir os segredos e os fantasmas que rondam aquela família e aquela casa, e quando resolve ir embora se vê presa em uma teia que poder lhe custar a própria vida.

O elenco, que conta ainda com Francisco Cúrcio, Claudette Joubert, Ricardo Dias, Mara Prado e Edward Freund, está sensacional. Mas é realmente no trio protagonista em perfeita sintonia, que esse A Herança dos Devassos encontra seu ponto alto.

Belo filme.

Amor de Perversão

Dossiê Alfredo Sternheim

Amor de Perversão
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1982

Por Matheus Trunk

Guardado a sete chaves, o longa-metragem Amor de Perversão é um dos grandes clássicos do cinema da Boca. É curioso que sempre quando se fala na obra de Alfredo Sternheim este é um de seus trabalhos menos lembrados. Muitos cinéfilos preferem o classicismo de Lucíola ou mesmo filmes de praia como Pureza Proibida. Mas poucos conhecem este belo drama urbano.

Apesar de ter dirigido 26 longas-metragens, quase toda a obra de Alfredinho possui um tema comum: as paixões avassaladoras. Este tipo de temática está presente em seus filmes desde Paixão na Praia (1972). Amor de Perversão apresenta o mesmo tema ao contar a trajetória do personagem Ronaldo (Paulo Guarnieri).

Filho de uma família rica, o jovem rompe um casamento com a fútil Tereza (Tássia Camargo). Sem muitos amigos, ele não consegue se adaptar às tradições e formalidades de seus pais. Todos os conflitos aumentam quando ele conhece Lívia (Alvamar Taddei).

Espécie de vedete dos anos 1980, Alvamar conseguiu certo destaque no cinema da Rua do Triunfo. Suas participações em filmes como O Fotógrafo, de Jean Garrett, e Bordel- Noites Proibidas, de Osvaldo de Oliveira, foram marcantes. Ela chegou a trabalhar duas vezes com Walter Hugo Khouri e uma vez com Carlos Reichenbach – Amor, Palavra Prostituta. Mas é na película de Sternheim, que ela chega ao estrelato. A moça enlouquece Ronaldo. Como ela tem uma origem mais modesta, a família do jovem não aceita o relacionamento entre os dois. Olhando assim, parece argumento de radionovela ou de folhetim barato. Mas esse roteiro nas mãos de um diretor eficiente como Alfredo torna-se um belo drama.

Filme com produção acima da média, Amor de Perversão contou com um elenco estelar. Além dos dois protagonistas, atores e atrizes de destaque como Raul Cortez, Leonardo Villar, Norma Blum e Carmen Silva também estão presentes na película. A área técnica também não foi abandonada. O filme conta com direção de fotografia assinada por Carlos Reichenbach. A equipe técnica utiliza a grua, tipo de equipamento que era usado em poucos filmes nos anos 80. Muitos podem dizer que este não é um dos trabalhos mais pessoais de Sternheim. Pode até ser verdade. Mas é talvez o único filme do realizador que contou com uma grande produção.

Me lembro que quando adquiri uma cópia deste filme foi uma grande surpresa. Muita gente julgava este filme como perdido. Vendo, é possível compreender o motivo de Alfredinho ser considerado um dos grandes diretores da Boca.

Anjo Loiro

Dossiê Alfredo Sternheim

Anjo Loiro
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1973

Anjo Loiro (1973): a narrativa cristalina de um cineasta de outros tempos

Por Marcelo Miranda

Em 1973, quando Anjo Loiro estreou, o cinema brasileiro vivia uma transição. Estava-se no ápice do Cinema Marginal (ou Cinema de Invenção, na concepção de Jairo Ferreira) rumo à produção contínua da Boca do Lixo. Naquele ano, Alfredo Sternheim estava fora de ambos os “movimentos”. O paulista preferia fazer um cinema de notável fluência narrativa, sem experimentações e quebras de linguagens nem grande exploração de corpos femininos ou masculinos (ainda que haja nudez no filme). Era um cineasta “outsider”, como foi praticamente em toda a carreira, ainda que tenha tido grandes sucessos.

O próprio Anjo Loiro fez boas bilheterias nas cinco primeiras semanas em cartaz. Só não teve mais público porque a censura do regime militar interditou o filme, causando prejuízos financeiros e artísticos até hoje rememorados com forte rancor por Sternheim.

Por se situar fora do que mais mobilizava a produção brasileira do período, soa bastante curioso o autêntico choque cultural apresentado em Anjo Loiro. Logo nas primeiras cenas, vemos o professor Armando (Mário Benvenutti) em sua típica rotina: controlado, organizado, arejado. Em paralelo, há Laura (Vera Fischer), protótipo de menina má e sexualmente sádica, que brinca com as ilusões do namorado (Ewerton de Castro) e se insinua descaradamente a outros homens na frente dele. A certa altura do filme, quando Armando, já obcecado por Laura, flagrá-la nua (junto a outros atores) num ensaio teatral de Antígona, ele entrará em estado de torpor. “É mais corpo que outra coisa”, justificará a moça.

É um embate interno do filme com o lado de fora de sua existência. Enquanto o cinema brasileiro caminhava para ser como Laura, Sternheim estava muito mais interessado em ser Armando, o “quadradão”, esta palavra tão usada pela garota para qualificar o amante quarentão. Um filme como Anjo Loiro em 1973 no Brasil parece hoje tão anacrônico na medida em que também serve de prova física de que o cinema brasileiro sempre primou pela pluraridade (e não apenas na Retomada, como alguns exagerados ainda insistem em afirmar).

A estrutura de Alfredo Sternheim para o filme é clara e concisa: trata-se de uma obra sobre um homem doente de tesão – “espero que você sare logo”, dispara a professora interpretada por Célia Helena. A base é o livro de Heinrich Mann Professor Unrath. Publicado em 1905, foi levado aos cinemas na Alemanha em 1930 por Joseph von Sternberg, num trabalho arrasador intitulado Anjo Azul, com Marlene Dietrich e Emil Jannings nos papéis principais. A versão tupiniquim se difere especialmente no tom. Se Sternberg adota elementos sombrios para narrar o ocaso do protagonista – incluindo um desfecho bastante pessimista –, Sternheim faz algo semelhante a uma comédia de costumes, sem deixar de lado o sentido trágico da história original.

Armando tem todas as características de uma figura perturbada. Discretamente (inclusive do público), ele manipula a situação para afastar Laura de um aluno e, depois, cortejá-la; ele recebe a moça em sua casa já como moradora; ele vende ações no banco a preços irrisórios no intuito de financiar a peça de teatro da amante sem sequer saber do que se trata, de fato; e assim por diante, Armando vai se envolvendo em diversas situações típicas da figura obcecada. Quando Laura se cansar dele, ou ele não servir mais a ela, o professor sofrerá a derrocada.

A escolha de Vera Fischer para o papel soa acertada desde a primeira aparição dela em cena (ou desde o cartaz, poderíamos dizer). Aos 22 anos, ainda no terceiro longa-metragem (antes fizera A Superfêmea e Sinal Vermelho – As Fêmeas) e tendo sido ovacionada no país como Miss Brasil, Vera estava no auge de uma fase que lhe coroaria a carreira. Até então, Laura era a personagem mais desafiadora à trajetória incipiente como a dela. O breve sucesso do filme e a presença marcante da atriz em cena – a ponto de ser possível confundir verdade e ficção, como se Laura fosse Vera, e vice-versa – certamente lhe catapultaram a outros papéis e, posteriormente, à televisão.

Ela encontrou o contraponto perfeito na encarnação de Mário Benvenutti como o professor, que se entrega total a um personagem difícil. A transformação física de Armando durante o filme – especialmente em relação às roupas que ele veste – é um dos principais elementos deflagradores de sua presença cênica.

Em Anjo Loiro, Alfredo Sternheim soube conjugar os elementos cinematográficos de forma harmônica e orgânica, entendendo que, para determinadas intenções, basta seguir à risca o que se sabe fazer melhor. No caso dele, apresentar cristalinamente o mergulho ensandecido de um professor nas tentações de uma aluna, ao mesmo tempo em que faz um comentário discretamente político sobre o cinema brasileiro da época. Não é pouco. E não é para muitos.

Marcelo Miranda é repórter em Belo Horizonte e crítico de cinema da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br).

Borboletas e Garanhões

Dossie Alfredo Sternheim

Borboletas e Garanhões
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1985

Por Valter Luiz Júnior

Um dos grandes filmes da fase explícita da Boca, a comédia Borboletas e Garanhões tem como seu grande trunfo o fato de fazer rir e prender o espectador da época, que, normalmente, estaria apenas interessado nas cenas de sexo.

Com uma trama inteligente e até sofisticada para os padrões do pornô, o filme conta a história de Lauro (Wagner Maciel), que vive um relacionamento conflituoso com Leonora (Débora Muniz), que praticamente o domina. Às vésperas do casamento, os amigos dele resolvem aprontar aquela despedida do solteiro e, no meio disso, ele acaba conhecendo a bela Yoko (Sandra Midori), por quem se apaixona. A situação se complica quando Leonora desconfia de Lauro e resolve investigar o que acontece no sítio onde rola a despedida, gerando uma série de confusões.

Dono de um bom gosto flagrante, o diretor Alfredo Sternheim opta por fazer do humor uma ponte entre o erotismo e o deboche, gerando piadas genuinamente engraçadas e nada forçadas, além de entregar boas atuações do elenco. No entanto, para quem espera um pornô mais tradicional, o resultado pode soar um pouco estranho, principalmente por causa de algumas cenas de orgia e de sexo com travestis, que eram relativamente comuns nos filmes da Boca. Mas também há belas mulheres, como as citadas Débora Muniz e Sandra Midori, no auge da beleza, e corpos naturalmente sedutores, muito longe da era do silicone e das próteses variadas.

Para completar, temos a ótima atuação de Sérgio Buck, sem dúvida o mais engraçado do filme, responsável pelas melhores gags da história, além de uma novinha Mara Manzan, que faz uma ponta no início do filme. O final é até previsível, mas nada que comprometa.

Nessa época, os pornôs da Boca começavam a ficar cada vez mais tolos e sem história, muitos partindo somente para o (mal) sexo filmado e de maneira grosseira. Sob esse aspecto, o filme de Alfredo fica anos-luz na frente, principalmente por ser um dos poucos diretores que entendeu que o bom erotismo não precisa ser forçado. Sem dúvida, um grande filme!

Valter Luiz Júnior é cineasta e dirigiu Borboletas e Devassas, documentário sobre o cinema da Boca do Lixo.

Brisas do Amor

Dossiê Alfredo Sternheim

Brisas do Amor (Insaciável Desejo da Carne)
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1982
Por Matheus Trunk

Dentro de sua obra, o cineasta Alfredo Sternheim sempre teve um grande interesse pelo universo feminino e pelas atrizes. O espectador atencioso consegue perceber isso em quase todas as películas do diretor. Um filme diferente neste aspecto é Anjo Loiro, em que o protagonista é o professor Armando (Mário Benvenutti).

O diretor de fotografia Luiz Antônio de Oliveira, o Luizinho, trabalhou em três longas-metragens com Sternheim. Ele ressalta a atenção que o realizador sempre deu as atrizes: “O Alfredinho parecia o Khouri quando dirigia as atrizes. Mas ele não tinha essas coisas de chegar, alisar, fazer carinho e dar beijinho. Só isso que não tinha, porque o Walter tinha, ia lá, beijava a mulher, penteava o cabelo. O Alfredinho se impunha mais como diretor”.

Em Brisas do Amor (que foi lançado comercialmente como Insaciável Desejo da Carne), Sternheim iniciou uma parceria com a musa Sandra Graffi. Loira e de corpo escultural, a moça tornou-se uma das grandes sensações da Boca do Lixo em seu auge (1976-82). Ela é a protagonista deste filme quase todo rodado em um hotel no balneário de Mongaguá, no litoral sul de São Paulo. Graffi faz uma atriz de filmes eróticos que é perseguida por um fã obsessivo. Além dela, se hospedam no hotel outros personagens, como uma jovem que fica grávida precocemente (Eliana do Vale), um político fracassado (Luiz Carlos Braga), e sua ex-esposa que foi abandonada por adultério (Maria Stella Splendore).

Nesta película, Alfredinho tentou mesclar uma série de gêneros cinematográficos, como suspense, humor, romance e erotismo. O espectador habituado com os filmes da Rua do Triunfo irá gostar de Brisas. Realmente, esse não é um dos grandes trabalhos de Alfredinho, mesmo assim é uma película muito divertida e ousada para a época.

Dentro do elenco, se destacam a presença de Maria Stella Sploendore e Sônia Mamede. Ex-esposa do estilista Denner, a atriz Splendore foi um dos maiores símbolos sexuais no final dos anos 1960. Infelizmente, ela fez poucos filmes. Já Mamede era uma atriz veterana, que tinha atuado em uma série de chanchadas da produtora Atlântida. Este foi seu último longa-metragem.

Luizinho Oliveira foi o diretor de fotografia deste longa-metragem. Ele destaca a parceria existente entre Sternheim e a atriz Sandra Graffi: “Eles tiveram esse entrosamento e isso foi importante pro sucesso do filme. Ela era muito bonita e era uma menina em que você podia trabalhar. Em termos de direção, ela obedecia tudo que era exigido. Era uma menina que estava sempre esperta dentro do set de filmagem”.

Comando Explicito

Dossiê Alfredo Sternheim

Comando Explícito
Brasil, 1986
Direção: Alfredo Sternheim
Por Matheus Trunk

Os filmes de sexo explícito realizados pela produtora Galápagos, durante os anos 198,0 merecem uma atenção especial do espectador. As películas dirigidas pelos cineastas Alfredo Sternheim e Juan Bajon conseguiam superar as expectativas e se destacavam pela qualidade. Todos possuíam atrizes bonitas, música clássica como trilha sonora e roteiros acima da média. Alguns falavam de temas polêmicos para a época, como drogas, homossexualidade e transexualidade.

Natural de Xangai, China, o cineasta Juan Bajon (1948-) sempre foi um rato de cinemas e dos sebos. Admirador do cinema clássico norte-americano e de realizadores autorais, como Fassbinder, o jovem chinês ficou fascinado por um documentário sobre o arquipélago de Galápagos. Os mistérios das 58 ilhas pertencentes ao Equador deixou o rapaz intrigado. Por isso, anos depois, sua produtora de filmes explícitos ganhou o nome do arquipélago.

Poucos sabem, mas o cineasta Alfredo Sternheim realizou duas fitas XXX fora da produtora: Orgia Familiar e Comando Explícito. O diretor se utilizou de uma fórmula que era muito usada em produções B da Europa: realizar os dois filmes quase que ao mesmo tempo. O elenco e os técnicos foram basicamente os mesmos.

Embora os dois filmes se pareçam em muitos aspectos, Comando possui algumas qualidades superiores. Como descreveu o pesquisador Yuri Kochen, nesses dois trabalhos Sternheim entra profundamente na psicologia dos personagens. A trama é bem simples: um grupo de assaltantes invade um apartamento localizado no bairro paulistano de Higienópolis e obriga todos fazerem sexo. Rubens Pignatari faz o pai bobo e Beth Boop a mãe sentimental. Antônio Rodi e Wagner Maciel também fazem alguns dos papéis principais.

Pode parecer que é mais um pornô qualquer, mas não é bem isso. O filme teve diversos problemas sérios fora do set de filmagem. Segundo o próprio diretor, isso aconteceu porque o produtor do filme nunca tinha tido nenhuma relação com a área cinematográfica. Acreditem se quiser: o homem era dono de um açougue.

Assistindo a Comando Explícito, percebemos que estamos diante de um realizador acima da média. Um diretor que sabia ser autoral até mesmo ao assinar um filme de sexo explícito.

Corpo Devasso

Dossiê Alfredo Sternheim

Corpo Devasso
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1980

Por Vlademir Lazo

O começo de Corpo Devasso traz David Cardoso num ônibus do interior para a cidade grande, onde cairá na prostituição, o que nos faz pensar em uma versão cabocla do clássico Perdidos na Noite. Surpreendido na cama com a filha ninfomaníaca do patrão (Evelise Olivier), abandona a roça e foge para São Paulo, vai morar em pensão, e à procura de emprego, é rejeitado em lojas, escritórios e construções.

O filme é o seu próprio título, o corpo devasso do seu astro David Cardoso, cujo personagem passa da pureza a devassidão. Até 1980 poucos filmes nacionais exibiram tamanho desfile erótico em igual quantidade (podemos pensar em Giselle, na mesma época), certamente proporcionado pelo abrandamento da censura em plena abertura política no regime militar da época. Sexo grupal, sadomasoquismo, felações, uma cena praticamente explícita de David seviciando uma bezerra na fazenda no prólogo e muita homossexualidade (é um dos filmes com mais cenas gays no cinema brasileiro). “Ele foi corajoso como produtor e ator. Em plena ditadura militar, autorizou e topou fazer cenas gays, algo inédito. E conseguiu liberar o filme sem cortes”, declarou Sternheim sobre David ao Dicionário de Filmes Brasileiros – Longas-Metragens, de Antonio Leão da Silva Neto.

Vivendo do conforto propiciado pelo contato com amantes homens e mulheres, o personagem bissexual (mais por força das circunstâncias) de David Cardoso vai perdendo-os todos a troco de nada, tão facilmente quanto os encontrara: a fotógrafa pervertida (Neide Ribeiro), uma jornalista subversiva (Patrícia Scalvi), o professor e tradutor gay (Arlindo Barreto, que ficaria conhecido como o palhaço Bozo), um outro homossexual que o persegue (Luiz Carlos Braga), uma advogada fazendeira (Meiry Vieira) e sua filha (Nádia Destro) etc… O personagem vai passando de mão em mão, aos pés de quem tem capital para ampará-lo, não por luxúria, mas por necessidade, e nesse processo todo imiscui-se aos prazeres e vícios da metrópole (ou megalópole, como o apresentam a cidade grande), esbaldando-se e se enojando com a própria sexualidade, que controla opressivamente a sua rotina.

Produzido pela DaCar, a empresa de David Cardoso, o filme é um veículo para o ator-produtor, com Alfredo Sternheim assinando também o argumento e a co-autoria do roteiro (com Ody Fraga), além da direção, trabalhando com grande liberdade. O forte de Corpo Devasso é a sua ousadia, entretanto, passados trinta anos de sua realização, depois de já termos visto de tudo em se tratando dos seus assuntos, já não há no filme muito o que impressionar mesmo aos mais impressionáveis. Ainda que a homossexualidade não seja tratada como caricatura nem com pudor algum (as cenas são quase explicitas), não deixa de ser uma visão predominantemente masculina sobre o tema. Um dos gays assumidos termina por se suicidar, outro é um mau-caráter que sai de cena ao levar um soco do protagonista, e o próprio personagem de David só se relaciona com homens por puras necessidades financeiras, como deixa claro a um dos seus amantes, a quem abandona logo que tem a oportunidade de conviver com uma das mulheres que o acolhem. Deve-se considerar que Corpo Devasso não se restringe a essa questão da sexualidade dos personagens, mas no todo é filme que vale mais para a época em que foi produzido do que para a sua posteridade.

Corpos Quentes

Dossiê Alfredo Sternheim

Corpos Quentes
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1987.

Por Adilson Marcelino

Em sua biografia da Coleção Aplauso, Um Insólito Destino, Alfredo Sternheim elenca Corpos Quentes (1987) como uma das três realizações da fase explícita prediletas – as outras duass são Borboletas e Garanhões (1985) e Sexo Doido (1986). E registra: “A terceira é Corpos Quentes, em que enveredei pelo sobrenatural. A neurótica e rica protagonista matava os homens com quem transava e os enterrava na sua propriedade. Mas aparece o irmão gêmeo de um dos assassinados. Justamente um padre. Em uma sequência de pesadelo fiz uma das vítimas sair da cova ansiosa por sexo. Não foi fácil filmar o sujeito surgir de debaixo da terra sobre seu corpo. Mas, com a dedicação do elenco, da equipe e de meu iluminador Reinaldo Paes de Barros, depois de muitas horas obtivemos um ótimo resultado”.

Não há como discordar de Sternheim, Corpos Quentes é mesmo um baita filme. A trama começa com um assédio de um garotão por uma mulher em um bar que poderia ser como outros tantos que acontecem nas noitadas. Só que depois da transa, enquanto ela dorme, ele tenta surrupiar sua grana. Ela acorda, nega a pagar o michê, mas é agredida e obrigada por ele a abrir o cofre da casa e entregar-lhe seu dinheiro e jóias. Mal sabia ele com quem estava mexendo. Ela pega o revólver, atira uma balaço nele e o enterra no bosque que margeia sua casa.

Essa poderia ser também mais uma daquelas histórias de sexo com final trágico, mas daí ficamos sabendo que a moça já tinha um possível assassinato nas costas, pois fora suspeita de assassinar o próprio marido. E quando o namorado de sua empregada e a própria descobrem o corpo enterrado, e o ambicioso rapaz resolve chantageá-la, eles acabam também por encontrar o mesmo destino das covas no quintal – ainda que mortos acidentalmente.

Com tantos sumiços, entram em cena o amigo e a namorada da primeira vítima, e também o irmãos gêmeo da segunda, um padre, que farão de tudo para descobrir o que aconteceu naquela casa.

Corpos Quentes tem ótimo roteiro, com personagens muito bem construídos. O filme conta ainda com interpretação arrebatadora de Ludimila Batalov. Atriz de recursos dramáticos e sem pudor em protagonizar as cenas de sexo explícito, Batalov é o ponto altíssimo desse penúltimo filme de Alfredo Sternheim.

Durante toda a trama sua personagem é assaltada por pesadelos, todas claro repletas de sexo – é engraçadíssimo ver fantasmas de pau duro e fudendo a valer – , o que exige da atriz ser convincente não só na cama mas também na interpretação. E Ludmila Batalov dá conta do recado, mesmo quando o roteiro reserva diálogos chulos com pretensões divertidas: “mal sabe a família do seu marido que sua periquita está acesa”, tasca sua primeira vítima.

Corpos Quentes é prova de que filme de sexo explícito não precisa ser sinônimo de bagaceira, e aqui Alfredo Sternheim realizou um ótimo exemplar do gênero.

Fêmeas que Topam Tudo

Dossie Alfredo Sternheim

Fêmeas que Topam Tudo
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1987

Por Leo Pyrata

Fêmeas que Topam Tudo é um dos filmes da fase explicita do cinema de Alfredo Sternheim que não está entre os prediletos do próprio diretor. Quando eu vi o filme, já ciente dessa informação, a interpretei como um mal presságio. Levando-se em conta que Sterheim é um dos diretores que encarou o momento de forma corajosa, tentando contar histórias livre de preconceito, pois para aqueles que tentaram continuar fazendo cinema o rolo compressor do hardcore (ditado pelos exibidores como nova regra do mercado) era inevitável.

Outras coisas devem ser levadas em consideração. Em 1987, a situação do “explicito” havia piorado bastante. Com a inflação em alta, o fracasso dos planos Cruzado e Bresser, além do não comprimento das leis de reserva de mercado somado com a má fé dos exibidores. era cada vez mais difícil produzir filmes na Boca. Embora naquele ano, Sternheim ainda realizasse o inventivo Corpos Quentes, já pairava no ar o prenúncio do canto do cisne do derradeiro ciclo explícito da Boca. Não sei se seria exagero dizer que existe um pouco de melancolia no Fêmeas que Topam Tudo, embora em nenhum lugar do filme existam evidentemente situações dramáticas que endossem essa impressão. Talvez esteja no quadro de Marlene Dietrich ecoando um anjo loiro. Não sei, mas sinto muito isso.

Ana (interpretada pela belíssima Sandra Midori) e Dora (Marielle Giorgi) organizam uma “festa” no sítio da família da última. Ana passa por uma fase difícil após o término com seu namorado infiel Dino, um ator que sempre retorna dos “ensaios ” às quatro da manhã e tenta espairecer a cabeça na ocasião. Dora é uma moça insaciável que gosta de festas animadas. Os convidados chegam e começa o bacanal, mas sem a participação de Ana, que não é tão entusiasta do sexo coletivo como a amiga e prefere curtir sua fossa na roça sossegada. Então, eis que surge Mauro, um ex-padre que é primo de Dora e que aparece no sítio para repensar a própria vida religiosa num momento de crise vocacional. Existem outros personagens secundários como o musico de boné enfiado na cara e o casal acompanhante que não chegam a ter muito espaço na fita, além das cenas de sexo.

A trama sobre o padre que abandona a batina e surge de sopetão no sítio da prima, e, em seguida, passa a desejar a amiga nissei recatada flagrada nua no chuveiro, vai se esvaziando ao longo do filme num artesanato aquém do talento e da sensibilidade de Sternheim. Destacam-se o uso de elementos inusitados no sexo, como o óleo automotivo na primeira cena de sexo do filme, em que o mecânico Jorge faz uma revisão meia-bomba em Dora; ou ainda quando um pote de maionese é utilizado com a mesma finalidade.

O uso da trilha sonora e a montagem nas cenas de sexo também merecem atenção, como, por exemplo, na seqüência em que o padre Mauro sonha com Ana e com Dora. Algumas falas têm grosseria e obviedade na medida certa: “Você sabe que sempre tive vontade de comer galinha japonesa?”; ou “canta no meu microfone”. Lembram aquela idéia de “filme de sacanagem sobre sacanagem”. Existem momentos onde o desleixo na representação de brigas e conflitos chega a parecer charmoso. Para não dizer um registro involuntariamente engraçado das limitações do elenco levando em conta que nem todos estavam em cena por conta de seus talentos dramáticos.

A impressão final que o filme me deixou, principalmente por seu desfecho, é de um clima de desencanto. Ver o ex-padre falando que rezaria pela prima, asfixia e elimina as potências e possibilidades que o triangulo amoroso de Dora, Mauro e Ana tinha. E uma solução ligeira assim acaba por me intrigar mais que a própria intriga do filme. Sei e sinto que. às vezes, os nossos olhos refletem, vezes mais, outras vezes menos, coisas que as câmeras registram num set de cinema, independente de que as coisas estejam ou não (com o perdão do trocadilho) explícitas.

Leo Pyrata é estudante de cinema, ator do curta Contagem – Prêmio de Melhor Direção para Gabriel Martins e Maurílio Martins no Festival de Brasília -, diretor do curta Retrato em Vão, co-diretor do longa Estado de Sítio, e vocalista da banda Grupo Porco de Grindcore Interpretativo.