Anjo Loiro

Dossiê Alfredo Sternheim

Anjo Loiro
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1973

Anjo Loiro (1973): a narrativa cristalina de um cineasta de outros tempos

Por Marcelo Miranda

Em 1973, quando Anjo Loiro estreou, o cinema brasileiro vivia uma transição. Estava-se no ápice do Cinema Marginal (ou Cinema de Invenção, na concepção de Jairo Ferreira) rumo à produção contínua da Boca do Lixo. Naquele ano, Alfredo Sternheim estava fora de ambos os “movimentos”. O paulista preferia fazer um cinema de notável fluência narrativa, sem experimentações e quebras de linguagens nem grande exploração de corpos femininos ou masculinos (ainda que haja nudez no filme). Era um cineasta “outsider”, como foi praticamente em toda a carreira, ainda que tenha tido grandes sucessos.

O próprio Anjo Loiro fez boas bilheterias nas cinco primeiras semanas em cartaz. Só não teve mais público porque a censura do regime militar interditou o filme, causando prejuízos financeiros e artísticos até hoje rememorados com forte rancor por Sternheim.

Por se situar fora do que mais mobilizava a produção brasileira do período, soa bastante curioso o autêntico choque cultural apresentado em Anjo Loiro. Logo nas primeiras cenas, vemos o professor Armando (Mário Benvenutti) em sua típica rotina: controlado, organizado, arejado. Em paralelo, há Laura (Vera Fischer), protótipo de menina má e sexualmente sádica, que brinca com as ilusões do namorado (Ewerton de Castro) e se insinua descaradamente a outros homens na frente dele. A certa altura do filme, quando Armando, já obcecado por Laura, flagrá-la nua (junto a outros atores) num ensaio teatral de Antígona, ele entrará em estado de torpor. “É mais corpo que outra coisa”, justificará a moça.

É um embate interno do filme com o lado de fora de sua existência. Enquanto o cinema brasileiro caminhava para ser como Laura, Sternheim estava muito mais interessado em ser Armando, o “quadradão”, esta palavra tão usada pela garota para qualificar o amante quarentão. Um filme como Anjo Loiro em 1973 no Brasil parece hoje tão anacrônico na medida em que também serve de prova física de que o cinema brasileiro sempre primou pela pluraridade (e não apenas na Retomada, como alguns exagerados ainda insistem em afirmar).

A estrutura de Alfredo Sternheim para o filme é clara e concisa: trata-se de uma obra sobre um homem doente de tesão – “espero que você sare logo”, dispara a professora interpretada por Célia Helena. A base é o livro de Heinrich Mann Professor Unrath. Publicado em 1905, foi levado aos cinemas na Alemanha em 1930 por Joseph von Sternberg, num trabalho arrasador intitulado Anjo Azul, com Marlene Dietrich e Emil Jannings nos papéis principais. A versão tupiniquim se difere especialmente no tom. Se Sternberg adota elementos sombrios para narrar o ocaso do protagonista – incluindo um desfecho bastante pessimista –, Sternheim faz algo semelhante a uma comédia de costumes, sem deixar de lado o sentido trágico da história original.

Armando tem todas as características de uma figura perturbada. Discretamente (inclusive do público), ele manipula a situação para afastar Laura de um aluno e, depois, cortejá-la; ele recebe a moça em sua casa já como moradora; ele vende ações no banco a preços irrisórios no intuito de financiar a peça de teatro da amante sem sequer saber do que se trata, de fato; e assim por diante, Armando vai se envolvendo em diversas situações típicas da figura obcecada. Quando Laura se cansar dele, ou ele não servir mais a ela, o professor sofrerá a derrocada.

A escolha de Vera Fischer para o papel soa acertada desde a primeira aparição dela em cena (ou desde o cartaz, poderíamos dizer). Aos 22 anos, ainda no terceiro longa-metragem (antes fizera A Superfêmea e Sinal Vermelho – As Fêmeas) e tendo sido ovacionada no país como Miss Brasil, Vera estava no auge de uma fase que lhe coroaria a carreira. Até então, Laura era a personagem mais desafiadora à trajetória incipiente como a dela. O breve sucesso do filme e a presença marcante da atriz em cena – a ponto de ser possível confundir verdade e ficção, como se Laura fosse Vera, e vice-versa – certamente lhe catapultaram a outros papéis e, posteriormente, à televisão.

Ela encontrou o contraponto perfeito na encarnação de Mário Benvenutti como o professor, que se entrega total a um personagem difícil. A transformação física de Armando durante o filme – especialmente em relação às roupas que ele veste – é um dos principais elementos deflagradores de sua presença cênica.

Em Anjo Loiro, Alfredo Sternheim soube conjugar os elementos cinematográficos de forma harmônica e orgânica, entendendo que, para determinadas intenções, basta seguir à risca o que se sabe fazer melhor. No caso dele, apresentar cristalinamente o mergulho ensandecido de um professor nas tentações de uma aluna, ao mesmo tempo em que faz um comentário discretamente político sobre o cinema brasileiro da época. Não é pouco. E não é para muitos.

Marcelo Miranda é repórter em Belo Horizonte e crítico de cinema da revista eletrônica Filmes Polvo (www.filmespolvo.com.br).