Entrevista: Júlio Calasso – Parte 4

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 4: Anos 80, 90 e dias de hoje

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Nos anos 80, você atuou em vários filmes paulistas que se tornaram significativos na história, como O Baiano Fantasma, Sargento Getúlio, O Beijo 2348/72

Júlio Calasso – Fiz todos os filmes do Waltinho Rogério, como ator: O Beijo 2348/72, Olhos de Vampa, e um média, A Voz do Brasil, em que ele faz um cineasta esperando o dinheiro chegar, é despejado, etc. A coisa que mais fiz no cinema brasileiro é vagabundo, ladrão, juiz, delegado e tira (risos). Todos os meus personagens são nessa área. É divertido pra caramba.

Z – Você ainda fez Real Desejo, Filme Demência e A Dama do Cine Shanghai. Como era atuar nesses filmes? Te davam direcionamento?

JC – Mais ou menos. O cara que me chamava pra fazer o papel já sabia quem era o Julio. Já tem isso, você sabe o caminho. Outra coisa: gosto de improvisar. Então o cara me fala qual é a situação e faço. Me dei bem e os caras gostam. Sou econômico, não enrolo muito e acabo ajudando o cara. Fiz os dois filmes do Tony [de Souza], que foi presidente do sindicato de trabalhadores. Fiz agora o filme do Toni Venturi, Estamos Juntos.

calasso-10A-300x168Z – Você chegou a ter algum problema em set, como ator, com algum diretor?

JC – Vários! (risos) Sou nojento. Mas tudo deu certo. Fiz muito filme de muito cara novo, que chega pra você e nem sabe o que dizer. Fiz um cacetão de curtas-metragens, que nem lembro mais. Só de alguns. Tem um filme, de uns 30 anos atrás, que minha amiga viu e me disse que falo uma das frases mais geniais do cinema brasileiro. “Essas coisas que você inventa na hora e depois não lembra mais”. Ela disse que falo no filme: “Pô, rapaz, se comesse todas as mulheres que minha mulher acha que como, e se fosse inteligente como minha mãe acha que sou, eu era dez.” (risos) Fiz um filme sensacional, em que briguei pra caralho com o cara, o Bernardo Vorobow, uma ficção, fotografada pelo Candeias. E o Candeias desgraçado colocava a luz na minha cara. Aquele foi um pau permanente. Filmei muito primeiros filmes, como o da Eliane Caffé.

Z – Você filmou o Filme Demência, do Carlão Reichenbach, em 1986, e o A Dama do Cine Shanghai, do Guilherme de Almeida Prado, em 1987. A Casa de Imagens é dessa época?

JC – Não. È de 1988, já tinha feito os dois filmes.

Z – Você poderia comentar seu projeto na Casa de Imagens, o Morre, meu Amor?

JC – Como não ia filmar, bolei esse Morre, meu amor, que não era nada. Meu projeto mesmo era o Ambição, uma ficção que quero fazer há 30 anos. A única pena é que quando bolei era um delírio antecipatório e hoje vira matéria de memória. Desse ponto de vista, tenha uma puta frustração. São 11 roteiros que não filmei. E as ideais estão aí, voando.

Z – Você foi chamado pelo Carlão para o projeto?

JC – Não, desculpa, bicho, mas eu é que chamei esses babacas. Morar no Rio foi minha salvação, porque a Casa de Imagens foi uma aventura terrível que tive aqui em São Paulo. Eu fui destituído da Casa de Imagens. Na calada da noite, saiu uma grana pra gente fazer dois filmes. De repente, recebo uma declaração de um advogado para aparecer numa reunião, para tratar dos meus interesses. Chego lá, estavam todos os bananas ali. O fantástico Andrea Tonacci, quando percebeu o movimento, saiu. Tirou o projeto dele, foi para Nova York e me mandou um cartão lindo – falando para me dedicar aos meus filhos, minha família. Não estava entendendo. Fui destituído. Foi um perrengue na minha vida muito difícil. A proposta da Casa de Imagens, que era minha, era absolutamente revolucionária e deu certo. A Conspiração é em cima desse modelo, a Casa de Cinema de Porto Alegre também, a Casa do Som, dos Saldanha.

Z – Como era esse modelo?calasso-8A-300x168

JC – Era o de uma grande cooperativa entre os seis em que cada um faria tudo. Nos dois primeiros filmes, eu e o Carlão [Reichenbach] não entramos para dirigir. Eu e ele seríamos os produtores dos caras. Fomos a única produtora que ganhou dois projetos. Quando apareceu a grana, o pessoal saiu fora. Tinha projeto, mas não entrei no concurso. Sinceramente, levantei a grana para desenvolvimento de projeto na Embrafilme. Ninguém acreditava. Fui pro Rio, levei essa ideia, quebrei a espinha do cara, ele deu a grana pra gente, e nós ganhamos o equivalente de 10 a 15 mil de hoje, para escrever o roteiro e o projeto. Contratamos assessores, fizemos um puta dum projeto. Nós víamos que a Embrafilme ia pro vinagre e precisávamos desenvolver outro modelo. Essa era a tentativa. E eu fui traído. Ponto final, não falo mais nada, mudando de assunto. Anos depois, ganhei um prêmio da Secretaria Municipal de Cultura, numa inflação de 3000% ao ano, sem correção monetária, pra fazer o Ambição. O José Antonio Garcia, cineasta e então presidente da APACI, achou aquilo uma baita sacanagem, falou com o pai dele, advogado, que representou a gente. Concluímos que deveria colocar o dólar como moeda de operação, porque era a única moeda estável. Concorri então a US$ 366 mil. Meu filme custava US$ 500 mil. Tinha a indústria todinha comigo, sempre fui organizador da velha indústria – os de hoje não sabem nem quem eu sou e é recíproco. A crise era grande. Entre o dia que lançou o edital e 45 dias depois quando fechou, a diferença caiu para US$ 297 mil. Quando foi feita a conversão, era US$ 170 mil. Eu recebi 70% de US$ 51 mil. Comprei os direitos, paguei os roteiristas, paguei os projetos. Não consegui fazer o filme, entrava ano e saía ano. Isso durou de 1992 até 1997. Em 1997, o Secretário, diante de uma série de informações nossas, mandou arquivar o processo. O único que conseguiu entregar o filme foi Ricardo Dias. Ele escreveu uma carta pro Secretário, dizendo que só conseguiu fazer o filme [No Rio das Amazonas (1994)] porque era sócio da Superfilmes, que assumiu produção, estrutura, etc. E ganhou o prêmio do Governo do Estado. O filme se passava no Amazonas, com três caras em cima de um barco, com o Paulo Vanzolini falando em off. O Galante não conseguiu fazer até hoje o filme do Ícaro Martins. Ele pegou o dinheiro e comprou gado, porque quando precisasse, teria o dinheiro valorizado. Era uma forma de proteger o valor do dinheiro e ainda assim não conseguiu. Tinha um babaca que trabalhava na Secretaria de Cultura, que inclusive havia sido mandado embora pelo Secretário que assumiu. Três pessoas haviam sido mandadas embora: Jairo Ferreira, Plácido Campos, e esse cara. Depois fiquei sabendo que fui processado por esse cara, a mulher dele era secretária do Guilherme Lisboa na Embrafilme, minha amiga. O cara entrou numa história que eu estava comendo a mulher dele. O ser humano é um bicho filho-da-puta, por isso vamos desaparecer da Terra. Fui condenado à revelia, sem saber. Não existe recurso, só tenho que pagar. Sou condenado eterno, para pagar um dinheiro que não recebi. Pegaram meu carro, ficam vasculhando minhas contas bancárias. Querem R$ 700 mil, que é pra pagar os US$ 366 mil, que não me deram, corrigidos no valor de hoje (risos). Conclusão: nada no meu nome, saí da firma. Mas tem já dois concursos que perdi por causa disso. Sempre tem um filho-da-puta que fala: ele não entrega o filme. Quem me contou isso foi o Mário Prata, que estava num júri. Disse que estava na lista pra ser o 10º a receber o prêmio. Começaram a falar que não entrego, fui pra 11º e só 10 ganhavam. De vítima me transformei em culpado. Mas tenho a consciência tranquila, porque nada devo.

Z – Quando que foi pro Rio de Janeiro? Foi fazer o que lá?

JC – Fui pro Rio de Janeiro, no dia 19 de março de 1998, contratado para formatar um projeto para a Fox americana. Formatei um projeto de capoeira, que acabou virando esse Besouro. Revi Antônio Pedro, Ricardo Petraglia, que tinham um trabalho maravilhoso, num grupo de teatro que estava parado. Dei sorte. Fiz várias sugestões. Tenho quatro filhos, estava com 25 anos de casado – um ano depois não daria mais. Queria começar de novo, eram doze anos de sofrimento. Meus filhos sofreram muito por causa disso. Hoje, eles são meus parceiros. Eu diria que eles me perdoaram. No Rio, minha vida nasceu de novo. Produzi 17 espetáculos pelo CETE [Centro Experimental Teatro Escola]. Criei aquele troço com aquele bando de gente, fizemos umas coisas loucas. Fizemos uma Electra, do Sófocles, na Mangueira, que se transformou numa ópera popular brasileira, colorida, multirracial, doida, com músicas extraordinárias. Vocês já ouviram o Seu Jorge falar que há alguns anos estava destruído, o irmão dele havia sido morto, estava jogado debaixo de um teatro e foi um pessoal e lhe perguntou se não sabia fazer nada? Ele disse que sabia tocar violão, então lhe responderam: vem tocar violão com a gente. Esses caras fomos nós. Ele e mais um cacetão de gente. Minha vida ali floresceu. Comecei a recuperá-la. Lá, trabalhando feito um doido, em três trabalhos, fazendo uma coisa que não faço que é beber, queimando fumo, trepando como um louco, tive um AVC, caí duro no meio do salão. Aí, três meses depois, o Plínio morre. Éramos muito amigos dele e fizemos um espetáculo em homenagem a ele, no porão da Fundição Progresso, na Lapa. Achava que ele era um cara natural-realista. Esses caras me mostraram a tragédia dentro das peças do Plínio, coisa que nunca tinha visto. Era um troço doido pra caralho. Navalha da Carne tinha dois elencos ao mesmo tempo, por exemplo. Perdeu todo o realismo e virou uma puta de uma alegoria. Eu choro. Comecei a fazer esse Plínio, desde 1999. Tenho várias montagens. Outra coisa que me salvou foi a VX 1000, uma camereta, que me permitia colocar no automático – porque não sou fotógrafo, mas sou maluco -, e fui criando uma história. Gravei 150 horas ao longo de sete anos, sem tripé, sem fotômetro, sem nada, de espetáculos, produções, processos, e de como isso tudo se desenvolveu. Tenho três documentários prontos [O Incrível Encontro, Electra na Mangueira e Electra no Municipal], que passaram na TV Cultura, TV Brasil, SescTV, etc. E tenho dois em pré-edição. Quero fechar esse pacote, uma caixa com cinco, em que fiz tudo sozinho. De vez em quando, pedia prum cara ficar com uma câmera lá em cima. O processo de trabalho do grupo me ajudou a fazer esses trabalhos, porque todo mês é um troço doido, 80, 100 pessoas, jovens de setores mais marginalizados da sociedade, misturados com a classe média que vem de Ipanema.

Z – O filme sobre o Plínio Marcos que você está fazendo, Nas Quebradas do Mundaréu, é nessa pegada também?

JC – Comecei nessa pegada. Tenho muito material em mini-DV. Mas quando saquei que queria mesmo fazer o filme, comecei a gravar mais espetáculos. Embora não seja o fundamento do filme, não dá pra fazer um filme de um dramaturgo da importância do Plínio sem mostrar os espetáculos. Quando comecei a editar o filme, descobri que a Rain Network, que tem um sistema B de exibição digital, não exibe mais [a janela] 4X3. Foi aí que entrou meu filho Pedro, começamos a pesquisar qual era a linguagem. Já tenho um bom tempo de filme. Acho que já sei pra onde ir, depois de uns 7, 8 meses em que fiquei no maior vazio. Tenho 70 anos, não sou mais moleque, por isso foi mais dolorido. E o editor, um cara premiadíssimo, me largou, por conta dessa questão. Trouxe ele ao projeto justamente porque achei que ia quebrar meu galho no digital, eu, que sou um cara analógico, apesar de editar desde 1997. Fiz cinco documentários para uma produtora paulista. Mas é muito louco isso. Por exemplo, o cara me sugeriu: vamos colocar uma fusão? Eu respondi desesperado: não! Por quê? Pra fazer uma fusão, precisava levar o negativo numa empresa chamada Truca, marcar com barbante onde começava e onde terminava a fusão, e depois de quatro dias ia lá buscar. Aí ele fez a fusão em cinco comandos, super rápido. Comecei a ver o fascínio pelo negócio. Agora é terminar o filme.

Parte 3

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 2

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 2: O Bandido da Luz Vermelha e o cinema marginal

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como você foi parar em O Bandido da Luz Vermelha?

Júlio Calasso – Tinha um pessoal que foi ver alguns atores na Excelsior, o João Batista de Andrade e o Francisco Ramalho Jr. me convidaram pra ser assistente de produção do João Silvério Trevisan, em Anuska, Manequim e Mulher. Lá apareceu um cara que acompanhou o nosso trabalho e veio me perguntar se não queria ser assistente de produção dele em outro longa. Fui. Me falaram para aparecer num escritório da Rua do Triunfo. Estava lá o Rogério Sganzerla, que já conhecia de trombada. Era O Bandido da Luz Vermelha. Fui pra formatar a produção, já tinha tido dois fracassos, a grana era quase nada. Ele era diretor de produção e pisou na bola. Tinham feito uns testes e só podiam ver isso depois que revelava o negativo, cinco dias depois. E o cara, ao invés de fazer o filme, estava fazendo um comercial com aquele negativo. O Rogério era um cara multipolar, mudava a cada 30 segundos. Ficou puto. Perguntou se segurava o filme. Disse que sim. Fiz todo o filme. Ele era uma pessoa maravilhosa. Mandei ele pra puta que o pariu muitas vezes. Se você perguntar como ele era, vou dizer: era um escroto, como eu. Virou o que virou depois. Somos humanos, depois viramos entidade. A vitalidade daquilo era justamente isso, éramos jovens. E tínhamos um velho maravilhoso por cima disso, que era o Peter Overbeck.

Z – Se o orçamento d’O Bandido estava tão escasso, como você fez pra reverter a situação?

JC – Marcava, por exemplo, com o cara, às 13h, almoçado. (risos) O outro marcava das 6h às 12h, almoça em casa. (risos) Tínhamos uma Kombi, que era do dono do circuito exibidor que colocou a primeira grana no filme. A exibidora não queria mais emprestar a Kombi. O dono estava em Santos. Fomos até lá e afanamos a Kombi. A Helena Ignez chegou às 7h da manhã de ônibus, fomos até um hotel na Duque de Caxias – onde morava o Nelson Gonçalves -, compramos algumas roupas e fomos fazer a primeira sequência dela. Chegou e filmou, sensacional. O Bandido contou com uma generosidade absurda. Essa subjetividade e sintonia, capacidade de todos estarem envolvidos. O filme teve de quatro a cinco semanas de filmagem. No último dia, mandei o Rogério mais uma vez pra puta que o pariu, e fui embora. O último dia não fiz, porque ele me ofendeu. Entreguei todo o dinheiro, inclusive um monte de moeda. Aí ele me escreveu uma linda carta, que guardo até hoje, mas não mostro para ninguém, porque é meu e dele, mas é algo maravilhoso. São declarações de amor e de amizade, de coisas que fizemos juntos, e troços que transformamos. Ele veio me falar: “tinha certeza que você ia roubar todo o meu dinheiro e aí você vai lá e me devolve até as moedas?” (risos) Nos trombávamos muito, especialmente em mostras de cinema. Ele tinha esse costume, quando conversava com as pessoas: “olha o Calasso. Calasso! Calasso! O Calasso é um puta dum gênio, e isso e aquilo lá”. Meia hora depois encontrava ele de novo, e novamente ela ia me apresentar: “Você conhece o Calasso? O Calasso é o cara que fez aquela bixinha escrota no meu filme” (risos). A cena do cinema foi feita no teatro Oficina, e tínhamos conseguido aquela puta locação. O cara que ia fazer o bixinha, que era um desses viadinhos mineiros do Jornal da Tarde, disse que não faria o papel de jeito nenhum. O Rogério quis desistir. Mandei ele a merda e disse que faria então a cena. Para resolver um problema de produção. (risos)

Z – Você já frequentava a Boca do Lixo?

JC – Cheguei à Boca em 1968, não frequentava lá. Fomos todos chegando meio juntos. Quem já estava lá era o Carlão Reichenbach, o Candeias, o Mojica.

calasso-9A-168x300Z – Nessa época, começou a se formar o chamado Cinema Marginal. Como se deu isso?

JC – Na realidade, muito rapidamente uma geração se estabeleceu no poder, que era a geração do Cinema Novo. Rapidamente tomaram conta da Embrafilme, da qual participa [Arnaldo] Jabor e sua turma, ligada ao regime militar. Essa é a origem. Todos eram ligados, de alguma forma, ao partidão, e tinham aquele vício de ensinar às massas e aos pobres a revolução, liderada por eles. Tem uma série de filmes didáticos, algumas grandes porcarias, e coisas muitos boas também, inventivas. O Glauber [Rocha] era um grande malandro, soberbo, inclusive porque tudo que ele falava repercutia. Porque viramos marginal? Porque a grana era pouca e eles não queriam dividi-la com a gente. Grana! Nós chegamos cheio de merda de cachorro no salão deles. De repente, chega um bando de cara que com um bando de filme que questiona, que faz perguntas e que dá certo. É um lance político e de gerações, sob o patrocínio da pouca grana, além de outras circunstâncias que não estão no âmbito da arte, da estética e da ética. Marginal era isso. Se perguntar pra qualquer cara da minha época se gostava de ser chamado de marginal, ele vai te mandar à merda. É pejorativo. Embora a molecada ache que não, que marginal é legal. Mas não, significava que não filmávamos. Mas todos tivemos a sorte de termos um cara que conseguiu observar esses caos, essas coisas aparentemente sem nexo, essas contradições, dar uma ordem nesse caos, paralelamente criando outra história caótica. Esse cara se chama Jairo Ferreira. Fui muito amigo dele, nos amamos pra caralho, estivemos sempre juntos, nos momentos mais fudidos da vida dele. Não estava aqui quando ele se suicidou. Mas tem um monte de babaca que está aqui à custa dele. Não estou nesse time. Continuou morando no meu coração. Mas não me envolvo nessa pataquada que está acontecendo com o nome dele. Os caras estão enterrando o nome dele. Essa adjetivação que fazem em torno do Jairo enterra ele. Porque os caras que contam essa historinha deles com o Jairo querem na verdade falar sobre eles, e não sobre o Jairo. Podia ter caído nessa armadilha, mas não caí. Estou fazendo um filme sobre o Plínio Marcos, que tinha muito a ver com o Rogério. Meu filme é sobre ele como transgressor de linguagem. Há uma comunicação entre peças do Plínio e os filmes do Rogério; inclusive Paulo Villaça e Sérgio Mamberti faziam Navalha da Carne e O Bandido. Não era à toa. Essa ebulição estava acontecendo na genética do planeta, há uma contaminação de muitos fatores que interagem nesse momento. Talvez seja o primeiro grande momento de comunicação planetária. Havia as possibilidades mais variadas. Pelo bem e pelo mal, andei em várias frentes. Fui muito contagiado pela política. Participei de grupos fortíssimos, que tinham a ver com política operária – nada de guerrilha, porque isso era aventura de classe média. Nós nos envolvemos com greves fortíssimas em São Paulo, de fábricas, no mesmo tempo que fazia Bandido, estava sendo ator, casando…  Não fiquei muito tempo naquela Boca. Mesmo porque – e não me levem a mal – não gosto de cerveja. Então aquele lugar regado à cerveja todo dia, às 6h da tarde, com aquele queijo amarelo passando, que tinha que colocar sal em cima, não gostava daquilo. Meu negócio era maconha. Queria correr outros riscos, porque não eram os meus.

Sou um especialista em generalidades. Fui dono de várias padarias, abri a primeira lavanderia self-service de São Paulo, tudo porque queria fazer cinema. É diferente de, por exemplo, o Carlão Reichenbach, que é um livrinho. Ele entrou lá com 17 anos e nunca mais saiu daquela porra, então ele vai poder te falar durante 300 horas daquele negócio lá. Eu não era isso aí. Inclusive o meu filme e os outros que queria fazer não tinha nada a ver com aquela estética. Eram outros riscos que estava disposto a correr. Claro, tudo aquilo contaminou. Não que tivesse tido qualquer problema com a Boca, mas não era meu único interesse. Fazia também teatro, estudava filosofia, tudo nessa época. Depois virei produtor musical, produzi mais de 150 shows, dos Novos Baianos, da fase solo do Moraes Moreira, do Joelho de Porco, fiz grandes eventos. Até hoje não trilho apenas um caminho. Hoje, por exemplo, estou produzindo aqui, com meu filho, música, um disco sensacional, no porão daqui de casa. Faz parte da minha tradição e do jeitão dele. O Pedro, meu filho, é meu editor. Ele também tem um pouco de ser generalista, como eu. Fica às vezes até difícil de explicar o currículo. E acontece que nem aconteceu. Um jornalista, que se diz crítico de cinema, um sub-Jairo Ferreira, há uns anos atrás, escreveu uma matéria sobre o Jairo e disse: “quem sumiu foi o Julio Calasso e o Zé Agrippino de Paula”. Oras, o Zé estava ali no Embu, continuando a fazer coisas loucas e maravilhosas, que esse babaca nunca tentou saber, e eu estava no Rio de Janeiro – e, em oito anos, produzi dezessete espetáculos e realizei cinco documentários. Segundo ele, estava sumido, porque não aparecia nas páginas da Folha de S. Paulo, que é a única merda que ele lê. Essa questão da relação com o trabalho, da maneira como entende a sociedade, é difícil. O Plínio Marcos dizia muitas vezes isso: a censura é da mídia, é da grana. Ele dizia: “estou tentando fazer com que apareça na mídia e eles não publicam.” Tenho um sobrinho que é um dos principais caras de um caderno cultural de um dos principais jornais do Brasil. Há dez anos, pedi, pela primeira vez, que fizesse uma matéria comigo, por ocasião do lançamento de quatro documentários na TV Cultura, feitos com uma mini-DV, que fiz tudo sozinho, 150 horas de material filmado. E sai a matéria sobre o diretor do espetáculo. Perguntei: “não era sobre eu?” Ele respondeu que eu não tava na mídia. O projeto era meu, o documentário que ia passar na TV Cultura era meu, e ele fala do outro, porque ele estava na mídia e eu não. E olha que é meu sobrinho. Já fiz várias mostras. Em 1975, o Oficina ia fechar e fiz uma mostra chamada Cinema Bandido. Quem apresentava as sessões era o Zé do Caixão, ocorriam todas as sextas-feiras à noite, e depois tinha um baile regado a vinho sangue-de-boi. Era Rogério, Bressane, Candeias… Depois fiz outra mostra. A segunda foi Cinema de Invenção, por conta do lançamento do livro do Jairo. Saímos eu, ele e o Candeias, num fusquinha cheio de latas de filme. O Candeias era um puta dum chato, ranzina pra cacete, ficava reclamando: “bota a terceira, tá demorando pra mudar a marcha”. (risos) Fiz um festival de cinema negro na Cinemateca, há uns sete, oito anos atrás, e agora tenho uma mostra que vai pra terceira edição, chamado Cine Teatro Brasil, com documentários sobre o processo de criação do teatro.

Parte 1 //    Parte 3

Entrevista: Júlio Calasso – Parte 1

Dossiê Júlio Calasso

Entrevista com Júlio Calasso
Parte 1: Começando…

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como era sua infância? É daqui de São Paulo mesmo?

Julio Calasso – Sim, sou paulistano. Nascido e criado aqui. Nasci no Bom Retiro. Fiquei lá até 3, 4 anos. Aí chegou o asfalto. Meus pais acharam que estava meio sufocante, delicada a situação lá. Passava ônibus na rua, etc. Nos mudamos para a Vila Carrão. Naquela época, era o dobro da lonjura de onde tinha acabado São Paulo, tanto que havia a estrada do carrão pra chegar lá. Tinha lagoas, árvores, andávamos descalços, jogávamos bola na rua. Tinha um cheiro muito característico, tanto que minha memória olfativa daquela época é ainda muito forte; às vezes, lembro daquele passado pelo cheiro. Fiquei lá até 6 para 7 anos, e fiz o primeiro ano da escola. Mais uma vez meus pais se anteciparam e fomos para a Mooca. Meu crescimento e adolescência foram lá. Sou um cara da Mooca, daquele momento da história da cidade. Anos 50, fábricas que paravam às 16h, crises de energia elétrica. Meus pais não são operários, meu pai era funcionário público e minha mãe era das prendas domésticas, era calceira, ajudava em casa. Lá, acompanhei uma passagem importantíssima da vida da cidade. Uma coisa era essa prosopopeia da libertação das mulheres de classe média, outra coisa era aquelas mulheres pobres que trabalhavam para caralho, em fábricas, com crianças, às vezes em quatro teares ao mesmo tempo. Levava a marmita pra essas mulheres, com amigos meus. No próprio bairro da Mooca, também vi a chegada de imigrantes italianos e espanhóis, mão-de-obra especializada para as novas indústrias automobilísticas. Transformação que São Paulo viveu e sofreu. O futuro aqui às vezes é ontem, cresceu de uma forma imprevisível. Outro ponto importante em minha formação: só estudei em escola pública, tive esse privilégio de ter estudado em uma época em que o ensino público era da maior qualidade. Entrei na USP, em Filosofia. Cursei dois anos. Só parei porque sofri um acidente entre 1969/70, durante uma filmagem, e fiquei um ano e meio de cama. Quando voltei, já não era mais nada daquilo que havia me tornado um cara mais aberto.

Z – Qual filme era?

JC – República da Traição, do Carlos Alberto Ebert. Era meu parceiro, éramos moleques que se conheceram na aventura que foi O Bandido da Luz Vermelha. Todo jovem tem capacidade de viver aventuras e isso é muito verdadeiro, especialmente na arte. Embora fosse pretensamente um poeta – fui um dos primeiros caras a conhecer no Brasil o Fernando Pessoa, por uma razão muito simples: o Carlos Felipe Moisés, que é uma das maiores autoridades internacionais em Pessoa -, jamais imaginei que pudesse me transformar num profissional do cinema e do teatro. Trabalho desde os 13 anos de idade e me orgulho muito disso. Sou o que sou hoje por conta do trabalho. Fui office-boy, bancário, fui um monte de coisa. Quando era jovem, conheci pessoas que foram fatais para os caminhos que tomei. Uma delas era um ‘japa’, que tinha uma editora. No meu colégio tinha grandes colônias judaicas, italianas, negras e japonesas. Transitei por tudo isso desde menino. Tinha muito mais a política do que a arte no horizonte. Aprendi marketing, pensamento estratégico, feição de projeto, décadas antes que isso virasse pauta. Estava com 23 anos, jogava sinuca com meu amigo japa, de família rica e cabelo engordurado, cheio de brilhantina, e ele bolou uma rifa, mas não conseguia desenvolver o projeto. Fiz dar certa essa história. A ideia foi a de ir a dois teatros e conseguir que eles vendessem dois ingressos pelo preço de um, numa época em que não existia meia-entrada. Fui no TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] e o cara praticamente me expulsou de lá. Lá trabalhava o Manolo, uma bicha espanhola maravilhosa, amiga de todo mundo da classe teatral, que me disse pra procurar um teatro na Rua Jaceguai, um teatro novo que estava começando, o Oficina, e disse pra eu procurar um tal de Zé Celso [José Celso Martinez Corrêa]. Chego lá. A administradora parecia a dona Marta, do Glauco, e disse pra entrar e ficar quietinho, porque ele estava mexendo em algumas coisas e depois me atenderia. Entrei no Oficina e fiquei lá no escuro. Eles estavam fazendo a luz de Pequenos Burgueses [texto de Máximo Gorki]. Comecei a chorar de emoção. Essa poesia doida, era ali que queria continuar minha vida. Eles toparam a venda dos ingressos naquele esquema, o teatro Arena topou, e comecei a distribuir ingressos para as pessoas irem ver esses espetáculos. Devo ter visto umas 120 vezes Pequenos Burgueses. Aí veio o golpe, fecharam o teatro, e reabriram com um curso de interpretação do Eugenio Kusnet, um cara que conduziu duas gerações do teatro brasileiro, um cara fenomenal. Ele nos envolveu nesse mundo muito complexo que era a interpretação. Tive essa baita oportunidade que a vida me deu de fazer esse curso. A vida me deu, aliás, muitas chances, e, também, me quebrou as pernas em vários momentos. Estou sempre recomeçando. Com 71 anos, estou numa história completamente diferente que nunca havia vivido. Teve também outra coisa: nos últimos dias de março de 1964, estreou um filme brasileiro, numa sessão escondida no cine Windsor, chamado Deus e o Diabo na Terra do Sol [de Glauber Rocha]. Que impacto! Uma abertura de horizonte! Era um negócio novo, uma forma nova, com um protagonista que tinha minha idade e se parecia comigo, na forma de se posicionar diante da vida e da arte. Foi muito mais a vida do que pressupostos artísticos que me levaram à arte, pois achava que era através dela que conseguiria me expressar e permanentemente me transformar.

calasso-6AZ – Como você começou no cinema?

JC – Frequentava o Cineclube Dom Vital, acho que tinha passado Cinco Vezes Favela, e quem apresentava era o Maurice Capovilla. Dois dias depois, cruzei com ele na R. Direita. Caminhei vinte metros e pensei: “preciso falar com esse cara”. Falei com ele, me apresentei, disse que havia ficado muito empolgado, e que queria muito fazer cinema e não sabia por onde começar. Ele pensou um pouquinho e me perguntou: “Você carrega um tripé?” (risos). Foi assim que comecei em cinema, carregando tripé, em um filme maravilhoso, que era uma coisa nova em termos de atitude, que é a produção do Thomaz Farkas. Acho que estive muitas vezes nos lugares certos e nos momentos certos, não que tenha aproveitado tudo isso para mim – talvez até menos do que gostaria. Eles estavam fazendo Os Subterrâneos do Futebol [dirigido pelo Capovilla], no Pacaembu. Estava lá o Waldemar Lima, diretor de fotografia. Eles ficavam combinando onde seria cada tomada, um ficava lá em cima e o outro embaixo. Quando se acertavam: “Tripééé!” Lá ia eu carregando aquele tripé de câmera 16mm, super pesado. Chegava eu lá em cima, ele olhava e dizia: “não, acho que fica mais legal do tobogã”. Lá ia eu subir mais não sei quanto com aquele peso nas costas (risos). Fui lá receber o dinheiro na Fotóptica, que era do Farkas, e lá tinha um anúncio de vaga de datilógrafo (risos). Perguntei para quê era. Disseram que era um sujeito que ia fazer um filme que tinha muitas horas de material gravado e precisava de alguém que colocasse o fone no ouvido e transcrevesse todo o conteúdo. Me candidatei. O filme era Viramundo e o diretor o Geraldo Sarno. Não tenho culpa se foi assim que aconteceu. O teatro, o cinema, a TV, as artes cênicas, são as que me atraíram.

Z – Em Viramundo, você é creditado com assistente de direção. Como passou de datilógrafo a assistente?

JC – Porque não fui só datilógrafo, acabei fazendo o filme todinho. A bem da verdade, hoje seria quase um corroterista ou um colaborador de roteiro. Mas isso não quer dizer nada. Meu orgulho de ter feito é maior do que isso. Lá, generosamente, aprendi muito mais do que qualquer outra coisa. Mas quebrei muito pau com o Geraldo e tem duas sequencias do filme que eu coloquei. Porque o pessoal que ele pegava era gente tudo boazinha. Peguei dois caras: um traficante da favela do Vergueiro (que ele não usou) e um pastor evangélico gay.

Z – Como era trabalhar com Sarno?

JC – Bem, o Sarno é pisciano. Ele e o Hermano Penna são os piscianos com quem trabalhei. E pisciano me dá um trabalho. Sou de Áries, não tem compatibilidade. Os dois são maravilhosos, geniais. Mas o cinema dele é dolorido, pesado. È bonito. Ficava sempre pilhando. Tem um livro [Cineastas e Imagens do Povo] do [Jean-Claude] Bernardet – que, em minha opinião, é um nada que não gosta do Geraldo -, que teve uma edição ampliada há uns cinco anos atrás. O pessoal da editora [Cia. Das Letras] me ligou, pedindo autorização para colocar uma foto minha e tal. Só fui descobrir de quem era depois. O Jean-Claude não vai com minha cara. E na capa do livro estou eu, com uma claquete, olhando pra câmera. Ele ficou puto (risos).

Z – Depois você foi trabalhar na Excelsior, certo?

JC – Sim. Nesse meu começo de carreira, fui ator. Entrei como aluno do Kusnet, depois fiz dois espetáculos no teatro Oficina, fiz um no Arena, inclusive a primeira peça do Plínio Marcos, Reportagem de um tempo mau, e uma adaptação de O Processo, do Kafka, pelo Leo Lopes, um cara genial que morreu cedo e era assistente do Walter Avancini na TV. Naquela época, as equipes eram pequenas. Fiz a novela As Minas de Prata, que tinha 50 e tantos cenários fixos. O elenco dava três da novela da Globo hoje em dia. Vários estão aí até hoje: Glória Menezes, Tarcísio Meira, Paulo Goulart, etc. Mais uma caceteada de outros atores. Eu arredondava o texto da Ivani Ribeiro, porque ela vinha do rádio. Ela e a Janete Clair são as grandes teledramaturgas. Avancini era um gênio, inventou o padrão de qualidade da teledramaturgia. Fiquei na TV Excelsior um ano.

Parte 2