Dossiê Ewerton de Castro
Anjo Loiro
Direção: Alfredo Sternheim
Brasil, 1973.
Por Vlademir Lazo
Anjo Loiro será eternamente identificado como um dos primeiros e provavelmente o grande momento de Vera Fischer no cinema. As gerações mais recentes a conhecem de pouco tempo como a caricatura grotesca na qual se transformou, porém um filme como Anjo Loiro permanece a prova viva do fascínio que a musa provocou por pelo menos duas décadas. O próprio título terminou por se mostrar perfeito com a presença de sua estrela em ascensão, ainda que ele tenha surgido por necessidade: o diretor Alfredo Sternheim pretendia chamá-lo de Anjo Devasso, mais direto e penetrante, mas foi obrigado pela censura a alterá-lo para algo mais ameno, Anjo Loiro, que se mostrou mais apropriado pela ambiguidade que o envolve.
A intenção era homenagear o título de O Anjo Azul, o clássico de Josef von Sternberg, de quem o diretor brasileiro adapta o romance que o inspirou, escrito por Heinrich Mann no começo do século passado, e que teve pelo mundo várias versões pro cinema. Que ninguém espere um remake nacional do filme alemão; o que Sternheim faz é utilizar o argumento tão universal do livro que o originou como base para transportá-lo ao contexto de sua época e criar um filme diferente dentro dessa realidade.
Por mais que o núcleo de Anjo Loiro seja a presença vital de Fischer, o argumento existe na condição de dar corpo ao encontro da fêmea fatal e sedutora com o personagem do professor que representa o seu contraponto. Em idade, com uma juventude que sobra na garota, mas falta ao professor, que não a aproveitou enquanto a teve, e que depois de determinado momento tenta resgatá-la, vestindo-se diferente, mudando cara e cabelo na medida do possível e cercando-se da companhia dos amigos da amante mais jovem, com os quais no íntimo jamais se entenderá. Em condição social, com ambos os personagens vindos de habitats diferentes um do outro: o mestre-escola do colégio respeitado onde leciona durante o dia para descansar a noite; e a mulher de hábitos e divertimentos noturnos que não leva vida nenhuma a não ser os flertes e namoros no bar em que freqüenta ou fora dele.
Mas também representam o extremo oposto um do outro em mentalidade e no conflito de gerações do conservadorismo do mais velho com a juventude da aluna de desejos irrefreáveis. Foi um acerto feliz Anjo Loiro ter sido realizado no começo dos anos 70, quando o mundo ainda vivia as transformações das liberdades de costumes. As consequências emocionalmente violentas que terminam por arruinar Armando (Mário Benvenutti), o professor, mocionalmente violentas que terminam por arruinar Armando, o professor quando o mundo ainda vivia as transformaç diante da presença diabólica de Laura (Fischer),o anjo loiro cuja dimensão sempre lhe escapa, são apenas questão de tempo. Muitos desses confrontos entre gerações, juventude e velhice, beleza e ruína, ocupavam o centro de alguns dos filmes finais do italiano Luchino Visconti naquela mesma época: Morte em Veneza (1971) e Violência e Paixão (1974), ambos de cunho mais homossexual (ao contrário do de Sternheim). Morte em Veneza, por sinal, também era adaptado de outro romance, publicado cinco anos depois pelo irmão de Heinrich, o ainda mais célebre Thomas Mann. Não seria exagerar considerar a história concebida por Thomas Mann como uma releitura ainda mais alegórica da paixão e queda do professor diante do encontro com uma beleza inacessível e juvenil.
De completamente seguro de si, fechado em seus hábitos inscritos nos limites de uma vidinha medíocre e confortável, Armando caminha rumo à completa dissolução. Logo ele quem no começo de Anjo Loiro correra ao encontro de Laura para salvar um de seus alunos mais diletos, Mário (Ewerton de Castro), da obsessão pela moça. Curiosa inversão nos papéis: o professor liberta o aluno das garras do anjo belo e sedutor, para terminar ele próprio por cavar a própria perdição. As presenças de cabeludos, malandros e cafajestes (entre os quais um bem jovem Nuno Leal Maia) no circulo de amizade de Laura atestam que a sua história com Armando era uma relação impossível. O professor em sua essência prezava pela humildade, pelo espírito, o intelecto; já a fulgurância de Laura e seus amigos é a do corpo, a da matéria, a da luxúria. “É mais corpo que outra coisa”, justifica a garota, no ápice das visões conflitantes do casal quando do ensaio de Antígona, no qual ela é flagrada nua junto a outros atores pelo professor que se deixara convencer a financiar parte da montagem da peça levando ao fim suas economias pessoais.
Anjo Loiro não é um drama pesado e cheio de elucubrações, mas trata-se de um trabalho dotado de um senso trágico e fatalista. O professor só será feliz enquanto ainda servir ou não cansar Laura, mas no meio do caminho terá perdido a maioria dos alicerces de sustentação que possuía para levar a vida. A transformação física de Mário Benvenutti é impressionante, ele praticamente incorpora o personagem. O filme de Sternheim só encontra paralelo no cinema brasileiro em relação à histórias de degradação de um homem regrado e ordeiro diante de uma aventura infeliz na obra-prima O Quarto (1968), dirigido por Rubem Biáfora, um dos mestres de Sternheim. Pena a censura ter cortado cerca de quinze minutos da metragem original de Anjo Loiro, crime comparável ao do esquecimento em que o filme caiu anos depois de sua realização, e que dificulta que ele possa ser lançado em DVD numa versão com qualidade de imagem melhor do que as cópias que nos chegam em mãos.