Ênio Gonçalves por Carlos Reichenbach

Dossiê Ênio Gonçalves

 

 

SOBRE ÊNIO GONÇALVES

POR CARLOS REICHENBACH

Não canso de afirmar que aprendi amar a direção de atores realizando FILME DEMÊNCIA, e trabalhando com atores-autores como Ênio Gonçalves e Emílio di Biasi.

Como roteirista de quase todos os filmes que dirigi, compreendi neste filme a riqueza de ter como cúmplices atores que também exercitam a escrita constantemente.

Atores-autores gostam de desafios, de experimentar sempre. Nunca são programáticos e esperam sempre se surpreender consigo mesmos.

Curiosamente, são extremamente disciplinados; já que vivenciaram na pele e na carne as angústias, as frustrações e/ou a euforia que acompanham a solidão da criação.

Conhecem de cátedra o pesadelo da autocobrança permanente que persegue bons roteiristas e diretores.

Ator-autor não dá palpite; dá subsídio.

Até este filme eu achava, como outros diretores da minha geração, que a câmera resolvia todos os problemas, incluindo uma atuação frágil, incompatível ou incompetente ou um ator ou atriz mal escolhidos.

Ênio Gonçalves é o ator dos sonhos de um roteirista-diretor. Por ter estudado cinema na Europa, no início da carreira, conhece muito bem as diferenças de intensidade exigidas por cada uma das lentes: a normal, a tele e a grande-angular.

Nas exibições de FILME DEMÊNCIA, Ênio teve a sua magnífica e econômica performance comparada a de Maurice Ronet em Trinta Anos esta Noite, o filme de Louis Malle.

Confesso que já escrevi vários argumentos tendo em mente Ênio Gonçalves como protagonista, incluindo o roteiro de meu próximo longa metragem UM ANJO DESARTICULADO, que retoma a linha mestra de FILME DEMÊNCIA (a viagem iniciática de um inconformista).

A inteligência, a sensibilidade, o amor ao cinema e – sobretudo – a generosidade – fazem de Ênio Gonçalves um cúmplice criativo raro, daqueles que estimulam espontaneamente a ousadia e as outras faculdades criativas do diretor e/ou roteirista.

CARLOS REICHENBACH
Agosto de 2011

Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 1

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 1: Começo de carreira

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Por Gabriel Carneiro

Fotos: Pedro Ribaneto

 Zingu! – Como foi sua infância? Você cresceu em Porto Alegre mesmo?

Ênio Gonçalves – Nasci em Porto Alegre. Minha família não tinha vínculo nenhum com o show business. Mas desde criança sou apaixonado pelo cinema. Acompanhava minhas tias que iam com o namorado ao cinema (risos). Fazia o acompanhante, né? Fiquei logo encantado, desde os 5, 6 anos já via aquelas imagens, que apaixonavam. Via os filmes brasileiros, me recordo dos filmes da Atlântida, Vera Cruz. Depois, assisti o teatro de igreja, salão paroquial, aquelas peças de teatro que vinham publicadas na revista da SBAT, teatro de costumes. Até que, quando ainda era garoto, fui ver a primeira montagem de A Falecida, de Nelson Rodrigues. Fiquei absolutamente pasmo com o que vi. Conhecia os teatros com diálogos antigos e tal e de repente vinha aquela linguagem nova, sem cenário, luzes apagando e acendendo, não tinha cenário. Fiquei absolutamente encantado com Nelson Rodrigues, aquele diálogo tão verdadeiro, vivo, tão nervoso, tão vibrante. Aí eu disse “porra, quero fazer parte disso, quero participar”.

Z – Você era garoto nessa época?

EG – É, adolescente, entre os 12 e 15. Já era apaixonado por cinema, mas quando vi o teatro daquela forma… Pensei: “quero participar, nem que seja para varrer o estúdio ou o cinema” (risos). “Quero ser ator, quero dirigir, atuar.”

Enio11A-225x300Z – Como era Porto Alegre nessa época, era uma cidade urbana, metrópole?

EG – Urbana, sem dúvida. No final da década de 50, tinha um teatro amador muito bem feito, pessoal do Abujamra, que fazia um teatro muito interessante. Fui fazer, quando tinha 17, 18 anos. Entrei na escola dramática de Porto Alegre. O Ruggero Jacobbi, um italiano aqui de São Paulo, inaugurou lá a Escola Dramática, montou uma universidade. Acho que no mesmo ano em que entrei na faculdade de filosofia, fui estudar jornalismo, que era um curso da faculdade de filosofia do Rio Grande do Sul, e um curso de arte dramática, também na universidade. Fazia um curso de manhã, jornalismo, e à noite era o curso de arte dramática.

Z – Você se formou nos dois?

EG – Não, fiz questão de não me formar, sou um idiota (risos). Sempre contrário, disse: “Não quero me formar”. Então, quando acabou o segundo ano, mais um ano e eu podia me formar em jornalismo e arte dramática, resolvi cair fora. Fui pro Rio de Janeiro.

Z – E, no Rio, você já pensava em atuar?

EG – Pensando nisso. Já trabalhava como jornalista. A minha carreira inicial compunha jornalismo e arte dramática. Trabalhava na Última Hora, jornal de Porto Alegre. O Samuel Wainer tinha fundado o jornal em Porto Alegre e eu trabalhava na redação. Mas aí larguei tudo. Nunca fiz teatro amador em Porto Alegre. No segundo ano, larguei tudo e fui para o Rio de Janeiro. Foi no início da década de 1960. Cheguei ao Rio de Janeiro e fui trabalhar numa editora de revistas chamada Edibrás, que não existe mais, como redator. Tinha sete revistas, uma inclusive de cinema, chamada Cinemin, e também revistas femininas, como Encanto. O colega que me levou para lá era um cara que conheci da redação do Última Hora, que era o deputado que quase foi cassado… esqueci o nome agora.

Z – Você chegou a estudar no Centro Experimental de Cinematografia, em Roma, não?

EG – Dois anos depois de chegar do Rio, consegui uma bolsa de estudos. Tinha um amigo meu lá, o Braz Chediak, que fazia parte de um grupo de teatro que participei. Fiquei muito amigo dele e ele trabalhava no escritório do João Goulart, que queria se recandidatar. Aí veio a revolução e o cassou. Mas o Chediak trabalhava lá e conseguiu, através do conhecimento político, com o embaixador Hugo Gouthier, que era embaixador do Brasil na Itália, uma bolsa de estudos para mim e outra para ele, através de pistolão político, devo confessar. E aí fomos para a Itália. Foi em 1964. E outros brasileiros também foram. Na verdade, não foi exatamente no Centro Experimental que estudei. Já havia acontecido o exame de admissão naquele ano. Então, fiz outros cursos lá. Fiz um curso do governo italiano de montagem, trabalhei muito em moviola, coisa que nem se usa mais, aquelas moviolas antigas. Assisti umas aulas também no Centro Experimental, assisti a algumas filmagens na Cineccità. Convivi um pouco com essa coisa do movimento de cinema com estudantes. A bolsa era de oito meses. Fiquei quase um ano.

Z – Você lembra com quem você teve aula?

EG – Não, não era ninguém conhecido. Conheci lá um cara chamado Nanni Loy, que dirigiu um filme chamado Quatro Dias deEnio2A2-300x225 Nápoles [Quatro Dias de Rebelião, no Brasil], que é um filme bem interessante, passou aqui no Brasil, foi um grande sucesso. Assisti a algumas aulas desse cara. Conheci alguns assistentes do Fellini. Estava lá e aconteceu a Revolução de 1964. O governo brasileiro dava um suplemento, acho que eram 50 dólares por mês. Quando houve a Revolução, isso foi cortado, e tive que voltar. Voltar pro Rio de Janeiro. E voltei à redação dessa editora e fazia teatro, trabalhei no O Tablado, da Maria Claria Machado, fazia teatro amador lá.

Z – Antes de viajar, né?

EG – Antes de viajar. Logo em seguida, consegui um trabalho que me profissionalizou realmente. Foi um espetáculo chamado Toda Nudez Será Castigada, do Nelson Rodrigues. Direção do Ziembinski, com uns atores fantásticos – Cleyde Yáconis, Luis Linhares, Nelson Xavier, Elza Gomes. E era uma montagem histórica, primeira montagem da peça. Consegui o papel de um garoto, o Serginho, filho do personagem Herculano, que o Luis Linhares fazia, um grande ator do TBC, e me tornava amante da mulher, a Geni, que era a Cleyde Yáconis. A peça também se apresentou em São Paulo, alguns meses em São Paulo. Foi em 1965. A peça ficou pelo menos uns dez meses em São Paulo. Nela, conheci o Nelson Rodrigues, que era meu ídolo. Me senti um cara privilegiado. Só fui ser ator por causa da obra de teatro dele, que era apaixonado.

Z – Como era trabalhar com o Ziembinski?

EG – Era um diretor fantástico. Como eu era o ator inexperiente, ele, além de me motivar para o personagem, fazia para eu ver. Ele corrigia tudo, quase era um teleguiado. É claro que eu colocava uma alma nisso. Ele dirigia todos os detalhes: como segurar um copo, como se apoiar na cama, porque fiz uma cena de cama com a Cleyde. Ele corrigia a posição dos dedos. “Fecha a mão, não deixa os dedos abertos, é feio” (risos). “Quando apoiar, apóia assim”. “Como é que se segura o copo? Não segura o copo assim, segura o copo com os dedos fechados. Quando nesse momento você recosta, e coloca as mãos assim”. Ele fazia para eu fazer. Ele exigia que eu botasse um sentimento do personagem, que não fosse um teleguiado. Era um processo que ele fazia especialmente comigo, que era o ator que não tinha experiência. Uma experiência fantástica, trabalhar com esse cara que modificou o teatro brasileiro. É o cabeça do teatro, o cara que fundou o teatro brasileiro, quando ele chegou ao Brasil em 41, fugindo da guerra, e montou O Vestido de Noiva, do Nelson. Ele fez diversas peças do Nelson. Ele lançou e produziu o Nelson. Fundaram o novo teatro brasileiro.

Z – E como era o Nelson? Ele chegou a te ajudar na construção do personagem?

EG – Nunca discutimos o personagem. O Nelson era uma figura incrível. Fui visitá-lo algumas vezes na redação do jornal onde ele trabalhava, acho que era Jornal do Brasil, ou era o Correio da Manhã, sei lá. Era um jornal que tinha na avenida Rio Branco, no Rio. Acho que fui lá receber, ele pagava diretamente, era produtor de espetáculos. Me recordo: “Vamos tomar um café lá em baixo”. Ele chegava lá em baixo e tinha um bar. Ele pedia uma média, um café com leite e pão canoinha. Mandava raspar o pão, tirar o miolo e botar na chapa e comia aquilo. E, às vezes que vi, ele tomava um Melhoral também. Ele tinha esse hábito, coisa que me impressionou assim (risos). Quando a gente veio fazer a peça em São Paulo, a carreira dela acabava num domingo. Na época, tinha duas sessões aos sábados e aos domingos. O elenco, naquele tempo, levava muito cano. Eu mesmo levei muito cano, quando o produtor não tinha o dinheiro, não pagava. Você trabalhava e não recebia, o que não acontece mais hoje. Raramente acontece. Mas quando acontece, quebra um pau violento. Naquela época era comum, quem não tinha dinheiro não pagava. Os atores tarimbados falavam: “Não, nós queremos o pagamento – era o último dia – antes da sessão noturna”. Falaram pro Joffre Rodrigues, o filho do Nelson, falecido há um ano. O Joffre era o produtor executivo da festa aqui. E o Joffre falou: “Ênio, você quer receber?”. “Não, eu posso receber no Rio, me paga no Rio”. Aí ele ligou para o pai dele e falou: “Olha, os atores querem receber tudo (risos) antes do espetáculo noturno. O Ênio disse que recebe no Rio”. O Joffre me falou: “Olha, meu pai falou o seguinte: ‘Paga o Ênio antes do espetáculo e não paga mais ninguém (risos)’”. Olha que coisa louca. “O Ênio confia nas pessoas, vamos pagar ele logo”. Foi o que Joffre me falou. E realmente me pagou (risos).

Parte 2

Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 2

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 2: O cinema
 

EnioA

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Zingu! – Como você ingressou no cinema?

Ênio Gonçalves – Um diretor de cinema me viu fazendo a peça, o Carlos Hugo Christensen, o argentino, que estava preparando um filme chamado O Menino e o Vento, baseado num conto do pai da Maria Clara Machado, o Aníbal Machado. Ele me viu e achou que eu estava preparado para fazer esse filme, não no papel do menino, mas como o engenheiro, que tem vinte e poucos anos.

Z – Antes você já tinha feito Sangue na Madrugada, não?

EG – Sangue na Madrugada, do Jacy Campos, que era um cara que eu conhecia, da televisão. Fiz uma pequena participação nesse filme. Aí fiz O Menino e o Vento. É um papel de protagonista, um papel difícil.

Z – Você também começou na TV nessa época, né?

EG – É, fiz algumas coisas no Rio com o Jacy Campos. O Câmera Um, acho que fiz dois episódios, que era televisão ao vivo, uma câmara só. Um programa que ele copiou dos EUA, Camera One, na Tupi do Rio. Foi quando ele me convidou para fazer Sangue Na Madrugada.

Z – Como foi a preparação do papel de O Menino e o Vento? O Christensen era uma pessoa que dirigia bem atores, dava mais liberdade?

EG – Ele dirigia bem. O Christensen era um cara muito disciplinado. Quando ele me viu no teatro, ele pediu para fazer um teste de leitura comigo. Ele me deu o roteiro, mandou que eu o lesse em casa. Na leitura, falou: “É isso mesmo que quero, gostei da sua leitura, acho que você teve uma compreensão do personagem, quer fazer?”. “Quero, quero”. E acabei fazendo. Foi adiando muito, porque ele não tinha grana, não tinha produção, não tinha dinheiro para fazer o filme, foi difícil ele arranjar dinheiro. Era todo filmado em Visconde do Rio Branco, uma cidadezinha da Zona da Mata de Minas Gerais. Ele era muito rigoroso e disciplinado, o diretor de fotografia era um cara muito competente, eles se davam muito bem, o Tony Gonçalves. Foi feito em preto e branco, era um cara muito metódico. Gostava muito da minha disciplina, ele era argentino, ele falava: “Enio no es un ator, es um soldado” (risos). O Christensen usava cabelo raspado do lado, dizem que o pai dele foi um soldado prussiano, na Primeira Guerra, então ele tinha uma formação meio militar, ele gostava. Quando acertei de fazer o papel, ele mandou fazer um curso de equitação, porque eu não sabia, sou gaúcho, mas nunca andei a cavalo, um gaúcho de cidade, minha mulher fala até que sou gaúcho paraguaio, não sei fazer churrasco (risos). Esse curso de equitação no Rio de Janeiro era na Barra da Tijuca ou São Conrado, por ali, tinha um haras. Quem dirigia o haras era, acho, um ex-nazista. Era um conhecido dele. Não quer dizer que o Christensen era nazista, evidentemente, era um artista maravilhoso, um cara respeitado. Aprendi a cavalgar com esse nazista (risos). Foi uma filmagem muito interessante, primeira experiência que tive realmente de cinema, de fazer um papel, ficar em locação. Foram uns dois meses de filmagem.

Enio15A-300x225Z – E como funcionavam os ensaios?

EG – Eram na cena. Não ensaiávamos nem no dia anterior. Era na hora, eu tinha o papel decorado, ele dava a marcação, corrigia, e trabalhávamos assim, oito horas. Quando dava oito horas, parava. E era pá-pum, porque o Antônio Gonçalves era um cara muito profissional. Ele fotografou outros filmes do Christensen, se entendia muito bem com ele. O horário que tava programado a gente fazia, quando estourava o horário, parava. Ficamos ali nessa cidadezinha muito interessante, uma convivência legal com a cidade, uma experiência maravilhosa para mim, que sonhava em fazer cinema, era tudo o que queria na vida, acho que nunca fui tão feliz na minha vida. Nessas externas, depois em Paraty com o Walter Lima [em Brasil Ano 2000], também passei dois, três meses lá no verão, também foi outra experiência maravilhosa de me sentir ator de cinema. Dizia: “Meu Deus, sou um cara privilegiado, um cara que nasceu lá no subúrbio de Porto Alegre, distante, de repente estou fazendo isso, meu Deus, que coisa!”. Era tudo o que queria na vida.

Z – Você chegou a ter outros convites para trabalhar com o Christensen?

EG – Não, porque logo que a gente fez o filme, ele deu uma parada, de certa forma. Quando vim para São Paulo, soube – me disseram – que ele andou me procurando. Em 1970, quando vim morar aqui, parece que ele andou me procurando lá, para fazer um outro filme dele. Mas não tinha contato. Sou um cara muito reservado, e tímido. Trabalhei com o Christensen, me dei muito bem com ele, mas nunca fui amigo, nunca convivi com ele. Com o Walter Lima foi a mesma coisa. Para mim, foi muito importante ter feito o Brasil Ano 2000, mas perdi o contato com o Walter Lima. Uma vez o encontrei em Gramado, a gente sentou junto numa mesa, uma porção de gente, nem trocamos uma palavra! Acho que mal um “Oi, tudo bem?”. Acho que não sei estabelecer esse vínculo com as pessoas. Mesmo o Carlão, que sei que gosta de mim e eu adoro ele, que disse que sou o alter ego dele, não mantenho contato. Não fico ligando para o Carlão, não fico falando no telefone. Quando encontro com o Carlão é porque eu vou assistir à Sessão do Comodoro, e converso com ele lá, mas não freqüento a casa, não deixo os caras muito à vontade para me chamarem. Não quero ficar me impondo, puxando o saco, pedindo pelo amor de Deus para trabalhar. Às vezes tem pessoas que se ressentem disso, não faço parte de nenhuma corriola em teatro, fico na minha, me isolo um pouco, não deveria… Deveria fazer mais relações públicas e não faço. Mas é o meu jeito, sei lá.

Z – Depois você fez o filme do Julio Bressane, Cara a Cara.

EG – O Cara a Cara! Acho que não tinha sido lançado O Menino e o Vento, quando fiz o Cara a Cara. Era um dia de filmagem, e foi legal, inesquecível esse dia. Filmamos uma sequência só, no Jardim de Alá, Helena Ignez e eu, um na frente do outro, dois bancos. Posteriormente, assistindo Antes da Revolução, do Bertolucci, vi que tem uma sequência exatamente igual. Na verdade, o Bressane, que conheceu o Bertolucci na Itália, deve ter feito uma homenagem, porque a sequência é exatamente igual. No filme do Bertolucci, é um protagonista com um amigo, um banco, as mesmas tomadas. A mesma coisa. E é interessante esse filme, Cara a Cara, porque é um filme quase não falado, e a única sequência falada pra caramba é a sequência minha com a Helena Ignez, em que trocamos um diálogo enorme. E é interessante também porque é a primeira direção de fotografia do Afonso Beato.

Z – Como era trabalhar com o Bressane?

EG – Fiz num dia só, foi filmado numa tarde. Foi super gentil, também me deu o texto na hora, não ensaiamos antes, e devíamos ter ensaiado (risos), porque era uma cena grande de diálogo, mas foi super agradável. Foi super gentil, foi legal, uma tarde inesquecível para mim e para ele.

Z – Logo depois você fez o Juventude e Ternura, do Aurélio Teixeira, que também era um papel grande.

EG – Fazia o galã da Wanderléia. Devo isso ao Braz Chediak. Quando voltou da Itália, ele fez diversos filmes com o Aurélio Teixeira.Enio8A-300x225 Quando o Aurélio foi fazer esse filme, o Chediak me indicou. Fui na casa do Aurélio, ele era casado com a Gracinda Freire, uma atriz, foram muito simpáticos, os dois gostaram de mim e ele me contratou para fazer esse filme, com a Wanderléa e o Anselmo [Duarte].

Z – Como foi trabalhar com os dois?

EG – O filme foi todo feito no Rio de Janeiro. Era verão, uma época muito bonita, muito agradável. O Aurélio era um cara que tinha uma noção de cinema muito grande, sempre achei o Aurélio, mesmo quando era menino e via os filmes dele, da Vera Cruz, eu falava: “Que ator bom esse!”. Ele não fazia o galã, mas sempre fazia o segundo papel, o vilão. “Pô, esse cara é bom pra caramba”. Era um ótimo ator, o Aurélio Teixeira. E ele usava essa facilidade para atuar quando ele dirigia, fazia a cena para a gente, estimulava, fazia um pouco o personagem para você fazer. “Faz assim e tal”. Foi muito agradável trabalhar com ele. A Wanderléa era muito simpática e o Anselmo, poxa, para mim era um monstro sagrado. Ficava ao lado do Anselmo ouvindo ele falar, gostava muito de falar, contava muita história, muitas aventuras dele, nos cinemas, aventuras sexuais, era um aprendizado ficar ouvindo as histórias dele. Fiquei fã. Eu já era fã dele, dos filmes da Vera Cruz. Era um privilégio trabalhar com o Aurélio e com a Wanderléa.

Z – Quais eram os seus referenciais de atores na época?

EG – Nesse momento, estava sob impacto do Actors Studio: Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift, aqueles atores que trabalhavam a interiorização. Gerárd Philipe, que eu achava fantástico, Michel Leclerc, tenho uma grande admiração por eles. Mas ainda trabalhava um pouco na forma, apesar de querer interiorizar, não tinha ainda o aprendizado, não tinha a experiência de trabalhar mais o interior do personagem, porque apesar de saber o que era o processo do Actors Studio, não experimentava, não tínhamos aqui professores que trabalhassem esses métodos com a gente. Posteriormente, fui trabalhar com teatro, principalmente com diretores que me estimularam nesse sentido de interiorizar. Neste mês, trabalhei com um cara que acho um grande mestre da interpretação, meu ídolo no teatro, que é o Fauzi Arap. Fiz alguns trabalhos com ele como diretor, no teatro, e acho que aprendi muita coisa com ele. É o meu ídolo na área teatral. Trabalhei com o Antunes Filho também, protagonizei um Nelson Rodrigues com o Antunes Filho, Bonitinha Mas Ordinária, no qual aprendi muita coisa. Acho que todo ator vai amadurecendo, acho que a gente se engana, mas agora na velhice acho que estou na minha melhor forma como ator. Você vai amadurecendo, a gente tem um tempo de compreensão. E outra coisa também que me amadureceu muito como ator foi que há uns vinte, trinta anos para cá, comecei a dar aula de teatro. Aula para televisão e aula para teatro também.

Z – Você dá aula até hoje, né?

EG – Dou aula, tem um curso em que dou aula de interpretação de TV e cinema, na Oficina do Ator, um curso que tem no Rio de Janeiro, com uma filial aqui em São Paulo. Eu e minha mulher, a Mara Faustino, damos aula. Dou aula de teatro também.

Z – O Brasil Ano 2000, do Walter Lima Jr., para a época, era um filme super ousado, futurista. Como foi trabalhar com ele nesse começo de carreira e ambos?

EG – Foi o primeiro filme que fiz em que a gente ensaiou antes (risos). Fomos duas ou três vezes ensaiar na casa dele – ele era casado com a Anecy Rocha -, ali no Jardim Botânico, um apartamento grande, espaçoso, e fomos eu, a Anecy e o ator que fazia o índio, o Luis Fernando, irmão da Sônia Braga. Ele não ensaiou com o resto do elenco, que eram atores manjados, tarimbados: Ziembinski, Raul Cortez, Modesto de Souza, o pai do Arduíno Colassanti, Manfredo Colassanti. Ele ensaiou acho que umas duas ou três vezes com nós três, só. A gente leu, discutiu muito. Houve uma preparação, ele mandou que deixasse crescer a barba, mandou o maquiador Ronaldo Abreu – que foi o maquiador da Jeanne Moreau, quando ela veio ao Brasil fazer o filme do Cacá Diegues [Joanna Francesa], e ela adorou e levou ele para a França – fazer uma marca na minha cara, um detalhe. Havia uma hora de ensaio. Fazia um tipo meio interessante, inspirado no Caetano Veloso, o cabelo todo enroladinho. Nas cenas cantadas, a Anecy e o Luis Fernando eram meio desafinados, e no dia seguinte a Gal Costa e o maestro Bruno Ferreira dublaram os dois. No meu caso, é minha voz mesmo. Sou um cara afinado. A ideia era nós gravarmos mesmo, só que o único ‘aprovado’ fui eu. (risos) Foi em Paraty.

Z – Como foi a experiência?

EG – Muito diferente. Era um cinema muito bem pensado, elaborado, com um plano intelectualizado. O filme ia ser visto sob a ótica da censura, que era forte. O filme põe um general em cena. Mesmo que fosse uma projeção nos anos 2000. Discutia-se muito por um viés politizado. Era a primeira vez que fazia uma obra politizada. Era uma obra de esquerda. Eu tinha uma formação universitária, era jornalista, nós sabíamos o que estava acontecendo. Evidentemente, nunca peguei em armas, mas tinha uma visão de esquerda. Era contra a ocupação dos militares. A classe artística era toda contra a chamada Revolução de 1964. Sou oficial da reserva, fiz serviço militar em Porto Alegre. O universitário tinha direito de fazer o serviço militar separado. Era tempo do Jango ainda. Sou segundo tenente da reserva. Todos faziam isso na época. Nunca fui militarista. O que fiz era me livrar de ficar na tropa durante um ano. Não estou me justificando. Era contra a revolução. Quando cheguei em São Paulo em 1970, quando a pressão da censura ficou forte, nós tínhamos medo. Tínhamos medo de falar de política perto de um garçom, um motorista de taxi, porque muitos eram dedos-duros e você podia ser preso. As pessoas não tem noção disso hoje. Quando vim para São Paulo, fui trabalhar com o Samuel Wainer, no Última Hora. Ele era diretor de redação, não era mais dono, havia vendido aos Frias, da Folha. Fui redator por muito tempo, o Mário Prata me levou para lá. Foi um grande privilégio trabalhar, aprender e conviver com o Wainer. Um dia o Mário Prata escreveu um artigo sobre o Serginho Chulapa, que havia acabado de fazer serviço militar, dizendo algo do tipo: ‘Serginho Chulapa, que saiu do serviço militar e teve sei lá que formação, voltou para o Santos’. Um general mandou chamá-lo para ele se explicar. Meses antes havia morrido o [Vladimir] Herzog. Todo mundo se cagou de medo. Sabíamos o que acontecia, chegavam as notícias no jornal, mas não podíamos publicar. Sou um cara politizado (risos).

Parte 3

Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 3

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 3: São Paulo
 

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Z – Você fez também Águias em Patrulha.

EG – Não, esse eu não fiz, é do outro Ênio Gonçalves, meu homônimo! Isso é filme paulista dos anos 60. Em 1970, vim a São Paulo, passar uma temporada e visitar aqui, aí eu entrei em contato com o José Rubens Siqueira, que conheci durante a filmagem de Brasil Ano 2000, em Paraty, que durou dois ou três meses. Ele e a mulher dele, Maria Helena Grembecki. O filme foi rodado em 1968. Vim a São Paulo em 1970 e encontrei o José Rubens Siqueira e ele falou: “Ênio, to estrelando uma peça aí, o ator que tá fazendo vai ter que sair logo. Ele nem estreou ainda, mas vai ficar só um mês. Você não quer fazer?”. Falei: “Oh, tudo bem, seria legal ter uma experiência aqui em São Paulo e tal”. O outro cara também chamava Ênio, Ênio Carvalho, era meu colega de turma de teatro lá em Porto Alegre, ia ter que largar a peça depois de um mês, tinha outro compromisso e entrei no lugar dele. Era uma peça do Mário Prata, O Cordão Umbilical. Primeira peça que o Mário Prata escreveu. Fiz uma carreira longa aqui em São Paulo com a peça e fiquei muito amigo do Mário Prata. Muito amigo mesmo, fui morar no apartamento dele com o irmão dele, o Leonel Prata, ali no Copan. Aí fiquei aqui. Me queriam para um papel de um protagonista de uma novela da Tupi, Simplesmente Maria. Foi quando realmente estreei em televisão, nessa novela, com a Yoná Magalhães.

Z – Aí você começa a ser regular na TV.

EG – Aí começa a minha carreira na televisão, foi quando ganhei pela primeira vez na minha vida, ganhei um belo de um salário, comprei carro, aquelas coisas (risos). Fiz os primeiros cem capítulos. Levei um baile nessa novela, porque não tinha experiência de televisão. Nesse tempo, as novelas tinham um diretor, dois ou três atores que protagonizavam, e esses caras ficavam enlouquecidos, porque era tudo em cima deles. As novelas tinham três protagonistas, o vilão, a mocinha e o mocinho, os outros papéis eram pequenos e esses caras trabalhavam que nem loucos. O autor escrevia sozinho e no fim de três meses ele tinha um ataque cardíaco. O diretor também era um só. Com as externas, você gravava segunda, terça e quarta, em dois dias você tinha que gravar sete capítulos, oito capítulos, era uma loucura. Eu, realmente, tive um piripaque fazendo essa novela, era muita coisa pra mim. Tinha um momento que não conseguia nem mais entender o que tava fazendo, não decorava mais texto. Foi uma experiência traumatizante. Mas, pessoalmente fiz sucesso, eu fotografava bem, o papel era interessante, é um sujeito rico que se envolve com a empregada doméstica, tem um filho com ela e tal, um dramalhão mexicano (risos) O sucesso de público foi importante. Depois fiz outras novelas, como Hospital. Em 1976, fiz uma novela também muito importante para mim, do ponto de vista de divulgação da minha imagem, que foi Xeque-mate, com a Lilian Lemmertz, Maria Isabel de Lizandra, Rodolfo Mayer, Edney Giovenazzi, um elenco fantástico. Foi uma novela muito bem produzida, de época. Aí comecei a fazer baile de debutante, passei dois ou três anos fazendo baile de debutante, ganhando dinheiro com isso (risos), do ponto de vista promocional, foi importante essa novela, Xeque-mate.

Enio13A-225x300Z – Paralelamente a isso você fez teatro.

EG – É, comecei a escrever também e montei alguns espetáculos que escrevi. Voltei ao cinema para fazer um filme com o Braz Chediak, que foi um grande sucesso de público, chamado Eu Dou o que Ela Gosta, filmado no interior de Minas Gerais, no mesmo lugar onde a gente tinha filmado O Menino e o Vento, do Christensen.

Z – Nesse começo de carreira e depois, como você escolhia seus papéis?

EG – Outro dia, fiquei até espantando, quando vi o Seu Jorge falando, “Vou fazer filme com o Vincent Cassel, os outros diretores brasileiros que me desculpem, mas não vou poder filmar com eles”. Nunca tive essa de “Pô, vou escolher o que vou fazer”. Recusei alguns papéis, claro. Mas geralmente você faz para a sobrevivência, para a minha sobrevivência. Acho que não tô com essa bola toda, vou brigar para fazer. Escolhi o que fui chamado e fiz, porque precisava fazer, precisava ganhar um dinheiro, mesmo que fosse pequeno, precisava sobreviver na carreira. Nunca fiz uma carreira na televisão, nunca fui contratado na televisão. Fiz contrato na televisão para poder fazer a novela, nunca fiquei à disposição da emissora, recebendo salário, nunca tive essa colher de chá. A televisão é onde se ganha dinheiro. Fui contratado para fazer aquela novela específica, enquanto trabalhei ganhei. A novela acabou, acabou meu trabalho. Fiz, acho, nove novelas só – muitos teleteatros na TV, no canal 2, na TV Cultura. Muitas vezes, fui obrigado a fazer filmes que não tinha grande interesse, mas fiz com prazer, não me arrependo de ter feito nenhum, porque sempre conheci gente maravilhosa. Sempre falo: na carreira no teatro, TV e cinema, conheci as pessoas mais bacanas da minha vida. E também conheci as piores. Os alunos de cinema vinham me perguntar “Você fez pornochanchada?” Eles imaginam que fiz sexo explícito. A pornochanchada, na nossa época, todos nós fizemos, eu fiz, Tony Ramos, Nuno Leal Maia, todos eles fizeram, Dênis Carvalho. Hoje esses filmes poderiam passar na sessão da tarde, era simulação de sexo. Era um filme, talvez até de mau gosto, mas que não era agressivamente sexual. Fiz uns desses filmes e não me arrependo de ter feito nenhum, era sempre divertido, encontrei muita gente legal, convivi com muita gente legal, estabeleci relacionamentos maravilhosos, adoro o Fauzi Mansur, fiz seis ou sete filmes com ele, um cara que tem um puta conhecimento de cinema. Ele tem uma visão de cinema fantástica. Faz suas pornochanchadas, mas e daí? Um dia vai ser revista a obra do Fauzi Mansur. Tem alguns filmes dele ousados demais, mas com uma linguagem de cinema fantástica. Fiz alguns filmes com ele muito bons. Na época diziam: “Poxa, olha aí, pornografia”. Não era pornografia, é pornochanchada, um gênero que não era pura pornografia. Filmes ousados, maliciosos…

Z – Você se mudou para São Paulo em 1970, e, nesse período, ficou um tempo sem filmar, e só voltou com o Eu Dou o que Ela Gosta, do Braz Chediak. Por que isso?

EG – Porque não havia convite, ou não pude fazer. Fazia muito teatro em São Paulo. E fiz muita novela nessa época. Para fazer o filme do Braz Chediak, fui para o interior de Minas, onde foi rodado. Tive que largar o Última Hora, onde tinha carteira assinada. Ele insistiu tanto – não queria largar tudo. O Samuel adorava trabalhar com gente de teatro, a Martha Góes, o Oswaldo Mendes, a Joana Fomm, o Plínio Marcos. O Samuel adorava namorar as atrizes. Conversei com ele, que minha carreira de ator estava meio por baixo. Fui para o interior de Minas, mesmo lugar em que O Menino e o Vento foi rodado, e filmamos por três meses. Voltei para São Paulo, e voltei para o Última Hora, mas sem carteira assinada. Depois de Eu Dou o que Ela Gosta é que fui chamado pelo Fauzi Mansur para fazer Belas e Corrompidas.

Parte 4

Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 4

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 4: Boca do Lixo
 

Enio6A

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Z – Foi nessa época que você começou a frequentar a Boca do Lixo?

EG – No Belas e Corrompidas, tive a sorte e o prazer de conhecer – e de matar a pauladas – o Carlão Reichenbach. Não conhecia também o Fauzi. Minha mulher na época foi fazer o filme com ele, fui levá-la e ele me reconheceu e me ofereceu um papel. Aí conheci o pessoal da Boca. Sou cinéfilo também e comecei a trocar ideia com o Carlão. Um tempo depois ele disse que tinha um filme que queria fazer comigo, o Filme Demência. Fiz vários filmes na Boca com o Carlão fotografando, como Doce Delírio, do Manoel Paiva. Comecei a cruzar com o Carlão em filmagens. Ele é uma pessoa maravilhosa, de uma humanidade incrível.

Z – Você gostava de trabalhar na Boca?

EG – Gostava, era uma aventura. Adoro minha profissão: atuar, dirigir, dar aula… Cinema então, é uma paixão. Pode ser um curta-metragem. Tenho feito um monte com estudante de cinema. Faço com uma paixão. O pessoal fica meio espantado com minha dedicação, porque adoro essa porcaria de ser ator (risos). Acho fantástico fazer isso. Fazia os filmes da Boca com o maior prazer. Até prefiro conviver com pessoas menos intelectualizadas e mais simples do que com pessoas pretensiosas. Detesto pretensão. Acho que a gentileza é tudo. E conheci gente maravilhosa na Boca, com quem era sempre um prazer trabalhar. Mulheres bonitas também, interessante isso.

Z – Como era a atmosfera da Boca?

EG – Para mim era engraçado, era uma aventura, conheci ali pessoas fantásticas, personalidades fantásticas. Aquele cara que era o ideólogo da Boca do Lixo, que morreu escrevendo um roteiro. Conta-se essa história, que ele estava escrevendo um roteiro na Boca, e teve uma síncope, um acesso de sangue, não sei se é lenda, mas caiu, esparramou o sangue todo e morreu em cima da maquina de escrever. O Ody Fraga. Tem um filme que fiz com dois episódios, no episodio que fiz com ele faço o violinista que mata a mãe no final, estrangula a mãe em praça pública. Dirigido também pelo Cláudio Portioli, outra figura maravilhosa. Ele fotografou e dirigiu um dos episódios de A Noite das Taras II. Era uma convivência maravilhosa. Conheci superficialmente, nunca fiquei amigo, nem conversei muito com ele, mas conheci rapidamente o Candeias. Acho um filme dele maravilhoso, um que não me canso de ver: A Margem. Pra mim é o melhor filme brasileiro. Adoro esse filme.

Enio16A-225x300Z – Você fez muitos filmes com o Fauzi. Como era trabalhar com ele?

EG – Me dava bem com o Fauzi. Ele era bom demais, nunca tive problema. Acho que fiz cinco, seis filmes com ele. Nunca briguei com diretor nenhum, na verdade. Nunca tive nenhum problema com o Fauzi, pelo contrário. Ele era divertido. Sempre tento fazer o que diretor pede. Às vezes tive trabalhos até ruins em teatro porque sou muito disciplinado, às vezes não faço aquilo que quero, tento satisfazer o que o que o cara quer. Tentava fazer sempre o que o Fauzi queria. Acho que ele tem uma noção de cinema, da cena, da edição, ele sabe exatamente o que ele quer, ele tem uma visão. E do ator também, ele pede aquilo, ele tenta pedir pro ator fazer. Sempre me dei muito bem com ele. Nunca tive nenhum problema.

Z – Os filmes da Boca tinham menos tempo de filmagens?

EG – Havia nos filmes da Boca muita economia. Rodava uma vez, duas. Não podia gastar muito negativo. Era um jogo rápido.

Z – Você se adaptou fácil a esse esquema?

EG – É, me adaptava. Aliás, no cinema, desde O Menino e o Vento, também se rodava duas, três vezes. Mesmo o Brasil Ano 2000, que foi muito ensaiado. O Walter Lima Jr., que tinha uma elaboração maior, não fez durar muito tempo a filmagem, e ele ensaiava bastante, não tinha pressa. Era de uma calma incrível, tava indo o sol embora e ele: “não, vamos conversar”. Coisa que na Boca não tinha, era “vamos lá, pô”. O Walter não, ele se estendeu na filmagem durante uns três meses. E faltou dinheiro, o Glauber Rocha mandou dinheiro. Ele era um dos coprodutores, era da Mapa Filmes. Havia ali um clima de elaboração, de “vamos pensar”. Mas aqui na Boca não, na Boca era “pau no burro”. Ensaiava uma vez, e “tá bom?”. Se não foi bom, vamos lá uma segunda, e “ah, tá bom”.

Z – Mas você chegava a conversar com os diretores antes da produção, ou só quando estava começando a produção, nos ensaios?

EG – Não, não, na filmagem. Por exemplo, pra você ter uma idéia: o filme que eu fiz com o [José] Miziara, As Intimidades de Analu e Fernanda. Conhecia de cinema e de vista, nunca tinha conversado com ela, só via de longe, a Helena Ramos, que era a rainha da Boca, mas com quem nunca tinha filmado. Não me a apresentaram, nem foi ensaiado. O Miziara também era um diretor de atores experimentado em televisão, e ele me jogou no set. Quando fui filmar a primeira sequência, quando entrei no estúdio, ela, acho, estava pelada debaixo dos lençóis, me jogaram na cama com ela, e nem me apresentaram. E tinha que dar uns abraços e uns amassos nela. Na cama. Não fui nem apresentado, não troquei uma palavra com ela, como não tinha falas. “Entra lá e faz a cena, pega por aqui, abraça aqui”. Cara, senti que ela se sentiu constrangida, porque ela não me conhecia. Conhecia de vista, achava aquela mulher lindíssima. Mas nunca tinha conversado com ela, ela não sabia quem eu era, acho. E eu sabia quem era ela. Mas foi um constrangimento só, senti que ela fez a cena toda com medo de que tirasse casquinha dela. Porque acho que muito ator fazia isso. Eu nunca fiz, sempre respeitei muito meus colegas, e as mulheres com quem filmei. O respeito que tenho pelas pessoas é porque gosto que me respeitem também. Então sempre respeito muito. E percebi que ela ficou nos primeiros dias de filmagem achando que eu era um cafajeste da Boca do Lixo, que queria aproveitar pra dar umas encoxadas nela. Nunca fiz isso, e não fiz com ela. Depois de um tempo de filmagem, quando a gente foi filmar numa praia, que ela percebeu que eu não era um cafajeste a ponto de querer me aproveitar. Daí ficamos amigos. Mas inicialmente foi muito difícil, porque foi assim: “entra ai e faz, pô”. Claro que fiz pra valer a cena, mas não tinha nenhuma intenção. Percebi que ela ficou meio puta da vida, porque a Helena é uma pessoa cheia de pudor. Convivendo com elas, as mulheres que fizeram pornochanchada, que diziam que eram isso ou aquilo, pelo contrário. Tiveram algumas que fizeram e não eram prostitutas ou promíscuas. Helena é uma pessoa supercomportada, tímida até.

Z – Tirando isso, como era o Miziara dirigindo?

EG – O Miziara também era aquele cara que conhecia o metier, homem de televisão. Ele tinha um conhecimento, era um cara formado na televisão. E também foi um relacionamento legal. Ele também é aquele cara que te instrui, procurava e te dizia “teu personagem é assim e assado”, “essa cena a marcação é esta”, ele tinha um cuidado. O cara filmava com cuidado.

Z – Nessa época, você filmou também com o Ewerton de Castro como diretor, o Viúvas Precisam de Consolo. A experiência que ele tinha como ator facilitou o seu trabalho?

EG – Facilitou, o Ewerton também é um ator de formação. Grande ator de teatro, fez cinema também. Um ótimo ator. Também tinha essa direção, te estimulava. Me dei muito bem com ele, sou amigo dele até hoje. Já o conhecia, também era aquele cara com quem era confortável trabalhar. Aliás, tive uma única experiência ruim em cinema, mas não gosto de dizer, “as amargas não”, como diz o Mario Quintana. Não vou citar o nome, não vou dizer, mas tive um filme que me desentendi com o diretor, foi um desastre.

Z – Nessa época da Boca?

EG – Não, mais pra cá. Não cheguei a brigar porque não brigo. Mas me arrependo de ter feito, mas não vou dizer qual é o filme, é um em que fiz pequena participação.

Z – Como era o clima dessas produções, todas tinham o clima da Boca do Lixo mesmo?

EG – É, havia a preocupação em não gastar, de fazer rápido, não gastar negativo, em fazer de prima, ou de segunda, no máximo.

Z – Mas isso chegava a criar uma tensão dentro dos sets?

EG – Não, porque eram equipes em que todo mundo se conhecia, era o chamado pessoal da pesada. Por que pesada? Porque o material era sempre muito pesado, as câmeras eram pesadas, os refletores. Tinham que ser uns caras fortes para carregar. Hoje em dia tem meninas fazendo essa parte, mas naquele tempo era tudo muito pesado, a câmera, a bateria era um troço daquele tamanho, precisava de dois caras para carregar (hoje em dia dá para colocá-la no bolso). E eram os mesmos caras sempre, o Miro Reis, por exemplo. Uma turma da pesada, da equipe, que vivia ali, tava sempre achando trabalho, ali naqueles bares, o Soberano e outros bares da Boca, ficavam esperando porque sempre tinha trabalho. Todo mundo se conhecia, era tudo amigo. O medo era nas folgas, na hora de acabar a filmagem, ir aos os botequins encher os cornos e no outro dia estar de ressaca, porque muita gente bebia. O diretor ficava preocupado com o pessoal ir pro botequim encher os cornos e no outro dia estar de ressaca. Havia essa preocupação de vigiar o pessoal, porque poderia acontecer algum problema. Eu, ingenuamente, na primeira vez que filmei com esse pessoal, quando acabou a filmagem numa praia, falei: “vou pagar umas cervejas pra vocês”. Tinha uma meia dúzia de caras da pesada, da produção, veteranos da Boca. E paguei a cervejada, bebi a cerveja e fui embora, eles ficaram. Quando voltei, o cara me deu um esporro: “putz, você é louco, pô! não leva esses caras no botequim, pelo amor de Deus, vão tomar um porre, vão encher os cornos. Vão chegar de madrugada em casa, vão acordar todo mundo, vão todos criar confusão”.

Z – Depois você fez O Olho Mágico do Amor.

EG – Sim, outra experiência maravilhosa. O Ícaro Martins e o José Antônio Garcia tinham acabado de se formar em cinema, na ECA. E eles tinham algum contato com um produtor da Boca, o Adone Fragano e falaram: “começamos a fazer um filme barato, rápido”. O Adone comprou a ideia deles, chamou o Antonio Meliande para fotografar, que era um puta diretor, um cara experiente, e foram. “Entra aqui, faz aqui, vamos ensaiar uma vez só, tá ótimo, vamos filmar, pá!” E o Meliande também era rápido, esses fotógrafos todos eram rápidos, todos os fotógrafos ali, uma rapidez incrível. Meliande, o outro que citei, o italiano, Cláudio Portioli, também, rapidez incrível. E gente boa pra caramba, gentil. Gente sem pretensão; tinha nada que “autorizar”. E os meninos filmaram muito rápido.

Z – Eles dividiam, um cuidava mais dos atores e o outro cuidava mais da parte chamada técnica, ou não?

EG – Eles trocavam idéias. Os dois trabalhavam juntos, formavam uma dupla, os dois se entendiam muito bem, davam palpite, não sei se combinavam antes, mas na hora de ensaiar e fazer… Era muito simples, “não, senta aqui, caiu aqui, procura debaixo da mesa, encontra a filha lá embaixo”. Era muito simples, muito leve. Tem diretor que, às vezes, é muito pesado, o cara quer: “não, quero isso, faça aquilo”. Os dois tinham essa leveza. É muito patente nos filmes deles, nesses outros filmes que eles fizeram em dupla.

Z – Mas era muito diferente do cinema da Boca?

EG – Não, como o da Boca. Toda equipe era da Boca, os atores é que não eram. Tinha aquele bailarino, que hoje está na Alemanha, Ismael Ivo. Tinha uns fetiches, essas pessoas tinham uma paixão pelo Caetano Veloso, Carla Camurati, eles tinham uma sofisticação intelectual que não era da Boca, mas a equipe era da Boca.

Z – A forma de preparação também era similar à da Boca ou eles conversavam mais?

EG – Conversavam na hora, não se ensaiou antes. Essa coisa de ensaiar atores é coisa recente, isso de se reunir antes, discutir, fazer leituras antes. Em Filme demência, não houve leitura antes. Eu e o Carlão falávamos muito do personagem, em botequim e tal, mas não houve indicações mais concretas, na hora de filmar é que íamos fazer. Discutia-se muito os personagens, mas não tinha leitura antes. Outro filme do Carlão que fiz, Anjos do arrabalde, não houve preparação, não ensaiei antes. Já o mais recente que eu fiz com ele, Garotas do ABC, ensaiamos antes, nos reunimos, fizemos leitura de mesa antes das filmagens, uma semana antes, eu e o menino com que contracenei muito, o Dionísio Neto, e mais a menina, que estava na mesa. Ensaiamos, lemos muito, discutimos muito a cena, nos reunimos antes de gravar.

Z – Você falou muito do Meliande e você também fez um filme que ele dirigiu, o Tudo na cama. Ele era diferenteEnio5A1-300x225 como fotógrafo e como diretor, ou era o mesmo clima?

EG – Mesmo clima. Sempre legal, gentil. Também não ensaiou antes, o personagem era aquilo: um cara em despedida de solteiro, que vai casar e resolve estabelecer no último dia um contato com todas as amantes anteriores. Aí aparece o pai, que era o Walter Forster, e um bando de mulheres da Boca do Lixo, atrizes muito bonitas e interessantes. Aí ele se envolve, cada uma com uma história diferente, não era novo, mas era interessante. Era uma comédia bem feita, porque o Meliande era um grande fotógrafo, um colorido interessante.

Z – Você fez dois filmes com o Luiz Castellini, Instinto devasso e Elite devassa. Como era trabalhar com ele?

EG – Fiz um terceiro, que nunca foi exibido comercialmente. O Instinto devasso foi exibido duas semanas em Curitiba. No Festival do Rio e alguns meses depois ficou duas semanas em Curitiba. Pelo que sei, ele nunca foi exibido comercialmente em São Paulo e em mais lugar nenhum. Um filme curioso pra caramba, nunca vi um filme tão falado, é praticamente eu e a atriz. Eu faço um cara psicopata que fala o tempo todo. O que tive que decorar de texto… Quando o filme era mostrado, ninguém agüentava, porque falo do início ao fim. O personagem era inspirado no Jack Nicholson em O iluminado, aquele cara meio louco que fica atormentando a namorada, e fica falando. Só que o Castellini, que é um cara muito inteligente e preparado, chamou um amigo dele, um psicólogo, e foi escrever o roteiro. O personagem tem uma diarréia mental, fala do início ao fim do filme. Foi o papel mais difícil que fiz na minha vida. Pena que esse filme não foi pra exibição, porque não era comercial. Foi todo filmado no interior de São Paulo, num sitiozinho. Tinha uns milionários de São Paulo, resolveram bancar o filme. Um dos produtores era a Aurora Duarte, uma mulher que para mim era um mito! Ela tinha sido a mocinha de O Canto do mar, do Cavalcanti, que filmou lá no Nordeste, ele era uma figura famosa no mundo inteiro, foi lá pro Ceará e fez esse filme. É uma versão do filme En rade, um filme europeu, que ele tinha feito. Vi O Canto do Mar quando era garoto, em Porto Alegre. Como cinéfilo, fiquei com o filme na cabeça. E a Aurora fazia a heroína, a mocinha do filme. Depois ela foi pra São Paulo e fez filmes de cangaceiros, alguns [outros] filmes, e acho que ela conseguiu dinheiro para o Castellini fazer esse filme, que é bem cuidado.

Z – Você lembra qual foi o outro filme que você fez com o Castellini? Esse filme foi antes ou depois?

EG – Foi antes desses dois. Depois fiz um outro com ele, que nunca foi exibido. Depois do Elite. Tinha um ator aqui em São Paulo — os nomes estão me escapando —, já falecido, ele era marchand de tableau, e conseguiu dinheiro para fazer um filme, barato, em locações, e fomos filmar, acho que em Ubatuba também. Fomos todos para Ubatuba. E o Castellini escreveu um filme para ele. Imara Reis e eu filmamos lá. Só que a penúria era tão grande, que ele usou restos de latas de filmes. E o filme era uma versão do Holandês Voador, aquela lenda, adaptada para o Brasil. O filme ficou pronto. O Castellini me chamou para ver uma exibição na cabine de uma produtora. E fiquei espantado com a má qualidade da fotografia. Como usaram negativos já muito velhos, ficou tudo escuro, tudo ruim.

Z -Você se lembra quem fotografou?

EG – O fotógrafo era um cara que tinha sido assistente do Meliande, não me lembro o nome dele agora. Não sei se tinha sido a primeira direção de fotografia dele, não era um cara que fosse conhecido como diretor, ele tinha sido assistente antes. Nessa época, uma meia dúzia de caras da Boca fundou uma produtora: o Carlão, o Meliande, o Castellini. O primeiro filme foi Instinto Devasso, nessa empresa nova, mas esse já não era pela Embrapi, era uma produção do ator, desse rapaz que trabalhava com quadros, Igor, já falecido. Ele não tinha muito dinheiro. Então botou pouco dinheiro, o Castellini arranjou restos de negativo. O resultado foi muito ruim. Eu só vi essa cópia, não sei se tem outra, acho que tem só essa cópia. Esse filme nunca foi exibido comercialmente. Não sei o que houve, se foi um problema de distribuição, ou se o produtor, que era também o ator principal, não sabia lidar com essa coisa de distribuição. O fato é que o filme nunca foi exibido.

Z – Acho que você não chegou a trabalhar com os diretores que faziam filmes com menos dinheiro, menos recursos.

EG – Os filmes que fiz tinham um certo recurso. O filme que fiz com menos recurso, que era paupérrimo mesmo, foi um do Fauzi, Gaiola da morte. Era do Kopesky. O Fauzi me ligou, tinha acabado de fazer uma novela na Globo, tinha chegado do Rio naquele dia. O Fauzi falou: “quer fazer um filme? Tem um filme aí que vou fazer, e tal, quer fazer?”, eu disse: “quero, qualquer coisa que você me chamar eu faço!”. A gente foi filmar, dali a três dias, numa academia, de um cara que era campeão mundial de luta livre, um cara famoso. Ele tinha uma academia na Zona Leste, ou sei lá onde que era, [talvez] no Brás. Ele me falou: “vamos filmar, você vai lá fazer um policial”, e disse que estava bom, achei que a direção era dele. Não que tivesse algo contra o Kopesky, que era um cara típico da Boca do Lixo: escrevia seus roteiros, vivia em dificuldade mas calminho, sabia escrever, de certa forma um cara muito intelectualizado. E também um cara super gentil, simpático, era amigo dele. Mas achei que o filme era do Fauzi, não dele. Aí chego lá e falei: cadê o Fauzi? “Não, o Fauzi não pôde vir hoje, porque não sei o quê…”, e perguntei quem ia dirigir naquele dia, aí me falaram que era o Kopesky, que escreveu e ia dirigir. E achei que era só naquele dia, mas foi o Kopesky que dirigiu o filme inteiro. Não tinha condição, não tinha nada. Me recordo da menina que fazia a mocinha, ela diante do espelho da academia — que era uma academia simples, de certa forma, com um rinque fechado —,nem conhecia essa menina que era a mocinha do filme, e ela sozinha lá se maquiando na frente do espelho. A coisa estava preta mesmo, não tinha maquiador! Aí trouxeram pra mim um paletó que não me servia, era maior que eu. Não tinha muita iluminação. Confesso a você que nem vi esse filme, quando ele passou não estava aqui em São Paulo. Todos os filmes que faço, eu vejo, ao menos uma vez; meio escondido, que não gosto de me ver (risos). Talvez esse filme tenha sido o único assim pobre do jeito que você disse, sem recursos, abaixo das minhas expectativas. O ator era muito simpático, esse lutador de boxe, outro dia alguém que conheço me mandou um cartão e um abraço dele, um cara muito gentil. Hoje ele é comentarista, um cara alto, forte, muito simpático. Acho que ele que produziu, se não me engano. O filme teve pouca distribuição, acho.

Z – E o outro que você fez com o Fauzi, de terror, o Atração satânica?

EG – Esse era uma produção cara!

Z – Tinha acabado a Embrafilme, então esses filmes foram feitos pensando muito no mercado externo, para os EUA, onde tem um mercado muito grande de vídeo, pro cinema de gênero, como o policial, de terror.

EG – Foi uma produção cara, o Atração satânica, do Fauzi. Ele trouxe da Argentina uma atriz muito conhecida. Era uma estrela, tinha feito Tango, filme famoso rodado na França, com a Marie de la Forêt. Eu fazia um casal romântico com ela, um militar, de uniforme da marinha, que investigava os crimes de uma cidade praieira. Tudo filmado na praia. Era uma produção cara, tinha mais outra atriz argentina. E um elenco brasileiro interessante. Também foi legal, uma produção bem cuidada, demorada, ficamos hospedados num belo hotel na praia, em Ubatuba!

Z – Foi muito diferente para você fazer filme de terror?

EG – Não, era mais investigativo. Tinha umas cenas de terror, mas fazia um cara que estava investigando um crime, um militar que se envolve com a atriz argentina, que foi dublada. Era uma radialista, e os crimes tinham algo a ver com o programa de rádio dela. E eu ficava investigando. Esse filme foi exibido fora do Brasil. E participou de festival de horror não sei onde.

Z – Como foi para você a entrada do sexo explícito no cinema? Foi um baque ou era algo que você já esperava?

EG – É, acabou fechando um mercado, o sexo explícito acabou com a pornochanchada. Mas não foi um baque, porque ator está acostumado com isso. Você trabalha, fica desempregado alguns meses, depois volta e faz dois serviços ao mesmo tempo. A Boca parou, mas tinha outras opções, estava ocupado com outras coisas. Não senti nada. Para mim, foi normal que tivesse acabado. Ruim mesmo foi para os caras que viviam só daquilo, os técnicos principalmente, que de repente não trabalharam mais, né? Muitos foram para a publicidade, mas os mais velhos ficaram meio abandonados. Aqueles velhos homens da pesada sentiram muito. Os mais novos foram para a publicidade, ou então para a televisão. O Meliande foi para a Globo.

                                                                                                                Parte 5

Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 5

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 5: Carlão Reichenbach e os dias de hoje  

Enio7A

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Z – O Filme Demência é um projeto do comecinho dos anos 80, por volta de 1982, e foi filmado em 1985, se não me engano. Você já estava no projeto naquela época?

EG – O Carlão falou assim para mim: escrevi esse filme para você. Quando foi filmado, ele demorou alguns meses para engrenar. No meio do filme faltou grana, parou uns três ou quatro meses, o Emilio [di Biase, ator] segurou a peteca, disse que a gente tinha que fazer, pois a gente adorava participar daquilo. O Carlão agradeceu muito a ele e a mim por não termos abandonado o projeto. Chegou um momento em que a filmagem parou. O José Roberto Eliezer fotografava filmes publicitários e tinha milhões de compromissos, quando ele saiu foi o Carlão que fotografou. A parte final, o que faltava da filmagem, cerca de um quarto do filme, foi fotografada pelo Carlão.

Z – Como foi a preparação para o papel? O Carlão considera esse um filme muito autobiográfico, que traz muito dele. O filme foi escrito em parceria com o Inácio Araújo, mas era uma coisa muito pessoal do Carlão, e ele considera o Fausto, o seu personagem, como o alterego dele.

EG – Sim, o papel foi muito conversado. Nos encontramos muito para conversar sobre o filme, e ele também se inspirou muito no pai dele, que também tinha uma pequena empresa, mas não de cigarros. Foi dono de uma editora. Histórias do pai dele. A preparação foi essa: conversar muito. É um road movie, um filme épico, pois são situações aqui e ali, uma trajetória, um caminho que o personagem segue. O papel era um prato cheio, para mim, como ator. De interiorização, aqueles papéis que raramente você ganha. Um papel cheio de nuances: a relação dele com a mulher, começa lá na casa, ele e a Imara Reis no início do filme, depois se olhando no espelho com aquela lâmina, aquela coisa meio autodestrutiva do personagem que está falido. O cara de classe média alta, a filha pequena vendo televisão, toda aquela tristeza, a angústia que ele tem da falência, aquela coisa triste de ir na empresa dele, encontrar tudo fechado e arrombar o lugar. Aí tem a procura pela ex-namorada, aquela atriz maravilhosa que faz o papel da ex-namorada, ele toma um banho, ela passa a roupa dele. E tem também um ator fantástico que faz aquele cara novo que fica discursando. Mas todas aquelas situações, na agência de automóveis, os personagens que o Emilio faz, que são muito interessantes: aquela velha, e depois ele faz o demônio. O Carlão tem umas coisas que adoro, essas coisas inusitadas, ele te surpreende. O cara acha que o filme é um melodrama, daí ele vai ver e pensa: isso não é melodrama porra nenhuma, que que é isso? Ele fez toda uma seqüência homenageando alguém, tem um estilo meio japonês, é surpreendente. O Carlão não é pra qualquer público.

Z – Você chegou a ler Fausto, do Goethe, na sua preparação para o filme?

EG – Conheço, tenho aqui diversas versões. Como sou de teatro, adoro livros, adoro ler, tenho aqui umas duas ou três versões do Fausto do Goethe. Conheço bem o Fausto, já conhecia antes. O primeiro Fausto e também o segundo, depois ele escreveu uma continuação, já na velhice. Mas é a idéia. O filme não segue passo a passo o que está no livro.

Enio14A-300x225Z – Como era trabalhar com o Carlão?

EG – Eu tô começando a me repetir (risos). Ele é fantástico. Fazer uma coisa que você gosta com outras pessoas que também gostam, é um prazer. Aí você pode até virar a noite, porque fazer as coisas com prazer é muito melhor. O Carlão é uma pessoa adorável. Quando converso com ele, a gente não fala que a Dilma fez isso, que o José Dirceu fez aquilo, nós só falamos sobre cinema. A impressão que tenho é a de que o Carlão não sabe porra nenhuma do que tá acontecendo no mundo. Por outro lado, sabe tudo o que tá acontecendo dentro do cinema, e o que já aconteceu. Sempre tem uma referência de cinema. Às vezes eu falo assim: “vou pegar ele”. Daí eu chego e pergunto: “Você conhece um filme de um cara chamado Arch Oboler, Five [Os Últimos Cinco, no Brasil]? E ele diz: “Sei!” (imitando a voz do Reichenbach). Porra! Eu nunca encontrei um cara que soubesse! Eu sabia porque, quando menino, tinha assistido esse filme. E esse filme ficou na minha cabeça, gravei o nome do diretor. Vi filmes com quatro anos de idade que ainda me lembro. Esse vi com mais idade, tinha uns doze, sei lá. Mas fiquei com esse filme gravado. Um filme econômico, curioso, interessante, que você pode fazer sem grana. Eu detesto essas mega-produções. Esses blockbusters americanos, acho isso uma merda, não consigo ver. Às vezes tem uns caras talentosos, como o Michael Mann, tudo bem, mas não vejo, acho isso uma merda, que acabou com o cinema. Gosto de cinema artesanal, que te diga alguma coisa, que te inspire, que te faça viajar, não essas besteiras, que você já sabe o que vai acontecer, essa coisa previsível. Eu prefiro A Margem! (risos).

Z – Depois do Filme Demência, você fez o Anjos do Arrabalde, e mais de 15 anos depois o Garotas do ABC, pelo qual você ganhou um Candango.

EG – Foi. E com o Filme Demência eu ganhei um prêmio no Rio, o FestRio, como Melhor Ator. E em Brasília ganhei como ator coadjuvante pelo Garotas do ABC.

Z – Recentemente, você fez alguns outros filmes, como o Quanto Vale ou é por Quilo, do Sérgio Bianchi. Como é trabalhar com o Bianchi? Assim como o Fauzi, as pessoas dizem que é difícil trabalhar com ele.

EG – Sim, para mim foi difícil. (pausa e risos). Só isso tenho a dizer.

Z – Você tem alguma preferência por algum dos seus trabalhos como ator? Algum pelo qual você tenha mais orgulho de ter feito?

EG – Não sei, gosto de todos os que fiz, mas alguns me deram mais projeção. O Filme Demência, O Menino e o Vento também, Brasil Ano 2000. Os filmes do Carlão, todos foram muito importantes para mim, todos me valorizaram muito. Mas como já tinha falado, não me arrependo de filme nenhum, gosto muito de todos os filmes que fiz, foi sempre muito bom. Mas alguns me promoveram mais, né?

Z – Recentemente você também participou de programas de TV, você esteve em Páginas da Vida.

EG – Fiz uma participação pequena em Páginas da Vida. Tinha feito uma outra novela fora da Globo, depois fiz essa aí. Mas o pessoalEnio12A1-300x225 de televisão é muito novo, eles querem que eu faça teste, que eu faça ponta. Não me conhecem, nem sabem que fiz algumas coisas importantes, daí me tratam como se estivesse começando minha carreira depois de velho. E eu me recuso. Porra, me chamam para fazer um teste, aí eu chego lá e o assistente do assistente vai me explicar como é que devo fazer. Outro dia mesmo no cinema, um cara me chamou e fiquei muito chateado. Me chamou para fazer um filme, um longa. Aí fui lá, e me fotografaram. Dois dias depois me disseram que minha fotografia tinha sido aprovada e me perguntaram se faria um teste – isso o assistente do assistente. Aí fui lá. E disseram pra mim: “Vamos fazer o seguinte, uma improvisação. Você entra aqui, a mulher vai bater na sua porta, você abre e fala com ela, improvisa um texto com ela, ela vai te pedir uma informação, você responde e aí a gente filma”. E eu disse: “Sim, mas me dá subsídios. O que acontece com esse personagem? Como ele é?” E eles: “Não, mas essa cena é só essa cena, a gente cronometrou e tem uns 28 segundos”. O cara tava me testando pra fazer 28 segundos num longa-metragem! Eu falei: “Você me desculpa, mas não tô interessado, acho que não sei fazer isso”. E fui embora. Porra! O cara me testa três vezes para fazer 28 segundos de longa-metragem?! Isso é sacanagem. Aí chega um e me diz: “Você tá se achando!”. Tô me achando porra nenhuma! Isso é demais, não vou fazer isso, cara. Me senti muito humilhado. Faz dois anos. Um filme que passou por aí. Não vou dizer o nome do filme.

Z – Você tem planos, projetos para cinema e teatro?

EG – Tenho. Estou em cartaz com uma peça, O Berço do Herói. Tem dois filmes que fiz e que vão passar ainda: um é uma produção bem precária do Diomédio Piskator, chamado Papo de Boteco, em que faço um dos episódios. E o outro é uma produção bem cuidada, apesar do tema estar em tendência. se chama O Filme dos Espíritos. O personagem é bem interessante, acho que foi um bom trabalho meu. Vai entrar em cartaz em outubro, agora.

Z – Algum outro longa que você irá fazer?

EG – Tem um outro longa que talvez eu faça, entraram em contato comigo, mas não decidi ainda. É um filme para a TV Cultura, esses telefilmes aí. O diretor e a diretora conversaram comigo, disseram que a gente ia conversar de novo essa semana, mas não acertamos nada, de repente nem faço. E entrei num edital com uma coisa que nunca tinha feito: dirigir filmes. Eu conheço uma garotada aí da FAAP, com quem fiz diversos curtas, e um dos garotos da FAAP abriu uma produtora e me ofereceu a proposta de dirigir um curta. Entrei com um projeto de curta num edital da Prefeitura. É uma ficção de quinze minutos, no máximo, mostrando aspectos de São Paulo. Escrevi um roteiro de três personagens, que se passa no Pátio do Colégio, uma historinha de quinze minutos. Porque sou teatral, tenho diversas peças montadas, escrevo peças. Escrevi esse roteiro e apresentamos o projeto por lá. Se ganhar – acho difícil que ganhe -, eu dirigiria e atuaria, com mais uma atriz e outro ator. A atriz seria minha filha mais nova, que tem vinte anos e um jovem ator, também de vinte anos. Acho bem curioso o filme.

Z – Qual é a história?

EG – Não tem bem uma história. São dois personagens bem desorientados: um cara jovem e um executivo, de terno, gravata e pastinha, que se cruzam ali, quando começa o filme. Tem também esse personagem meio misterioso, que é a menina. Tem um nível realista e outro meio surrealista. Começa o filme e tá esse cara andando no meio da rua, esse executivo, naquela rua cheia de gente, ali onde fica a Bolsa de Valores, no meio do povo. Ele sai num elevado ali, onde não tem quase ninguém, e aí uma moça pede ajuda e mostra um cara que está prestes a se jogar da beira do viaduto. Ele vai lá conversar, tentar tirar o cara, já que a moça tinha insistido. E então eles saem conversando, vão até o Pátio do Colégio, e a moça parece que tá seguindo o cara, como se fosse o anjo da guarda do cara que ia se matar. E tem um diálogo, esse outro cara também está meio desorientado, os dois são meio pirados, cada um a seu modo. E tem esses encontros, diálogos meio surrealistas e tal. Quinze minutos.

Z – É isso, Ênio. Há alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

EG – Não. Acho até que falei demais.

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Entrevista: Ênio Gonçalves

Dossiê Ênio Gonçalves

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Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Comemorando os 70 anos de vida de Ênio Gonçalves (1941-), um dos grandes atores do cinema brasileiro, a Zingu! visitou sua casa em São Paulo. Ênio teve passagens pela TV, teatro, cinema e até pelo jornalismo. Gaúcho, começou no Rio, nos anos 1960, quando trabalhou com, entre outros, Carlos Hugo Christensen, Julio Bressane, Aurélio Teixeira e Walter Lima Jr. Já em São Paulo, consagrou-se pela Boca do Lixo, em filmes de Fauzi Mansur, Luiz Castellini, Antonio Meliande, José Antonio Garcia e Ícaro Martins, entre muitos outros.

Dono do papel alter-ego de Carlos Reichenbach, com quem teve curta mais muito respeitosa parceria, em Filme Demência, como Fausto, Ênio Gonçalves não teve pudores na entrevista e comentou sobre toda sua trajetória. Homem reservado, casado hoje com a também atriz Mara Faustino, deixou a Zingu! entrar e conhecer mais de sua vida e, claro, do cinema brasileiro.

Parte 1: Começo de carreira

Parte 2: O cinema

Parte 3: São Paulo

Parte 4: Boca do Lixo

Parte 5: Carlão Reichenbach e os dias de hoje

A Gaiola da Morte

Dossiê Ênio Gonçalves

 

A Gaiola da Morte
Direção: Waldir Kopezky
Brasil, 1992. 

Por Ronald Perrone 

Em O Rei dos Kickboxers (The King of the Kickboxers), de 1990, um cineasta sem escrúpulos obrigava lutadores do mundo inteiro a se enfrentarem até a morte em uma arena cercada de bambus. Um policial, vivido por Loren Avendon, consegue se infiltrar para tentar derrubar o negócio e vingar a morte do seu irmão. Eis aí um clássico do chamado kickboxer movie, subgênero que infestava as locadoras no início da década de 1990 com centenas de fitas que traziam o termo kickboxer no título. 

Se transportarmos a história de O Rei dos Kickboxers para o Brasil, aproveitando várias ideias, como a arena de bambu e o diretor sedento por sangue, alterando apenas alguns detalhes, acrescentando elementos à brasileira, teríamos então um legítimo representante nacional dos kickboxer movies. E é exatamente isso que o produtor Fauzi Mansur e o diretor Waldir Kopezky fizeram para aproveitar o êxito comercial deste filão das locadoras. O resultado desta empreitada é o excêntrico A Gaiola da Morte, o único kickboxer movie nacional! 

E se não havia por aqui um ator do calibre de um Van Damme, ao menos Paulo Zorello estava disponível. Tricampeão mundial de kickboxer pela WAKO (World Association of Kickboxer Organization), o lutador brasileiro tirou vantagem do sucesso que a luta lhe proporcionava na época para fazer de A Gaiola da Morte, seu único trabalho como ator, um veículo de auto promoção. Inclusive, Zorello, com seu bigodinho e mullet oitentista, interpreta a si mesmo no filme. 

A trama é simples, o roteiro é desengonçado e os diálogos são pérolas cheias de momentos constrangedores e de humor involuntário, mas como o foco de seus realizadores é ser somente um sangrento filme de pancadaria, daremos um desconto. Lutadores de todo o Brasil são sequestrados e forçados a lutarem até à morte dentro da tal gaiola feita de bambus escondida em uma fazenda. O cenário é risível, mas com um pouco de criatividade, a coisa funciona. Os prisioneiros ficam detidos com correntes eletrificadas, o local é cheio de armadilhas e na arena várias pontas de bambus são apontados na direção dos lutadores. E parecem bem afiadas, já que o sujeito mal encosta nos bambus e já tem o corpo completamente perfurado!  

A irmã de um desses infelizes sequestrados, interpretada por Cláudia Abujamra, vai até a academia de Paulo Zorello pedir-lhe ajuda e este decide se infiltrar na organização para desmascará-la depois de descobrir que um amigo desaparecido também foi morto no local, travando uma luta mortal na gaiola. 

E o destaque de A Gaiola da Morte é justamente o trabalho nas cenas de combate corpo a corpo. É óbvio que não chega ao nível de um Irmãos Kickboxer, ou Retroceder Nunca, Render-se Jamais 2, exemplos do que há de melhor neste subgênero em termos de luta, até porque a pobreza dos cenários e da produção não permitiria tal coisa, porém, as sequências de porrada por aqui são curiosas, engraçadas e até funcionam, apesar da coreografia amadora, mas toda bem pensada. A direção segura de Kopezky e a seriedade com a qual os atores se dedicam para aplicar e receber pontapés e murros durante os confrontos também contribuem para o resultado.  

O que realmente mata nestas sequências são os efeitos sonoros exagerados, fazendo com que um soco ecoe como um tiro de escopeta. Relevando estes detalhes, o filme cumpre o que promete, por mais bizarro que seja. Os últimos 30 minutos, por exemplo, são compostos por um inacreditável festival de pancadaria sem fim, com lutas acontecendo em vários locais diferentes, dublês pulando de certa altura em cima de um monte de caixa de papelão, um sujeito que desvia de tiros com saltos de capoeira, enfim, é ver para crer.   

No elenco, além de Zorello, Abujamra e vários lutadores de artes marciais da época, temos algumas figuras da Boca do Lixo em fim de carreira, como Alan Fontaine e Custódio Gomes. Ênio Gonçalves também dá as caras por aqui, na pele de um policial que passa informações para o casal de heróis, mas sua participação não dura cinco minutos. 

A Gaiola da Morte foi lançado em VHS no Brasil, mas é triste constatar que hoje já virou peça de museu. Independente de ser uma tranqueira muito divertida, o filme merecia algum reconhecimento a mais por ser o primeiro e único exemplar do subgênero Kickboxer Movie no Brasil.

Ronald Perrone é pesquisador de cinema classe B, colabora com o blog O Dia de Fúria (http://diadafuria.wordpress.com/) e edita o blog Dementia 13 (http://demmentia13.blogspot.com/).

Anjos do Arrabalde

Dossiê Ênio Gonçalves

Anjos do Arrabalde
Direção: Carlos Reichenbach
Brasil, 1987.

 Por Matheus Trunk 

O crítico de cinema Inácio Araújo considera Anjos do Arrabalde o melhor longa-metragem realizado por seu amigo Carlos Reichenbach. Também pudera. São poucos filmes nacionais que exploram o universo feminino com tanta profundidade. Nesta película, o realizador gaúcho radicado em São Paulo aborda a trajetória de vida e os problemas cotidianos de professoras da rede pública da capital paulista.

Ator fetiche do cineasta, Ênio Gonçalves é Henrique, um advogado especializado em defender tipos marginais. Com trânsito livre em diversas delegacias, ele é casado com a ex-professora Carmo, personagem interpretada com perfeição pela atriz Irene Stefânia. Diferente dos tipos que faria em outros trabalhos com Reichenbach, dessa vez  Ênio não é um homem com sólida formação intelectual. O industrial falido de Filme Demência e o jornalista de esquerda de Garotas do ABC são pessoas sofisticadas. O advogado de Anjos é um boçal de pouca instrução, que o possui o desejo de ascender socialmente. Desaprova qualquer tentativa da esposa ter uma vida própria. Acaba levando isso às últimas conseqüências.

O espectador que assistir ao filme irá perceber que existe um claro conflito entre os homens e as mulheres. As personagens femininas são quase sempre reprimidas pelos masculinos. Isso fica latente na relação estabelecida entre a professora Rosa (Clarisse Abujamra) e o inspetor de ensino Soares (José de Abreu). Ou na difícil vida diária de outra professora, Dália (Betty Faria) e o irmão problemático Afonso (Ricardo Blat). No caso da personagem Aninha (Vanessa Alves) isso vai mais longe. A moça vive com um homem mais velho que não ama, é rejeitada pelo pai e ainda é estuprada.

A periferia de São Paulo é belíssima. É pena que os nossos cineastas, principalmente os de esquerda quase nunca a mostrem. Durante muito tempo, cultivei um estranho hobby, de pegar ônibus para conhecer bairros mais afastados. Um dos méritos de Anjos do Arrabalde é mostrar essa área da cidade sem um olhar sociológico ou político, mostrando as pessoas como elas são. Tarefa que Reichenbach fez com brilhantismo.

São diversos os aspectos que me levam a afirmar que este é um dos melhores longas-metragens do diretor. Mas o principal é que ainda existem sujeitos que tratam as mulheres da mesma maneira que os personagens masculinos do filme. Quando vemos isso no dia-a-dia, nos deparamos com a grande marca autoral que Carlão cultuou nesse filme e no cinema brasileiro.

    

A Noite dos Bacanais

Dossiê Ênio Gonçalves

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A Noite dos Bacanais
Direção: Fauzi Mansur
Brasil, 1981.

Por Gabriel Carneiro

A Noite dos Bacanais é mais do que apenas surubas, com sugere o título. Nele, Ênio Gonçalves faz um marido meio conservador que tenta segurar como pode o casamento, especialmente quando sua esposa (Zaíra Bueno) sugere que, para reavivá-lo, deveriam experimentar diferentes práticas sexuais, a fim de não cair na monotonia. Sua esposa tampouco quer engravidar. Muito a contragosto, Ênio topa participar das festas de swing, e convence a mulher a ter um bebê de proveta. Pois bem, se o filme, assim como muitos dos filmes da Boca, é libertário em retratar para as classes populares – e não apenas – a questão sexual, não cai, felizmente, em clichês moralistas ao seu término – como o recente De Pernas pro Ar, por exemplo.

Em A Noite das Bacanais, Fauzi Mansur consegue desbancar alguns preconceitos pela simples condução da narrativa, como, por exemplo, contrapor o marido meio conservador com a esposa libertária – invertendo valores tradicionais que apontam o homem como o sedento pelo aumento do número de parceiras sexuais. Nisso, o filme já ganha imensamente, por buscar fugir da mesmice. Em outro momento, um preconceito escancarado pelo personagem de Ênio justifica-se na trama: ao descobrir que a barriga de aluguel é negra, indigna-se. Mas há um motivo muito particular para tal, como construção de um personagem.

Tal história vem embebida de um tom sério, dramático, com toques policiais, que só acentuam a importância da trama, sem degringolar para uma possível estereotipação e paródia dos temas relatados. Logo na primeira cena nota-se que o tema será tratado até dentro de um quê existencial, de desmistificação de preconceitos muito internos: no zoológico, um casal de onças está deitado, descansando, sem nada fazerem. Observando, Zaíra logo aponta que as onças são muito parecidas com os homens, especialmente, quando constata a monotonia sexual dos felinos. Se parece risível a olhos contemporâneos a história, não se pode deixar de considerar que o gancho é apenas uma forma de adentrar, com graça, a uma questão maior: a vida sexual dos casais.

Claro que, como não podia deixar de ser num mercado que exige a exploração do sexo como forma de lucro, há cenas diversas de nudez e erotismo, bem ousadas até para filmes não explícitos, como é o caso desse A Noite dos Bacanais. Muita nudez frontal, tanto masculina quanto feminina, dá o tom para as diversas cenas – algumas excessivas e deslocadas da narrativa – entre homens e mulheres, mulheres e mulheres, e contando até com um transexual. Se o explícito não faz parte da trama, seu modelo porvir contribuiria com alguns momentos do longa: os intervalos comerciais para as cenas de transa. Não chegam a prejudicar o filme, mas tampouco o favorecem.

Mas, reitero: a principal qualidade de ótimo filme como A Noite dos Bacanais é não ser careta como muito o é o cinema – e as pessoas – de hoje.