Dossiê Ênio Gonçalves
Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 2: O cinema
Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto
Zingu! – Como você ingressou no cinema?
Ênio Gonçalves – Um diretor de cinema me viu fazendo a peça, o Carlos Hugo Christensen, o argentino, que estava preparando um filme chamado O Menino e o Vento, baseado num conto do pai da Maria Clara Machado, o Aníbal Machado. Ele me viu e achou que eu estava preparado para fazer esse filme, não no papel do menino, mas como o engenheiro, que tem vinte e poucos anos.
Z – Antes você já tinha feito Sangue na Madrugada, não?
EG – Sangue na Madrugada, do Jacy Campos, que era um cara que eu conhecia, da televisão. Fiz uma pequena participação nesse filme. Aí fiz O Menino e o Vento. É um papel de protagonista, um papel difícil.
Z – Você também começou na TV nessa época, né?
EG – É, fiz algumas coisas no Rio com o Jacy Campos. O Câmera Um, acho que fiz dois episódios, que era televisão ao vivo, uma câmara só. Um programa que ele copiou dos EUA, Camera One, na Tupi do Rio. Foi quando ele me convidou para fazer Sangue Na Madrugada.
Z – Como foi a preparação do papel de O Menino e o Vento? O Christensen era uma pessoa que dirigia bem atores, dava mais liberdade?
EG – Ele dirigia bem. O Christensen era um cara muito disciplinado. Quando ele me viu no teatro, ele pediu para fazer um teste de leitura comigo. Ele me deu o roteiro, mandou que eu o lesse em casa. Na leitura, falou: “É isso mesmo que quero, gostei da sua leitura, acho que você teve uma compreensão do personagem, quer fazer?”. “Quero, quero”. E acabei fazendo. Foi adiando muito, porque ele não tinha grana, não tinha produção, não tinha dinheiro para fazer o filme, foi difícil ele arranjar dinheiro. Era todo filmado em Visconde do Rio Branco, uma cidadezinha da Zona da Mata de Minas Gerais. Ele era muito rigoroso e disciplinado, o diretor de fotografia era um cara muito competente, eles se davam muito bem, o Tony Gonçalves. Foi feito em preto e branco, era um cara muito metódico. Gostava muito da minha disciplina, ele era argentino, ele falava: “Enio no es un ator, es um soldado” (risos). O Christensen usava cabelo raspado do lado, dizem que o pai dele foi um soldado prussiano, na Primeira Guerra, então ele tinha uma formação meio militar, ele gostava. Quando acertei de fazer o papel, ele mandou fazer um curso de equitação, porque eu não sabia, sou gaúcho, mas nunca andei a cavalo, um gaúcho de cidade, minha mulher fala até que sou gaúcho paraguaio, não sei fazer churrasco (risos). Esse curso de equitação no Rio de Janeiro era na Barra da Tijuca ou São Conrado, por ali, tinha um haras. Quem dirigia o haras era, acho, um ex-nazista. Era um conhecido dele. Não quer dizer que o Christensen era nazista, evidentemente, era um artista maravilhoso, um cara respeitado. Aprendi a cavalgar com esse nazista (risos). Foi uma filmagem muito interessante, primeira experiência que tive realmente de cinema, de fazer um papel, ficar em locação. Foram uns dois meses de filmagem.
Z – E como funcionavam os ensaios?
EG – Eram na cena. Não ensaiávamos nem no dia anterior. Era na hora, eu tinha o papel decorado, ele dava a marcação, corrigia, e trabalhávamos assim, oito horas. Quando dava oito horas, parava. E era pá-pum, porque o Antônio Gonçalves era um cara muito profissional. Ele fotografou outros filmes do Christensen, se entendia muito bem com ele. O horário que tava programado a gente fazia, quando estourava o horário, parava. Ficamos ali nessa cidadezinha muito interessante, uma convivência legal com a cidade, uma experiência maravilhosa para mim, que sonhava em fazer cinema, era tudo o que queria na vida, acho que nunca fui tão feliz na minha vida. Nessas externas, depois em Paraty com o Walter Lima [em Brasil Ano 2000], também passei dois, três meses lá no verão, também foi outra experiência maravilhosa de me sentir ator de cinema. Dizia: “Meu Deus, sou um cara privilegiado, um cara que nasceu lá no subúrbio de Porto Alegre, distante, de repente estou fazendo isso, meu Deus, que coisa!”. Era tudo o que queria na vida.
Z – Você chegou a ter outros convites para trabalhar com o Christensen?
EG – Não, porque logo que a gente fez o filme, ele deu uma parada, de certa forma. Quando vim para São Paulo, soube – me disseram – que ele andou me procurando. Em 1970, quando vim morar aqui, parece que ele andou me procurando lá, para fazer um outro filme dele. Mas não tinha contato. Sou um cara muito reservado, e tímido. Trabalhei com o Christensen, me dei muito bem com ele, mas nunca fui amigo, nunca convivi com ele. Com o Walter Lima foi a mesma coisa. Para mim, foi muito importante ter feito o Brasil Ano 2000, mas perdi o contato com o Walter Lima. Uma vez o encontrei em Gramado, a gente sentou junto numa mesa, uma porção de gente, nem trocamos uma palavra! Acho que mal um “Oi, tudo bem?”. Acho que não sei estabelecer esse vínculo com as pessoas. Mesmo o Carlão, que sei que gosta de mim e eu adoro ele, que disse que sou o alter ego dele, não mantenho contato. Não fico ligando para o Carlão, não fico falando no telefone. Quando encontro com o Carlão é porque eu vou assistir à Sessão do Comodoro, e converso com ele lá, mas não freqüento a casa, não deixo os caras muito à vontade para me chamarem. Não quero ficar me impondo, puxando o saco, pedindo pelo amor de Deus para trabalhar. Às vezes tem pessoas que se ressentem disso, não faço parte de nenhuma corriola em teatro, fico na minha, me isolo um pouco, não deveria… Deveria fazer mais relações públicas e não faço. Mas é o meu jeito, sei lá.
Z – Depois você fez o filme do Julio Bressane, Cara a Cara.
EG – O Cara a Cara! Acho que não tinha sido lançado O Menino e o Vento, quando fiz o Cara a Cara. Era um dia de filmagem, e foi legal, inesquecível esse dia. Filmamos uma sequência só, no Jardim de Alá, Helena Ignez e eu, um na frente do outro, dois bancos. Posteriormente, assistindo Antes da Revolução, do Bertolucci, vi que tem uma sequência exatamente igual. Na verdade, o Bressane, que conheceu o Bertolucci na Itália, deve ter feito uma homenagem, porque a sequência é exatamente igual. No filme do Bertolucci, é um protagonista com um amigo, um banco, as mesmas tomadas. A mesma coisa. E é interessante esse filme, Cara a Cara, porque é um filme quase não falado, e a única sequência falada pra caramba é a sequência minha com a Helena Ignez, em que trocamos um diálogo enorme. E é interessante também porque é a primeira direção de fotografia do Afonso Beato.
Z – Como era trabalhar com o Bressane?
EG – Fiz num dia só, foi filmado numa tarde. Foi super gentil, também me deu o texto na hora, não ensaiamos antes, e devíamos ter ensaiado (risos), porque era uma cena grande de diálogo, mas foi super agradável. Foi super gentil, foi legal, uma tarde inesquecível para mim e para ele.
Z – Logo depois você fez o Juventude e Ternura, do Aurélio Teixeira, que também era um papel grande.
EG – Fazia o galã da Wanderléia. Devo isso ao Braz Chediak. Quando voltou da Itália, ele fez diversos filmes com o Aurélio Teixeira. Quando o Aurélio foi fazer esse filme, o Chediak me indicou. Fui na casa do Aurélio, ele era casado com a Gracinda Freire, uma atriz, foram muito simpáticos, os dois gostaram de mim e ele me contratou para fazer esse filme, com a Wanderléa e o Anselmo [Duarte].
Z – Como foi trabalhar com os dois?
EG – O filme foi todo feito no Rio de Janeiro. Era verão, uma época muito bonita, muito agradável. O Aurélio era um cara que tinha uma noção de cinema muito grande, sempre achei o Aurélio, mesmo quando era menino e via os filmes dele, da Vera Cruz, eu falava: “Que ator bom esse!”. Ele não fazia o galã, mas sempre fazia o segundo papel, o vilão. “Pô, esse cara é bom pra caramba”. Era um ótimo ator, o Aurélio Teixeira. E ele usava essa facilidade para atuar quando ele dirigia, fazia a cena para a gente, estimulava, fazia um pouco o personagem para você fazer. “Faz assim e tal”. Foi muito agradável trabalhar com ele. A Wanderléa era muito simpática e o Anselmo, poxa, para mim era um monstro sagrado. Ficava ao lado do Anselmo ouvindo ele falar, gostava muito de falar, contava muita história, muitas aventuras dele, nos cinemas, aventuras sexuais, era um aprendizado ficar ouvindo as histórias dele. Fiquei fã. Eu já era fã dele, dos filmes da Vera Cruz. Era um privilégio trabalhar com o Aurélio e com a Wanderléa.
Z – Quais eram os seus referenciais de atores na época?
EG – Nesse momento, estava sob impacto do Actors Studio: Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift, aqueles atores que trabalhavam a interiorização. Gerárd Philipe, que eu achava fantástico, Michel Leclerc, tenho uma grande admiração por eles. Mas ainda trabalhava um pouco na forma, apesar de querer interiorizar, não tinha ainda o aprendizado, não tinha a experiência de trabalhar mais o interior do personagem, porque apesar de saber o que era o processo do Actors Studio, não experimentava, não tínhamos aqui professores que trabalhassem esses métodos com a gente. Posteriormente, fui trabalhar com teatro, principalmente com diretores que me estimularam nesse sentido de interiorizar. Neste mês, trabalhei com um cara que acho um grande mestre da interpretação, meu ídolo no teatro, que é o Fauzi Arap. Fiz alguns trabalhos com ele como diretor, no teatro, e acho que aprendi muita coisa com ele. É o meu ídolo na área teatral. Trabalhei com o Antunes Filho também, protagonizei um Nelson Rodrigues com o Antunes Filho, Bonitinha Mas Ordinária, no qual aprendi muita coisa. Acho que todo ator vai amadurecendo, acho que a gente se engana, mas agora na velhice acho que estou na minha melhor forma como ator. Você vai amadurecendo, a gente tem um tempo de compreensão. E outra coisa também que me amadureceu muito como ator foi que há uns vinte, trinta anos para cá, comecei a dar aula de teatro. Aula para televisão e aula para teatro também.
Z – Você dá aula até hoje, né?
EG – Dou aula, tem um curso em que dou aula de interpretação de TV e cinema, na Oficina do Ator, um curso que tem no Rio de Janeiro, com uma filial aqui em São Paulo. Eu e minha mulher, a Mara Faustino, damos aula. Dou aula de teatro também.
Z – O Brasil Ano 2000, do Walter Lima Jr., para a época, era um filme super ousado, futurista. Como foi trabalhar com ele nesse começo de carreira e ambos?
EG – Foi o primeiro filme que fiz em que a gente ensaiou antes (risos). Fomos duas ou três vezes ensaiar na casa dele – ele era casado com a Anecy Rocha -, ali no Jardim Botânico, um apartamento grande, espaçoso, e fomos eu, a Anecy e o ator que fazia o índio, o Luis Fernando, irmão da Sônia Braga. Ele não ensaiou com o resto do elenco, que eram atores manjados, tarimbados: Ziembinski, Raul Cortez, Modesto de Souza, o pai do Arduíno Colassanti, Manfredo Colassanti. Ele ensaiou acho que umas duas ou três vezes com nós três, só. A gente leu, discutiu muito. Houve uma preparação, ele mandou que deixasse crescer a barba, mandou o maquiador Ronaldo Abreu – que foi o maquiador da Jeanne Moreau, quando ela veio ao Brasil fazer o filme do Cacá Diegues [Joanna Francesa], e ela adorou e levou ele para a França – fazer uma marca na minha cara, um detalhe. Havia uma hora de ensaio. Fazia um tipo meio interessante, inspirado no Caetano Veloso, o cabelo todo enroladinho. Nas cenas cantadas, a Anecy e o Luis Fernando eram meio desafinados, e no dia seguinte a Gal Costa e o maestro Bruno Ferreira dublaram os dois. No meu caso, é minha voz mesmo. Sou um cara afinado. A ideia era nós gravarmos mesmo, só que o único ‘aprovado’ fui eu. (risos) Foi em Paraty.
Z – Como foi a experiência?
EG – Muito diferente. Era um cinema muito bem pensado, elaborado, com um plano intelectualizado. O filme ia ser visto sob a ótica da censura, que era forte. O filme põe um general em cena. Mesmo que fosse uma projeção nos anos 2000. Discutia-se muito por um viés politizado. Era a primeira vez que fazia uma obra politizada. Era uma obra de esquerda. Eu tinha uma formação universitária, era jornalista, nós sabíamos o que estava acontecendo. Evidentemente, nunca peguei em armas, mas tinha uma visão de esquerda. Era contra a ocupação dos militares. A classe artística era toda contra a chamada Revolução de 1964. Sou oficial da reserva, fiz serviço militar em Porto Alegre. O universitário tinha direito de fazer o serviço militar separado. Era tempo do Jango ainda. Sou segundo tenente da reserva. Todos faziam isso na época. Nunca fui militarista. O que fiz era me livrar de ficar na tropa durante um ano. Não estou me justificando. Era contra a revolução. Quando cheguei em São Paulo em 1970, quando a pressão da censura ficou forte, nós tínhamos medo. Tínhamos medo de falar de política perto de um garçom, um motorista de taxi, porque muitos eram dedos-duros e você podia ser preso. As pessoas não tem noção disso hoje. Quando vim para São Paulo, fui trabalhar com o Samuel Wainer, no Última Hora. Ele era diretor de redação, não era mais dono, havia vendido aos Frias, da Folha. Fui redator por muito tempo, o Mário Prata me levou para lá. Foi um grande privilégio trabalhar, aprender e conviver com o Wainer. Um dia o Mário Prata escreveu um artigo sobre o Serginho Chulapa, que havia acabado de fazer serviço militar, dizendo algo do tipo: ‘Serginho Chulapa, que saiu do serviço militar e teve sei lá que formação, voltou para o Santos’. Um general mandou chamá-lo para ele se explicar. Meses antes havia morrido o [Vladimir] Herzog. Todo mundo se cagou de medo. Sabíamos o que acontecia, chegavam as notícias no jornal, mas não podíamos publicar. Sou um cara politizado (risos).