Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 5

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 5: Carlão Reichenbach e os dias de hoje  

Enio7A

Por Gabriel Carneiro
Fotos: Pedro Ribaneto

Z – O Filme Demência é um projeto do comecinho dos anos 80, por volta de 1982, e foi filmado em 1985, se não me engano. Você já estava no projeto naquela época?

EG – O Carlão falou assim para mim: escrevi esse filme para você. Quando foi filmado, ele demorou alguns meses para engrenar. No meio do filme faltou grana, parou uns três ou quatro meses, o Emilio [di Biase, ator] segurou a peteca, disse que a gente tinha que fazer, pois a gente adorava participar daquilo. O Carlão agradeceu muito a ele e a mim por não termos abandonado o projeto. Chegou um momento em que a filmagem parou. O José Roberto Eliezer fotografava filmes publicitários e tinha milhões de compromissos, quando ele saiu foi o Carlão que fotografou. A parte final, o que faltava da filmagem, cerca de um quarto do filme, foi fotografada pelo Carlão.

Z – Como foi a preparação para o papel? O Carlão considera esse um filme muito autobiográfico, que traz muito dele. O filme foi escrito em parceria com o Inácio Araújo, mas era uma coisa muito pessoal do Carlão, e ele considera o Fausto, o seu personagem, como o alterego dele.

EG – Sim, o papel foi muito conversado. Nos encontramos muito para conversar sobre o filme, e ele também se inspirou muito no pai dele, que também tinha uma pequena empresa, mas não de cigarros. Foi dono de uma editora. Histórias do pai dele. A preparação foi essa: conversar muito. É um road movie, um filme épico, pois são situações aqui e ali, uma trajetória, um caminho que o personagem segue. O papel era um prato cheio, para mim, como ator. De interiorização, aqueles papéis que raramente você ganha. Um papel cheio de nuances: a relação dele com a mulher, começa lá na casa, ele e a Imara Reis no início do filme, depois se olhando no espelho com aquela lâmina, aquela coisa meio autodestrutiva do personagem que está falido. O cara de classe média alta, a filha pequena vendo televisão, toda aquela tristeza, a angústia que ele tem da falência, aquela coisa triste de ir na empresa dele, encontrar tudo fechado e arrombar o lugar. Aí tem a procura pela ex-namorada, aquela atriz maravilhosa que faz o papel da ex-namorada, ele toma um banho, ela passa a roupa dele. E tem também um ator fantástico que faz aquele cara novo que fica discursando. Mas todas aquelas situações, na agência de automóveis, os personagens que o Emilio faz, que são muito interessantes: aquela velha, e depois ele faz o demônio. O Carlão tem umas coisas que adoro, essas coisas inusitadas, ele te surpreende. O cara acha que o filme é um melodrama, daí ele vai ver e pensa: isso não é melodrama porra nenhuma, que que é isso? Ele fez toda uma seqüência homenageando alguém, tem um estilo meio japonês, é surpreendente. O Carlão não é pra qualquer público.

Z – Você chegou a ler Fausto, do Goethe, na sua preparação para o filme?

EG – Conheço, tenho aqui diversas versões. Como sou de teatro, adoro livros, adoro ler, tenho aqui umas duas ou três versões do Fausto do Goethe. Conheço bem o Fausto, já conhecia antes. O primeiro Fausto e também o segundo, depois ele escreveu uma continuação, já na velhice. Mas é a idéia. O filme não segue passo a passo o que está no livro.

Enio14A-300x225Z – Como era trabalhar com o Carlão?

EG – Eu tô começando a me repetir (risos). Ele é fantástico. Fazer uma coisa que você gosta com outras pessoas que também gostam, é um prazer. Aí você pode até virar a noite, porque fazer as coisas com prazer é muito melhor. O Carlão é uma pessoa adorável. Quando converso com ele, a gente não fala que a Dilma fez isso, que o José Dirceu fez aquilo, nós só falamos sobre cinema. A impressão que tenho é a de que o Carlão não sabe porra nenhuma do que tá acontecendo no mundo. Por outro lado, sabe tudo o que tá acontecendo dentro do cinema, e o que já aconteceu. Sempre tem uma referência de cinema. Às vezes eu falo assim: “vou pegar ele”. Daí eu chego e pergunto: “Você conhece um filme de um cara chamado Arch Oboler, Five [Os Últimos Cinco, no Brasil]? E ele diz: “Sei!” (imitando a voz do Reichenbach). Porra! Eu nunca encontrei um cara que soubesse! Eu sabia porque, quando menino, tinha assistido esse filme. E esse filme ficou na minha cabeça, gravei o nome do diretor. Vi filmes com quatro anos de idade que ainda me lembro. Esse vi com mais idade, tinha uns doze, sei lá. Mas fiquei com esse filme gravado. Um filme econômico, curioso, interessante, que você pode fazer sem grana. Eu detesto essas mega-produções. Esses blockbusters americanos, acho isso uma merda, não consigo ver. Às vezes tem uns caras talentosos, como o Michael Mann, tudo bem, mas não vejo, acho isso uma merda, que acabou com o cinema. Gosto de cinema artesanal, que te diga alguma coisa, que te inspire, que te faça viajar, não essas besteiras, que você já sabe o que vai acontecer, essa coisa previsível. Eu prefiro A Margem! (risos).

Z – Depois do Filme Demência, você fez o Anjos do Arrabalde, e mais de 15 anos depois o Garotas do ABC, pelo qual você ganhou um Candango.

EG – Foi. E com o Filme Demência eu ganhei um prêmio no Rio, o FestRio, como Melhor Ator. E em Brasília ganhei como ator coadjuvante pelo Garotas do ABC.

Z – Recentemente, você fez alguns outros filmes, como o Quanto Vale ou é por Quilo, do Sérgio Bianchi. Como é trabalhar com o Bianchi? Assim como o Fauzi, as pessoas dizem que é difícil trabalhar com ele.

EG – Sim, para mim foi difícil. (pausa e risos). Só isso tenho a dizer.

Z – Você tem alguma preferência por algum dos seus trabalhos como ator? Algum pelo qual você tenha mais orgulho de ter feito?

EG – Não sei, gosto de todos os que fiz, mas alguns me deram mais projeção. O Filme Demência, O Menino e o Vento também, Brasil Ano 2000. Os filmes do Carlão, todos foram muito importantes para mim, todos me valorizaram muito. Mas como já tinha falado, não me arrependo de filme nenhum, gosto muito de todos os filmes que fiz, foi sempre muito bom. Mas alguns me promoveram mais, né?

Z – Recentemente você também participou de programas de TV, você esteve em Páginas da Vida.

EG – Fiz uma participação pequena em Páginas da Vida. Tinha feito uma outra novela fora da Globo, depois fiz essa aí. Mas o pessoalEnio12A1-300x225 de televisão é muito novo, eles querem que eu faça teste, que eu faça ponta. Não me conhecem, nem sabem que fiz algumas coisas importantes, daí me tratam como se estivesse começando minha carreira depois de velho. E eu me recuso. Porra, me chamam para fazer um teste, aí eu chego lá e o assistente do assistente vai me explicar como é que devo fazer. Outro dia mesmo no cinema, um cara me chamou e fiquei muito chateado. Me chamou para fazer um filme, um longa. Aí fui lá, e me fotografaram. Dois dias depois me disseram que minha fotografia tinha sido aprovada e me perguntaram se faria um teste – isso o assistente do assistente. Aí fui lá. E disseram pra mim: “Vamos fazer o seguinte, uma improvisação. Você entra aqui, a mulher vai bater na sua porta, você abre e fala com ela, improvisa um texto com ela, ela vai te pedir uma informação, você responde e aí a gente filma”. E eu disse: “Sim, mas me dá subsídios. O que acontece com esse personagem? Como ele é?” E eles: “Não, mas essa cena é só essa cena, a gente cronometrou e tem uns 28 segundos”. O cara tava me testando pra fazer 28 segundos num longa-metragem! Eu falei: “Você me desculpa, mas não tô interessado, acho que não sei fazer isso”. E fui embora. Porra! O cara me testa três vezes para fazer 28 segundos de longa-metragem?! Isso é sacanagem. Aí chega um e me diz: “Você tá se achando!”. Tô me achando porra nenhuma! Isso é demais, não vou fazer isso, cara. Me senti muito humilhado. Faz dois anos. Um filme que passou por aí. Não vou dizer o nome do filme.

Z – Você tem planos, projetos para cinema e teatro?

EG – Tenho. Estou em cartaz com uma peça, O Berço do Herói. Tem dois filmes que fiz e que vão passar ainda: um é uma produção bem precária do Diomédio Piskator, chamado Papo de Boteco, em que faço um dos episódios. E o outro é uma produção bem cuidada, apesar do tema estar em tendência. se chama O Filme dos Espíritos. O personagem é bem interessante, acho que foi um bom trabalho meu. Vai entrar em cartaz em outubro, agora.

Z – Algum outro longa que você irá fazer?

EG – Tem um outro longa que talvez eu faça, entraram em contato comigo, mas não decidi ainda. É um filme para a TV Cultura, esses telefilmes aí. O diretor e a diretora conversaram comigo, disseram que a gente ia conversar de novo essa semana, mas não acertamos nada, de repente nem faço. E entrei num edital com uma coisa que nunca tinha feito: dirigir filmes. Eu conheço uma garotada aí da FAAP, com quem fiz diversos curtas, e um dos garotos da FAAP abriu uma produtora e me ofereceu a proposta de dirigir um curta. Entrei com um projeto de curta num edital da Prefeitura. É uma ficção de quinze minutos, no máximo, mostrando aspectos de São Paulo. Escrevi um roteiro de três personagens, que se passa no Pátio do Colégio, uma historinha de quinze minutos. Porque sou teatral, tenho diversas peças montadas, escrevo peças. Escrevi esse roteiro e apresentamos o projeto por lá. Se ganhar – acho difícil que ganhe -, eu dirigiria e atuaria, com mais uma atriz e outro ator. A atriz seria minha filha mais nova, que tem vinte anos e um jovem ator, também de vinte anos. Acho bem curioso o filme.

Z – Qual é a história?

EG – Não tem bem uma história. São dois personagens bem desorientados: um cara jovem e um executivo, de terno, gravata e pastinha, que se cruzam ali, quando começa o filme. Tem também esse personagem meio misterioso, que é a menina. Tem um nível realista e outro meio surrealista. Começa o filme e tá esse cara andando no meio da rua, esse executivo, naquela rua cheia de gente, ali onde fica a Bolsa de Valores, no meio do povo. Ele sai num elevado ali, onde não tem quase ninguém, e aí uma moça pede ajuda e mostra um cara que está prestes a se jogar da beira do viaduto. Ele vai lá conversar, tentar tirar o cara, já que a moça tinha insistido. E então eles saem conversando, vão até o Pátio do Colégio, e a moça parece que tá seguindo o cara, como se fosse o anjo da guarda do cara que ia se matar. E tem um diálogo, esse outro cara também está meio desorientado, os dois são meio pirados, cada um a seu modo. E tem esses encontros, diálogos meio surrealistas e tal. Quinze minutos.

Z – É isso, Ênio. Há alguma coisa que você gostaria de acrescentar?

EG – Não. Acho até que falei demais.

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