Entrevista: Ênio Gonçalves – Parte 1

Dossiê Ênio Gonçalves

Entrevista com Ênio Gonçalves
Parte 1: Começo de carreira

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Por Gabriel Carneiro

Fotos: Pedro Ribaneto

 Zingu! – Como foi sua infância? Você cresceu em Porto Alegre mesmo?

Ênio Gonçalves – Nasci em Porto Alegre. Minha família não tinha vínculo nenhum com o show business. Mas desde criança sou apaixonado pelo cinema. Acompanhava minhas tias que iam com o namorado ao cinema (risos). Fazia o acompanhante, né? Fiquei logo encantado, desde os 5, 6 anos já via aquelas imagens, que apaixonavam. Via os filmes brasileiros, me recordo dos filmes da Atlântida, Vera Cruz. Depois, assisti o teatro de igreja, salão paroquial, aquelas peças de teatro que vinham publicadas na revista da SBAT, teatro de costumes. Até que, quando ainda era garoto, fui ver a primeira montagem de A Falecida, de Nelson Rodrigues. Fiquei absolutamente pasmo com o que vi. Conhecia os teatros com diálogos antigos e tal e de repente vinha aquela linguagem nova, sem cenário, luzes apagando e acendendo, não tinha cenário. Fiquei absolutamente encantado com Nelson Rodrigues, aquele diálogo tão verdadeiro, vivo, tão nervoso, tão vibrante. Aí eu disse “porra, quero fazer parte disso, quero participar”.

Z – Você era garoto nessa época?

EG – É, adolescente, entre os 12 e 15. Já era apaixonado por cinema, mas quando vi o teatro daquela forma… Pensei: “quero participar, nem que seja para varrer o estúdio ou o cinema” (risos). “Quero ser ator, quero dirigir, atuar.”

Enio11A-225x300Z – Como era Porto Alegre nessa época, era uma cidade urbana, metrópole?

EG – Urbana, sem dúvida. No final da década de 50, tinha um teatro amador muito bem feito, pessoal do Abujamra, que fazia um teatro muito interessante. Fui fazer, quando tinha 17, 18 anos. Entrei na escola dramática de Porto Alegre. O Ruggero Jacobbi, um italiano aqui de São Paulo, inaugurou lá a Escola Dramática, montou uma universidade. Acho que no mesmo ano em que entrei na faculdade de filosofia, fui estudar jornalismo, que era um curso da faculdade de filosofia do Rio Grande do Sul, e um curso de arte dramática, também na universidade. Fazia um curso de manhã, jornalismo, e à noite era o curso de arte dramática.

Z – Você se formou nos dois?

EG – Não, fiz questão de não me formar, sou um idiota (risos). Sempre contrário, disse: “Não quero me formar”. Então, quando acabou o segundo ano, mais um ano e eu podia me formar em jornalismo e arte dramática, resolvi cair fora. Fui pro Rio de Janeiro.

Z – E, no Rio, você já pensava em atuar?

EG – Pensando nisso. Já trabalhava como jornalista. A minha carreira inicial compunha jornalismo e arte dramática. Trabalhava na Última Hora, jornal de Porto Alegre. O Samuel Wainer tinha fundado o jornal em Porto Alegre e eu trabalhava na redação. Mas aí larguei tudo. Nunca fiz teatro amador em Porto Alegre. No segundo ano, larguei tudo e fui para o Rio de Janeiro. Foi no início da década de 1960. Cheguei ao Rio de Janeiro e fui trabalhar numa editora de revistas chamada Edibrás, que não existe mais, como redator. Tinha sete revistas, uma inclusive de cinema, chamada Cinemin, e também revistas femininas, como Encanto. O colega que me levou para lá era um cara que conheci da redação do Última Hora, que era o deputado que quase foi cassado… esqueci o nome agora.

Z – Você chegou a estudar no Centro Experimental de Cinematografia, em Roma, não?

EG – Dois anos depois de chegar do Rio, consegui uma bolsa de estudos. Tinha um amigo meu lá, o Braz Chediak, que fazia parte de um grupo de teatro que participei. Fiquei muito amigo dele e ele trabalhava no escritório do João Goulart, que queria se recandidatar. Aí veio a revolução e o cassou. Mas o Chediak trabalhava lá e conseguiu, através do conhecimento político, com o embaixador Hugo Gouthier, que era embaixador do Brasil na Itália, uma bolsa de estudos para mim e outra para ele, através de pistolão político, devo confessar. E aí fomos para a Itália. Foi em 1964. E outros brasileiros também foram. Na verdade, não foi exatamente no Centro Experimental que estudei. Já havia acontecido o exame de admissão naquele ano. Então, fiz outros cursos lá. Fiz um curso do governo italiano de montagem, trabalhei muito em moviola, coisa que nem se usa mais, aquelas moviolas antigas. Assisti umas aulas também no Centro Experimental, assisti a algumas filmagens na Cineccità. Convivi um pouco com essa coisa do movimento de cinema com estudantes. A bolsa era de oito meses. Fiquei quase um ano.

Z – Você lembra com quem você teve aula?

EG – Não, não era ninguém conhecido. Conheci lá um cara chamado Nanni Loy, que dirigiu um filme chamado Quatro Dias deEnio2A2-300x225 Nápoles [Quatro Dias de Rebelião, no Brasil], que é um filme bem interessante, passou aqui no Brasil, foi um grande sucesso. Assisti a algumas aulas desse cara. Conheci alguns assistentes do Fellini. Estava lá e aconteceu a Revolução de 1964. O governo brasileiro dava um suplemento, acho que eram 50 dólares por mês. Quando houve a Revolução, isso foi cortado, e tive que voltar. Voltar pro Rio de Janeiro. E voltei à redação dessa editora e fazia teatro, trabalhei no O Tablado, da Maria Claria Machado, fazia teatro amador lá.

Z – Antes de viajar, né?

EG – Antes de viajar. Logo em seguida, consegui um trabalho que me profissionalizou realmente. Foi um espetáculo chamado Toda Nudez Será Castigada, do Nelson Rodrigues. Direção do Ziembinski, com uns atores fantásticos – Cleyde Yáconis, Luis Linhares, Nelson Xavier, Elza Gomes. E era uma montagem histórica, primeira montagem da peça. Consegui o papel de um garoto, o Serginho, filho do personagem Herculano, que o Luis Linhares fazia, um grande ator do TBC, e me tornava amante da mulher, a Geni, que era a Cleyde Yáconis. A peça também se apresentou em São Paulo, alguns meses em São Paulo. Foi em 1965. A peça ficou pelo menos uns dez meses em São Paulo. Nela, conheci o Nelson Rodrigues, que era meu ídolo. Me senti um cara privilegiado. Só fui ser ator por causa da obra de teatro dele, que era apaixonado.

Z – Como era trabalhar com o Ziembinski?

EG – Era um diretor fantástico. Como eu era o ator inexperiente, ele, além de me motivar para o personagem, fazia para eu ver. Ele corrigia tudo, quase era um teleguiado. É claro que eu colocava uma alma nisso. Ele dirigia todos os detalhes: como segurar um copo, como se apoiar na cama, porque fiz uma cena de cama com a Cleyde. Ele corrigia a posição dos dedos. “Fecha a mão, não deixa os dedos abertos, é feio” (risos). “Quando apoiar, apóia assim”. “Como é que se segura o copo? Não segura o copo assim, segura o copo com os dedos fechados. Quando nesse momento você recosta, e coloca as mãos assim”. Ele fazia para eu fazer. Ele exigia que eu botasse um sentimento do personagem, que não fosse um teleguiado. Era um processo que ele fazia especialmente comigo, que era o ator que não tinha experiência. Uma experiência fantástica, trabalhar com esse cara que modificou o teatro brasileiro. É o cabeça do teatro, o cara que fundou o teatro brasileiro, quando ele chegou ao Brasil em 41, fugindo da guerra, e montou O Vestido de Noiva, do Nelson. Ele fez diversas peças do Nelson. Ele lançou e produziu o Nelson. Fundaram o novo teatro brasileiro.

Z – E como era o Nelson? Ele chegou a te ajudar na construção do personagem?

EG – Nunca discutimos o personagem. O Nelson era uma figura incrível. Fui visitá-lo algumas vezes na redação do jornal onde ele trabalhava, acho que era Jornal do Brasil, ou era o Correio da Manhã, sei lá. Era um jornal que tinha na avenida Rio Branco, no Rio. Acho que fui lá receber, ele pagava diretamente, era produtor de espetáculos. Me recordo: “Vamos tomar um café lá em baixo”. Ele chegava lá em baixo e tinha um bar. Ele pedia uma média, um café com leite e pão canoinha. Mandava raspar o pão, tirar o miolo e botar na chapa e comia aquilo. E, às vezes que vi, ele tomava um Melhoral também. Ele tinha esse hábito, coisa que me impressionou assim (risos). Quando a gente veio fazer a peça em São Paulo, a carreira dela acabava num domingo. Na época, tinha duas sessões aos sábados e aos domingos. O elenco, naquele tempo, levava muito cano. Eu mesmo levei muito cano, quando o produtor não tinha o dinheiro, não pagava. Você trabalhava e não recebia, o que não acontece mais hoje. Raramente acontece. Mas quando acontece, quebra um pau violento. Naquela época era comum, quem não tinha dinheiro não pagava. Os atores tarimbados falavam: “Não, nós queremos o pagamento – era o último dia – antes da sessão noturna”. Falaram pro Joffre Rodrigues, o filho do Nelson, falecido há um ano. O Joffre era o produtor executivo da festa aqui. E o Joffre falou: “Ênio, você quer receber?”. “Não, eu posso receber no Rio, me paga no Rio”. Aí ele ligou para o pai dele e falou: “Olha, os atores querem receber tudo (risos) antes do espetáculo noturno. O Ênio disse que recebe no Rio”. O Joffre me falou: “Olha, meu pai falou o seguinte: ‘Paga o Ênio antes do espetáculo e não paga mais ninguém (risos)’”. Olha que coisa louca. “O Ênio confia nas pessoas, vamos pagar ele logo”. Foi o que Joffre me falou. E realmente me pagou (risos).

Parte 2