Nossa Canção

Romance, de Sérgio Bianchi

Por Heitor Augusto

A primeira música num filme a grudar na minha cabeça e resistir em me abandonar é Perseguição & O Sertão Vai Virar Mar, que Sérgio Ricardo escreveu para as imagens de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Quando criança, me sentia nas costas de um cavalo disparando tiros inocentes de uma velha espingarda dentro de um faroeste.

Um menino aventureiro que não sabia o que tiros causavam nas pessoas, muito menos entendia quem era o tal do Corisco, o que significava “mais fortes são os poderes do povo!” ou entendia bulhufas de narrativa alegórica. Mas um apaixonado pelo violão rasgado, a voz desavergonhada do cantor e as imagens do filme. Tudo junto a despertar um primitivo sentimento aventureiro. Adoraria descrever por horas todos os sentimentos que esta canção me despertou quando criança e ainda desperta agora já adulto. Mas, para esta coluna Nossa Canção, prefiro atirar no escuro e falar de uma trilha que não anda de boca em boca com tanta frequência. Por isso, a opção pelo trabalho do Grupo Chance para o Romance que Sergio Bianchi fez em 1988.

Não posso afirmar que é o melhor filme do Bianchi, mas é certamente sua obra que mais me emociona. A desesperança dos dois personagens que perdem o rumo após a morte de um intelectual de esquerda mitológico – Antônio César – contamina as estranhas. As músicas, ou melhor, comentários musicais, que o Grupo Chance fez para o filme criam uma atmosfera de labirinto, uma falta de rumo que invariavelmente vai levar à desilusão. Representação perfeita da prisão humana por meio da música.

Num filme de um cineasta tão direto e duro, os comentários musicais colocam mais espaços de indefinição, ruídos, perguntas e dores, elementos que contrastam com a câmera-faca de Bianchi, roubando o título de João Luiz Vieira no livro sobre o cineasta lançado em 2004.

Romance começa com Antônio Cesar, o morto, denunciado, por meio de imagens de arquivo, a miséria brasileira e os poderes constituídos, num discurso muito duro. Em seguida, uma sequência de seu enterro com personagens comentando – e Bianchi, invisível, satirizando por trás deles – o quão importante o militante era para a esquerda. Logo após, novamente uma afirmação retumbante do morto de presença tão viva.

Enquanto essas cenas remetem a ideias palpáveis, a música de cantos agudos e confusos do Grupo Chance nos coloca em outro registro. É tudo tão literal mesmo? Quem é de fato este Antônio César cheio de frases polêmicas? Por que se armou este circo em torno da morte do intelectual? E essa mulher com cara de aproveitadora que está ao seu lado na entrevista? Questões que os comentários musicais ajudam a instigar.

Após essa abertura, a mesma mulher – que descobriremos ser uma das companheiras de Antônio Cesar – está vestida de preto com a mão mergulhada em tinta preta. Frente a uma parede branca, traça linhas descoordenadas ao som de sintetizadores e distorções. Linda sequência! Fernanda (mais à frente saberemos seu nome) está sem rumo num filme que decreta a falência dos ideais de libertação sexual dos anos 1960 e 70. Mais do que isso: Romance olha para o Brasil de 1988 e decreta a falência do próprio país.

Desesperançoso em cada take, o filme ainda encontra espaço para fazer seu comentário mais poderoso: a falta de liberdade que a Aids trouxe, especialmente aos gays. Numa sequência absolutamente cadavérica, André (Hugo Della Santa) – que também fora companheiro de Antônio Carlos – anda pela escuridão da cidade à procura de sexo rápido e fugaz com o primeiro estranho que lhe atrair.

Mas ele não pode: Antônio Cesar morreu de Aids numa época que predominava a ignorância acerca da doença. André pode estar contaminado também e seria imprudente arriscar (triste curiosidade: Hugo Della Santa morreu no ano do lançamento do filme por causa da… Aids!). Ele vive uma dupla prisão: a de esconder publicamente a homossexualidade e de não poder extravasar seu desejo nem no mais obscuro canto da cidade. Como ser humano, ele está falido, como quase todos os personagens de Romance.

Nesses momentos, Bianchi captura racionalmente o espírito desiludido de uma época, enquanto os comentários musicais do Grupo Chance se encarregam de penetrar no fundo do peito e rasgá-lo sem dó, nos invadindo de uma tristeza absoluta.

Heitor Augusto é repórter e crítico de cinema. Atualmente, colabora com o Cineclick, no qual faz cobertura dos principais festivais no Brasil, escreve sobre os lançamentos do circuito e mantém a coluna mensal Clássico do DVD. Mantém, desde 2008, o blog Urso de Lata. Colaborou para a Agência Carta Maior e Revista de CINEMA.