Dossiê Inácio Araújo
A Herança
Direção: Ozualdo Candeias
Gerência de produção, Assistência de direção: Inácio Araújo
Brasil, 1970.
Por Gabriel Carneiro
O terceiro longa de Ozualdo Candeias foi também a estréia de Inácio Araujo no cinema, participando como assistente de direção. A Herança é um filme muito atípico e curioso na cinematografia brasileira, mas nem tanto dentro da filmografia desse precursor do dito cinema marginal que foi Candeias. O diretor transpõe Hamlet, de William Shakespeare, para o Brasil rural dos anos 1960, sem se fazer usar de falas – ainda que legendas tenham sido acrescidas em muitas cópias por exigência do produtor. A visita ao filme já vale pela inventividade e inovação do projeto, mas não só.
Candeias marcou seu cinema pelo enorme apreço à Boca do Lixo e pela busca do ousado, do criativo e ainda assim do popular, na acepção de que buscava dialogar com camadas populares da sociedade pela temática próxima a elas: camponeses, motoristas de caminhão, pessoas marginalizadas, etc. Em A Herança, transforma a história do príncipe dinamarquês numa saga de derrocada rural, falando de fazendeiros imponentes e abuso, com direito a uma consciência social que cabe muito bem ao projeto.
A história em si pode não ser necessariamente o mais interessante de A Herança, mas a forma como o diretor encontra para retratá-la garante o interesse do espectador: a partir de sons construídos, conduz a narrativa. Não é o mero som ambiente, mas a evocação de vozes, urros, palavras e caracterizando as situações por meio de sons cartunescos, que dão novos sentidos ao desenrolar dos fatos. O mesmo pode se dizer da direção de atores. David Cardoso, em começo de carreira, faz Omeleto, e o interpreta de maneira debochada como poucos conseguiriam, abusando dos sorrisos e risadas descabidos, da paródia e do caricato. O restante do elenco segue o mesmo tom.
A graça em A Herança está justamente na subversão da peça do bardo e ainda assim mantendo-se muito fiel a ela. Porque, afinal, fala de orgulho, ganância e família. A herança do título parece muito mais ligada à herança genética e à representatividade dos atos de uma família em um descendente, do que aos bens materiais – ainda que eles, ao final, desenvolvam importante mensagem que era importante ao diretor transmitir, ainda mais em tempos de Regime Militar. Mas o que Candeiais faz é optar por uma linha que fuja da tragédia, escolhendo o jocoso e o inusitado. Não são muitos os que conseguem adaptar uma peça clássica para uma realidade completamente diversa e ainda usarem essa mudança como mote para experiências estéticas nada convencionais.