Amor, Palavra Prostituta

Dossiê Inácio Araújo

 

Amor, Palavra Prostituta
Direção: Carlos Reichenbach
Assistente de Direção, Cenografia, co-argumento, co-roteiro: Inácio Araújo 
Brasil, 1981.

Por Vébis Junior

Extremos do Prazer e Amor, Palavra Prostituta são resultados do fascínio do diretor pelo existencialismo, e principalmente do pré-existencialismo de Kierkgaard, ao mesmo tempo que os filmes carregam o débito do diretor com a pornochanchada.. Estes filmes não sintetizam o cinema de Reichenbach, mas sua experiência no cinema. Segundo o próprio Carlão “são atípicos na sua obra”.

Amor, Palavra Prostituta foi o primeiro filme em parceria com o crítico e jornalista Inácio Araújo como roteirista (que antes já havia montado Lilian M).

Naquela época, a captação de fundos para realização de um filme era diferente dos dias de hoje. Já tinham a verba e depois corriam atrás do assunto para o filme e seu roteiro. Existia uma lei de obrigatoriedade em que os produtores já estavam argolados com exibidores, por isso as produções eram rápidas, em duas semanas desenvolviam o roteiro, um curto espaço se levarmos em consideração que partiam do nada.

No caso de Amor, Palavra Prostituta desenvolveram algumas hipóteses como a história de um cara chato que se instalava na casa de dois amigos, mas engavetaram devido ao filme ficar tão chato quanto o personagem. Aí Reichenbach recorreu a velhas idéias em uma pasta arquivada. Encontraram uma história que acabou virando a primeira frase da personagem vivida pela Patrícia Scalvi: Vou voltar para Catanduva! – referindo-se a um amigo, Éder Manzini, montador do filme que era da região.

Inácio Araújo e Carlos Reichenbach escreviam os roteiros e argumentos durante a noite, a pedido de Reichenbach que achava a melhor hora para criar e desenvolver, e o processo de criação de personagens surgiam quando os dois construíam os diálogos como réplica, que soavam muito engraçado para os dois, que riam bastante. Quando o filme foi lançado, Lígia, esposa de Carlão, encontrou Inácio ao final da projeção que lhe perguntara se havia gostado do filme. A resposta foi um tanto quanto irônica: – Vocês riam muito a noite inteira e o filme é uma puta tragédia!!!

Inácio explica que o conjunto era dramático na história, Carlão queria mesmo era uma história de sangue! Ainda mais sobre um aborto mal feito, somente nos diálogos como, por exemplo, do personagem Luis Carlos (Roberto Miranda) com Fernando (Orlando Parolini).

A história é sobre uma operária especializada, casada com um professor desempregado (Orlando Parolini) que foi mestre do personagem de Roberto Miranda, que é o bonitão da história, e que aparecia com a moça na casa do professor depois de fazer um aborto que não deu certo.

A construção dos personagens, como a concepção dos filmes em geral contém muito do processo criativo de Inácio Araújo, por mais que o filme fosse de Reichenbach. Inclusive, Amor Palavra Prostituta é considerado pelo roteirista o primeiro filme com linguagem narrativa mais linear, graças a esta união.

Há uma preocupação social, do problema histórico do Brasil, subdesenvolvimento, das lutas de classes, mas não apenas isso. Acima de tudo e que difere dos problemas já citados, ele aborda problemas humanos. O personagem Fernando (Orlando Parolini), a vida que ele vive insiste que tome outra atitude, mas ele prefere continuar vivendo na contra-mão. (arquétipo comum dos personagens masculinos nos filmes de Carlão, os homens que dão murro em ponta de faca) Um problema existencial trazendo desilusão e desencanto. Um intelectual sem ação, resultado dos existencialistas que não têm certezas.

A presença da morte no filme está presente a todo tempo, desde o suicídio de um engravatado numa árvore na represa, até o aborto da garota deixada em agonia pelo personagem de Roberto Miranda. Nas leituras de Kierkgaard, a situação em que se encontra o professor é de desespero, justificando seu silêncio contínuo, conforme pesquisa já realizada por Milton do Prado ao redor da obra de Reichenbach. Um personagem, e, por consequência, um filme sem certezas. Só dá indícios de vida no final do filme, quando passou pela experiência simbólica da morte com o aborto de Lilita.

                                          “Eu acho que tem aí uma noção de que os encontros são múltiplos, a vida é múltipla, você vai ver na vida real, está sempre metido com pessoas que são diferentes de você. O fato de uma pessoa ser seu aluno não quer dizer que ela seja como você, completamente diferente neste contexto. Os caminhos que as pessoas são levadas são muito pessoais e estranhos. Mas isso também sempre teve, uma capacidade de escuta e de observar as coisas. Minha mulher achava que o Carlão carregava nas tintas na descrição dos personagens por exemplo, que os caras eram muito pesados, podiam ser mais leves, não eram aquilo, e o palavreado não é bem assim e tal. (pausa) mas de vez em quando eu estava com ela e você via uma cena, escutava alguém e você via como era assim mesmo, como na verdade e gente estava próximo da realidade. O que acontece? Quando estamos na vida real, você abstrai, né? quando você está vendo um filme, aquilo lá se transforma numa coisa muito importante. Mas os brasileiros estão muito parecidos com o que tem naqueles filmes, na verdade, nós tínhamos um objetivo a rigor realista, mas um realismo debochado também, né, senão não tem graça, seria buscar sempre o que está fora do parâmetro mais corriqueiro, tornando as relações mais completas, atrapalhadas e humanizadas.” (ARAÚJO Inácio entrevista concedida em Setembro de 2003).

Vébis Junior é cineasta e professor de cinema.

O Gosto do Pecado

Dossiê Inácio Araújo

O Gosto do Pecado
Direção: Cláudio Cunha
Assistência de direção, co-argumento, co-roteiro: Inácio Araújo
Brasil, 1980

Por Adilson Marcelino

Em O Gosto do Pecado, Jardel Mello é um crápula. Daqueles machões que não aceitam que suas presas escapem de suas mãos. Quando seu filho, uma criança, pergunta se ele não vai voltar mais para casa, ficamos sabendo que está recém-separado. Ele desconversa com o filho, mas para nós, o público, toma a narração condutora e é taxativo: certo dia olhei para ela (a esposa) e vi que ela não me interessava mais. Logo depois assistimos a separação de fato diante do juiz e ficamos sabendo que a mulher é Maria Lucia Dhal.

O amigo, John Herbert, logo leva Julio Garcia – Jardel – para se esbaldar nos inferninhos da noite paulistana, mas logo ele vai perceber que não sabe o que fazer com a liberdade adquirida e, a partir daí, fará de tudo para que a esposa o aceite de volta. Não necessariamente para casamento, mas para namoro com pinta de amante.

Maria Lucia se debate, resiste e não resiste, mas quando ele vê que está mesmo perdendo terreno, encanta-se pela secretária. Nada menos que a bela Simone Carvalho, que em cena digna de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado, desperta-lhe a libido e as garras de macho dono do pedaço. Só que a moça tem um noivo, o possessivo Fábio Villalonga, e daí se instaura um triângulo amoroso às claras, cheio de permissividade e interesses.

Essa descrição dos personagens poderia denotar seres repulsivos e sem nenhum real interesse além do escárnio. Só que não é nada disso. Em parte pelo talento dos atores – Jardel Mello, Simone Carvalho, Maria Lucia Dhal, John Herbert, Fábio Villalonga e Alba Valéria -, e também em boa parte pela direção de Claudio Cunha, que tem Inácio Araújo como assistente, e a fotografia elegante do mestre Carlos Reichenbach.

O Gosto do Pecado, que tem roteiro de Cunha, Araújo e Jean Garret, aponta sua lâmina com precisão para a diferença de classes e o quanto o poder manda e desmanda nessa seara. Enquanto Mello, Herbert e Dhal estão do lado de quem tem posses, Simone e Villalonga sacodem no ônibus lotado em direção à periferia onde moram.

Há ainda nesse mundinho de secretárias e patrões a figura de Alba Valéria – luminosa presença -, amante marginalizada de Mello, que se contorce na cama diante do gozo precoce do garanhão, que por sua vez não dá o braço a torcer e promove uma verdadeira curra na moça com a mão. A mesma atitude sádica ele terá com a prostituta interpretada por Ana Maria Kreisler, que ele sodomizará durante um programa.

O Gosto do Pecado esbanja solidão embebida em cinismo, mas nunca em ares blasé. O que há ali é uma verdade incômoda em personagens absolutamente e indesejadamente críveis. Tudo ao som de trilha sonora deliciosa de Jairo Ferreira, com direito a Je t´aime moi non plus e outras pérolas mais.

O Garotos Virgens de Ipanema

Dossiê Inácio Araújo

Os Garotos Virgens de Ipanema
Direção: Osvaldo Oliveira
Edição e Montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1973

Por Leo Pyrata

Existem alguns caminhos quase inevitáveis de se esbarrar quando falamos do Cinema da Boca. Partir do principio que de certa forma eles traduziam o senso comum e o imaginário popular servindo hoje como uma espécie de documento histórico do momento não é nenhum exagero. Em alguns filmes, a sensação parece se amplificar quando nos damos conta que alguns aspectos negativos daquele momento, ainda hoje, quarenta anos depois, continuam muito longe de serem superados.

Os Garotos Virgens de Ipanema ou Purinhas do Guarujá, uma comédia juvenil, é produção da Serviços Gerais de Cinema, mais conhecida como Servicine, (produtora fruto da parceria entre Alfredo Palácios e Antonio Polo Galante). Comédia picante dirigida por Osvaldo de Oliveira, o Carcaça, diretor que segundo dizem não gostava de freqüentar cinema, mas que deixou uma obra exuberante em sua variedade de gêneros, de filmes de cangaço à musicais sertanejos, passando pelo marco do WIP e comédias eróticas, como esta que esse texto se propõe a tratar.

Produção de grande sucesso que trouxe em definitivo o apelo picante ao repertório das produções da Servicine, trata-se de um filme leve com temática juvenil, que trazia em seu elenco nomes estrelados como os de Mario Benvenuti e Elisabeth Hartmann. Os Garotos Virgens de Ipanema, visto hoje fora do contexto da época, mesmo levando em conta que boa parte das gags e a própria razão de ser do roteiro (de Enzo Barone e Osvaldo de Oliveira partindo da adaptação feita por Marcos Rey ao argumento proposto por Galante) venham justamente de interpretações equivocadas que o pai, vivido por Benvenuti, faz do comportamento do filho. Daniel, um adolescente que desde o primeiro plano do filme se aventura bisbilhotando o corpo feminino, não é compreendido por seu pai, que vive uma preocupação crescente acerca de um suposto desinteresse do filho pelo sexo oposto.

O pomo da discórdia é plantado logo no inicio do filme quando o pai se confunde achando que Daniel, por ter cabelo grande (como era bem comum aos jovens da época do filme), estava sendo confundido com uma mulher e, consequentemente, paquerado durante um desfile de moda. Daniel passa a partir daí a representar o fantasma da homossexualidade, apavorando o personagem de seu pai, que por sua vez tenta de varias maneiras “endireitar” o filho com soluções cujos efeitos parecem ainda mais inócuos aos olhos do pai.

Vale lembrar ao leitor que as comédias eróticas faziam uso dos tipos e dos clichês que povoavam o imaginário popular e que por trás da intenção cômica muito pode ser observado sobre um certo olhar machista-varão-patriarca da época. E daí surgem alguns dados importantes na seqüência final, em que o pai descobre que está sendo corneado pelo filho e a despeito da traição sai comemorando e bradando ” meu filho é homem”, “um verdadeiro trombeta”. Sintomático que o filho só passe a existir depois de provar sua “macheza” aos olhos bisbilhoteiros do pai, que não liga para o fato de ser traído desde que sua linhagem tenha continuidade. Emblemático o plano final com Benvenuti fazendo o gestual de fodedor garanhão em frente à casa grande.

Relacionando o momento do filme com episódios recentes de homofobia nos esportes ou ainda as agressões noticiadas quase que diariamente nos jornais protagonizadas até por representantes do povo brasileiro como o deputado Bolsonazi, ops, Bolsonaro, o que fica é a impressão de que vivemos em momentos ainda mais medievais. Resta saber se isso se traduzirá aos nossos olhos quando pensarmos com distanciamento no cinema de hoje, especialmente o que tem acesso ao circuito de exibição e que é bancado pelos editais e avalizado por equipes de marketing de grandes empresas. Tenho o palpite que dificilmente existirá a sinceridade de um filme como o Garotos, que remete à um tempo em que o cinema brasileiro (salvo a Embrafilme) era feito com recursos privados.

Leo Pyrata é estudante de cinema, ator do curta Contagem – Prêmio de Melhor Direção para Gabriel Martins e Maurílio Martins no Festival de Brasília -, diretor do curta Retrato em Vão, co-diretor do longa Estado de Sítio, e vocalista da banda Grupo Porco de Grindcore Interpretativo.

A Herança

Dossiê Inácio Araújo

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A Herança
Direção: Ozualdo Candeias
Gerência de produção, Assistência de direção: Inácio Araújo
Brasil, 1970.

Por Gabriel Carneiro

O terceiro longa de Ozualdo Candeias foi também a estréia de Inácio Araujo no cinema, participando como assistente de direção. A Herança é um filme muito atípico e curioso na cinematografia brasileira, mas nem tanto dentro da filmografia desse precursor do dito cinema marginal que foi Candeias. O diretor transpõe Hamlet, de William Shakespeare, para o Brasil rural dos anos 1960, sem se fazer usar de falas – ainda que legendas tenham sido acrescidas em muitas cópias por exigência do produtor. A visita ao filme já vale pela inventividade e inovação do projeto, mas não só.

a_heranca_candeiasCandeias marcou seu cinema pelo enorme apreço à Boca do Lixo e pela busca do ousado, do criativo e ainda assim do popular, na acepção de que buscava dialogar com camadas populares da sociedade pela temática próxima a elas: camponeses, motoristas de caminhão, pessoas marginalizadas, etc. Em A Herança, transforma a história do príncipe dinamarquês numa saga de derrocada rural, falando de fazendeiros imponentes e abuso, com direito a uma consciência social que cabe muito bem ao projeto.

A história em si pode não ser necessariamente o mais interessante de A Herança, mas a forma como o diretor encontra para retratá-la garante o interesse do espectador: a partir de sons construídos, conduz a narrativa. Não é o mero som ambiente, mas a evocação de vozes, urros, palavras e caracterizando as situações por meio de sons cartunescos, que dão novos sentidos ao desenrolar dos fatos. O mesmo pode se dizer da direção de atores. David Cardoso, em começo de carreira, faz Omeleto, e o interpreta de maneira debochada como poucos conseguiriam, abusando dos sorrisos e risadas descabidos, da paródia e do caricato. O restante do elenco segue o mesmo tom.

A graça em A Herança está justamente na subversão da peça do bardo e ainda assim mantendo-se muito fiel a ela. Porque, afinal,Aheranca fala de orgulho, ganância e família. A herança do título parece muito mais ligada à herança genética e à representatividade dos atos de uma família em um descendente, do que aos bens materiais – ainda que eles, ao final, desenvolvam importante mensagem que era importante ao diretor transmitir, ainda mais em tempos de Regime Militar. Mas o que Candeiais faz é optar por uma linha que fuja da tragédia, escolhendo o jocoso e o inusitado. Não são muitos os que conseguem adaptar uma peça clássica para uma realidade completamente diversa e ainda usarem essa mudança como mote para experiências estéticas nada convencionais.

A Noite do Desejo

Dossiê Inácio Araújo

A Noite do Desejo
Direção: Fauzi Mansur
Montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1973

Por Vlademir Lazo

Ver A Noite do Desejo me levou a pensar em duas ou três coisas sobre o cinema brasileiro de hoje. A dignidade com que Fauzi Mansur filma seus personagens marginalizados, os operários de uma fábrica em busca de um sentido para suas vidas (ou ao menos de algo que lhes agrade), e as mulheres da noite que o acompanham, há muito é escassa na cinematografia nacional. Pensemos em um filme de sucesso como As Melhores Coisas do Mundo, de Laís Bodanzky, em que o irmão mais velho do protagonista jovem sentencia que não vale a pena encontrar uma prostituta, porque equivaleria ao mesmo que humilhar uma mulher. É uma cena breve e desimportante no filme de Bodanzky, mas que é fruto não apenas de uma excessiva visão politicamente correta quanto de uma uniformização de mundo em que todos devem pensar iguais dentro de classes sociais que não se misturam. Um outro sucesso de público ainda mais recente de nosso cinema, Bruna Surfistinha, vai além ao ter o meretrício como temática central. No começo, cercada de prostitutas humildes, a personagem-título aparece como vítima, e o ambiente miserável que a rodeia é tratado com evidente nojo pelas lentes da câmera do realizador. Mais tarde, quando a personagem se capitaliza, monta o próprio negócio e se torna bem-sucedida, o filme toma outro rumo e revela a sua moral: o que vale é fazer sucesso.

Ainda na comparação com Bruna Surfistinha, este parece ser um filme para um público que vê putaria na novela das oito, mas não gosta de “filme com mulher pelada” (como passou a ser estigmatizado uma parcela do que de muito interesse o cinema brasileiro produziu nos anos 1970 e 80). Bruna Surfistinha nos proporciona o corpo de Deborah Secco como um objeto de consumo a ser desejado, e embora tenha ao longo do filme diversas cenas de sexo ou nudez, cada uma delas geralmente são rápidas demais, ocorrem num átimo para que nosso olhar não contemple nem se concentre em nada. Faltam contemplação e um verdadeiro olhar dentro de um filme desses (e aqui não me refiro apenas ao sexo ou a nudez), diferentemente do que ocorre em um Falsa Loura ou Cleópatra (para citarmos outros filmes contemporâneos), por exemplo, ou de muitos trabalhos realizados num período distante por diretores (e filmes) como Fauzi Mansur e seu A Noite do Desejo.

A Noite do Desejo transcorre entre o crepúsculo de um fim de tarde e o alvorecer do dia seguinte. Mas dá conta de uma década inteira: o filme respira os anos setenta, as calçadas, as ruas, as boates, os homens, as mulheres etc. Um mundo. Ou ao menos uma cidade: a São Paulo do começo da década de setenta. A Noite do Desejo é daqueles filmes estigmatizados que fatalmente receberiam o rótulo de pornochanchada por aqueles que sequer o assistiram. Mas há pouco sexo ou mesmo nudez gratuita, e muita procura por calor humano. Toninho (Ney Latorraca) e Giba (Roberto Bolant), empregados de uma fábrica onde tiram horas extras em final de semana, perambulam por casas de strip-tease, os bordéis e as boates da época numa noite de sábado. A noite dos desejos.

As situações não são pretextos para sequências eróticas, pois estas se tornam inexistentes mesmo em meio ao périplo da dupla de protagonistas. Seus esforços os levam ao encontro de um par de prostitutas, Marcela (Marlene França) e Ivete (Betina Vianny, filha do crítico e cineasta Alex Vianny), com as quais seguem para um hotel de terceira categoria. As inseguranças dos rapazes se tornam mais claras, e as tentativas de lidarem com as garotas, nem sempre eficazes ou bem-sucedidas. Mais papo e conversas que sexo ou pegação. Mais solidão que divertimento.

As circunstâncias foram suficientes para que muitos invocassem o clássico Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri, de dez anos antes. O que não era mal algum, pois se trata de uma influência difícil de ser evitada naquele período, por ter aberto caminhos ao cinema paulistano em sua época. A Noite do Desejo, no entanto, vai muito além da referência khouriana. Um pouco devido aos cortes impostos pela censura, o diretor Fauzi Mansur e seu co-roteirista Luiz Castellini acrescentaram outras histórias paralelas à narrativa principal. Um outro rapaz (Ewerton de Castro), vindo do interior, chega à capital paulista para perseguir a namorada grávida (Selma Egrei), mulher da noite na cidade grande, que logo no começo dividira uma mesa com Toninho e Giba, que assustados pela condição de gestante da moça, a deixam de lado na primeira ocasião em que ela vira as costas.

Num primeiro momento, as cenas com Ewerton de Castro e Selma Egrei parecem enxertadas à fórceps na narrativa. Mas ao longo do filme vamos assimilando melhor a montagem intercalada, muito por conta de um ótimo trabalho de edição feito em conjunto por Inácio Araújo, Jean Garrett e o próprio Fauzi. A Noite do Desejo é filmado também com cores quentes, resultado de um belo tratamento de imagens e atmosfera trabalhados por Fauzi e pela fotografia e câmera de Ozualdo Candeias e Antonio Meliande. Já o crítico e cineasta Jairo Ferreira é o craque responsável pela seleção musical, que vai de Roberto Carlos ao progressivo. Um notável trabalho em equipe de uma turma que em sua maioria eram filhos do chamado cinema marginal, aqui trabalhando numa linha mais khouriana (o que torna A Noite do Desejo mais curioso e interessante pelo encontro de duas correntes importantes em nossa filmografia).

Um outro vértice do triângulo de narrativas de A Noite do Desejo é o proprietário gay de uma boate que persegue um dos rapazes até a hospedaria em que estes se dirigiram com as garotas. É preciso chegar até ao final para compreender que este personagem intrusivo é por si só o centro de uma história à parte, uma terceira narrativa que, no desfecho, vai ao encontro com a dos rapazes e das prostitutas. É um dos pontos mais obscuros do roteiro de Castellini e Fauzi, sendo necessário muita atenção na cena do roubo na abertura ou mesmo uma eventual revisão para que termine por se esclarecer o que transcorreu em torno desse personagem até culminar num final que beira a sanguinolência, alternado com uma outra querela que sela o destino dos personagens de Ewerton e Selma. O exploitation irrompe no filme, com as tensões físicas e emocionais e recalcamento íntimos explodindo em grandes doses de violência.

Nada que o alvorecer de um novo dia não resolva. O momento com uma das prostitutas, Marcela, tomando café com leite, comendo pão amanhecido, é uma das cenas que poderiam servir como sínteses de uma desolação que paira no ar, mas igualmente da escolha em optar por trilhar de cabeça erguida um caminho de resistência. Dos personagens e de todo um cinema.

A Infidelidade ao Alcance de Todos

Dossiê Inácio Araújo

A Infidelidade ao Alcance de Todos
Direção: Aníbal Massaini Neto, Olivier Perroy
Assistência de montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1972.

Por Ailton Monteiro

Quando se vê a filmografia do montador Silvio Renoldi não tem como não ficar admirado com a quantidade de filmes importantes que ele montou. Em 1972, quando ele montou A Infidelidade ao Alcance de Todos, Renoldi contou com Inácio Araújo como seu assistente de montagem. O Inácio Araújo que teve experiências também como diretor de cinema e que hoje é mais conhecido como um dos mais importantes críticos de cinema do país. A Infidelidade ao Alcance de Todos (1972) é um filme em dois segmentos baseado em uma peça de Lauro César Muniz e dirigido por Aníbal Massaini Neto e Olivier Perroy. O primeiro segmento chama-se A Tuba; o segundo, A Transa.

No primeiro, há um ar mais gostoso de pornochanchada, bem herdeiro das comédias italianas. É diferente do que viria a ser na década de 1980 porque a nudez é muito mais discreta. Aliás, neste primeiro episódio, nem nudez há. Há intenção de entreter e brincar com a figura do corno, tão “valorizada” na sociedade brasileira, a ponto de virar palavrão e objeto de vergonha e escárnio. Neste primeiro segmento, um político, interpretado por Raul Cortez, procura a mulher mais desejada da cidade. Por onde ela passa, o povo para pra olhar. O marido é meio bobalhão e só liga para sua tuba. Enquanto isso, o personagem de Cortez diz que quer apenas “olhar” para a mulher, só olhar. Ela aceita a proposta e a cada visita às escondidas do político, aparece com uma roupa mais insinuante.

O segundo episódio é uma espécie de sub-Khouri. Para uma maior aproximação, teria que haver no segmento o vazio existencial próprio dos filmes de Walter Hugo Khouri. Há aqui uma busca por sair da mesmice das relações desgastadas e tentar algo proibido e prazeroso com outra pessoa. A ponto de, no fim do filme, termos não apenas um quadrado amoroso, mas quase um sexteto. Há uma participação pequena de Clodovil e uma bem destacada de David Cardoso, já ganhando fama como garanhão. A nudez que parecia faltar no primeiro, aparece no segundo, mas nem por isso torna o segmento melhor.

Quanto ao trabalho de edição de Silvio Renoldi e seu assistente Inácio Araújo, como se trata de um trabalho mais popular e convencional, não há algo tão perceptível na forma do filme. Talvez o momento que mais evidencie o trabalho de montagem esteja na sequência do marido voltando para casa enquanto o outro está lá. Trata-se de uma montagem bem clássica e já utilizada desde os tempos do cinema mudo, mas é preciso ter boa mão para fazê-la bem. No segundo segmento, destaque para a cena de sexo na floresta, com a câmera rodopiando com frequência mostrando as folhas das árvores em paralelo com a expressão de prazer da mulher, em close-up.

Filme Demência

Dossiê Inácio Araújo

Filme Demência
Direação: Carlos Reichenbach
Co-roteiro, co-diálogos: Inácio Araújo
Brasil, 1986.

Por Filipe Chamy

Alice no País das Maravilhas é icônico, entre outras razões, porque é uma leitura fascinante de qualquer maneira que seja feita: ou tendo tudo como verdade, real, acontecido daquele jeito narrado por Lewis Carroll, ou sendo tudo símbolos, representações, enigmas, jogos. Filme demência também é uma obra cuja chave pode estar em sua decodificação, mas que impressiona também por seus choques de sentidos. Ou seja: no final das contas, as coisas valem por elas mesmas, e, ainda que não entendamos suas reais dimensões, suas características estão todas lá para serem notadas, conscientemente ou não.

Num dos primeiros minutos do filme de Carlos Reichenbach, a mulher com quem o protagonista está diz a ele, após ser acordada por um delírio de representação: “Fausto, enlouquecer não adianta”. Uma de tantas cenas que podem explicar ou não o filme, essa passagem vem bem a mostrar o grande conflito que permeia o filme: o fantástico e o mundano. A todo instante, Fausto tenta não ser literal, mas o mundo cotidiano o esmaga, com suas percepções brutas. Então é comum vermos Fausto com o olhar perdido, incapaz de reagir, solto num mundo de alegorias, fantasmas, visões. E da mesma maneira é cada vez mais gritante e violenta a rejeição que as personagens fazem a essas idiossincrasias.

O hoje crítico “em tempo integral” Inácio Araújo e o próprio diretor Carlos Reichenbach assinam a história do filme. Então quando dois cinéfilos se juntam, é fácil perceber as referências, sutis ou não, a filmes e artistas que eles admiram ou por quem foram influenciados. Alguns exemplos: o expositor chamado E. V. Stroheim, os pôsteres de filmes de Fuller (ídolo dos dois roteiristas) e outros cineastas, certas cenas burlescas ou trágicas ou engraçadas que fazem menção à obra de mil diretores ou dramaturgos ou o que seja, pois aqui realmente se passeia com desenvoltura de poesia à política, passando pelo cinema e outras formas de expressão.

Então nessa miscelânea talvez pareça fácil se perder, mas o único perdido, entre a ideia e a imagem, é o protagonista, feito com grande intensidade por Ênio Gonçalves. É ele que não saberá que sonho seguir (ou perseguir), que se deterá ante o real, desabando sem forças quando ninguém o ampara em seus confrontos lúcidos com seus tormentos íntimos, que entenderá afinal que a pior insanidade é a da intranquilidade consigo mesmo.

Trata-se de uma jornada de reparação ou de descoberta? De desilusão ou de serenidade? Ao longo de sua jornada, Fausto (o nome, outra referência) deparar-se-á com os mais estranhos tipos: uma moça libidinosa, um fumante inveterado, uma velha caronista. Mas serão todas essas pessoas avatares de Mefisto, o estranho ser sem gênero interpretado com força e presença por Emílio Di Biasi? Novamente retomamos o estribilho: não importa saber a verdade. Porque a verdade de Filme demência é a verdade do cinema, é o que está e não está na tela, não é uma questão de interpretação e sim de observação.

De qualquer modo, segue Fausto em sua busca. O filme tem uma galeria de personagens bizarros que podem ser vistos como distorções dos caracteres de seu protagonista: temos o amigo malandro que no fundo é medroso — uma constante na vida de Fausto é não saber se impor —, o homem que procura cigarros na fábrica fechada — a fábrica de Fausto, negócio que tinha e no qual fracassou, talvez se ele retirar os cigarros dali ele retire sua indignidade —, a moça que gosta dele e que ele julga provavelmente muito simplória. E, evidentemente, temos a paradisíaca paisagem que ele tenta achar (o que espera encontrar lá?) e a menina que o segue como uma lembrança de morte. Mas e se a morte para ele é vida? Nessa gama de onirismo culpado e caos da sociedade contemporânea, Fausto acha enfim seu rumo em seus próprios medos.

Aleluia Gretchen

Dossiê Inácio Araújo

Aleluia, Gretchen
Direção: Sylvio Black
Montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1976.

Por Filipe Chamy

Se em um filme sobre o relacionamento romântico-amoroso de um casal uma cena onde a esposa trai o marido é colocada logo no início, o espectador certamente ficará contra ela. Pensará: “essa mulher não presta”, “por que ela faz isso com o marido?”, “espero que ele se vingue”. Se pouco tempo depois o marido é mostrado traindo a esposa, o espectador sente-se recompensado. Bradará: “tomou, vagabunda”. Mesmo que, no filme, o sujeito não desconfie nem minimamente do comportamento da esposa, o espectador sente como se de alguma maneira ele tivesse essa ciência e sua traição tenha sido apenas em resposta a isso, uma pura consequência da infidelidade de sua parceira. Quer dizer: ele traiu porque quis, mas se a mulher traiu antes, ele tem esse direito.

Por que esse prólogo? Imaginem agora o contrário: o filme lá pelo meio e o marido trai a inocente esposa. Depois é mostrada uma cena onde ela trai seu parceiro conjugal. E então? Quem a condenará? Todos passarão a apoiá-la, pois agora quem foi traído?

O filme escrito e dirigido, a montagem passa a ser um problema diegético, referente à própria lógica narrativa que o filme deseja expressar. Nos exemplos dados acima, a ordem dos planos é capital para a compreensão da história, e se ela for ineficaz, abrupta ou incoerente, o filme não flui com sua devida cadência, codifica erradamente as mensagens-símbolo visuais do cineasta, compromete o desempenho do filme, portanto.

O montador deste Aleluia, Gretchen é Inácio Araújo, e, como crítico e cinéfilo (conhecedor de Hitchcock, Fuller, Hawks), entende que esse princípio deve ser observado e trabalhado com certo respeito inerente mesmo a essas funções anônimas que estruturam o filme.

Mas Aleluia, Gretchen tem uma falha inerente a sua própria essência: o filme dirigido por Sylvio Black tem por base a instalação do pensamento nazista em uma realidade exo-européia, ou seja, fora da Alemanha, o germe do neo-nazismo. Então quando a realidade dos fatos (mesmo que ficcionalizados) obriga o filme a seguir uma determinada cartilha cronológica, a montagem ressente-se um pouco dessa prisão — como de resto ressente-se o filme por apresentar-se como uma obra onde os personagens são esmagados por sua visão na História; paradoxalmente, os simpatizantes do fascismo encontram em filmes assim uma unidade de pensamento com seus colegas de massificação que mais assemelha seu comportamento ao comunismo: todos iguais, todos juntos. E quando essas criações falam tanto de Hitler, Segunda Guerra, patriotismo e ideais, tudo isso soa tão ridículo e artificial que elas viram caricatura, ou pior, perdem-se no discurso. Sabemos que existiram tipos assim, mas o realismo de suas construções não impede sua impertinência cinematográfica. É tedioso comprovar que quando as personagens se envolvem nos tais eventos históricos, a História mata suas vidas: e elas ficam apáticas, desérticas, uniformes, sem qualquer distinção, e suas ações não interessam pois servem apenas de peça a uma máquina que, elaborada sem paixão pelo diretor Sylvio Black, resume seu funcionamento a diálogos batidos sobre o engano da juventude hitlerista, ou à exposição do inconformismo dos imigrantes expulsos de seus países e pensamentos, ou a um final esquemático onde a alegria brasileira acaba servindo de mote a uma forçada confraternização dos povos. Prende-se o público-alvo com cordas falsas de comprometimento, enfim.

Filme interessante mas pouco maduro, agradável mas não memorável, sabotado por suas próprias armadilhas, Aleluia, Gretchen é, mais que um retrato de uma geração, um pequeno fotograma do cinema brasileiro, caso de montagem mais eficiente que a direção, e, para retomar o exemplo do começo, uma traição desordenada e por isso sem torcida.

O Jeca Macumbeiro

Dossiê Inácio Araújo

O Jeca Macumbeiro
Direção: Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner
Montagem: Inácio Araújo
Brasil, 1974

Por Leando Caraça

O caboclo Pirola (Mazzaripi) recebe a visita de compadre Nhonhô, sem esperar que isso fosse complicar tanto a sua vidinha. O velho amigo, já sentido a morte se aproximar, deixa como presente para Pirola, um saco cheio de dinheiro. Nhonhô juntou a bufunfa para quando fosse casar, só que agora já é tarde demais. “Deus dá o saco, mas o diabo leva embora toda a farinha”, lembra Pirola ao pobre companheiro. Com medo de guardar a dinheirama em casa, o matuto deixa a fortuna aos cuidados do Coronel Januário (Joffre Soares), o manda-chuva local e também sogro de Pirola.

Completamente falido, Januário e sua esposa tentam de todos as formas desfazer o casamento de seu filho Mário (Ivan lima) com Filomena (Selma Egrei), a filha de Pirola. A intenção deles é que Mário se case com Ester (Maria do Roccio), a filha do maior credor do coronel. Para dar um basta na situação, Januário decide pegar para si a fortuna de Pirola.

Sem ter a quem pedir ajuda, já que é a sua palavra contra a do Coronel, Pirola resolve confrontar o seu inimigo no campo de batalha dele. Acontece que Januário, supostamente, também é pai-de-santo e costuma realizar sessões espíritas em sua residência – a farsa ajuda e muito a manter a população de local assustada e bem quieta. Pois é em uma dessas atividades mediúnicas, que Pirola vai encorporar (só de mentira) a entidade do Caboclo Chupa-Roia e dar sentido ao título do filme. O assunto será resolvido de fato, quando Mário descobrir a verdade por trás dos fatos e ajudar Filomena e seu pai.

O Jeca Macumbeiro foi a maior bilheteria da carreira de Amácio Mazzaropi, vendendo mais ingressos no Brasil do que diversos blockbusters americanos da época (como Inferno na Torre e Tubarão). Mazzaropi provou novamente que possuía um grande tino comercial ao juntar a figura do matuto com temas religiosos e sobrenaturais. Não é a toa que as produções posteriores do ator-cineasta também iam nessa onda (O Jeca Contra o Capeta, Jecão… Um Fofoqueiro no Céu, O Jeca e a Égua Milagrosa).

Leandro Caraça é pesquisador de cinema de gênero. Colabora com o blog O Dia da Fúria e mantém o blog Viver e Morrer no Cinema.

O Fotógrafo

Dossiê Inácio Araújo

O Fotógrafo
Direção: Jean Garret
Co-argumento, Co-roteiro: Inácio Araújo
Brasil, 1981

Por Leo Cunha

Jean Garrett terminou sua carreira cinematográfica em meados da década de 80, dirigindo filmes assumidamente pornôs, como Entra e sai e Fuk Fuk à Brasileira, mas preferiu assiná-los como J.A. Nunes (seu sobrenome verdadeiro, por sinal). Poucos anos antes, porém, em filmes como O fotógrafo, seu cinema estava mais para Walter Hugo Khouri do que para Tony Mel (pseudônimo assumido por Antonio Meliande para assinar seus filmes de sexo explícito).

O fotógrafo é um filme com ambições psicológicas e sociais, direção elegante, fotografia de cuidado artesanal. No que diz respeito ao apuro dos enquadramentos e da mise-en-scène em geral, os méritos cabem ao próprio Garrett, que, aliás, começou sua carreira como fotógrafo. No que se refere à trama, porém, o crédito deve ser compartilhado com Inácio Araújo, com quem assinou o roteiro.

O fotógrafo do título é Dênis, um sujeito com grande talento para editoriais de moda e ensaios sensuais. Ele vive praticamente fechado em sua casa/estúdio, clicando (e muitas vezes seduzindo) beldades nuas, mas sonha sair deste enclausuramento (físico, profissional e moral) fotografando o que está do lado de fora da janela. Principalmente uma linda vizinha (interpretada por Aldine Muller), por quem se encanta.

Porém, quando finalmente se aproxima da vizinha, Dênis vê ameaçada sua autoconfiança, tanto de conquistador quanto de grande profissional. A moça, que estuda sociologia da USP, despeja sobre ele um punhado de conceitos e categorias marxistas, decretando que ele é um escravo da burguesia e que seu trabalho é algo banal e alienado. “Essas fotos capciosas têm um valor sociologicamente nulo. Além do mais, a mulher é coisificada e o corpo transformado em mercadoria (…) Você é explorado duas vezes: o patrão que tira a mais valia e as mulheres que te usam de escada para atingir um falso estrelato.” A estudante garante (e Dênis acredita) que quer aprender fotografia com intuitos muito mais “nobres”: registrar a miséria e a injustiça que estão ao seu redor: “No caminho entre a faculdade e a minha casa, a gente vê tanta miséria, que é impossível ficar indiferente. Isso deve ser documentado.”

É difícil não enxergar um aspecto metalinguístico nesta trama, se a cotejamos com a trajetória do próprio Garrett (e alguns colegas da Boca do Lixo), sujeitos ao dilema entre fazer arte “culta”, ou “respeitável” e obras de apelo sensual, popular, comercial, etc. Por outro lado, o filme deixa transparecer uma ironia com relação ao discurso pronto e amarrado da estudante. Assim, O fotógrafo mantém uma ambiguidade, sem jamais cair no tom “demonstrativo” (para usar um termo recorrente nas críticas cinematográficas de Inácio) ou no “mensageirismo” – para tomar emprestado o termo usado pelo crítico (do veículo) rival, Luiz Carlos Merten.

O fotógrafo sai-se muito melhor do que seu protagonista, que vê sua frustração se materializar numa grande brochada em sua primeira (e única) oportunidade diante da musa nua, e em seguida, para completar, vê-se descartado como um homem-objeto, por Patrícia, a assistente a quem considerava uma tola eternamente apaixonada e submissa. Apesar da voz monocórdica (ou talvez por causa dela), Roberto Miranda consegue criar um protagonista fascinante, com um lado cafajeste e um lado artista sonhador, um lado arrogante e um lado inseguro.

Como bem argumentou Andrea Ormond, em seu blog Estranho Encontro, este filme (e outros de Garrett) se distanciam da visão pretensamente machista que se costuma atribuir, de forma generalizada, ao cinema da Boca do Lixo. Segundo Ormond, Garrett “demonstrava perspectiva bastante original a respeito do batido tema da tensão entre os sexos”. Na mesma linha de argumentação, Alessandro Gamo, em sua tese de doutorado, Vozes da boca (Unicamp, 2006), salienta que Garrett “tenta mudar a abordagem moral da Boca, com dois filmes que representam a sexualidade por um viés feminino, em Mulher, mulher e A mulher que inventou o amor, além do intimista O fotógrafo.”

Vale ressaltar, enfim, alguns achados narrativos do filme. Em várias cenas, Dênis, sozinho, narra suas conversas com a estudante, dizendo tanto suas falas quanto as dela, enquanto a imagem mostra apenas fotografias que ele tirou da musa. O recurso é intrigante, gerando no espectador a dúvida: será que estamos testemunhando um diálogo que se passa na imaginação de Dênis, em seu desejo? Será uma conversa futura, a lembrança de uma conversa já ocorrida, ou um pouco de cada?

A destacar também as diversas metáforas fálicas, tanto visuais quanto verbais, que se espalham pelo filme. Uma das mais divertidas aparece na cena em que Dênis está fotografando um casal de modelos, ela novata e ele gay. Percebendo que o rapaz não demonstra suficiente tesão em cena, Dênis fustiga: “Vamos, Marcos, enlace ela com mais vigor, com mais vontade”. Depois, quando percebe que o rapaz não se empolga mesmo, o fotógrafo apela para a ironia e, fingindo que está apenas dirigindo a foto, dispara: “levanta o cachimbo, Marcos!” Apenas um detalhe, é claro, mas bem adequado a um filme que não se leva tão a sério e que, no fundo, desconfia de quem o faz.

Leo Cunha é professor de cinema, escritor e integrante da revista Filmes Polvo.